DANIEL MORDZINSKI/divulgação
Leitura
NARRADORAS
A classe média como
elemento subjacente
Sangue no olho, da chilena Lina Meruane, e Um, dois e
já, da uruguaia Inés Bortagaray, trazem personagens
femininas em situações de desconforto e memoração
texto Priscilla Campos
No ensaio Questão de ênfase, Susan
Sontag disserta sobre o que chama de
“grande romance curto americano”.
O livro em pauta é O falcão-peregrino,
de Glenway Wescott. De acordo com
a escritora e crítica de arte, o romance
“começa com a voz da recordação; ou
seja, a voz da incerteza”. Nessa linhagem
memorativa e imprecisa também estão
dois romances contemporâneos latinoamericanos, lançados há pouco no Brasil
pela editora Cosac Naify: Sangue no olho,
da chilena Lina Meruane, e Um, dois e já,
da uruguaia Inés Bortagaray.
No campo das semelhanças, temos
alguns outros pontos em destaque:
ambos dedicam cuidado linguístico
a descrições corpóreas e apresentam
um recorte sutilmente inquietante da
classe média. Mesmo com a diferença
de idade – Sangue no olho traz uma
narradora adulta, debilitada; em Um,
dois e já, criamos fácil empatia com a
menina observadora que viaja com
sua família por terras uruguaias –
existe uma atmosfera de desassossego
ao redor das personagens, que se
inicia no núcleo familiar e avança
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para certa sensação coletiva. Assim
como no longa-metragem argentino
O pântano, de Lucrecia Martel, a
figura feminina torna-se o centro de
questões incômodas e desconhecidas
pela classe média latino-americana,
possivelmente provindas dos
resquícios opressores das ditaduras.
Para Lina Meruane, escrever
acerca dessa camada social é
explorar, na narrativa, uma ideia de
aceitação que envolve também tais
questões políticas. “Escrevo sobre
essa classe porque me parece um
conjunto social muito oportunista.
No Chile, e acredito que em outros
lugares, a classe média despreza
o que é tido como popular porque
teme ‘converter-se’ aos hábitos
desse cotidiano, ou porque, em
determinado momento, saiu da
classe popular e teme voltar. Ou,
ainda, porque acredita que a classe
alta não é capaz de distinguir entre
quem é classe média e quem é pobre.
A classe média quer ser aceita pelos
mais ricos, que, por sua vez, os
desprezam”, observa.
“Na política, esse desprezo pela
classe trabalhadora impediu muitas
reformas sociais que poderiam
melhorar a situação histórica de
exploração das massas. E isso formou,
em muitos casos, um terreno propício
Nicolas Pereyra/divulgação
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lina meruane
A chilena faz uso de
múltiplos sentidos
na sua escrita,
apostando na
possibilidade de
escrever com todo
o corpo
Inés bortagaray
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Em Um, dois e já, a
uruguaia trabalha o
corpo conectado à
ideia de descoberta
e investigação
para as ditaduras que prometiam
impor a ordem, ou seja, proteger os
privilégios das classes média e alta. No
meu romance, esse assunto está posto
como pano de fundo, porém tem sua
importância: para Lucina, é uma espécie
de doença crônica, um mal incurável,
uma ferida aberta”, diz a chilena.
Já no livro de Bortagaray, o
processo ditatorial é vigente, mas não
amplamente discutido. Em alguns
trechos, o leitor pode esquecer – e
isso é um aspecto positivo, no que
diz respeito à linguagem delicada
empreendida pela uruguaia – em qual
tempo a narrativa está inserida. Somos
desviados para uma brisa marítima
que envolve anéis de coco, músicas de
José Luis Perales e cochilos.
Sobre a presença da classe média
em seu romance, Inés expõe uma
perspectiva mais particular, voltada
para uma análise do desenvolvimento
uruguaio contemporâneo. “Na
primeira metade do século 20, o
país produziu um culto à classe
média plenamente alfabetizada, com
acesso antecipado a uma grande
plataforma de direitos trabalhistas.
Aos olhos de um importante
ensaísta como Carlos Real de Azua,
o Uruguai se explica através de sua
mesocracia – forma de governo na
qual predominam os interesses de
uma classe média que ama o estado
intermediário das coisas, odeia as
estridências e qualquer noção de
extremo; orgulhosa de sua moderação
e charme despretensioso”, analisa.
Para a uruguaia, esse conceito vem
permeando o imaginário coletivo do
país por muito tempo, e falar dessa
classe “burguesa” é uma maneira
de demonstrar desacordo com a
mediocridade que ronda a população,
ora como paraíso, ora como inferno.
“O carro mais ou menos econômico,
a família apertada lá dentro, sem
protestar, pois não imagina outra
forma de viajar que não seja sofrida.
Esses são os poucos rasgos de
uma classe média que me parece
totalmente familiar”, arremata.
DOENÇA E MEMÓRIA
O corpo enfermo já foi propósito
literário de alguns escritores como
Tolstoi (A morte de Ivan Ilitch) e Camus
(A peste). Virginia Woolf também
escreve a respeito das mazelas físicas
em On being III: “Considerando quão
comum é a doença, quão tremenda
a transformação, quão assombrosos,
quando as luzes da saúde baixam,
os países ignotos que são então
expostos (…)”. Em A doença como
metáfora, Sontag cria paralelos artísticos
entre o câncer e a tuberculose.
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Nas páginas de Sangue no olho, que
na edição brasileira vão escurecendo
gradativamente, Meruane associa os
contratempos de um órgão doente à
reminiscência. “É uma novela escrita
no tempo presente, mas, você tem
razão, existe nela muito de memória
porque, para uma pessoa enferma, há
sempre uma pressão muito grande a
fim de que se encontre a origem de
seu mal. Descobrir o motivo da doença
entrega ao indivíduo a narrativa de seu
presente. Assimilar o que aconteceu
não significa consolo, é simplesmente
porque uma enfermidade ou uma
perda constituem ruptura, quebra,
crise, um encontrar-se em estado
de suspensão. A memória e a
compreensão do passado são um apoio
para não cair no vazio”, diz a chilena.
O resultado textual desse
entrelaçamento é uma das bases
que edificam o romance. Em
diversos trechos, Meruane utiliza
um recurso descritivo notável, como
na passagem em que a protagonista
vai ao banheiro durante um voo:
“Então me desloquei pelo corredor,
enumerando os assentos em busca
do banheiro. Vinte e quatro. Tudo sob
controle, pensei, me equilibrando no
vaso do banheiro químico. Quando
voltei, a turbulência começou e
minha mão virou uma garra que
imagens: reprodução
Leitura
procurava desajeitadamente, no vazio,
se apoiar em um encosto, mas que
em vez disso aterrissou sobre algo
morno, mole carnudo. Meus dedos
de abutre com unhas malcortadas
tinham ido parar sobre um ombro”.
De acordo com a escritora, a
possibilidade de substituir o sentido
da visão pelos demais (principalmente
tato e audição) foi um assunto
deliberado durante as versões
prévias do livro. O uso de múltiplos
sentidos na escrita, a possibilidade
de escrever com todo o corpo, é
algo que está presente nas novelas
anteriores de Meruane, mas que
em Sangue no olho foi enfatizado.
Para a chilena, o momento mais
surpreendente foi quando, após
as suas pesquisas e leituras sobre
sinestesia, começou a escrever o
livro e compreendeu que não iria ser
um romance “negro”, “às escuras”,
guiado pelos outros sentidos. “A
protagonista Lucina (assim como
eu, durante o breve período em que
estive cega) tem recordações muito
imagéticas, mesmo de coisas que ela
não viu. E ela recorda dessa maneira,
porque a memória de quem antes
enxergava continua sendo visual
durante muito tempo depois da
perda. O que não se viu se recupera
a partir do que foi visto antes. Isso
não é muito diferente de como lemos.
Lê-se um livro e imaginam-se suas
personagens, as paisagens, nós os
enxergamos. Porém, escreve-se
um livro sem se ver nada, apenas
Enquanto Sangue
no olho tem uma
narradora adulta, Um,
dois e já é narrado a
partir da visão de
uma menina
recordando, reconstruindo e
imaginando o que vai entrar naquela
cena. E, mesmo se a origem daquilo
vem da realidade, o escritor reinventa.
A memória faz o mesmo.”
CORPO DE DESCOBERTA
Em Um, dois e já, as concepções de
memória e corpo são detalhistas
e estão associadas à descrição da
paisagem imaginativa. Se, em Sangue
no olho, existe uma procura pelo
começo daquela doença maldita, no
livro de Bortagaray, o passado é lento,
acompanha o ritmo de maré calma e
está ali para ser contado pelo simples
prazer narrativo. Viajamos com a
narradora e, acima de tudo, com os
componentes que estão ao seu redor:
a relação com os irmãos, pormenores
de amizades queridas, o cemitério de
animais no quintal da sua casa, piadas
sem graça. Inés acerta na delicadeza
com que se ocupa das lembranças
durante todo o romance.
Também na construção linguística
de Um, dois e já está o corpo, mas aqui
conectado a ideia de descoberta
e investigação. “Os joelhos das
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minhas irmãs são muito mais
bonitos que os meus. A mais nova
está de bermuda xadrez. O tecido
se chama cloquê. A mais velha está
com um conjunto de moletom lilás.
Elas têm pernas bem-definidas e
joelhos ossudos, e as pernas afinam
quando chegam nos joelhos.”
Para a uruguaia, o exercício
da memória é estimulado pela
experiência física. “No decorrer de
uma noite de verão, a percepção do
frio mórbido ao pisar, sem querer
e com os pés descalços, num sapo;
o contato das mãos com a massa
de pão caseiro; a música rítmica da
água do rio batendo nas margens…
Todas essas experimentações de
tocar, ver, ouvir e olhar parecemme um atalho bem eficaz para
ingressar no território da memória.”
Além do corpóreo, Inés
conecta a memória diretamente
à imaginação. “Creio que as duas
são, essencialmente, a mesma
coisa. Gosto quando, como leitora,
posso acompanhar um texto com a
inventividade. Quando as coisas que
povoam o planeta tomam forma e
tornam-se verdadeiras. E eu sinto
que isso ocorre por meio de uma
cumplicidade, um pacto que se
aceita ao longo da leitura, e que nos
acompanha nessa viagem, como
se fosse uma casa imaginária que
tomamos como própria”, reflete.
Se os “finais dos romances têm
menos probabilidade de erguer a
voz” e “transmitem a permissão
para que as tensões se aquietem; são
antes um efeito do que afirmação”,
como estabelece Sontag, em Questão
de ênfase, os livros de Lina Meruane
e Inés Bortagaray terminam num
propósito de completude desse efeito:
a sensibilidade dos que se apaziguam
após alcançar um cume qualquer.
“Sob que circunstâncias nós
consideramos as coisas sendo como
reais?”, pergunta-se o filósofo
norte-americano William James.
Na literatura, segundo Meruane,
tudo é real e tudo é inventado.
Vestígios de realidade dos quais
não podemos duvidar: estão todos
presentes no relato difuso de Lucina
e no colóquio simples empreendido
pela garota que viaja no banco
traseiro de um Renault 12.
INDICAÇÕES
ESTUDO
MARCUS VINICIUS
NOGUEIRA SOARES
A crônica brasileira
do século XIX – Uma
breve história
FILOSOFIA
IZILDA JOHANSON
Bergson: pensamento
e invenção
FAP-Unifesp
Jornalismo? Literatura? Afeita à
liberdade, a crônica é um texto difícil
de enquadrar porque, estando na
imprensa, ela se faz esquisita aos
padrões do noticiário. No livro, ela
vira literatura? O autor se propõe a
entrar nessa seara, afirmando que a
crônica é um gênero jornalístico.
“Em que medida a arte interessa
à filosofia?” essa é a questão que
mobiliza esse trabalho, tendo como
suporte a obra bergsoniana. Uma
investigação estética, que parte
também para considerações de
ordem intelectual, moral e social.
A autora “oferece uma nova
perspectiva que examine a potência
criadora, suas ações e suas obras”.
CONTEMPORÂNEO
ROMANCE
É Realizações
Coletânea
conversas sobre
literatura e ideias
Há 13 anos, os ouvintes da Rádio Universitária tem à disposição,
aos domingos, o programa Café Colombo. A cada edição, seus
produtores trazem um convidado para uma conversa franca, densa,
fugindo da superficialidade do jornalismo cultural apressado.
De lá para cá, foram realizadas 600 entrevistas. Agora, uma
seleção pode ser conferida no Conversas no Café Vol.2.
O livro, lançado em março, reúne 21 entrevistas que
marcaram a trajetória do Café Colombo. Como o primeiro
volume, publicado em 2007, trazia as melhores conversas dos
primeiros anos, o segundo lançou seu olhar sobre o material
produzido de 2008 a 2014. Segundo Eduardo César Maia – um
dos produtores do programa –, o grupo estabeleceu como
critério reservar um maior espaço para entrevistas sobre temas
literários (60% ); cerca de 30% para questões ligada à política,
economia e sociedade e, por fim, 10% dedicados à filosofia.
“Na hora de escolher, os organizadores foram apontando suas
preferências pessoais, numa espécie de votação. Ao final,
discutimos tudo e chegamos aos nomes que ficaram no livro.”
A primeira parte, Literatura & Cultura, traz conversas com
escritores, professores, pesquisadores do campo da literatura. O
livreiro Tarcísio Pereira fala da extinta Livro 7. Já o poeta Everardo
Norões destrincha a obra de Joaquim Cardozo, cujas Obras completas,
publicadas em 2010, foram organizadas por ele. Há ainda um batepapo com Raimundo Carrero, que discute o lançamento do livro
Tangolomango, e a repercussão de uma crítica que recebeu nas
redes sociais. Norões e Carrero, a propósito, são os únicos nomes que
também estão no primeiro volume do livro.
Na sequência, na seção batizada de Intermezzo, entrevistas com
os filósofos Eduardo Gianneti e Alfredo Marcos, que comprovam
a versatilidade da equipe do programa. No último bloco, Política,
Economia & Sociedade, são oferecidas entrevistas com temas mais
distantes da literatura, mas não menos relevantes para um programa
que deseja ser “de livros e ideias”. Estão lá as opiniões de Sílvio Meira
e sua forma de gerenciar e empreender a inovação tecnológica; e
também a entrevista com o ex-prefeito e ex-governador Roberto
Magalhães, na qual relata o famoso episódio envolvendo um jornalista,
que, como se comenta, pode ter lhe custado a perda da reeleição para
a prefeitura da cidade. (MARIANA OLIVEIRA)
VÁRIOS AUTORES
Coleção Gazeta do Povo
– Literatura paranaense
Inventa
Com uma tiragem de 420 mil
exemplares, essa coleção pretende
atingir 2,5 mil pessoas e servir de
material didático. São seis livros
de escritores paranaenses, como
Miguel Sanches Neto, Domingos
Pellegrini e Paulo Leminski. A
distribuição, gratuita, foi feita como
encarte do jornal de maior circulação
do Paraná, o Gazeta do Povo.
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JOHN WILLIAMS
Stoner
Rádio Londres
Stoner encaixa-se na definição de
romance feita por Georg Lukács:
“são mundos abandonados por
Deus”. Williams escolhe o universo
acadêmico como cenário de uma
narrativa contida, silenciosa, porém
aguda, certeira do ponto de vista
da linguagem. A construção do
personagem principal, professor
provindo do campo e das atividades
agrícolas, é belíssima.
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Narradoras – A classe média como elemento