A DIMENSÃO ÉTICA DA GESTÃO PÚBLICA Ricardo Vélez Rodríguez Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa” e do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos da UFJF. Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro. [email protected] As crescentes trapalhadas governamentais com a mais nova edição do apagão aéreo levam a que pensemos acerca dos fundamentos éticos da administração do que é comum a todos. Como nas questões relativas à moral, o cerne da gestão pública não repousa fundamentalmente nos fins perseguidos, mas, basicamente, nos meios que utilizamos para chegar a eles. É evidente, em se tratando da gestão pública, por exemplo, que todos almejamos a democracia. O problema não está, portanto, nesta elevada finalidade. A questão básica é relacionada aos meios através dos quais chegaremos a essa almejada meta. O problema é que, no seio da nossa cultura, foi sendo inoculado no corpo social o vírus do que Ortega y Gasset chamava de “ação direta”, ou seja, a tendência a conseguir aquilo que almejamos por qualquer meio, sem que interesse meditar acerca dos meios que serão postos em prática. No terreno da ética, tal tendência passou a ser denominada, pelos estudiosos, de “modelo de ética totalitária”, segundo o qual “os fins justificam os meios”. Democracia? É evidente que é importante. Logo qualquer meio pode ser utilizado para chegar a ela, mesmo atacando 1 as liberdades fundamentais dos cidadãos, que se efetivam, por exemplo, na possibilidade deles divergirem dos meios que estão sendo utilizados pelos governantes para consolidar o convívio democrático. No terreno da gestão pública, a questão de meios e fins poderia ser enunciada assim: não é a finalidade colimada que garante a exeqüibilidade daquilo que buscamos, mas os meios que utilizamos para realizar as finalidades assinaladas pelas nossas escolhas. Democratização do ensino básico? Então, como o fim é elevado, não é necessário se deter em procurar qual o melhor caminho para chegar lá. Os fins já garantem os meios! Nesse positivismo que poupa meios à sombra dos elevados fins, termina sendo sacrificada a possibilidade de fazer alguma coisa. É aqui, a meu ver, que radica o principal vício do conjunto de medidas que o governo federal, com estardalhaço, anunciou como “PAC da Educação”. A questão dos meios não interessa, desde que a finalidade seja democrática. Os reparos levantados por pessoas sensatas, no meu entender, referem-se exatamente a essa falta de cuidado para com a escolha dos meios, que no caso das medidas propostas, consistiriam em coisas muito concretas, como indicação das fontes de onde sairiam os recursos para atingir as metas propostas, ou na idoneidade constitucional das medidas adotadas. Afora essa observação crítica de fundo, noto, com preocupação, que a tendência da administração Lula (nas suas duas versões) aponta para uma progressiva estatização do Brasil. Lembremos as tentativas de submeter a imprensa a um controle sindical afinado com o governo, ou no sentido de fazer girar em torno aos interesses do Executivo as produções culturais. Em que pese o fato de tais medidas não se terem concretizado por completo (em decorrência do questionamento da sociedade civil), na forma em que inicialmente tinham sido propostas pelos respectivos ministérios, no entanto ficou a tendência. Parece como se o governo, ao não conseguir as suas finalidades estatizantes por um caminho, volta e meia apresenta outras vias para conseguir a finalidade almejada. Ora, é a sociedade civil que tem reagido contra essas tentativas. O democrático e sensato seria que o governo aprendesse com os acertos e erros e corrigisse essa tendência estatizante, escutando mais a sociedade civil. 2 Na linha da não correção de rumo, situa-se uma clara prepotência dos agentes oficiais, quando se trata de assumir erros de percurso, como no caso do apagão aéreo. Quais as respostas dos respectivos ministros que têm a ver com o problema (do Turismo, da Defesa e da Fazenda)? A senhora ministra do Turismo aconselha relaxar e gozar. O senhor ministro da Defesa aconselha relaxar e rezar. O senhor ministro da Fazenda diz que não há problema, sendo tudo efeito de uma explosão de progresso. Nenhum dos três dá, à opinião pública, uma mínima satisfação que responda às angústias crescentes de quem precisa viajar de avião neste país. A situação, como se vê, é de atitudes bizarras tomadas pelos administradores públicos, à luz do que poderíamos denominar de cinismo macunaímico. Mas, no fundo, o vício de base consiste em que os gestores da coisa pública, pelo fato de se sentirem representantes de um governo de inspiração popular, não precisam se preocupar com coisas tão miúdas como meios (orçamentários, administrativos ou de simples alçada do senso comum) e muito menos com dar explicações aos usuários do transporte aéreo. No campo educacional, há, ainda, um problema a ser destacado: refere-se à tendência, ainda presente nos documentos oficiais, a considerar que a solução das questões do ensino em seus vários níveis deve apontar para o predomínio do setor público sobre o privado, com evidente menoscabo do segundo. Essa falha já tinha sido objeto das preocupações do Grupo de Trabalho que, no ano passado, a CNT organizou no Conselho Técnico para discutir a reforma educacional. A falha apontada acompanha, a meu ver, tendência já solidificada na administração pública, no sentido de ter dois pesos e duas medidas em face das instituições de ensino: tudo será exigido, com o maior rigor, quando a instituição em apreço for privada. Vistas grossas far-se-ão, se a instituição for pública. Isso se observa, notadamente, no tocante ao credenciamento de instituições que oferecem cursos de pós-graduação stricto sensu. Se o curso em apreço for proposto por uma Universidade Privada ou Confessional, todos os rigores da legislação serão postos em prática, quanto à exigência de laboratórios, bibliotecas, salas de professores, instalações para os alunos, recursos audiovisuais, etc. Se, no entanto, a 3 instituição for pública, muita coisa deixa de ser exigida. Há cursos de pós-graduação credenciados com boa nota, que não dispõem, por exemplo, de biblioteca. Não há um critério claro, ainda no terreno educacional, no tocante à indicação da excelência de Universidades. Recente classificação do Ministério da Educação surpreendeu todo mundo ao ser divulgada a lista das melhores Universidades brasileiras. As três primeiras foram, em ordem descendente, a Universidade Federal de Minas Gerais, a Universidade Estadual de Montes Claros e a Universidade Federal de Juiz de Fora. O critério de classificação apresentado pelo Ministério era muito parcial (referia-se, exclusivamente, ao exame de alunos de alguns cursos– o antigo provão) que, primeiro, não foi universalmente aplicado, pois muitas Universidades de renome não o fizeram e, segundo, não avaliava as instituições em todos aos aspectos relativos à excelência acadêmica (deveriam ter sido avaliados, também e não foram, os recursos institucionais e o desempenho dos docentes). O ideal seria que a mencionada avaliação fosse conduzida por um agente independente, de reconhecida idoneidade técnica e moral. É grande, hoje, o esforço internacional no sentido de se chegar a uma avaliação institucional o mais isenta possível, como testemunha a existência de entidades que consolidaram uma sólida posição nesse item. São respeitadas, internacionalmente, por exemplo, as avaliações do Institute of Higher Education da Shangai Jiao Tone University (http://ed.sjtu.edu.cn/ranking.htm) ou do Ranking Mundial de Universidades (que tem apoio do Conselho Superior de Investigaciones Científicas da Espanha – CSIC e cujo endereço eletrônico é: www.webometrics.info/index_es.html). Ambas as instâncias classificadoras levam em consideração as oportunas recomendações da UNESCO, no documento intitulado: “Berlin Principles on Ranking of Higher Education Institutions”. Apenas para destacar o caráter relativo do critério de avaliação do Ministério da Educação, das três primeiras universidades colocadas na classificação do governo brasileiro acima mencionada, a segunda (Universidade Estadual de Montes Claros) nem sequer é citada por nenhum dos dois institutos internacionais, a primeira Universidade (UFMG) aparece, em ambos os rankings, depois da USP, da UNICAMP, e das Universidades Federais de Santa Catarina, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do 4 Sul, sendo que a terceira colocada, a UFJF, aparece em 23O. lugar entre as Universidades brasileiras. O governo Lula, infelizmente, terminou entregando boa parcela da gestão pública, no Brasil, aos “companheiros”, colocando à testa de agências reguladoras, que deveriam ser presididas por técnicos, antigos militantes ou membros do Partido, não habilitados tecnicamente para o exercício do cargo. Foi criada, paralelamente, uma distorção salarial odiosa em relação aos técnicos e profissionais concursados do setor público federal, ao garantir a esses quadros (em comissão e não concursados) generoso aumento salarial, enquanto os demais ficaram na planície, com os salários defasados. O mais assustador é que os elementos colocados na frente das agências reguladoras só fizeram piorar as coisas, incentivando o “apagão” (aéreo, telefônico, elétrico, na área da saúde, etc.). O país está, em decorrência dessa falha, à beira de um colapso. Para piorar as coisas, de forma irresponsável o governo federal tem incentivado as malucas reivindicações dos denominados “movimentos sociais”, cuja única finalidade (como no caso do MST) consiste em se apropriar de parcela significativa do orçamento, gerando enormes distorções políticas e sociais que terminam agravando o denominado “custo Brasil”. O mencionado movimento apropria-se, todos os anos, de boa parcela do orçamento destinado à agricultura familiar e, com essas generosas verbas, aumenta o seu potencial de reivindicações violentas, ocupando terras produtivas e agências do INCRA, fechando estradas, invadindo pedágios, ameaçando produtores rurais e gerando a sensação de que tudo podem os seus militantes, em termos de desrespeito à lei e às instituições. Não contentes com terem inviabilizado o programa de Reforma Agrária, os líderes desse Movimento, no último encontro nacional, não tiveram problema em anunciar, em alto e bom som, que agora sairiam das reivindicações no campo para questionar as instituições em outro frente, o ligado à produção industrial. Novos problemas surgirão que, decerto, enfraquecerão ainda mais a nossa capacidade competitiva na economia globalizada. 5 É evidente que nem tudo são respostas negativas dos agentes oficiais. Pelo menos num caso parece que as atitudes têm respondido ao que a sociedade civil almejava. A forma aberta em que o Ministro dos Transportes tem atendido às já antigas reivindicações dos empresários do setor portuário, no sentido de serem escutados pelo governo federal, parece que abre a porta para a formulação de uma sensata política “concertada” nesse setor. Esperar para ver. Tomara que as coisas continuem andando, nesse terreno, de acordo com as expectativas da sociedade civil, que ainda não foram sufocadas pelo governo. _______________________________ 6