capítulo 2
Ve m , a á g ua e st á c ong e l a nd o
1981
Casa Branca, 26 de fevereiro de 1981, quinta-feira.
Quaisquer que tenham sido as ansiedades que Margaret Thatcher sentiu
quando estava a caminho de Washington, elas já tinham desaparecido quando sua comitiva de carros oficiais chegou à Entrada Diplomática da Casa
Branca. Houve um abraço caloroso do presidente, que estava à sua espera.
Seguiram-se conversas simpáticas entre Nancy, a mulher de Reagan, e Denis,
o marido de Thatcher, embora os dois nunca tivessem se encontrado antes.
Reagan apresentou seu vice-presidente, George H. W. Bush, e o secretário
de Estado, Alexander Haig. O comitê de recepção da Casa Branca tinha gerado várias centenas de páginas de documentos para garantir que tudo seria
perfeito. Primeiro foi o espetacular “rufar de tambores e toques de clarim”
no Gramado Sul, com a banda da marinha norte-americana e uma guarda
de honra apresentando armas, tocando os hinos nacionais dos dois países e
fazendo uma salva de artilharia com tiros de canhão. Depois os dois líderes
passaram as tropas em revista e subiram ao pódio para fazer seus discursos
de abertura da cerimônia.
“Sua visita aqui renova a amizade pessoal que teve início em seu país pouco antes de a senhora assumir o seu cargo,” disse Reagan. “Quando conversamos em Londres apenas dois anos atrás — quando nenhum dos dois estava
na posição que ocupa agora —, fiquei impressionado com a semelhança dos
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desafios enfrentados por nossos países e de nossa determinação em enfrentar
esses desafios.”
Thatcher respondeu num tom igualmente pessoal. “Para mim é uma felicidade dupla estar novamente nos Estados Unidos: pela vitória esplêndida
e por estar sendo recebida pelo senhor, presidente, que há muito tempo se
tornou um amigo de confiança”, observou ela. “A mensagem que eu trouxe
do outro lado do Atlântico é que nós, na Grã-Bretanha, estamos do seu lado.
Os sucessos dos Estados Unidos serão sucessos nossos. Seus problemas serão
problemas nossos, e, quando precisar de amigos, estaremos lá.”1
Depois de concluídas todas as formalidades, Reagan pôs a mão afetuosa no braço de Thatcher, levou-a na direção da Sacada do Pórtico Sul e
introduziu-a na Sala Azul, antes de finalmente escoltá-la até a Sala Oval
para uma conversa particular. Apontando para uma jarra larga de balas de
goma, Reagan explicou que havia mais de trinta sabores ali, inclusive amendoim. “Ainda não tivemos tempo de tirá-los daqui,” brincou ele, referindo-se
ao passado plantador de amendoim do presidente Carter. Foi uma maneira
charmosa de quebrar o gelo. Finalmente a sós pela primeira vez na condição de líderes, talvez algo tenha ocorrido a ambos: pois, apesar de todas as
alusões à “amizade pessoal”, na verdade eles mal se conheciam. E, nesses
primeiros encontros, deve ter havido, por baixo das palavras doces e frases de
efeito, um toquezinho de decepção.
Não havia dúvida de que tinha se tornado a política explícita da equipe de
segurança nacional da Casa Branca sublinhar em público e privadamente a
amizade entre Thatcher e Reagan. “A imagem que nos seria mais útil que surgisse dessas conversas”, disse ao presidente o assessor de segurança nacional
Richard Allen, “é de dois líderes de mesma mentalidade que já avaliaram as
dificuldades enfrentadas por seus países, que não subestimam nem um pouco
a gravidade da situação, mas que não estão intimidados por esses problemas,
nem duvidam de que vão acabar conseguindo resolvê-los. Mangas arregaçadas e sobriedade com otimismo é a principal mensagem a ser transmitida por
essa visita; politicamente, ela pode ser um trunfo importante, tanto em casa
quanto no exterior”. A esperança era que um encontro entre Reagan e Thatcher representasse algo extraordinário, ao menos para a direita política, em
1
Observações que chegaram à Casa Branca, 26 de fevereiro de 1981: MTF, docid=104576
(acessado no dia 31 de agosto de 2008).
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termos de troca de ideias entre um presidente norte-americano e líderes da
Europa Ocidental, isto é, uma confluência de propósito que abrangesse não
só afinidades filosóficas, mas também perspectivas econômicas semelhantes
e uma lealdade, de ambas as partes, a um sistema forte de defesa, mas também uma determinação feroz e pragmática de tomar providências a respeito.2
No entanto, embora o governo estivesse ansioso por “paparicar” Thatcher,
também parecia haver um esforço bem orquestrado no sentido de lhe “dar
uma força”.Thatcher havia chegado a Washington trazendo na bagagem
um monte de problemas econômicos de seu país. “Ela foi ver o presidente
Reagan”, escreveu em seu diário Alan Clark, um parlamentar conservador, “e
eu espero que seja bem recebida, pois está precisando relaxar um pouco e de
uma injeção de ânimo no seu moral”. Em casa, na Grã-Bretanha, tinha havido uma inquietação social e industrial crescente a respeito da direção que
o país estava tomando. Thatcher assumira o poder em 1979 prometendo um
recomeço. “Se quisermos deter e depois inverter os longos anos de declínio
econômico de nosso país”, ela declarara, “mudanças fundamentais de política e atitude serão necessárias em todos os níveis”. Isso significaria “fazer as
fronteiras do Estado se retraírem” e substituir os pressupostos da era anterior
de consenso. Em síntese, dissera seu ministro Geoffrey Howe, seria preciso
haver “uma boa administração do dinheiro de que dispunham” e “uma restrição maior e economia nos gastos públicos”. O principal objetivo do “monetarismo” do governo era assumir o controle da inflação, que fora o flagelo
da economia britânica durante toda a década de 1970. Thatcher estava mais
preparada do que todos os seus antecessores para tolerar uma taxa maior de
desemprego. O fim justificaria os meios se o principal objetivo — diminuir a
inflação — fosse alcançado. Mas, como Howe admitia, havia o perigo de que
o desemprego fosse “insuportável”, o que provavelmente provocaria “tensão
social”.3
Na época em que Reagan assumiu o poder em janeiro de 1981, muitos já
consideravam um desastre o penoso ajuste econômico britânico. A Grã-Bretanha estava paralisada pela recessão. O desemprego crescia verticalmente, e
atingiria 3 milhões de pessoas dali a 12 meses. As falências estavam em ní-
2
Allen ao presidente, sem data: folder United Kingdom Prime Minister Thatcher visit, Box
91434, Executive Secretariat files (VIP visits), Ronald Reagan Library.
3
E. H. H. Green, Thatcher (Londres, 2006), p. 55-82.
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veis recordes. A indústria manufatureira se achava em crise. Os críticos, tanto
de dentro quanto de fora do partido de Thatcher clamavam por uma mudança radical na política econômica. O dirigente da poderosa Confederation of
British Industry (CBI) estava prometendo um confronto político direto. “Eu
era o centro das atenções, mas não era só por causa da minha intimidade com
o novo presidente”, lembrou Thatcher a respeito de sua chegada a Washington, “mas também por outro motivo menos lisonjeiro”.4 “Pronta para o combate, mas sem se dobrar” foi a manchete com que a revista Time a recebeu
nos Estados Unidos, cuja matéria falava de um país e de uma dirigente em
crise. A Economist foi mais longe ainda em sua primeira página, mostrando
caricaturas de Thatcher e Reagan em roupas de natação à beira-mar, em que
a primeira-ministra acena para um presidente hesitante, convidando-o a entrar na água com as palavras “Vem, está congelando!”.5
Havia críticos de Thatcher entre os membros mais tarimbados da equipe
econômica de Reagan. David Stockman, o diretor da Receita Federal de
Reagan, fanático pelo lado da oferta na economia, não fez nenhum esforço
para esconder que Thatcher havia sido insuficientemente radical, principalmente no que dizia respeito à redução dos impostos. Donald Regan, o ministro da Fazenda, escolheu exatamente a visita de Thatcher para fazer uma
análise semelhante perante um comitê do congresso. Thatcher notou a alfinetada, pois, observou ela acidamente, Reagan chegou direto do congresso
para “participar de um almoço no qual eu era a principal convidada”.6
Se o governo norte-americano queria saber mais coisas sobre a visão da
“Dama de Ferro” a respeito de questões econômicas, então a decepção foi
de ambas as partes. Thatcher reconhecia que as reduções dos impostos e a
economia eram diferenças que havia mesmo entre ela e o presidente. Qualquer um que a conhecesse bem sabia que ela gostava de debates combativos
sobre questões políticas. Na verdade, saber quais eram os pontos de vista do
presidente sobre os problemas econômicos da Grã-Bretanha era algo que ela
queria muito. Mas quando Reagan perguntou se os britânicos pretendiam
reduzir mais ainda os impostos, e mais rápido, sua resposta de que o processo
tinha de ser implementado em estágios — uma resposta clássica da “arte do
4
Margaret Thatcher, The Downing Street Years (Londres, 1993), p. 159.
5
Alan Clark, Diaries: into politics (Londres, 2000), p. 204. Time, 16 de fevereiro de 1981.
6
Margaret Thatcher, The Downing Street Years (Londres, 1993), p. 159.
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possível” — foi aceita sem muitos comentários. Thatcher ficou atônita. Mesmo que o presidente não estivesse envolvido pessoalmente, a última coisa
que ela esperava era uma reiteração das opiniões de Regan e Stockman. Foi a
primeira prova que ela teve de que talvez, afinal de contas, não haveria troca
de opiniões políticas, nem discussão de ideias importantes.7
Isso tinha sido algo em que Thatcher pusera grande ênfase nas semanas
anteriores à visita. Ela se preparara da maneira habitual com seus assessores, mas também convocara um “seminário” especial em Chequers, com acadêmicos e especialistas, entre os quais estavam Hugh Thomas, Sir Michael
Howard, George Urban e Esmond Wright. O grupo reunira-se para ajudá-la
a pensar uma estratégia mais ampla e definir questões filosóficas, e também
práticas, antes das conversas que teriam lugar em Washington. Ela queria
levar o que tinha de melhor para os encontros com Reagan, antecipando um
tour d’horizon sobre os grandes problemas do momento. Qual a interpretação
que aqueles homens davam às opiniões do presidente era o que ela queria
saber. Esses assessores acadêmicos a tinham avisado de que o presidente não
parecia “sofrer de um excesso de leitura, nem de nenhuma sede muito grande
de tipos de informações mais complicados”.8 Essa opinião coincidia com
aquela de Nicholas Henderson, que advertira: “A maior preocupação não
é a idade apenas, e sim se ele possui vitalidade mental e visão política para
ter êxito.” Até membros do ministério tinham manifestado dúvidas sobre
Reagan estar ou não à altura do cargo. Era uma “falácia”, dissera Ian Gilmour, pensar que só porque Carter tinha sido ruim Reagan não podia ser
pior.9 Thatcher fora mais otimista, acreditando que Reagan “seria um líder
forte”. Agora, depois de sua primeira reunião na Sala Oval, ela já não tinha
certeza.
Quaisquer que tenham sido as dúvidas ou decepções de Margaret Thatcher, ela estava determinada a não mostrá-las. Na verdade, em Chequers, os
assessores da primeira-ministra a tinham advertido de que, se o presidente
não conseguisse “manter-se à altura dela”, ela “deveria ter o cuidado de não
deixá-lo constrangido”. De fato, essa situação parecia oferecer uma oportu7
Geoffrey Smith, Reagan and Thatcher (Nova York, 1991), p. 45.
8
George Urban, Diplomacy and Disillusion at the Court of Margaret Thatcher: an insider’s view
(Londres, 1996), p. 20-1.
9
Ion Trewin (org.), The Hugo Young Papers (Londres, 2008), p. 155. The Sun, 30 de dezembro
de 2010.
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nidade. O presidente, disseram a Thatcher, “vê a si mesmo como presidente
de um grupo de governadores, e não como um administrador prático do tipo
[que os primeiros-ministros] tendem a ser e têm de ser”. Não devia haver o
mal-entendido, como sugerira Harold Macmillan décadas antes, de os britânicos desempenharem o papel de “gregos” para os “romanos” dos Estados
Unidos. Apesar de ser uma líder excepcional, Thatcher foi aconselhada a
encontrar uma forma de se introduzir no debate político que cercava o presidente.10
Thatcher já tinha sentido na própria pele o quanto as relações pessoais
podem alterar sutilmente as relações diplomáticas. A grande afinidade entre o presidente da França, Valéry Giscard d’Estaing, e o chanceler alemão,
Helmut Schmidt, tinha ajudado a isolá-la na Comunidade Europeia. “Elas
têm uma influência imensa,” concluiu ela, “elas moldam a política europeia
e são um fator poderoso no cenário mundial”. Thatcher compreendeu bem
que essa “influência” existia porque “eles parecem se entender perfeitamente
bem; são amigos pessoais e falam o mesmo tipo de língua”.11 A respeito das
questões europeias, a resposta dela a isso foi a política do confronto. Em
1979 e 1980, Thatcher envolveu-se numa série de lutas ferozes sobre as contribuições da Grã-Bretanha ao orçamento da CEE. A Grã-Bretanha fizera
a segunda maior contribuição líquida, perdendo somente para a Alemanha
Ocidental, o que Thatcher achava insuportável. “O seu único propósito é
humilhar a Grã-Bretanha”, declarou ela oficialmente. “Temos de lutar contra isso — abertamente, se necessário.”12 Na reunião de cúpula dos países
europeus, realizada em Dublin em novembro de 1979, ela exigiu grosseiramente: “Quero meu dinheiro de volta!” Os líderes europeus do Continente
ficaram horrorizados, mas ela conseguiu o que queria. A Grã-Bretanha obteve um reembolso de £ 350 milhões em 1979 e outro de £ 800 milhões no
ano seguinte. Foi definido todo um quadro de referências para restituições
futuras, além de uma revisão completa do processo de obtenção de fundos
da CEE. Mas isso teve um preço. “A firmeza e intransigência de Margaret
foram os fatores-chave para chegarmos a uma solução apropriada”, observou
10
Urban, Diplomacy and Disillusion, p. 27.
11
Urban, Diplomacy and Disillusion, p. 25.
12
UK National Archives, PREM 19/227, 4 de junho de 1980. http://www.nationalarchives.
gov.uk/news/december2010-files.htm (acessado no dia 11 de janeiro de 2011).
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Lord Carrington, o ministro do Exterior, mas “a atmosfera resultante” criou
um grande mal-estar em torno das relações da Grã-Bretanha com seus associados europeus que duraria todo o período do governo de Thatcher, e iria
além dele.13
Considerada uma personalidade difícil na Europa, Thatcher estava determinada a tirar o máximo proveito possível de uma amizade com o novo
presidente norte-americano, com quem ela já tinha criado uma relação pessoal de simpatia. Esse primeiro encontro oficial entre Reagan e Thatcher
oferecia exatamente uma oportunidade desse tipo; mas também era, para
Thatcher, uma advertência clara sobre os perigos de ser “usada” por membros
do governo. Em dezembro de 1979, o Presidente Carter tinha concordado
em mandar 464 mísseis cruise e 108 mísseis Pershing IIs para a Europa
como resposta aos mísseis SS20 que os soviéticos se preparavam para usar
em números crescentes. Dessas armas nucleares norte-americanas, 160 mísseis cruise deveriam ficar em bases norte-americanas na Grã-Bretanha. Essa
proposta de localização causou grande controvérsia em toda a Europa Ocidental, na Grã-Bretanha inclusive. Para neutralizar a ira popular, a OTAN
adotou uma estratégia dupla: ao mesmo tempo que se preparava para usar
suas armas nucleares, propôs negociar com a União Soviética para limitar
o número desse tipo de armas nucleares de alcance intermediário (ANM).
Thatcher apoiou essa política, e um motivo importante foi que, com a Campanha de Desarmamento Nuclear ganhando popularidade no Reino Unido,
a abordagem dupla ajudou-a a se defender de acusações de estar fomentando a guerra. O novo governo norte-americano tinha instaurado novamente
o debate sobre a conveniência de manter uma estratégia dual. O Pentágono,
em particular, diante da oposição do Departamento de Estado, defendia a
organização e o preparo para o combate sem esperar possíveis negociações
com os soviéticos.14
Esse debate continuaria durante todo o ano de 1981; mas, na reunião
com Reagan no dia 26 de fevereiro, Thatcher marcou alguns gols importantes. Com isso, ela conseguiu espiar por trás do véu que escondia a maneira pela qual a engrenagem girava no seio do governo. O Departamento
13
Green, Thatcher, p. 175-6.
14
Michael Carver, Tightrope Walking: British defence policy since 1945 (Londres, 1992), p. 1201.
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de Estado, por meio da embaixada britânica, pediu a Thatcher para levar a
questão da “estratégia dupla” ao presidente. Simultaneamente, Paul Bremer,
o assessor especial de Al Haig, enviou uma mensagem a James Rentschler, na
Casa Branca, com anotações para o que o presidente devia falar na coletiva
com a imprensa depois do encontro com Thatcher. Entre elas estava a declaração de que o presidente e a primeira-ministra tinham “confirmado” a decisão
de dezembro de 1979 de modernizar as armas nucleares e “paralelamente,
envidar esforços no sentido de controlar a proliferação das armas nucleares”.
Rentschler transmitiu essa mensagem a Richard Allen, o assessor de segurança nacional, observando que era uma questão “essencial” a ser discutida na
coletiva de imprensa. Allen passou-a ao presidente, que a repetiu palavra por
palavra para os jornalistas presentes. O Departamento de Estado e a equipe
do conselho de segurança nacional tinham derrotado o Pentágono, inclusive
um ministro da Defesa lívido, Caspar Weinberger. Thatcher permitiu-se ser
cúmplice da manobra porque ela se harmonizava com as prioridades estratégicas da Grã-Bretanha. Foi uma cartilha sobre a maneira de fazer negócio
com o novo governo.15
Thatcher, talvez antes da maioria, reconheceu que Reagan era o seu homem. Era óbvio que o presidente discordava das prioridades da política externa de seu predecessor imediato. Mais inusitado ainda foi ele fazer pouco
esforço para esconder o desprezo pelas políticas da Guerra Fria dos presidentes republicanos anteriores, Nixon e Ford. Em certa medida, era algo
que se podia esperar em função de sua campanha eleitoral. O que não foi
previsto foi a maneira pela qual Reagan, que muitas vezes foi mostrado pela
mídia como um bom “apresentador de programas” que deixava para outros a
tarefa de pensar, acabaria sendo aquele em cujos conselhos ela mais confiaria.
Ele empregava pesos-pesados em seu governo, como Haig e Weinberger,
mas não havia um assessor que exercesse o tipo de influência que Dulles,
por exemplo, tinha sobre Eisenhower, Kissinger sobre Nixon ou Brzezinski
sobre Carter. No segundo mandato, foi Shultz quem mais se aproximou des-
15
Paul Bremer a Richard Allen, visita de Thatcher, informe oficial apresentado depois da
reunião, 18 de fevereiro de 1981; James Rentschler a Richard Allen, 20 de fevereiro de 1981:
Executive Secretariat, NSC, VIP visits, folder Thatcher, UK prime minister Thatcher, 1981
visit, Box 91434, Ronald Reagan Library.
Observações do presidente, 26 de fevereiro de 1981: MTF docid=104576 (acessado no dia
31 de agosto de 2008).
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se papel. A autossuficiência de Reagan é demonstrada pelo fato de ele ter
demitido seis assessores de segurança nacional em oito anos: Richard Allen,
William Clark, Robert McFarlane, John Poindexter, Frank Carlucci e Colin
Powell. Em última instância, este presidente era o estrategista-chefe.16
Além até de uma série de instintos pró-Estados Unidos, pró-libertários,
Thatcher compreendeu neste contexto que a melhor maneira de influenciar a
política em favor de seus próprios interesses nacionais era convencer o presidente diretamente sobre qualquer questão determinada e conquistar aliados
no governo um por um. Portanto, era imperativo para ela que os dois concordassem. Isso ela promoveu com certo estilo num jantar de gala organizado
em homenagem a Reagan na embaixada britânica no dia 27 de fevereiro.
Naquela noite, Thatcher pôs todas as suas cartas na mesa e teve resultados
brilhantes. “Ela sabe aproveitar uma oportunidade”, observou mais tarde o
Embaixador Henderson, com admiração. “Ela dominara os artifícios laudatórios necessários para manter as engrenagens internacionais funcionando.”17
O discurso da primeira-ministra deixou Reagan satisfeitíssimo. Citando
a descrição que Dickens fez dos norte-americanos, um povo “por natureza franco, corajoso, cordial, hospitaleiro e afetuoso”, Thatcher dirigiu-se a
Reagan com um floreio: “Essa me parece, senhor presidente, uma descrição
perfeita do homem que é meu anfitrião nas últimas 48 horas.” Ela se afastou
do texto oficial e fez uma demonstração tocante e robusta de coragem política. “Haverá, senhor presidente, momentos em que talvez o seu trabalho seja
o mais solitário do mundo, momentos em que o senhor vai precisar do que
um dos meus grandes amigos na política [Airey Neave] chamou certa vez
de ‘coragem das duas e meia da manhã’”, explicou ela. “Haverá momentos em
que o senhor vai ter de enfrentar águas turbulentas. Haverá momentos em que
o inesperado acontecerá. Haverá momentos em que só o senhor poderá tomar a decisão certa.” Declarando explicitamente uma fé absoluta em Reagan,
Thatcher continuou: “Quero lhe dizer, senhor presidente, que, quando esses
momentos chegarem, nós aqui presentes nesta sala, de ambos os lados do
Atlântico, temos certeza absoluta de que o senhor tomará a decisão certa
para proteger a liberdade dos homens comuns no futuro. Tomará essa decisão, uma vez que todos nós, do mundo de língua inglesa, sabemos que, como
16
John Lewis Gaddis, Strategies of Containment (Oxford, 2005, ed. revista), p. 354.
17
Nicholas Henderson, Mandarin: the diaries of Nicholas Henderson (Londres, 1994), p. 387.
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disse Wordsworth, ‘Temos de ser livres ou morrer, nós que falamos a língua
que Shakespeare falava.’”18
Foi uma bela peça de retórica, um discurso que deixou o presidente visivelmente emocionado. “Primeira-ministra”, disse Reagan ao começar a sua
resposta, “Bob Hope [que estava presente] sabe o que quero dizer quando
uso a linguagem de minha ocupação anterior, e digo que a senhora é um
exemplo difícil de seguir!”.19 Foi um momento de sinceridade que não constava do script, um momento que arrancou aplausos e risos de prazer dos
convidados ali reunidos. “O jantar na embaixada britânica”, escreveu Reagan
em seu diário, “foi realmente um evento caloroso e belo”. Mais tarde, Mike
Deaver, o vice-representante da equipe e confidente íntimo de Reagan, disse
a Henderson “sem nenhuma indução, que o presidente se emocionara com
o discurso da sra. Thatcher na embaixada, principalmente com a passagem
sobre a coragem das duas da manhã”.20
A simpatia pessoal que o jantar da embaixada gerou entre os dois líderes
foi reforçada no dia seguinte. Afastando-se outra vez do esperado, o presidente e a primeira dama receberam a primeira-ministra e Denis Thatcher
para o café da manhã na Sala Oval Amarela, na residência oficial do chefe
de Estado na Casa Branca. Esta foi uma reunião privada, de natureza fundamentalmente social. Denis, jovial, mas perspicaz, desempenhou muito bem
o seu papel, ocupando-se da sra. Reagan, que tinha fama de ser uma pessoa
difícil.
“Acredito que existe uma amizade verdadeira entre a primeira-ministra,
sua família e nós”, escreveu Reagan mais tarde em seu diário. “Certamente a
sentimos & tenho certeza de que eles também sentem.”21
Fossem quais fossem as suas dúvidas, a primeira-ministra não poderia
desejar mais nada.
18
Discursos do jantar da embaixada britânica para o presidente Reagan, 27 de fevereiro de
1981: MTF docid=104581 (acessado no dia 31 de agosto de 2008).
19
Discursos do jantar da embaixada britânica para o presidente Reagan, 28 de fevereiro de
1981: MTF docid=104581 (acessado no dia 31 de agosto de 2008).
20
Douglas Brinkley (org.), The Reagan Diaries (Nova York, 2007), p. 5. Henderson, Diaries,
p. 390.
21
Reunião privada com a primeira-ministra Thatcher, da Grã-Bretanha, 28 de fevereiro de
1981: Office of the President, Folder “Feb. 27, 1981”, Box 1, Ronald Reagan Library.
Brinkley (org.), Reagan diaries, p. 5
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