SINOPSE
A Gaivota, de Tchekhov, é uma obra habitada por personagens
cujos conflitos interiores podem ser tão reconhecíveis como subtis e
onde o teatro é, no fundo, o tema principal.
Esta peça tem lugar nos finais do século XIX, numa propriedade
rural da Rússia onde, todos os Verões, Sorin reúne família e amigos.
Num fim de tarde, Treplev, sobrinho de Sorin e jovem escritor de teatro, apresenta uma peça cuja protagonista – Nina – é a actriz por quem
está apaixonado. As opiniões dos convidados divergem. A sua mãe,
Arkadina, actriz de renome, muito vaidosa e obstinada, desencoraja a
busca do filho por novas formas artísticas. Contudo, existe alguém que
sonha ser, um dia, como ela – uma actriz profissional de sucesso. Esta
é Nina, que descreve a peça de Treplev como sendo difícil de representar, sem personagens vivas e com pouca acção. No geral ouvem-se
mais críticas que louvores, sendo Dorn - um médico local bastante viajado - o único que aprecia a peça de Treplev e que a comenta positivamente. Há ainda um romancista célebre, Trigorin, que parece não
se interessar minimamente pela peça mas sim pela actriz que, impelida pela sua ingenuidade, paga caro pelos seus sonhos quando decide ir
para Moscovo, correndo atrás da fama e de Trigorin...
Volvidos dois anos – e dois actos – todos se reúnem novamente.
Embora sejam os mesmos, muito se alterou. Apesar de toda a dor e
frustração por não ter alcançado a fama desejada, por ter perdido um
filho de Trigorin e por ter sido abandonada por este, Nina consegue
continuar a viver, ao contrário de Treplev que, derrotado por um desgosto de amor e por não ter conseguido alcançar o reconhecimento
ambicionado com as novas formas, acaba por cometer suicídio… desta
vez bem sucedido.
Daniela Vilela
ESTE FRAGMENTO
Na peça A Gaivota, observa-se uma tentativa de renovação de
um círculo, uma luta do novo contra o antigo. Uma mãe, Arkadina, e
um filho, Treplev, que, no encontro da mesma arte - o teatro - problematizam o seu caminho, quer ao nível da arte quer da sua própria
relação. Assumem-se valorosos e convictos das suas ideias mas, na
verdade, temem pelo que está para vir. Não sentem confiança em si
próprios, agem porque “é suposto assim ser”, não os conseguimos
tomar como fortes e se o fazemos é por precipitação. Vemo-los recordarem momentos passados e, aos que pretendem caminhar numa
direcção diferente são-lhes impostas barreiras que, perceberemos,
são as mesmas de quem quer impedir essa progressão.
Em torno desta relação de mãe e filho, podemos encontrar os
outros personagens que se dividem entre o amar a mãe ou amar o
filho. Sem nunca perderem a noção do cordão umbilical que os une,
os restantes elementos parecem não tomar um partido firme por
nenhum dos dois, de maneira que ambos se tornam as figuras centrais
neste jogo influenciando todos os que se movimentam à sua volta.
Mãe e filho substanciam ideias opostas de teatro, o realista contra o
simbolista, assumindo-se como pólo fulcral de todo o enredo: Arkadina como a defensora do realismo e Treplev como o simbolista que
quer procurar novas linguagens. As suas posturas serão as que combatem em palco, as suas atitudes serão armas para além das palavras e,
numa batalha entre dois opostos, apenas um poderá sobreviver.
Arkadina – ter sido, pensar ser, querer voltar a ser, não deixar ser
(Treplev).
Trigorin – chegar a ser (como Tolstoi) incapacidade de ser.
Treplev – em potência, poder chegar a ser, querer ser.
Macha – poder ter sido (Treplev), não querer ser, render-se a
(casamento por conveniência).
Nina – querer ser, chegar a ser, aquilo que foi (retorno à vida anterior), evitar poder ser (aquilo em que se transformou).
Sorin – ter sido, não poder ser (novo), inevitabilidade.
Dorn – ter sido, continuar a ser.
Ricardo M.
A ESTÉTICA DE
ANTON TCHEKHOV (1860 – 1904)
Tchekhov veio abalar a forma como se fazia teatro nos finais do
século XIX. Em contraste com um teatro de grandes conflitos e cujos
enredos ultrapassavam a vida real, Tchekhov veio trazer o quotidiano
para o lugar da cena, realçando certos aspectos que, até então, eram
menosprezados pela criação artística. Esses aspectos eram provenientes da vivência do homem comum. Uma vez que exercia também a
profissão de médico – embora preferisse a de escritor – Tchekhov teve
a oportunidade de contactar, de forma extremamente próxima, com
as várias camadas do povo russo naquele período (o homem rural, o
pescador, o funileiro, o vendedor, entre outros), sendo a vida real o
seu campo de pesquisa privilegiado. Enquanto curava as dores e feridas dos seus pacientes podia também observá-los de forma a adquirir
um vocabulário emocional para, mais tarde, poder criar as suas próprias personagens, conferindo-lhes a complexidade própria da condição humana, na sua dimensão psicológica e afectiva mais íntima.
Tchekhov quis renovar a linguagem artística procurando evidenciar apenas o que fosse indispensável na construção de uma peça.
Quis introduzir o máximo de “vida real” possível através de acções
que enfatizavam os simples e pequenos gestos, ao contrário das grandes acções teatrais representadas tradicionalmente. Desta forma,
Tchekhov mostrou o quão intenso pode ser o quotidiano e a vida real
para o entendimento do homem. Podemos reconhecer nesta ideia evidentes pontos de contacto com o método de Stanislavski. Segundo o
encenador, que desenvolveu o seu sistema na mesma Rússia e na mesma época de Tchekhov, cada actor tinha de encontrar uma justificação para a acção a realizar, mesmo que esta fosse a mais trivial possível. Não podia, simplesmente, fazer uma acção em palco sem entender a sua essência e substância.
Em A Gaivota, assinala-se outra característica particular da estética de Tchekhov: o clímax surge no final da peça, não deixando lugar
para o desenlace, como era tradição literária. Em A Gaivota, Treplev
suicida-se no final por causa de um conflito interior: o seu desgosto
amoroso e o facto das suas novas formas não terem obtido o sucesso
pretendido. O suicídio foi a única forma que encontrou para o resolver. Uma vez que não se sabe quais foram as reacções dos restantes
personagens ao sucedido, o seu suicídio deixa toda a peça em aberto.
Para Tchekhov, o conflito interior não existe para veicular uma moral
mas sim para sinalizar, ele próprio, a condição humana.
Daniela Vilela
O CÓMICO EM
A GAIVOTA
Está na nossa natureza duvidar e esse aspecto que nos caracteriza vai ao encontro dos factores de comicidade(patentes nesta peça
de Tchekhov. Este universo funciona como um espelho que nos aproxima muito das suas personagens. Imaginamos como seria se algum
dia chegássemos àquilo que ali reconhecemos, ou talvez já tenhamos
realmente vivido situação semelhante. É esta proximidade que nos
incomoda mas, ao mesmo tempo nos provoca o riso. Não o afastamento, não a impossibilidade ou o fantasioso.
Essa pequena humilhação que sentimos se nos identificamos
com as precipitações dos personagens e os seus estados inconstantes
é, em grande medida, uma espécie de vergonha, própria e alheia. É
algo amplamente partilhado, que não pode ser disfarçado. Por exemplo, as dores da velhice de Sorin serão inevitáveis, se nos for permitido aí chegar, mas são cómicas pela forma como ele as apresenta.
Queixa-se de tudo, o que o torna patético, e noutras culturas seria
considerado um homem fraco, sem honra a defender. Ele sabe disso
mas, ainda assim, opta por fazê-lo. Porquê? Talvez porque a velhice
se apresente solitária e a única coisa que o pode suster junto dos
outros é a sua fraqueza. Encontramos nisto algo de terrivelmente
triste e melancólico, ainda assim, essa primeira vontade de rir vem,
justamente, de não haver mais nada que possamos fazer senão rir
perante a iminência da morte.
A comicidade da peça é conseguida através da produção de
sinais na cena que reconhecemos pertencerem ao nosso quotidiano,
ou seja, ela reside num jogo constante de identificação ou rejeição
dos diferentes personagens em conformidade com as nossas projecções. Na vida procura-se definir caminhos, alcançar objectivos,
encontrar algo pelo qual nos possamos bater, sentir orgulho ou tristeza. Estes personagens combatem por isso, tentam assemelhar-se a
alguém ou a um ideal, procuram uma ponta de corda à qual se possam segurar para não acharem a vida algo que não chegaram a
conhecer. Como que uma outra ideia de vida fosse a deles. A que
vivem, nas suas perspectivas, é qualquer coisa outra para além do
que podem controlar. Vemo-los num limbo, numa balança, num sítio
onde apenas existem duas hipóteses e nada mais: a vida ou a morte,
os seus sonhos concretizados ou o abismo não forem alcançados.
Constantemente assumida pelas personagens, essa postura fatalista pode tornar-se risível ou até mesmo ridícula. Pensamos que se
todos enfrentassem o mundo dessa forma, provavelmente, o suicídio
seria a causa maior de mortes no mundo. Essa claustrofobia de raciocínio leva-nos a uma leitura dos personagens que os faria fugir de
vergonha se pudessem, pois compreenderiam que a dimensão das suas
consciências não é nem nunca será a dimensão da verdade. São inúmeras as possibilidades de vida para além de uma quinta ou de um
país. É nesta incapacidade de expandir o pensamento, de procurar
coisas novas fora daquilo que sempre conhecemos que Tchekhov pousa o seu olhar crítico sobre os costumes de uma sociedade que evita a
mudança.
Ricardo M.
TEATRO DENTRO DO TEATRO
O excerto d’ A Gaivota escolhido para trabalhar aprofundadamente neste exercício foi, precisamente, o da apresentação da peça
que Treplev cria com o intuito de mostrar as suas novas formas ao
público convidado. Era inevitável deparamo-nos com a questão do
teatro dentro do teatro. Este conceito traduz-se num tipo de peça
que tem como assunto a representação de uma peça de teatro. O
público externo assiste a uma representação no interior da peça, a
que um público de actores também assiste. Este recurso estético surge a partir do século XVI e viria a vincular-se a uma visão barroca do
mundo. Autores como Shakespeare ou Calderón expressam uma ideia
que serve de mote para o teatro-dentro-do-teatro: “Todo o mundo é
um palco, e todos os homens e mulheres não passam de actores” (Shakespeare) e “a vida não passa de um sonho” (Calderón). Esta
nova forma implica uma reflexão e uma manipulação da ilusão: ao
mostrar, em cena, actores que se dedicam à interpretação de uma
peça, o dramaturgo permite ao espectador “externo” um papel de
espectador da peça interna e reestabelece, assim, a sua verdadeira
situação – a de estar no teatro e de apenas assistir a uma função.
Assim, o espectador, que se encontra num nível exterior à peça que
está a ver em palco e à peça dentro da peça, vive, então, uma realidade ampliada, isto é, adquire a consciência de que é um mero
espectador – tanto no teatro, como na vida, já que o teatro dentro do
teatro espelha, muitas vezes, a metáfora teológica de que Deus é o
dramaturgo e o encenador do mundo e nós os actores.
A peça de Treplev é um exemplo do teatro dentro do teatro uma
vez que ele cria e encena a sua peça perante um público que terá
as suas opiniões críticas e perante o público real que assiste à peça
de Tchekhov. Este pode ter-se servido da peça de Treplev para ilustrar precisamente o que achava dispensável na arte teatral: o simbolismo. Uma vez que a sua estética é a favor de mostrar a vida tal
como ela é, então o simbolismo não faria qualquer sentido numa
peça de teatro. No entanto, n’A Gaivota estão presentes elementos
claramente simbólicos, como nos sugere o título. O significado da
gaivota altera-se no decorrer da peça. No primeiro acto, Nina utiliza
a gaivota para descrever a forma como foi bem tratada no lago da
sua casa de infância. Desta forma, representa liberdade e segurança. No segundo acto, Treplev mata uma gaivota que oferece a Nina
dizendo-lhe que a sua honra perante ela, dentro de pouco tempo,
estará morta, como a gaivota. Mais tarde, Trigorin utiliza a gaivota
como símbolo exemplificativo da forma como ele a vai destruir. No
quarto acto, Nina confunde-se, no seu discurso, com uma gaivota.
Aqui, a gaivota altera o seu sentido e passa a significar destruição e
uma quase demência.
Ao apresentar uma peça dentro de outra peça, Tchekhov pôde
incluir também as várias opiniões dos convidados trazendo para o
palco uma discussão sobre o teatro e as várias tendências estéticas
da sua época. Mas, ao contrário do teatro-dentro-do-teatro da época barroca, este que Tchekhov nos propõe no final do século XIX
pretende ser centro e origem da discussão sobre o próprio teatro,
sobre as suas novas formas e sobre a sua razão de ser e para que
existe.
Daniela Vilela
ESCOLA SUPERIOR DE TEATRO E CINEMA
Exercício do 1.º ano da Licenciatura do Curso de Teatro - Turma B
Actores e Dramaturgia
DA PÁGINA 25 À 38, [A GAIVOTA], de Anton
Tchekhov, tradução Fiama Hasse Pais Brandão,
Edição Relógio D’Água
ALUNOS ACTORES
Alexander David
Ana Gil
André Pardal
António Braga da Silva
Carolina Rocha
Ivo Barroso
Joana Campelo
João Duarte Costa
João Vicente
Maria Mascarenhas
Pedro Acabado
Raquel Cajão
Sara Vaz
Sofia Froes
Tiago de Almeida Dias
Vanessa Vidal
ALUNOS DE DRAMATURGIA
Daniela Vilela
Ricardo M.
PROFESSORES RESPONSÁVEIS
Interpretação
Maria Duarte
Voz
Maria Repas
Corpo
Howard Sonenklar
Dramaturgia
Ana Pais
2008
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Folha de sala - Escola Superior de Teatro e Cinema