reportagem :: Granfondo do Mar Morto/Israel
O caminho
do escorpião
A terceira edição do Arad Dead Sea Granfondo levou-nos a explorar as estradas do deserto
israelita do Negev. Um cenário deslumbrante, capaz de rivalizar com o que de melhor é
oferecido nos Granfondos europeus.
Texto: Ricardo José Gouveia Fotos: Ronen Topelberg
A
s palavras são irreconhecíveis,
mas o hábito recente leva-me
à resposta imediata no inglês
universal: "não falo Hebreu.
Venho de Portugal". Como em tantos
outros encontros proporcionados pela
estadia num dos muitos hotéis plantados
junto ao Mar Morto oiço o israelita, um
homem na casa dos 50 anos, barba rala
em tons de branco e com equipamento
farfalhudo a responder: "oh, desculpe.
Pensava que era israelita. Será que posso
ficar aqui na sua roda?" Pergunta de
sorriso aberto. "Não consigo fazer mais!",
remata embaraçado. Atravessamos um
pedaço de estrada, limitada pela parca
vegetação que teima em crescer no deserto Negev, suavemente ritmada por
inclinações que tapam ondas sedimentadas por milhões de anos. "Claro que
sim", respondo de imediato. "Esconda-se
aí do vento, e vamos os dois."
A aragem transformada em sopro não é
suficiente para levantar poeira ou molestar o corpo. O ar é fraco, mas depois de 82
quilómetros de prova e 27 quilómetros de
neutralização é suficiente para me fazer
repensar a posição em cima da Trek Domane, bicicleta que a organização deste
Granfondo gentilmente me emprestou.
E forte quanto baste para que aprecie
uma tabuleta ilegível, decorada com o
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Ciclismo a fundo
logotipo do Arad Dead Sea Granfondo,
na qual decifro apenas as inscrições
numéricas. "Aguente aí na roda. Já só
faltam 15 quilómetros para a meta", grito
ao meu mais recente companheiro de
viagem.
Celebrando o terceiro ano, o Granfondo
do Mar Morto, organizado pela equipa
de Harel Nahmani, tem na dedicação
de todos os que nele trabalham uma
mais-valia. Aqui é o deserto que impõe
as regras. Programado para o início do
ano, desta feita o mau tempo desapareceu
das previsões, dando lugar a uma temperatura amena, quase primaveril. Uma
bênção para os cerca de 800 participantes
que se apresentaram no dia 14 de março
dispostos a pedalar a totalidade dos 155
quilómetros, saindo do Mar Morto e fazendo um circuito pelo deserto.
petitiva composta apenas por atletas
federados, os participantes na parte não
competitiva do Granfondo do Mar Morto
podem não carregar o chip que valida o
tempo de prova, mas sentem-se igualmente no dever de imprimir um ritmo
elevado. Instigado pelo pelotão furioso,
luto contra a dor nas pernas e atrelo-me ao grupo que, de forma segura, vai
deixando para trás o cenário salgado
localizado a 400 metros abaixo do nível
do mar. Pedalando estradas imaculadas e
sem sinal de trânsito - cortesia do zeloso
corpo policial israelita - os quilómetros
vão sucedendo, e por momentos relaxo na
proteção que me arrasta. Fora um ou outro sobressalto, o grupo navega convicto
dos quilómetros que o separa da primeira
grande dificuldade do dia, uma escalada
bíblica conhecida como o "Caminho do
À saída do Mar
Morto o pelotão
rolou compacto,
neutralizado
pelo carro da
organização. Em
cima, o deserto
istaelita do Negev é
apaixonante
Celebrando o terceiro ano, o Granfondo do Mar Morto
tem na dedicação de todos os que nele trabalham uma
mais-valia. Aqui é o deserto que impõe as regras.
CENÁRIO SEM PAR
Balizados pelas equipas que vieram ao
Tour de Arad, a mais importante prova
profissional de Israel, e a secção com-
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Granfondo do Mar Morto/Israel
Estendendo-se por 155 quilómetros, o Arad Dead Sea
Granfondo leva os ciclistas a visitar cenários verdadeiramente
deslumbrantes. A maior dificuldade dava pelo nome
de "Caminho do Escorpião", cinco quilómetros com dez
por cento de inclinação média
Crescendo ao ritmo das pedaladas que cortam o fresco
ar do deserto, o horizonte começa a revelar tímidos
sinais de uma cordilheira emoldurada pelo verde da
primeira vegetação do ano.
Escorpião", de ferrão implacável estendido
por cinco quilómetros com dez por cento
de inclinação média, que liga as aldeias
de Eilat e Beersheba. Ondulando de forma
suave, vamos subindo inusitadamente
a uma média superior a 32 km/h. Nada
mau para um exercício que nos leva a
trepar cerca de 600 metros em menos
de 30 quilómetros.
Crescendo ao ritmo das pedaladas que
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Ciclismo a fundo
cortam o fresco ar do deserto, o horizonte começa a revelar tímidos sinais
de uma cordilheira emoldurada pelo
verde da primeira vegetação do ano.
Cada vez mais presente, a entrada para
a dificuldade rainha é guardada por dois
polícias, que assinalam a passagem ao
estreito caminho alcatroado. E logo aí
um primeiro grande desnível apresenta o
Caminho do Escorpião, uma estrada em
forma de escada escavada na superfície
de um tremendo rochedo, testemunha
de bíblicas lutas pela sobrevivência e
religião. Cada vez mais perto quase sou
obrigado a parar para tirar uma foto,
mas continuo, com medo de perder a
coragem de ir ao encontro das dezenas
de pequenas figuras sobre bicicletas que
ziguezagueiam lentamente pelo rochedo.
Ao ritmo a que cheguei familiarizo-me
com a subida, estreita língua de alcatrão
quebrado que agarra os pneus e serve de
apoio à escalada. Com um precipício cada
vez maior à minha direita delimitado
apenas por bidões enferrujados, tento
adivinhar o fim ao medonho Scorpion
Trail. Mas de nada serve, pois ao contrário de outras extensões de alcatrão
tornadas famosas pelas câmaras de televisão, esta obriga à descoberta. No final,
a recompensa é a vista deslumbrante,
logo seguida de um magnífico posto de
abastecimento, completo com tâmaras
frescas e pequenos bolos típicos.
Sem par nos Granfondos disputados na
Europa, este evento inunda-nos os sentidos com paisagens inéditas, mas também
com sabores únicos e a simpatia dos que
nele participam, ciclistas recém-chegados
à modalidade mas ávidos atletas. Totalizando 155 quilómetros, 55 dos quais
neutralizados, a prova promete vir a
cativar ainda mais ciclistas para o ano,
com uma aposta muito forte nos atletas estrangeiros e nas mulheres, que já
contabilizam 15 por cento dos dorsais. E
para quem quer percorrer Israel de norte
a sul, então nada melhor que participar
no Trans Israel (www.trans-israel.co.il)
em outubro.
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