PATRIA MESTIZA A invenção do passado nacional mexicano (séculos XVIII e XIX) ©2012 Luiz Estevam de Oliveira Fernandes Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor. F3911 Fernandes, Luiz Estevam de Oliveira Patria Mestiza: A invenção do passado mexicano (séculos XVIII e XIX) /Luiz Estevam de Oliveira Fernandes. Jundiaí, Paco Editorial: 2012. 320 p. Inclui bibliografia. Inclui figuras. ISBN: 978-85-8148-106-7 1. Patria mestiza 2. México 3. História 4. Antiguidade I. Fernandes, Luiz Estevam de Oliveira. CDD: 901 Índices para catálogo sistemático: História México e América Central IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Foi feito Depósito Legal Rua 23 de Maio, 550 Vianelo - Jundiaí-SP - 13207-070 11 4521-6315 | 2449-0740 [email protected] 901 972 Em todas as minhas viagens ao México, não resisti a entrar na Catedral Metropolitana, antes ou depois de visitar os muitos sebos localizados na rua atrás do templo. Também repeti uma espécie de ritual iniciado em minha primeira visita, em 2000: procurar o Señor Hernández, guia turístico que trabalha na porta do imenso e centenário edifício católico. Fascinava-me sua visão de História e como ele contava sobre os astecas serem parentes dos chineses, terem cidades e governo como na Antiguidade clássica europeia, como a Conquista forjara um povo mestiço no México, entre outras preciosidades enciclopédicas. Sabia o nome de todos os santos, anjos e arcanjos, tronos e potestades retratados em todas as capelas da Catedral, bem como o fato do material do portão do coro, uma liga, a tumbaga, ter sido trazido de Macau. Homem de personalidade fascinante: rejubilava-se em saber que éramos católicos (não sou, mas jamais diria isso a ele); como um professor, cobrava-nos informações que acabara de dar; benzia-se com frequência e, em nenhum dos retornos que fiz, se lembrou de mim ou de minha família: “Hay mucha gente!”, justificava-se. Qual não foi minha surpresa ao ver minha pesquisa sobre Clavijero ampliar-se, quase com vida própria, para estudar a formação dessa memória que o sr. Hernández tanto insistiu para que eu aprendesse. Grata surpresa. Ao guia da Catedral, eu agradeço. Aproveito para, logo de início, agradecer meus colegas e alunos do curso de História da UFOP, onde leciono. Em especial, aos alunos do Grupo de Estudos de História das Américas: suas ideias e sugestões muito me ajudaram. A pesquisa não teria sido possível sem as bolsas que obtive do CNPq, tanto a de doutorado regular como a de doutorado sandwich. No México, agradeço ao prof. dr. Federico Navarrete Liñares, que me abriu as portas de bibliotecas e arquivos. Sua esposa, a pesquisadora Msa. Edith Llamas, também me auxiliou muito na Universidade Iberoamericana, apresentando-me ao padre Rafael Ignácio Rodriguez Jiménez, SI, que, por sua vez, conseguiu que eu entrasse no quase secreto Arquivo Histórico da Província Mexicana da Companhia de Jesus, onde está o manuscrito em espanhol de Clavijero. Agradeço aos amáveis funcionários da Biblioteca Francisco Xavier Clavijero, Biblioteca Rafael García Granados, Biblioteca Nacional, Condumex, Archivo General de la Nación e Arquivo Jesuíta, sem os quais a pesquisa teria sido muito mais difícil. No Brasil, agradeço aos funcionários da Biblioteca do IFCH-Unicamp, em especial a Benedito, o Benê, eficaz, infalível e sempre bem disposto. Meus agradecimentos também vão aos funcionários das bibliotecas do IEL e da FE (Unicamp), da FFLCH-USP e do Museu Paulista. A Pedro Paulo Funari, Leila Mezan Algranti, Célia Marinho, Eliane Moura, Paulo Miceli e Hector Bruit, professores que me guiaram em todos os anos de Unicamp, agradeço infinitamente. Em igual medida sou muito grato à Profa. dra. Janice Theodoro, da USP. Tampouco poderia me furtar de agradecer ao prof. dr. José Alves de Freitas Neto, pelos anos de Grupo de estudos, bem como aos colegas pela leitura de trechos do trabalho, opiniões e sugestões incríveis e oportunas: Luís G. Kalil, Gabriel Sordi, Priscila Pereira, Flavia Galli Tatsch, Flávia Preto de Godoy Oliveira, Rafael Pavani, Marcos Tolentino; e ao competente latinista Luciano Pinto. Também estou em débito com Thais Torres pela revisão dos originais e a todos na Editora Paco, pela seriedade e diligência no trabalho com os originais. Aos professores que arguiram a tese que resultou neste livro, meu muito obrigado: Gabriela Pelegrino, Jaime de Almeida, Leila Algranti e Freitas Neto. Também não posso me furtar a agradecer a leitura das profas. dras. Eliane Cristina Deckmann Fleck e Maria Cristina Bohn Martins e, em especial, de Jorge Cañizares-Esguerra, professor de exímio talento e amigo dileto nas aventuras em busca do Antigo Testamento pelas igrejas mineiras. Na família, sou profundamente grato a João Paulo e Carolina; Dona Graça, Dona Ana e Seu Antonio; Sheila; Diego, Guilherme, Felipe e Tadeu; Anderson R. dos Reis (o grande especialista!) e Marcus; Sílvio, Fernando e Macai. Lucas, meu irmão iluminado, Tereza, que sempre sonhou em ter um filho doutor e incentivou e acreditou em cada passo, e Rui, o pai de coração aberto à leitura e afagos. A vocês três (e aos avôs!) por me ensinarem os valores mais importantes que procuro carregar: “dar pão a quem tem fome e fome de justiça a quem tem pão”. Agradeço imensamente ao prof. dr. Leandro Karnal, homem de profunda erudição (um verdadeiro Funes com capacidade de sorrir), professor brilhante, orientador e amigo para todas as horas. Continuo a afirmar que todos os acertos deste texto apoiam-se em sua diligência; os defeitos, em minha teimosia. E, finalmente, em mais que um agradecimento, escrevo algumas linhas para falar de um sentimento que não caberia em livros. À Aline, meu lar, companhia infalível na última década: que privilégio poder contar com seu amor e carinho, sua torcida e apoio, seu olhar crítico de historiadora e arqueóloga de talento que tanto me ajudaram. Sempre juntos! Sumário PREFÁCIO Nosotros, los puros; nosotros, los mestizos…...............................................13 Introdução 1. Dos pressupostos.....................................................................................17 2. Dos capítulos............................................................................................25 3. Das fontes.................................................................................................28 3.1. Clavijero.................................................................................................29 3.2. Humboldt...............................................................................................30 3.3. Mier......................................................................................................31 3.4. Riva Palacio............................................................................................33 Notas...........................................................................................................42 Capítulo 1 A criação de um passado de ouro: A formação da tradição intelectual de representar os astecas como parte do passado mexicano.........45 1. Civilizados e bárbaros: a caracterização dos indígenas como emulação do europeu....................................................45 2. Atlântida, Israel, Ásia: teorias para explicar a origem dos astecas.............61 3. Antiguidade clássica e astecas: a comparação como um método de definição..73 4. Fadados ao fim: a teleologia da Conquista................................................83 Notas...........................................................................................................90 Capítulo 2 Anáhuac e México, duas faces de uma mesma memória: Os nomes e os usos da terra como instrumentos de memória e política........97 1. Os nomes atribuídos a terra até o século XVIII.........................................97 2. O vocabulário geográfico no século XVIII: Anáhuac e México definindo quem eram os mexicanos..............................112 3. Debates do início do século XIX: terra, política e história.......................117 4. As discussões sobre os nomes do México no século XIX: Etimologia, Geografia e História como projeto político...............................123 5. A consolidação da memória territorial mexicana.....................................138 Notas.........................................................................................................141 Capítulo 3 As faces de Janus: Representações materiais do discurso da glória passada e da crença no porvir........................................147 1. A materialização da memória histórica....................................................147 2. Índios de papel: as representações imagéticas do passado na Nova Espanha..150 3. O arco que recepcionou o Conde de Paredes: astecas como inspiração moral..156 4. A criação do cânone neoasteca...............................................................161 5. O país precisa de um mapa: passado e presente fundem-se na narrativa do território.............................................165 6. A memorialização do passado: as primeiras estátuas no “Paseo de la Reforma”..........................................179 7. A recorrência do cânone neoasteca.........................................................198 8. A tensão das representações: o índio do passado e o índio vivo...............204 Notas.........................................................................................................209 Capítulo 4 Nós e os outros: Um século que forjou o mito da mestiçagem (1780-1889)....213 1. O conceito de mestiçagem na historiografia mexicana............................213 2. Educação e promoção social: o indígena no fim do período colonial.......219 3. “Mestizos contra a tirania”: a mestiçagem no pensamento de Mier.........226 4. A disputa pela memória: índios e mestizos em um México branco..........230 5. O discurso da mestiçagem como pacificação do passado e do presente..240 6. O sucesso de uma fórmula: a mestiçagem como projeto nacional...........261 Notas.........................................................................................................263 Conclusão Da Crônica à História.................................................................................269 1. História salvífica e História patriótica......................................................269 2. Dessacralizando a História.....................................................................278 3. História como propedêutica nacional......................................................286 Notas.........................................................................................................292 Referências.........................................................................................295 Fontes e documentos..................................................................................309 SOBRE O AUTOR......................................................................................317 Lista de Figuras Figura 1: “Pyramide de Cholula”, de Alexander Von Humboldt. Vistas de las cordilleras y monumentos de los pueblos indígenas de América..57 Figuras 2 e 2a: Mapa constante da edição latina da Segunda Carta de Cortés, 1524...................................................106 Figura 3: Benedetto Bordone, “La gran città de Temistitan” (1527).......106 Figura 4: Giovanni Battista Ramusio, “La città de Temistitan” (1556)...107 Figura 5: Georgius Bruin e Franciscus Hogenbergius, “Mexico, regia et celebris Hispania Novae civitas”, 1562.............................108 Figuras 6, 6a E 6b: Mapa-múndi de Plancius e visões ampliadas, 1596....110 Figura 7: John Seller, “Mexico or New Spain”, 1679.............................112 Figura 8: Mapa presente em Clavijero, edição original em italiano, de 1780...117 Figura 9: Frontispício da Monarchía Yndiana de Juan de Torquemada, OFM. Edição de 1615..........................................151 Figura 10: Diego Valadés, OFM, Rhetorica Christiana, 1579..................152 Figura 11: Gerónimo de Mendieta, OFM, Historia eclesiástica indiana, 1980...................................................153 Figura 12: Frontispício Monarquía Indiana de Juan de Torquemada, OFM. Edição de 1723.........................................154 Figura 13: Esquema das fachadas norte e sul do arco triunfal de Sigüenza y Góngora, 1680 (seguindo modelo proposto por Kugelgen: 2008, 117)...158 Figura 14: “Capela de Huitzilopochtli”, presente no livro VI, da Historia Antigua de México, de Francisco Javier Clavijero.......................162 Figura 15: “Sacrifício Gladiatório”, também presente no livro VI, da Historia Antigua de México, de Clavijero.........................163 Figura 16: García Cubas, Antonio. “Carta general de la Republica Mexicana”..................................................169 Figura 17: Detalhe do Mapa de García Cubas........................................170 Figura 18: Detalhe do Mapa de García Cubas........................................172 Figura 19: García Cubas, Antonio. “Carta Historica y Arqueologica”. Atlas Pintoresco e Historico de los Estados Unidos Mexicanos [1885]...........174 Figura 20: García Cubas, Antonio. “Reyno de la Nueva Espana a Principios del Siglo XIX”. Atlas Pintoresco e Historico de los Estados Unidos Mexicanos.......176 Figura 21 e 21a: García Cubas, Antonio. “Carta Politica”. Atlas Pintoresco e Historico de los Estados Unidos Mexicanos.....................178 Figura 22: Estátua de Cuauhtémoc.........................................................184 Figuras 23 e 24: “A prisão de Cuauhtémoc” e “O tormento de Cuauhtémoc”.....187 Figura 25: Tlahuicole, de Manuel Vilar, escultura de 1852.....................188 Figuras 26 e 27: Prision de Guatemoc e Sacrificio de Guatimotzin, de Heredia.........................................................190 Figura 28: Fronstispício de Riva Palacio, et al. El Libro rojo: 1520-1867....194 Figuras 29 e 30: Tortura de Cuauhtémoc e Prisão de Cuahtémoc..........195 Figura 31: Joaquín Ramírez, La rendición de Cuauhtémoc, 1893...........196 Figura 32: Leandro Izaguirre, El Suplicio de Cuauhtémoc, 1893............197 Figura 33: Cartão postal mostrando o Paseo de la Reforma, 1904..........203 Figuras 34 e 35: “Costumes des Indiens de Méchoacan”, de Alexander Von Humboldt.............................................207 Figuras 36 e 37: Ilustrações intituladas “Indios de Ixtahuaca – Oaxaca. (Tipo actual)” e “Indios de las cercanias de Tehuantepec – Oaxaca. (Tipo actual)”..208 Figura 38: Felix Parra. Fray Bartolomé de las Casas, de 1875.................242 Figura 39: Felix Parra, Escenas de la Conquista: el massacre de Cholula, 1877..244 Figura 40: Frontispício original do primeiro volume da coleção México a través de los siglos, que circulou até a edição de 1953..................256 Figura 41: Frontispício do segundo tomo da coleção México a través de los siglos..259 PREFÁCIO Nosotros, los puros; nosotros, los mestizos… Toda pátria é mestiça e nenhuma pátria é mestiça. Contradição estrutural e eixo narrativo: o cogito hamletiano ser/não ser paira como o fantasma do rei nas muralhas de Elsinore. Por motivos variados e em parte explicados neste livro, alguns países criaram uma narrativa fundacional destacando a multiplicidade de peças do mosaico nacional. São os países mestiços, como o México e Brasil. Melhor: são os países de memória mestiça. Neles, identificam-se, em frascos separados na prateleira do passado, cada povo, língua ou cultura que seriam vertidos no cadinho da pátria. A receita admite uma variante no “modo de fazer”: a noção de melting pot dos Estados Unidos que implica dizer – somos muitos e de muitas partes, mas no Novo Mundo formamos grupos separados. Outros países destacaram a unidade notável da sua língua ou ocultaram peças da sua constituição variada. Provavelmente, um chileno ou um argentino acham-se menos mestiços do que um mexicano ou um brasileiro. Ousaríamos dizer que um espanhol (fruto de presenças celtas, fenícias, gregas, romanas, visigóticas, judaicas e mouras) também se considera mais “puro” do que um boliviano, seja lá o que a palavra puro possa significar. A construção de narrativas sobre a mestiçagem ou não de países orienta livros didáticos, eixos de grandes exposições sobre o passado e até políticas afirmativas e criação de leis e institutos para preservar a diversidade ou grupos constitutivos considerados ameaçados. A visão mais sólida de passados vistos como unidade monolítica pode levar, como na Suíça, à proibição de minaretes que poderiam ferir a unidade da paisagem ou a sacralidade da memória. Identidade nacional é uma construção e uma representação, mas circula de forma dialética com leis, medidas, restrições e políticas afirmativas. Negando ou destacando, podemos dizer que todos os países são mestiços. Todos são frutos de ondas sucessivas de migrações/invasões. Raça pura contém duas coisas improváveis: raça e pura. Não existem raças na espécie humana, mas existem discursos raciais sobre as diferenças fenotípicas, quase sempre muito negativos ou francamente genocidas. Quem defende raças cai, invariavelmente, em discursos de eugenia. Se vier acompanhado de falas sobre pureza racial então, ingressa no ramo da imbecilidade estrutural. Não se engane, leitor: todo racista é imbecil estrutural. 13 Luiz Estevam de Oliveira Fernandes Dissemos que todo país é mestiço. Agora, o círculo se completa neste uróboros estranho: ninguém é mestiço. Não somos mestiços porque mestiçagem implica um puro que faça amálgama com outro puro, formando um mestiço. Um europeu alemão ou um indígena tarasco são, ambos, frutos de muitos e muitos anos de sobreposições históricas, cruzamentos, migrações e invasões. Não há puros a combinar, logo, não há mestiços a gerar. A mesma observação vale para o ambíguo e decadente conceito de sincretismo em qualquer campo, especialmente o religioso. Dizer que Iemanjá seja uma entidade sincrética é uma concepção que imagina que, ao menos, a figura católica de Nossa Senhora seria a matéria-prima pura da simbiose Iemanjá. Ora, a origem do culto a Maria passa pelas deusas mãe da Ásia Menor, por Diana/Ártemis em Éfeso, por cultos helenísticos, pela tradição judaica e pela ascensão de uma certa concepção de corpo no Cristianismo que valorizava a virgindade. Maria é um elemento sincrético — mestiço se preferirem. Ao longo dos séculos da Idade Média, isto seria ainda mais complexo. A imagem feminina de Nossa Senhora da Luz, da Purificação ou da Imaculada Conceição encontra-se com tradições do Brasil e da cultura iorubá africana e surge… Iemanjá, “sincrética” e “mestiça”. Assim, voltando ao axioma inicial, todas as nações, pátrias, sociedades e ideias são mestiças, pois são fruto de muitas combinações. Nenhuma é mestiça porque não há um puro que, se existiu, perdeu-se nas brumas de Avalon do tempo. Mestiçagem e pureza são discursos que falam muito de quem os enuncia e nada do seu pretenso objeto. O texto de Luiz Estevam de Oliveira Fernandes trata dos discursos e estratégias de construção da identidade mexicana, mestiça na sua formulação básica. Na América “inventada antes de ser descoberta” que O’Gorman imaginou e Octavio Paz desenvolveu, há um “Novo Mundo” nacional além do óbvio das grandes navegações: é o Novo Mundo nacional, gestado nos século XVIII e XIX, que Luiz Estevam destrinça no obra a seguir. A Pátria Mestiza E o que este livro traz de novo? Luiz Estevam de Oliveira Fernandes produziu uma pesquisa que passa a ser uma referência no tema da construção da identidade nacional mexicana. Em primeiro lugar, porque, mesmo sendo um dos temas preferidos da historiografia mexicana, é bastante perpassado pelo tema do nacional. Nenhum texto é neutro e nenhum ser humano é isento, mas digamos que no debate sobre o Corinthians ou o Palmeiras, o autor torce pelo Dínamo de Kiev. O segundo mérito do texto, além do distanciamento citado antes, é a multiplicidade de fontes. Começamos com óbvias como Clavijero e o canto de 14 Patria Mestiza: A invenção do passado nacional mexicano (séculos XVIII e XIX) cisne da crônica colonial: Servando de Mier. Mas vamos além. Luiz Estevam acrescenta os eruditos do século XIX, os viajantes como Humboldt, a toponímia mexicana e até epígrafes de um presidente de infeliz memória, Carlos Salinas de Gortari. Os mapas, as representações literárias, a fortuna do nome México: tudo serve para o caráter polímata da ideia. Nomes de ruas e estátuas, bustos e rede urbana constituem outra parte da teia desta “formação das almas”, como definiria, para o caso brasileiro, José Murilo de Carvalho. Andamos, guiados pela mão do autor, pelo longo Paseo de la Reforma e somos apresentados às vetustas estátuas que ali estão para fazer uma via sacra da memória nacional, com estações e liturgias. O primeiro mérito foi o distanciamento crítico. O segundo residiu no caráter variado das fontes e elementos para as conclusões. O terceiro lança âncora na atualização. Temos, muitas vezes, a terceira geração de debatedores que raramente está sintetizada numa única obra. Assim, além do debate tradicional sobre mestiçagem, há a crítica conceitual de Gruzinski e a Terceira e rica via: a posição de Federico Navarrete Liñares sobre os anteriores. Tomemos outro exemplo: a posição clássica de Buffon sobre a América e a resposta feita por Clavijero, a análise realizada pelo belo livro de Antonello Gerbi e, por fim, a crítica de Cañizares-Esguerra sobre Gerbi. Assim, o leitor é informado de uma tese, antítese e síntese muito mais completa e fecha um ciclo de questões fulcrais de América. Ler a obra é acompanhar esta sucessão de posições que Luiz Estevam toma pela mão e nos apresenta tão bem. Os três motivos anteriores já inscreveriam a obra de Luiz Estevam ao lado das incontornáveis na área. Mas há algo sutil e fundamental a tratar. Pesquisador metódico e minucioso, capaz de recuos e aproximações em doses muito equilibradas, representa uma geração de texto e de perfil de autor nova e interessante. Com exceções que serão lembradas com frequência, tivemos autores pesquisadores de perfil ensaísta, com frases bonitas, soluções de feito retórico, parágrafos bem construídos e fluidez diáfana de embasamento. Em resumo, os textos eram bons, a busca de arquivos e bibliografia nem tanto. Depois houve uma geração mais metódica, menos dotada de arroubos, com busca clara de pesquisas e fontes. Eram jovens mais ABNT e menos Sérgio Buarque de Holanda. Com notáveis exceções, passamos dos textos que começavam com “nas dobras da tessitura oligárquica” para os que dealbavam com “o objetivo deste estudo é sistematizar a historiografia”… Este o feijão, aquele o sonho; um arquiteto e outro engenheiro; um nefelibata e outro abelha-operária. O texto de Luiz Estevam representa um novo modelo que, eu, nesta altura da minha experiência de universidade, adoraria ver como solução entre estes polos. Em nenhum momento deixamos de lado o rigor analítico e a farta busca de fontes documentais, imagéticas, impressas e historiográficas. Mas as frases fluem em tom cristalino, 15 Luiz Estevam de Oliveira Fernandes quase sempre construídas mirando mais a explicação objetiva que a retórica bacharelesca das soluções textuais. O beletrismo parnasiano se foi, mas em nenhum momento entramos no fordismo de textos feitos para que o Currículo Lattes cresça quatro milímetros. É um texto claro, de pesquisador maduro, com estrutura de professor. É o texto de Luiz Estevam de Oliveira Fernandes. Há 200 anos que se ouve uma sinfonia nacional em cores variadas que vão da tinta do exilado Clavijero a vultos êneos ou tintas de muralistas. O mérito do livro de Luiz Estevam é ter demonstrado a habilidade e contribuição de cada músico. Perceber que a nação tem semeador e ladrilhador é o incenso que esta obra traz à ara de Clio, ou de Quetzalcoatl. Escolha sua cor, ou seu deus… Leandro Karnal Prof. de América da UNICAMP 16