RESENHA
Circe Mary Silva da Silva
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES
BARROS, JOAQUIM CAVALCANTE LEAL DE.
Álgebra Superior (1897).
Rio de Janeiro: MAST/MCT, 2001.
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Joaquim Cavalcante Leal de Barros (Alagoas, 1852 - Recife, 1925), típico representante da elite
intelectual pernambucana na passagem do século XIX para o século XX, viveu quase toda a sua vida em
Recife, dedicando-se ao ensino da matemática. Ao procurar expressar sua visão dessa disciplina, deixava
entrever uma concepção de matemática revestida de uma enorme beleza:
O filósofo constrói uma síntese das idéias de uma época; o poeta representa essa síntese num
poema […]; o matemático reduz essas mesmas idéias a formas expressas por leis de grandeza. Assim,
devido a essa afinidade íntima, acontece que um filósofo, um poeta e um matemático são identificados na
mesma pessoa, a diferença jazendo unicamente na maneira de exprimir seus conceitos: o filósofo por
1
idéias, o poeta por imagens, o matemático por fórmulas […] .
O professor de física e matemática pernambucano Luis Freire, por ocasião da homenagem que o
Conselho Deliberativo do CNPq prestou a Joaquim Cavalcante Leal de Barros, em 11 de novembro de
1952, apontou o homenageado como um dos mestres mais ilustres e de cultura mais ampla que ensinou
no Ginásio Pernambucano:“Nenhum dos grandes ramos fundamentais do conhecimento humano lhe
era desconhecido: matemática, ciências físicas e naturais, astronomia, línguas clássicas e modernas e suas
respectivas literaturas, história, geografia, etnografia, filosofia e música, a qual cultuava como compositor
2
e executor” . A maior parte desse conhecimento foi obtido por um esforço autodidata incomum. Freire
relembra ter visto seu antigo mestre com obras de especialistas matemáticos, pouco conhecidos no
Recife, como as dos ingleses James Sylvester (1814-1897) e Arthur Caley (1821-1895), dois mestres da
teoria das formas algébricas, dos invariantes e das matrizes.
Em 1897, Leal de Barros concluiu a redação do texto intitulado Álgebra Superior que não foi
publicado na época, permanecendo guardado por muitos anos. As páginas manuscritas que chegaram às
mãos do seu neto, Henrique Lins de Barros, que as traz ao conhecimento do público mais de cem anos
após a sua criação, revelam muito sobre a capacidade autodidata e da atualização do autor sobre o
conhecimento matemático produzido no exterior.
Como desvendar os mistérios que cercam esse documento que foi escrito em uma época longínqua,
que deixa apenas transparente uma letra cursiva regular, que começa com o título, assinala o ponto inicial
do texto com um prefácio e, em uma última linha, a palavra escrita em letras maiúsculas – FIM – seguida
da data 13 de março de 1897?
Como Michael Foucault chama a atenção,“[...] as margens de um livro jamais são nítidas, nem
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Joaquim Cavalcante Leal de Barros (Alagoas, 1852 - Recife, 1925)
rigorosamente determinadas […] ele está preso em um sistema de remissões a outros livros, outros
textos, outras frases: nó em uma rede”3.
Os livros-texto de álgebra, no Brasil, começaram a surgir a partir da década de 1950. Foram muito
influenciados pelos autores franceses: Étienne Bézout (1730-1783), Sylvestre Lacroix (1765-1843) e
Louis Pierre Marie Bourdon (1779-1854), entre outros. O primeiro livro didático de álgebra elementar
de 1852, é de autoria de Cristiano Ottoni (1811-1896). A álgebra era entendida como uma parte da
matemática que tratava com números e utilizava letras para abreviar, simplificar e generalizar. A maioria
dos autores concebia a álgebra como uma aritmética generalizada, que servia para resolver problemas
envolvendo quantidades desconhecidas. Essas obras, em geral, intituladas Elementos de Álgebra, envolviam
os conteúdos de álgebra elementar, destinados aos cursos secundários e mesmo superiores. Em 1886, foi
publicada, no Rio de Janeiro, a obra Elementos de Álgebra ou Cálculo das funções diretas, dos irmãos
Alfredo Cândido de Moraes Rego e Antonio Gabriel de Moraes Rego, engenheiros militares e naturais do
Maranhão.Todavia, até a virada do século XX, praticamente não havia livros de autores nacionais dedicados
a uma álgebra não elementar. É com Aarão Reis – Curso Elementar de Matemática: Álgebra (1902) e
Roberto Trompowsky Leitão de Almeida – Licções de Álgebra Superior (1904) que surgem livros didáticos
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abordando aspectos não elementares da álgebra. Nesse segundo grupo de livros é que se insere o texto
de Leal de Barros.
Uma tentativa de publicação desse manuscrito de Leal de Barros ocorreu por ocasião do centenário
de seu nascimento, em 1952, quando o matemático Francisco de Oliveira Castro analisou o trabalho e
redigiu uma apresentação para a obra, visando a sua publicação. Na opinião de Oliveira de Castro, não
seria necessário fazer qualquer tentativa de adaptar o texto de Leal de Barros ao rigor matemático
exigido no século XX:“[…] viria tirar todo o sabor à sua leitura e mascarar o papel admirável desempenhado
pelo autodidatismo na formação desse lastro cultural que permitiu o aparecimento de tantos físicos e
matemáticos pernambucanos”4.
No prefácio, Leal de Barros deixa claro tratar-se de uma obra dedicada ao ensino da álgebra;
admite que o método que seguiu poderia ser questionável. No entanto, não escondia sua pretensão de ter
escrito um livro didático original, uma vez que procurou coordenar as idéias de modo a não haver
solução de continuidade. Afirma, ainda, ter procurado ser breve e ter evitado entrar em conceitos profundos
da matemática, uma vez que se tratava de um livro para principiantes. Não podemos concordar
integralmente com o autor quando ele diz tratar-se de um livro para principiantes – o texto pressupõe,
além dos conhecimentos da álgebra elementar, da geometria elementar, também o cálculo diferencial.
Ele começa com os conceitos de função e polinômio de grau n e apresenta, no sexto capítulo, sem
demonstração, o teorema fundamental da álgebra:“[...] toda equação tem uma raiz real ou imaginária”5.
Uma vez que o autor era professor do Ginásio Pernambuco, e o texto extrapola aqueles conhecimentos
exigidos para o ensino da álgebra no secundário, indagamos: para quem se destinava o texto? Podemos
conjeturar que ele abordasse esses conteúdos em suas aulas de matemática, o que significaria um padrão
muito elevado de ensino de ciências para uma localidade distante dos centros produtores ou de localidades
que tinham tradição na difusão da produção científica.
O que significa álgebra superior? O próprio autor responde a essa pergunta no prefácio: “O
conjunto de estudos, chamado ordinariamente‘álgebra superior’ou teoria das equações, é atualmente
vastíssimo”6. A álgebra simbólica, como é entendida nos nossos dias, surgiu com os franceses François
Viète (1540-1603) e René Descartes (1596-1650). Assim como o autor,Viète e Descartes eram bacharéis
em ciências jurídicas que se dedicavam à matemática. ComViète e Descartes uma nova fase na história da
matemática é inaugurada. Eles construíram uma notação apropriada e um simbolismo para o estudo das
equações em geral e para a representação das relações entre os coeficientes e as raízes de uma equação.
Viète introduziu as letras para representar as incógnitas nas equações e Descartes utilizou as últimas
letras do alfabeto latino (x, y, z, …) para as designá-las. Nenhum dos dois matemáticos considerava a
álgebra como uma disciplina que tratasse só de números; ambos tratavam das ligações da álgebra com a
geometria. No capítulo doze, Leal de Barros introduz a Regra dos sinais de Descartes. Ele utiliza esse
método para determinar o número de raízes reais e os limites entre os quais estão compreendidas as
raízes reais de uma equação. Esses temas são pouco mencionados nos cursos modernos de álgebra,
raramente são comentados, exceto em disciplinas de história da matemática.
O manuscrito do livro está dividido em 22 capítulos. O último deles dá destaque à resolução de
equações de terceiro e quarto graus, utilizando a fórmula de Cardano, para a resolução, por meio de
radicais da equação do terceiro grau, e o método de Descartes para a equação do quarto grau. Cabe
destacar o capítulo sobre a indagação das raízes incomensuráveis e o método de Horner. Trata-se de um
método numérico para encontrar raízes aproximadas das equações. O autor mostra a eficácia do método,
exemplificando, com a resolução da equação x 3 − 7x + 7 = 0 , encontrando duas raízes positivas com
oito casas decimais: 1,35689584 e 1,69202147. Segundo Oliveira Castro, provavelmente foi o professor
Leal de Barros o primeiro a introduzir o método de Horner, no Brasil, uma vez que ele só começou a
aparecer nos programas das disciplinas de matemática da Escola Politécnica a partir de 1903.
O método de aproximação de Horner foi muito citado nos livros didáticos de álgebra, nos séculos
XIX e início do XX, na Inglaterra e EUA. Willian George Horner (1786-1837) nasceu em Bristol (RU) e
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sua contribuição significativa para a matemática foi o método de aproximação para resolução de equações
algébricas que ele submeteu a Royal Society em 1819 e que nesse mesmo ano foi publicado no Philosophical
Transactions of the Royal Society. A razão da repercussão do método é devida as publicações de De
Morgan, que nomeou o método de Horner e o divulgou em vários artigos.
Joaquim Cavalcante Leal de Barros não passou incólume às idéias positivistas reinantes na época
em que viveu. A prova disso é a citação na página de rosto de seu livro:“É então a ciência matemática que
deve constituir o verdadeiro ponto de partida de toda educação racional seja geral, seja especial” (Auguste
Comte). Todavia, além dessa citação, não é visível no texto qualquer outra influência das idéias comtianas
sobre a matemática. Ao contrário, os autores citados estão bem distantes da matemática positivista:
Salmon, Abel, Cauchy, Brunside, Panton, entre outros. É interessante observar que o destacado matemático
francês Augustin Louis Cauchy (1789-1857), que inaugurou um novo período na matemática rigorosa
do século XIX, foi muito pouco citado nos trabalhos e livros didáticos de matemática escritos, por
brasileiros, naquele século. Nesse sentido, é surpreendente, vê-lo citado pelo professor pernambucano.
O texto de Lins de Barros não apresenta nenhuma rasura, nenhum erro; um cuidado enorme com
a forma de apresentação, cada página está numerada, o que permite supor tratar-se de uma última
versão, pronta para publicação. Por que esse manuscrito nunca foi publicado? Dificuldades em encontrar
um editor? Isolamento geográfico? Falta de leitores entre os professores de ciência no Brasil?
A trajetória percorrida por esse manuscrito de 1897 até 2001, quando finalmente foi editado, não
pode ser vista apenas como uma homenagem de um descendente ao intelectual e professor Joaquim
Cavalcante Leal de Barros, mas na verdade, é o reconhecimento da originalidade de seu trabalho.
Reconhecido pelos seus contemporâneos pela capacidade de formar Escola, transmitiu conhecimentos
científicos e contribuiu para a formação da elite intelectual de Recife, até para estudar a língua alemã
recorreu aos livros de matemática. Mas receoso de desaprender sua geometria, comentou com um
grande bom humor:“Imagine você, há nada mais simples, nada mais compreensível de dizer: a soma dos
ângulos de um triângulo vale dois ângulos retos. Não há nada mais simples, em português, francês,
italiano, em qualquer língua, mas em alemão não”7.
Os manuscritos de Leal de Barros, agora publicados pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins,
compreendem além do texto de álgebra superior, duas páginas do O Silibário e primeiras leituras (1913);
o catálogo de livros de 29 de maio de 1903, uma lista de exercícios de cálculo, geometria, mecânica e
astronomia, de julho de 1895. A introdução da obra foi feita por Henrique Lins de Barros, incluindo uma
biografia do autor e um retrato do ambiente pernambucano, onde o autor sempre viveu. A obra tem,
assim, um duplo interesse: para o historiador da matemática e para o historiador da cultura regional.
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Endnotes
1
BARROS, Joaquim Cavalcante Leal de. Álgebra Superior (1897). Rio de
Janeiro: MAST/MCT, 2001. p. 22-23.
2
a
CNPq. Conselho Deliberativo. Anais da 122 sessão do Conselho Deliberativo
do CNPq em 11 de novembro de 1952. (Arquivo CNPq. Acervo MAST).
3
FOUCAULT, Michael. Arqueologia do Saber . Rio de Janeiro: Vozes,
2000. p. 26.
4
5
6
BARROS, op. cit., p. 6.
Ibidem, p. 32.
Ibidem.
7
a
CNPq. Conselho Deliberativo. Anais da 22 . Sessão do Conselho Deliberativo
do CNPq em 1952. (Arquivo CNPq. Acervo MAST).
Resenha recebida em 02/2002. Aprovada em 03/2002.
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