Ano 1 | Nº 6 | Set 2013
ISSN 2316-8102
CAMINHOS – INTERVENÇÃO URBANA DA CIA ENVIEZADA: A
ESCRITA DO CORPO NO CHÃO DA CIDADE
por Nathália Mello
Crédito da Foto: Fabricio Moser/Cia EnvieZada
Há sempre pontos de partida, cruzamentos e nós que nos permitem aprender algo
novo caso recusemos, em primeiro lugar, a distância radical; em segundo, a
distribuição dos papéis; em terceiro, as fronteiras entre territórios (RANCIÈRE, 2008,
p. 21).
O áudio é iniciado. Percebo um tom de voz que remete à ideia de tom teatral e o que
vejo são corpos no cotidiano do espaço. Corpos que se empenham em estar no espaço
cotidiano, presentes nesse espírito de dia-a-dia, entretanto, com maior convicção que outros
passantes. Caminhos é uma intervenção urbana, realização da Cia EnvieZada. A companhia
teatral carioca foi formada em 2003 e iniciou seu percurso na Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro – UNIRIO. Atualmente tem como corpo: Adriano Petermann, Helen
Miranda, Helga Nemeczyk, Preta Marques, a equipe musical Quatrilha, Raphael Cassou,
Samantha Gilbert, Tato Teixeira, Viviane de Oliveira, além de Zé Alex na direção. [1]
A partir do material de documentação de Caminhos (programa, trilha sonora, fotos,
projeto, registro em vídeo disponibilizado no site da Cia EnvieZada), adotei como análise um
exercício inspirado na maneira como Thomas Clerc [2], em seu prefácio para O Neutro de
Roland Barthes, analisa a estrutura organizacional da escrita geral do autor. Clerc percebe tal
escrita como um corpo no espaço. Ao relatar a formatação do espaço da página, “180 páginas
escritas com tinta azul em folhas de 21 X 29,7 cm”, desperta uma atenção coreográfica ao
movimento realizado pelo pensamento de Barthes. Segundo Clerc, as elipses, nos documentos
de Barthes, marcam anotações referentes a sintaxe do texto; ele também percebe que os sinais
de pontuação substituem “articulações lógicas”. Thomas Clerc nota um encadeamento entre o
ritmo de movimento cerebral e o grau de participação corporal de Roland Barthes em seus
próprios textos. Tal integração, entre movimento invisível (do pensamento) e movimento
visível (da escrita), direciona o leitor a um espaço em que a dança do pensamento se organiza
como coreografia no papel. Em O Neutro, essa coreografia ocorre através de uma lógica de
apontamentos, assim como em Caminhos.
Visualizo um texto que se organiza de modo espiralado com pausas e suspensões. Os
corpos, em Caminhos, deslocam-se com intuito de apontar o fato de que “todo espectador já é
um ator de sua história; todo ator, todo homem de ação, espectador da mesma história”
(RANCIÈRE, 2012, p. 21). Traço, neste estudo, a perspectiva coreográfica da escrita corporal
que Caminhos realiza na cidade. Visualizo frases sobre corpos que se expandem ora como
flecha ora como arco.
“Como as palavras e as imagens, as histórias e as performances, podem mudar alguma
coisa no mundo que vivemos”? (ibidem, p. 26). A Cia EnvieZada responde à uma fórmula
antiga e simples que, insolúvel, sempre recobra sua relevância na discussão sobre a dimensão
estética da arte: afinal, o teatro cumpre necessariamente uma função social transformadora?
Será que este é o ponto de compatibilidade, ainda que questionado pelas diversas etapas
históricas, entre o artista e a cidade? Caminhos é arte por performar através de um conjunto
de “condições necessárias e suficientes” (DANTO, 2006, p. 105), sendo uma dessas
condições a acentuação de movimentos, falas, ações.
O enquadramento de uma “realidade abjeta”, que Jacques Rancière nomearia
“intolerável” ou, ainda, o enquadramento de uma “imagem pensativa” no sentido que o autor
esmiúça como “presença do ser qualquer” são exageros ou acentos de “disposição plástica
intencional”. Esse exagero – e suas gradações – é o que torna artístico o movimento, a fala, a
ação comum. No caso de Caminhos, essa acentuação acontece via a coreografia de
apontamentos para “semelhanças desapropriadas”. Quando observo a mulher que a atriz
Helga Nemeckzy produz, apoiada em um poste e comendo maçã, atravesso uma experiência
de semelhança que não me remete exatamente a um ser real, apesar dessa imagem preencher
uma certa leitura de “caracterização social” (RANCIÈRE, 2012, p. 110-111).
Crédito da Foto: Viviane de Oliveira/Cia EnvieZada
Percebo um enquadramento de “realidade abjeta” quando a atriz Viviane de Oliveira,
sentada na calçada, bebe, com toda delicadeza, um líquido espesso e vermelho, espremido de
um absorvente íntimo no copinho transparente. A boca da atriz ali, sob dos Arcos da Lapa, é
uma imagem quase tão intolerável quanto os olhos de Gutete Emerita, citada por Rancière
que, a partir do trabalho de Alfredo Jaar, articula sobre o potencial da imagem do olho
metonímico como indicador do que se vê, do olhar de Gutete Emerita, parte, e o que ela viu, o
todo: “a metonímia que põe o olhar dessa mulher no lugar do espetáculo de horror também
subverte a conta do individual e do múltiplo” (ibidem, p. 95).
Os atores, em Caminhos, são definitivamente atores de formação, plenos em sua
profissão. Entretanto, o que destaco é a presença desses atores como cidadãos que justapõem
corpos e vozes às narrativas da rua, talvez suas próprias. De certa maneira, enxergam com o
corpo inteiro, apontam o que estão vendo no Rio de Janeiro e seu estado atual de violência e
sobreposições de decadências, cimento, misérias e hiperfaturações. Assim, subvertem a
máquina da representação por “mudar os lugares e a conta dos corpos” e por escreverem com
corpos no chão da cidade (ibidem, p. 95).
Essa criação é trabalho de ficção, que não consiste em contar histórias, mas em
estabelecer relações novas entre as palavras e as formas visíveis, a palavra e a escrita,
um aqui e um alhures, um então e um agora (ibidem, p. 99).
A moldura, em Caminhos, é uma fronteira diluída, não é de madeira, não é dourada.
Quando o corpo do performer realiza um apontamento foco em uma área de imagem; a
abertura da imagem, a espécie de obra de movimento e o espaço de criação na cidade, sem
margens, com horizonte de céu, permitem uma experiência de observação amplificada. Arthur
Danto fala do olhar sem propósito como característica humana elementar, da naturalidade da
contemplação. Ao mesmo tempo, chama atenção para testes científicos que mais ou menos
comprovam o interesse animal por características orgânicas exageradas, ou acentuadas, que
facilitam a percepção de um outro. Tal percepção de um outro estaria atrelada ao interesse em
suas respectivas propriedades ou qualidades procriativas, produtivas, reprodutivas. “A ruína
conota o caráter implacável do tempo, a decadência do poder, a morte inevitável” (ibidem, p.
109). A assimetria coreográfica, a cena que se desfaz, o jornal que apaga memória da cidade
são elementos que direcionam atenção ora à decadência de uma beleza ora à beleza da
decadência. Esses elementos são acentos em situações comuns e, talvez, sejam atrativos ao
público como saídas emancipatórias: apontamentos, desdobramentos, reflexões, novas ideias.
O ciclo criativo se expande em um processo como de Caminhos, que enquadra situações
urbanas afim de incentivar uma observação mais acentuada, sem intenção de conclusão
rigorosa. O ciclo criativo alcança o participante-espectador em um movimento leve e de
transformação em cadeia. A beleza em Caminhos é poder perceber.
Repensar transgressão não como uma ruptura produzida por uma avant-garde heroica
exterior à ordem simbólica mas como uma fratura traçada por uma avant-garde
estratégica dentro dessa ordem (FOSTER, 1996, p. 132).
O movimento contrafluxo recorrente nas artes propõe uma constante possibilidade de
reinvenções. Quando Jacques Rancière destaca a metonímia como “figura política por
excelência” (RANCIÈRE, 2012, p. 95), ele revela o jogo de justaposições que ocorre cada vez
mais no campo das artes. Peggy Phelan vai propor uma tática; Phelan avalia que a
“performance toca o Real através de sua resistência à redução metafórica de dois a um.
Distanciando-se dos objetivos da metáfora – reprodução e prazer em direção aos objetivos da
metonímia – deslocamento e dor, a performance marca o corpo pela falta”. E completa: “A
performance é essa tentativa de atribuição à valores não-reprodutivos, não-metafóricos”
(PHELAN, 1996, p. 152). Entretanto, o risco atual é o de um objeto artístico que se constrói a
partir de táticas contrafluxo, por exemplo, de falha ou fracasso, já que com isso seja quase
automaticamente admitido pelo monstro de Rancière; mesmo as táticas de produção
contrafluxo são “absorvidas no ventre do monstro” (RANCIÈRE, 2012, p. 35).
Em Caminhos, as direções são dadas pela sinalização de bandeirinhas verde, vermelha
e amarela nas mãos do diretor e, principalmente, pelo áudio que acompanha o espectador do
início ao fim. Ouço direções de caminhos a seguir, ideias corriqueiras de status social,
adjetivos para áreas e ruas. Surpreendo-me com uma poesia em voz de telemensagem ou
mensagem de carro de som, lembrança de uma cidade em que vivi e que já não existe mais. É
como se essa voz fosse comercial de modo arrebatador, nenhuma emoção a perpassa. Ouço,
em seguida, outras vozes, ruídos de falas, tons banais, tons teatralizados. “Então talvez se
você olhasse tudo de um outro ponto de vista, percebendo cada pessoa que cruza, tudo parece
ganhar outra importância”, diz uma voz. Nossos olhares são convidados à observação de uma
cena em que homem e mulher se relacionam à la mode. “Quando a coisa é com a gente, nós
nos tornamos imbecis, burros”, ouvimos pela voz justaposta ao movimento de fala da atriz
Fernanda Sal. A ansiedade corporal da atriz já é um prenúncio da ampliação gradual dos
aspectos formais. Inicia-se uma cena gestual entre homem e mulher e sua repetição da mesma
dança. A repetição coreográfica vai apresentando outros bailarinos que entram em cena
atravessando os Arcos da Lapa de costas em direção ao público, segurando ou lendo jornais.
Os espectadores atravessam as ruas, acompanhando o fluxo de atores-bailarinos que
interrompem o fluxo do trânsito, rasgam jornais, tem sua visibilidade perpassada pelo
atravessamento de ônibus, bicicletas, táxis, pedestres. A música incidental vai definindo um
clima justaposto ao próprio clima da cidade, ora agressiva, no tempo presente, violentamente
iminente, ora melancólica, passado recente ou passado “Rio antigo”.
Atos banais são desenhados de modo lento ou acelerado e, algumas vezes, destacamse por estarem descontextualizados. Mulher de cabelo vermelho, em cena, bebe um líquido
espesso, vermelho, espremido de um absorvente íntimo; mulher de saia jeans, no público,
coloca a mão em uma barba inexistente. Mulher de meia calça vermelha come uma maçã
enorme apoiada em curva no poste, mulher de vestido azul no público boceja. Mulher de saia
vermelha lava cabelo com detergente, mulher de touca prateada lê revista apoiada no chão da
rua como se estivesse no território privado da casa e homem empapuça o pé de talco.
Enquanto isso, um núcleo-público recém-nascido se pergunta “o que é isso?”, o núcleo supõe
“isso é o quê?”. Ator de terno, com andar endurecido, firme, olhar duro, talvez por vestir
terno, alinhava o quadro móvel que se forma bem abaixo dos Arcos da Lapa, ao lado de uma
das subidas para Santa Teresa. Como um riscar de fósforo, seus corpos se acendem numa
dança eletrizante, uma movimentação iniciada por um impulso e continuada. Pedestre
segurando garrafinha de água desce o trajeto que bailarinos sobem, pedestre sente-se
observada e dança com a cabeça, sorri, seu pensamento nos é desconhecido. Curioso
imaginar: quase todos os pensamentos são desconhecidos. Que reflexões atravessam o corpo
daqueles atores naquele momento? Mulher de saia jeans, no público, coça barba inexistente
afim de, inconscientemente, repetir um gesto tradicional de observação da obra de arte; seu
pensamento é quase uma fala que posso ouvir daqui do futuro: “interessante” ou ainda,
“belo”.
Uma coreografia de movimentos aparentemente preparados acontece entre os atores.
A metodologia ocorre via contaminação e técnica de improvisação afinada com olhar
periférico. Um atendente de bar está sentado em um banco alto, do lado de fora do bar e faz
parte das cenas múltiplas. Nenhum espetáculo que conheço trabalhou a técnica de
Viewpoints [3] de modo tão favorável: no andar de cada ator vejo esquinas diversas das que
ali estão arquiteturadas, cada ator decide quando mudar de trajeto e ângulo. A repetição da
mudança de pensamento instantânea sugere que um pensar que pode também transformar-se
instantaneamente e por influência. Um click e um ângulo de 90 graus é construído, em um
click o ator decide retomar um trajeto já realizado, realizar uma curva. Uma mulher bêbada,
clássico da Lapa, está caída no chão. Testemunho, em uma sequência de três interferências,
temperamentos urbanos: o da atriz que passa por cima do corpo da mulher com uma potência
de impacto em sua dança; o temperamento do ator que evita o corpo estirado, abandonado e
escapa criando um trajeto-esquina e o temperamento do ator que, desequilibra e contorna o
corpo, enquadrando seu incômodo. Todas as escolhas de engajamento com aquele corpo são
escolhas que iluminam aquela presença comum em seu máximo estado de banalidade. A
comunidade Lapa é convidada a trabalhar esse pensamento sobre como ela vê o corpo
bêbado, em estado de decadência plena. Nesse momento, pelo menos três justaposições
naquele estado de comunidade podem ser vistas pelo público. E a caminhada segue por entre
retornos, curvas, desvios e impactos, mas segue, sempre adiante, como uma flecha.
Uma rua comprida da cidade é desdobrada pelos movimentos dos componentes da Cia
EnvieZada e seus espectadores. Um fenômeno incrível é registrado: como é relevante toda
reação do público no registro de vídeo. Espectadores filmam e fotografam avidamente
enquanto uma fala no áudio da intervenção cria um paradoxo em relação ao comportamento
de documentação frenética, algo sobre como a voz revela ter queimado fotos para esquecer.
“E a voz não é a manifestação do invisível, em oposição à forma visível da imagem. Ela
também faz parte do processo de construção da imagem” (RANCIÈRE, 2012, p. 92).
Enquanto atores e atrizes estabelecem “o jogo complexo de relações entre o visível e o
invisível, o visível e a palavra, o dito e o não dito” (ibidem, p. 92) o seu público original,
novos integrantes da procissão e públicos instantâneos – que pipocam “em cena” e se
despedem em frações de segundo –, estabelecem as mesmas relações de contaminação de
movimentos e gestual, as mesmas relações de técnicas de improvisação afinada com o olhar
periférico. Movimentos de pedestres e público são, em muitos momentos, ressonâncias de
movimentos provenientes dos artistas e vice-versa. Além disso, pedestres e público
documentam o fenômeno, apropriam-se do efêmero teatral com técnicas avançadas de vídeo,
fotografia e distribuição de imagem. É evidente a participação jornalística desse público na
cena de Caminhos – suas técnicas reprodutivas são as mesmas técnicas de documentação do
produtor artístico.
Tenho utilizado recorrentemente, como artista, técnicas similares às descritas e
percebo que são metodologias disseminadas entre quase todos os meios, valiosas não só para
diferentes processos criativos como etapas perceptivas fundamentais. Que artista não se deixa
contaminar, não captura elementos de outro artista, de outra linguagem artística? Ou talvez a
pergunta seja: que tipo de ser humano não reage à observação de formas que ele escolhe como
emoldurar, como perceber? Enquadro uma parte do mundo que seleciono, uma opção poética:
duas crianças correm talvez motivadas pela atriz Viviane de Oliveira. Ela disparou em uma
corrida depois de deixar cair sua mão com peso, a mão que tocava seu próprio rosto. A
caminhada é longa e que continuo a ouvir “é a voz de um corpo que transforma um
acontecimento sensível em outro, esforçando-se por nos fazer ver o que ele viu” (ibidem, p.
92).
O mapa de umas das realidades do Centro do Rio de Janeiro, a da Lapa. Percebo, neste
ponto, que o ator Rodrigo Pinho, em terno e gravata, age como se estivesse sendo observado
desde o início. Demoro a assimilar uma leitura para sua presença, mas tão logo compreendo
uma paranoia emanada, reparo na quantidade de pontos de policiamento presentes nesse
trajeto tão curto. Agora o elemento exagero – do policiamento – parece ter sido programado
pelo Estado do Rio de Janeiro e não pela Cia EnvieZada. A paranoia do ator é emanada por
uma dança de exagero de firmeza, de estabilidade, equilíbrio entre pés, joelhos levemente
dobrados, sobrancelhas sempre contraídas e queixo levemente levantado. É muito similar a
minha própria paranoia que, ao invés de perceber segurança justaposta à imagem da polícia
carioca ou guarda municipal, enxerga o horror que persegue o cidadão carioca “sem nome” e
o faz “proferir imprecações, celebrar apoteoses, delegar um dos seus para consultar seus
oráculos, outorgar representantes e rebatizá-los” (RANCIÈRE, 1996, p. 38).
Crédito da Foto: Rodrigo Pinho /Cia EnvieZada
O ator de terno e gravata esforça-se por nos fazer ver como ele mesmo viu
(RANCIÈRE, 2012, p. 92): sua a relação de insegurança com o exterior é transmitida por seu
estado muscular petrificado. Seu corpo recria o corpo autoritário. Em cena, vemos a polícia
militar e seus membros; a partir de Hardt e Negri pode-se caracterizar essa polícia militar
como uma materialização do poder, de guerra e da tortura (2005b, p. 41). Michel Foucault
argumenta, analisando a história da punição, que o poder depende de sua materialização. Uma
materialização do poder permanente na sociedade é a prisão panóptica, também expandida,
também fora do seu lugar de representação, com horizonte de céu, em temporalidades
múltiplas, do divino e da tecnologia. Foucault narra a história das “penas físicas” até o
momento em que as “práticas punitivas se tornaram mais reticentes”. Neste ponto, “ninguém
tocava mais o corpo ou quanto menos possível e depois somente para alcançar alguma outra
coisa através do corpo, ele mesmo” (FOUCAULT, 1977, p. 11).
A redução da guerra à ação policial não a priva de sua dimensão ontológica, e na
verdade a confirma. O definhamento da função guerreira e o espessamento da função
policial mantêm os estigmas ontológicos da aniquilação absoluta: a polícia de guerra
preserva a ameaça de genocídio e destruição nuclear como seu derradeiro
fundamento (HARDT e NEGRI, 2005b, p. 41).
Na escadaria do Selarón é inevitável imaginar o corpo do artista em chamas regado e
acalmado pelo som de chuva que ouço no áudio de Caminhos. O guarda-chuva tão comum é
utilizado como escudo, como objeto sagrado, como esconderijo, mas alguns dos visitantes da
escadaria de Selarón não se dão conta das novas utilidades inventadas para o guarda-chuva
colorido. Selarón novamente vem ao meu pensamento como outro clássico da Lapa, um
clássico rabugento e amado, imortalizado não só pelo volume de azulejos por ele selecionados
e cimentados ali, mas por ter se tornado uma outra imagem, outra homenagem, uma outra
justaposição em Caminhos e na cidade, como personagem sempre vestido com seu costume
vermelho, só que, agora, um vermelho translúcido. A direção de arte da intervenção
contempla os vários vermelhos metonímicos que marcam o Rio de Janeiro.
Um casal amando e sorrindo desce; é emocionante ser testemunha de algo tão
dolorosamente comum. Uma atriz sobe de encontro ao ator Fabrício Moser. Os planos são
trabalhados como um mapa da Lapa cartografado em colaboração por Mondrian, Mariano
Cohn e Gastón Dupr [4]. Interessa-me ainda exercitar o mesmo tipo de relação que Tomas
Clerc observa na escrita de Barthes, como os corpos de Caminhos se organizam em um
espaço de apontamentos: “→ tentação de remover, burlar, evitar o paradigma, suas
contaminações, suas arrogâncias →” (BARTHES, 2003, p. 18). Em uma cidade como o Rio
em que o exterior é marcado pelo território dos morros, subir para o morro dos artistas, Santa
Teresa, em procissão com a Cia EnvieZada já é um exercício coreográfico e político de
afrontas e cruzamentos de territórios. A dança de Rudolph Laban ou o teatro de
Meyerhold [5] já
apontavam
para
lugares
exteriores
ao
prédio
do
teatro.
Em
Caminhos, perfuramos a complacência do espaço de representação, avançando rumo à cidade,
continuando esse projeto de multiplicação de focos e de pedagogia da responsabilidade: cada
espectador é responsável pelo o que seleciona ver. Além disso, é responsável pela
disseminação do material muitas vezes por ele reproduzido, documentado.
Crédito da Foto: Fabricio Moser, Rodrigo Pinho e Fernanda Sal /Cia EnvieZada
Lá no início, caminhadas se organizam à altura do nosso olhar, à distância média;
logo, nos tornamos espectadores tradicionais ao assistirmos a um melodrama e, em seguida,
espectadores de dança, aprendendo a desfazê-lo. O papel da dança é o de ampliar nossa
percepção do espaço e, consequentemente, ampliar nossa maneira de interpretar como
podemos nos mover. Neste momento, começamos a rever a cidade através dos apontamentos
literais, dos corpos-setas: um trajeto curto percorrido com mais rapidez, um levantamento de
corpo, uma pausa, um ônibus que entra em foco por alguns segundos. O ato teatral aqui
parece renovado; um novo ato se inicia, o momento mais relevante para que a dança ocorra –
o entre – se dá pela movimentação de avanço ou recuo do público direcionado. A função de
diretor teatral parece estendida até aqui – ele direciona, com cuidado, as pessoas e seus afetos,
seus ritmos. Nesse novo, ato a escrita de corpos em planos apresenta o chão da rua através do
jornal lido no chão, revista lida no chão. Os corpos e seus afetos estão presentes no chão da
cidade. Caminham pisando no chão com seus próprios pés, decidindo de onde ver. É
interessante observar que o público geralmente ou em sua maioria prefere a posição de coro,
de andar em grupo, talvez para ser identificado como público. Subimos para o fervo da Lapa,
fim do Arco, presenciamos uma pontuação coreográfica, e, logo, voltamos à horizontalidade
na longa reta que segue em direção à escadaria, na Rua Joaquim e Silva.
Um casal amando, sorrindo desce. É emocionante ser testemunha de algo tão
dolorosamente comum. A atriz Samantha Gilbert sobe, penso que de encontro ao ator
Fabrício Moser. Ela deita na escadaria segurando o que imagino ser uma gotinha de sangue de
purpurina, a luz reflete nessa gotinha. Mais uma vez, Selarón reaparece para mim, em chamas
e, agora, purpurinado. Pergunto-me se as pessoas vão continuar desaparecendo no Rio de
Janeiro, se nem a política, nem a polícia, nem as documentações em vídeo, fotografia, jornal,
sites darão conta de sua memória. A frase “Abre a tua voz e a melodia”, antes na voz de Elza
Soares, ressoa. A seleção musical de uma voz específica e transgressora como a de Elza me
faz refletir sobre o atual potencial catártico da arte. Escolho finalizar minha expectação com a
imagem multifocal de pessoas subindo a escadaria, pisando em cada degrau no ritmo do
samba de malandragem, equilíbrio e desequilíbrio, e da voz arranhada de Elza, muito solenes.
Imagino que nem é preciso adjetivar uma voz arranhada; o adjetivo já dilui leituras que
podemos fazer juntos. “Esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos
lugares, é o tempo da travessia”.
Notas
[1] O vídeo disponibilizado no site da Cia EnvieZada é referente a apresentação do dia 19 de Janeiro de
2013, em homenagem ao artista Selarón, na Lapa, com os atores Rodrigo Pinho, Helga Nemeckzy, Fernanda Sal,
Ade Zanardini, Samantha Gilbert, Jean Bodin, Fabricio Moser, Viviane de Oliveira e Tato Teixeira.
[2] Quem estabeleceu, anotou e apresentou o texto O Neutro a partir do curso de mesmo título,
ocorrido no ano de 1978 no Collège de France.
[3] Tenho observado que a técnica do Viewpoints, inicialmente desenvolvida pela coreógrafa Marie
Overlie nos anos 1970, tem despertado o interesse de grande número de grupos e jovens artistas no Rio de
Janeiro, São Paulo, Rondônia e Mato Grosso. A técnica se assemelha com a Coreologia de Rudolph Laban, mas
percebo uma diferença fundamental: em Laban, o ponto de partida para pensar o espaço e a consciência do corpo
no espaço se dá pela ampliação de pontos que um indivíduo pode tocar, reconhecendo assim sua própria
“kinoesfera”. Em Overlie, a relevância parece ser a da relação entre corpos e fisicalidades do espaço.
[4] Mariano Cohn e Gastón Dupr são argentinos, diretores de cinema do filme El Hombre al Lado, que
teve como set uma casa – projeto de arquitetura moderna de Le Corbusier. O prédio interfere nas lógicas de
percepção, no modo como um vizinho enxerga o outro e os limites.
[5] Podemos ver a importância das ascensões e quedas dramáticas que cenários de espetáculos como
The meeting, The sentries e The Departure of A Time Machine apontam. Fotografias em BRAUN, Edward.
Meyerhold – A Revolution in Theatre. Londres: Methuen Drama House, 1988.
Bibliografia
BARTHES, Roland. O Neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
COCCO, Giuseppe. MUNDOBRAZ: O devir-Brasil do mundo e o devir-mundo do Brasil. Record,
2009.
DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. A arte contemporânea e os limites da história. São Paulo:
Odysseus Editora, 2006.
HARDT e NEGRI. A multidão - Guerra e democracia na época do império. Rio de Janeiro: Record,
2005b.
FOUCAULT, Michel. Discipline and Punishment: The Birth of the Prison. Londres: Penguin
Books, 1979.
FOSTER, Hal. The return of the real. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1996
PHELAN,
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RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento - Política e Filosofia. São Paulo: Editora 34,1996.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
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