Desnaturalizar a infância e a juventude: um desafio para a educação Marta Gouveia de Oliveira Rovai Professora Especialista em História e Colaboradora convidada pelo I QE – Instituto Qualidade no Ensino Um dos primeiros historiadores reconhecido por dedicar-se ao estudo sobre as origens do conceito de infância foi o francês Philippe Ariès, com sua obra “História Social da Criança e da Família”, publicada ainda no início dos anos 1960. As constatações de Ariès indicavam que a infância só foi percebida como um período especial na vida no século XVIII, mesmo contexto de emergência da burguesia e de novas concepções em torno da vida privada e do indivíduo. Antes disso, a criança era encarada como uma espécie de adulto em tamanho reduzido. Principalmente, a partir do século XIX e no início do século XX, a criança HRMRYHPSDVVDUDPDVHULGHQWLÀFDGRVFRPXPDVpULH de particularidades que os separava do mundo adulto e exigia cuidados especiais. Dessa forma, passaram a ser compreendidos como construções sociais, resultados das dinâmicas de cada cultura e não naturalizações meramente biológicas. No entanto, nas últimas décadas estudos mostram que, paradoxalmente, ocorre um novo desaparecimento da infância e da juventude, com o aceleramento da sexualidade, pelo consumo e pelas responsabilidades que se acumulam, diluindo suas fronteiras históricas e culturais com o mundo adulto que, por sua vez, infantiliza-se pela busca da eterna juventude, num nivelamento dos indivíduos. As novas tecnologias IDFLOLWDUDPDPDVVLÀFDomRGDVPHUFDGRULDVGHYDORUHVHGH informações: o uso de imagens “democratizou” os espaços culturais e diluiu o que separava o mundo infantil/juvenil do adulto: a escrita, a sexualidade e a possibilidade do crime. Principalmente a partir da década de 1980, no Brasil, o processo de industrialização e urbanização, marcado pela globalização do capital e pela exclusão social (e também pela crise econômica), produziu milhões de crianças e jovens, segregados nas periferias das cidades. Assistiu-se a um desmantelamento ainda maior das redes de proteção a eles que, vitimados pelo abandono, pela violência (física ou simbólica) e pela invisibilidade, acabaram tornando-se os “monstros”, a ameaça dos “novos tempos”, entendidos como os desocupados, os desvios e os delinquentes, recrutados pelo crime e submetidos ao extermínio. Apesar do avanço que representou o Estatuto da Criança e do Adolescente, produzido em 1990, reconhecendo nesses VHWRUHVVRFLDLVHVSHFLÀFLGDGHVHQHFHVVLGDGHGHFXLGDGRV e proteção, os novos tempos parecem produzir novos conceitos mais preocupantes sobre eles. As características físicas e a transição etária, assim como certo imaginário social (como ingenuidade e fragilidade, ou irreverência e rebeldia), têm sido, historicamente, transformados em representações inversas e perigosas, principalmente quando se trata das periferias das cidades, para se explicar tensões e medos sociais na atualidade. Esse aceleramento da passagem entre infância, juventude e “adultização” trouxe uma série de incertezas sobre como lidar com conceitos que se multiplicaram e tornam cada vez PDLVYD]LDVHLQHÀFD]HVDo}HVGHFRQWUROHHGH disciplinarização dentro e fora de espaços, como a própria HVFRODHPTXHPXLWDVYH]HVOHLWXUDVVXSHUÀFLDLVH estigmatizantes parecem povoar concepções sociais sobre educação, procurando mais descrever o jovem abstratamente do que entendê-lo em suas mudanças e incertezas. Pensados, pelo senso comum, ora como a mudança e o novo, ora como imprevisibilidade e ameaça, parece recair sobre a infância e a juventude o medo social da desordem, do desemprego, da falta de controle e da violência. Diluídas as fronteiras entre juventude e mundo adulto – seja pelo trabalho (ou pela ausência dele), pela sexualidade e mais ainda pela ideia de criminalidade juvenil – consideramse meninos e meninas responsáveis por suas próprias vidas e pelas vidas de adultos, que deles deveriam cuidar, desconsiderando justamente as relações econômicas, políticas e culturais que os produzem como sujeitos. Em meio à crise de certezas sobre os papéis sociais que cabem a cada instituição social – a família, a escola e o Estado – corre-se o risco de punir crianças e jovens, imputando a eles todas as mazelas sociais e destituindo-lhes de suas particularidades e fragilidades. Diante desse processo histórico galopante e atemorizante de crise econômica e social, torna-se urgente pensar a escola em meio à epidemia de indiferença social e de inclusão perversa de meninos e meninas nas redes de estigmatização, criminalidade ou de enclausuramento penal. Resta a nós, educadores, colaborar com a violência – muitas vezes VLPEyOLFD²FRQÀUPDQGRDLPDJHPHPFHUWRVHQWLGR construída pelas mídias, pelo senso comum e pelo Estado) de uma infância ou juventude homogeneizante e abstrata, a TXDOVHGHYHFRQWURODUFXOSDELOL]DUHSXQLU"2XFDEHRGHVDÀR de nos responsabilizarmos por eles e desconstruirmos essa suposta naturalização de nossas crianças e jovens, exigindo que políticas públicas de cidadania sejam pensadas, GHEDWLGDVHDSOLFDGDVFRPYRQWDGHHHÀFLrQFLDHPWRUQRGH suas particularidades?