Urso xp** 5/5/06 18:06 Page 11 CAPÍTULO 1 criança saiu nua, em correria, do abrigo coberto de peles, na direcção da praia rochosa da curva da ribeira. Não lhe ocorreu, sequer, olhar para trás. Nada, na sua experiência, jamais lhe dera motivos para duvidar que o abrigo e os seus ocupantes ainda lá estivessem quando regressasse. Chapinhou na ribeira e sentiu as rochas e a areia escorregar debaixo dos pés, à medida que o leito se afundava abruptamente. Mergulhou na água fria, voltou a cima, a cuspir, e dirigiu-se, em braçadas seguras, para a íngreme margem oposta. Aprendera a nadar antes de saber andar e, aos cinco anos de idade, sentia-se à vontade dentro de água. Muitas vezes, só a nado era possível atravessar um rio. A menina brincou durante um bocado, nadando de cá para lá e deixando que a corrente a levasse, a boiar, curso abaixo. Chegada a um ponto onde a ribeira alargava, borbulhando nas rochas, levantou-se e vadiou para terra. Depois, caminhou de volta à praia e pôs-se a apanhar seixos. Acabava de colocar uma pedra no alto de um montinho de algumas particularmente bonitas, quando a terra começou a tremer. A criança viu, com surpresa, a pedra escorregar sozinha e observou, intrigada, a pequena pirâmide de seixos abanar e desmoronar-se. Só então se deu conta de que também tremia, mas estava mais confusa do que apreensiva. Olhou em volta, tentando compreender por que motivo A 11 Urso xp** 5/5/06 18:06 Page 12 o seu universo se alterara de modo inexplicável. Não era de esperar que a terra mexesse. A ribeira, que momentos antes deslizava suavemente, turvara-se com ondas agitadas que espadanavam nas margens, à medida que o leito oscilava e se movia contra a corrente, levantando a lama do fundo. Varridas pela vaga ascendente, as margens vacilaram, animadas pelo invisível movimento das raízes, enquanto, a jusante, os pedregulhos emergiam numa agitação invulgar. Mais além, imponentes coníferas inclinavam-se grotescamente, na floresta para onde a ribeira corria. Próximo da praia, pendia para a outra margem um pinheiro gigantesco, de raízes expostas, enfraquecido pelas enxurradas da Primavera. Cedeu com estrondo e despenhou-se, atravessado sobre o curso de água em turbilhão, jazendo, tremente, na terra insegura. A garota sobressaltou-se com o fragor da árvore a cair. Sentiu um aperto no estômago que se fez um nó, à medida que o medo lhe atingia o espírito. Tentou levantar-se mas caiu, desequilibrada pelo balanço nauseante. Tentou de novo, conseguiu erguer-se e ficou de pé, insegura, com medo de dar um passo. Quando se dirigia para o abrigo de peles, deixando a torrente para trás, ouviu um ronco surdo, que foi crescendo até se transformar num rugido assustador. Um fedor amargo a humidade e podridão brotava de uma racha aberta no solo, como a exalação do bafo matinal da terra a bocejar. Fitou, incrédula, a poeira, as pedras e as pequenas árvores precipitarem-se na abertura que se alargava desmesuradamente, à medida que a concha arrefecida do planeta em fusão estalava em convulsões. O abrigo, empoleirado na orla oposta do abismo, inclinou-se, quando metade da terra firme cedeu debaixo dele. A esguia viga mestra oscilou, indecisa, e acabou por tombar, desaparecendo no buraco profundo, com a cobertura de peles e tudo o que continha. A menina estremeceu, com os olhos esbugalhados de terror, enquanto a goela escancarada e nauseabunda devorava tudo o que tinha conferido sentido e segurança aos breves cinco anos da sua vida. – Mãe! Mãããe! Pôs-se a chorar, à medida que a compreensão a assolava. Por entre o rugido trovejante da rocha a abrir, não sabia se o grito que lhe soava aos ouvidos era o seu. Avançou, com esforço, em direcção à brecha profunda. Mas a terra ergueu-se e atirou-a abaixo. Fincou as unhas no chão, tentando agarrar-se com firmeza à terra palpitante e traiçoeira. 12 Urso xp** 5/5/06 18:07 Page 13 Depois a fenda fechou-se, o rugido cessou e a terra parou de tremer. Mas a criança não. Deitada de bruços no solo húmido e macio, a menina tremia de medo, solto pelo paroxismo que convulsionara a terra. E tinha razões para isso. Estava sozinha num mundo selvagem de estepes cobertas de erva e florestas esparsas. Os glaciares abarcavam o continente, a norte, empurrando o frio à sua frente. As vastas pradarias eram percorridas por um número incontável de herbívoros, e pelos carnívoros que deles se alimentavam. Mas gente havia pouca. Não tinha para onde ir nem havia ninguém que a procurasse. Estava só. A terra voltou a estremecer, acomodando-se, e a menina ouviu um ribombar vindo das profundezas, como se o planeta digerisse uma refeição engolida de um só trago. Ergueu-se em pânico, aterrada ao pensar que o chão voltaria a abrir-se. Olhou para o lugar onde se erguera o abrigo, mas só restava terra esventrada e arbustos desenterrados. Rompendo em lágrimas, correu de volta para o ribeiro e deixou-se cair, soluçando, junto das águas lodosas. Porém, as margens alagadas não ofereciam refúgio contra o inquieto planeta. Outra réplica, dessa vez mais forte, abalou o solo. Ofegante, surpreendida pelos salpicos de água fria na pele nua, o pânico voltou. De um salto, pôs-se em pé. Tinha que se afastar daquele lugar assustador, onde a terra tremia e devorava tudo. Mas para onde podia ir? Não havia sítio para as sementes germinarem, na praia rochosa, limpa de matagal, mas as margens a montante estavam obstruídas por arbustos cheios de rebentos. Um instinto profundo ditou-lhe que ficasse perto da água, mas o emaranhado dos silvados parecia impenetrável. Com a visão toldada pelas lágrimas, voltou os olhos para a floresta de altas coníferas. Esguios raios de sol penetravam entre os ramos sobrepostos da densa vegetação persistente que se concentrava junto ao curso de água. A floresta sombria era quase desprovida de vegetação rasteira; mas muitas das árvores já não estavam direitas. Algumas tinham caído; porém, eram mais as que se inclinavam em ângulos desajeitados, apoiadas em vizinhas ainda firmemente escoradas. Para lá do emaranhado arvoredo, a floresta boreal era escura e não mais convidativa do que os silvados a montante. Sem saber que caminho seguir, a menina olhou primeiro para um lado, depois para outro, indecisa. Voltada para jusante, um tremor debaixo dos pés fê-la decidir-se. Lançou um derradeiro olhar de saudade à paisagem vazia, na pueril 13 Urso xp** 5/5/06 18:07 Page 14 esperança de que o abrigo, de algum modo, ainda lá estivesse e correu internando-se no bosque. Instada a prosseguir por ocasionais protestos da terra agora em vias de estabilizar, a menina seguiu o curso de água, parando apenas para beber, na pressa de se afastar dali. Coníferas derrubadas pela terra tremente jaziam prostradas no solo. Foi contornando as crateras abertas pelo emaranhado circular de raízes aflorando o solo, com terra húmida e rochas ainda agarradas aos alicerces expostos. Pela tarde, notou que os sinais de agitação diminuíam; havia menos árvores desenraizadas e penedos deslocados. E a água corria mais límpida. Só parou quando já não conseguia ver o caminho. Deixou-se cair, exausta, no chão da floresta. O movimento tinha-lhe conservado o calor no corpo, enquanto marchava; mas o ar gelado da noite fazia-a agora tiritar, mesmo toda enroladinha, aninhada no espesso tapete de caruma e coberta de mãos-cheias dela, para se proteger. Porém, apesar de exausta, não foi fácil a aterrada menina pegar no sono. Enquanto esteve ocupada a encontrar um caminho entre os obstáculos ao longo da ribeira, tinha sido capaz de manter o medo afastado do espírito. Agora, porém, o pavor apoderava-se dela. Deixou-se ficar deitada, completamente imóvel, de olhos muito abertos, observando a escuridão adensar-se e congelar à sua volta. Receava mexer-se, quase temia respirar. Nunca passara uma noite sozinha, e havia sempre uma fogueira para manter a escuridão ao largo. Por fim, não conseguiu aguentar mais e chorou a sua angústia, num pranto convulsivo. O corpito agitou-se de soluços e, libertada a tensão, foi entrando no sono. Um pequeno animal nocturno farejou-a delicadamente, por curiosidade, mas ela não deu por isso. Acordou aos gritos. O planeta ainda estava inquieto e o ronco das profundezas trouxe-lhe de volta o terror, num pesadelo horrível. Pôs-se de pé sobressaltada e quis correr. Mas não via mais, de olhos bem abertos, que através das pálpebras cerradas. A princípio, não se lembrou onde estava. O coração pulsava com força. Porque não conseguia ver? Onde estavam agora os braços amorosos que sempre a tinham confortado quando acordava de noite? Lentamente, a consciência da sua lamentável situação voltou-lhe à mente e, tremendo de medo e de frio, encolheu-se e aninhou-se outra vez no tapete de caruma que cobria o solo. Os primeiros sinais ténues da aurora apanharam-na a dormir. 14 Urso xp** 5/5/06 18:07 Page 15 A luz do dia penetrou devagar nas profundezas da floresta. Quando a criança acordou, já a manhã ia avançada, mas naquela sombra densa, mal se notava. Na véspera, afastara-se do curso de água quando a luz rareou, e uma ponta de pânico voltou a ameaçá-la, quando olhou em volta e só viu árvores. A sede despertou-lhe a atenção para um gorgolejo de água. Seguindo o som, sentiu-se aliviada quando tornou a avistar a ribeira. Não estava menos perdida perto dela do que na floresta, mas sentia-se melhor tendo algo para seguir. E sempre podia matar a sede, enquanto a tivesse por perto. A água corrente bastara-lhe, no dia anterior, mas de pouco valia contra a fome que sentia. Sabia que se podia alimentar de folhas e raízes, mas não conhecia as comestíveis. A primeira folha que provou era amarga e picou-lhe na boca. Cuspiu-a e gargarejou para remover o gosto, mas hesitou em continuar. Bebeu mais água, pelo sentimento temporário do estômago cheio, e retomou a marcha seguindo o curso de água. Os bosques profundos assustavam-na e manteve-se junto à ribeira, onde o sol brilhava. Quando a noite caiu, escavou um espaço no meio da caruma e encolheu-se lá dento. A segunda noite que passou sozinha não foi melhor que a primeira. Um terror frio juntou-se à fome, na cova do estômago. Nunca sentira tanto medo, nunca sentira tanta fome, nunca sentira tanta solidão. O sentimento de perda era tão doloroso que começou a bloquear a recordação do terramoto e da sua vida antes dele. Porém, os pensamentos sobre o futuro conduziram-na tão perto do pânico que lutou para afastar também esses receios do espírito. Não queria pensar no que lhe podia acontecer, nem em quem tomaria conta dela. Vivia apenas para o momento presente, vencendo mais um obstáculo, cruzando mais um afluente, transpondo mais um toro derrubado. Acompanhar a corrente tornou-se um fim em si, não porque a levasse a algum lado, mas por ser a única coisa que lhe dava uma direcção, um propósito, um rumo de acção. Era melhor do que não fazer nada. Passado algum tempo, o vazio no estômago tornou-se uma dor surda que lhe embotava o espírito. Arrastava-se penosamente, chorando de vez em quando, e as lágrimas abriam sulcos brancos no rosto enfarruscado. Tinha o corpinho nu coberto de sujidade ressequida, e o cabelo, outrora fora quase branco, fino e macio como seda, empastava-se na cabeça, num emaranhado de caruma, galhos e lama. 15 Urso xp** 5/5/06 18:07 Page 16 Tornou-se mais difícil viajar quando a floresta persistente foi substituída por vegetação mais aberta e o piso de caruma da floresta deu lugar a silvados, arbustos e erva, o revestimento vegetal característico sob as árvores de folha caduca e miúda. Quando chovia, aninhava-se debaixo de um toro, de um penedo ou de um afloramento que lhe desse cobertura; ou continuava, simplesmente, a caminhar penosamente na lama, com a chuva a escorrer-lhe pelo corpo abaixo. À noite, empilhava folhas secas e quebradiças da estação anterior e enfiava-se entre elas para dormir. A abundante reserva de água potável impediu a desidratação de dar o seu perigoso contributo à hipotermia, a descida da temperatura do corpo que causava morte por exposição ao frio. Mas ia enfraquecendo. Já estava para lá da fome. Tinha apenas uma dor persistente e constante e, por vezes, uma sensação de tontura. Tentou não pensar em mais nada senão na ribeira, apenas em seguir a ribeira. Foi acordada pela luz do sol penetrando no ninho de folhas. Ergueu-se da aconchegada bolsa aquecida pelo calor do seu corpo e dirigiu-se à água para uma bebida matinal, com folhas húmidas ainda agarradas à pele. O céu azul e o brilho do sol eram bem-vindos, depois da chuvada da véspera. Pouco depois de se pôr a caminho, a margem do ribeiro por onde seguia começou a erguer-se, gradualmente. Quando decidiu parar para beber de novo, um declive íngreme separava-a da água. Iniciou a descida com cuidado, mas perdeu o pé e rolou até ao fundo. Ficou estendida na lama, junto à água, arranhada e ferida, demasiado cansada, demasiado fraca e demasiado infeliz para se mexer. Grossas lágrimas vieram-lhe aos olhos e escorreram-lhe pelo rosto. Queixosos lamentos rasgaram o ar, mas ninguém ouviu. O choro tornou-se uma lamúria, implorando que alguém fosse ajudá-la, mas ninguém apareceu. Chorava o seu desespero, com os ombros sacudidos pelos soluços. Não queria levantar-se, não queria continuar, mas que mais havia a fazer? Ficar ali a chorar, no lodo? Parou de chorar e ficou estendida na orla da ribeira. O gosto a lama na boca e a pressão desconfortável de uma raiz, por baixo dela, fizeram-na sentar. Depois, com lassidão, pôs-se de pé e dirigiu-se ao curso de água, para beber. Recomeçou a caminhada, afastando teimosamente os ramos, trepando sobre toros cobertos de musgo, chapinhando dentro e fora da linha da água. A corrente, já alta de anteriores cheias primaveris, tinha aumentado para mais do dobro, devido aos afluentes. Ouviu um rugido, à distância, muito antes de avistar a queda de água que se despenhava da mar- 16 Urso xp** 5/5/06 18:07 Page 17 gem elevada, na confluência de um rio com a ribeira, duplicando-lhe o caudal. Para lá da cachoeira, a veloz correnteza dos cursos de água reunidos borbulhava nas rochas, correndo para planícies cobertas de erva, através das estepes. A catarata trovejante precipitava-se da aresta da margem elevada, num grande lençol branco que mergulhava na espuma de uma piscina natural na base da rocha, criando uma névoa constante e redemoinhos no local onde as águas se encontravam. Algures num passado distante, o rio tinha escavado mais profundamente a falésia de pedra por trás da cachoeira. O rebordo sobre o qual o rio se precipitava avançava um pouco para além da parede de rocha por trás da torrente em queda, formando um passadiço. A menina aproximou-se devagar e olhou cuidadosamente para o túnel húmido, antes de se aventurar por trás da cortina líquida. Agarrou-se à rocha molhada para se firmar, entontecida pela água sempre a cair, a cair, a cair. O ruído era ensurdecedor, ressoando entre a parede rochosa e o tumultuoso fluxo. Olhou para o alto, receosa, consciente de que o rio corria por cima das rochas gotejantes sobre a sua cabeça, e continuou a avançar, vagarosamente. Estava quase do outro lado quando o passadiço terminou, estreitando gradualmente até desaparecer na parede alcantilada. A reentrância na falésia não atravessava até ao fim, e a garota teve que dar meia volta e retroceder. Quando atingiu o ponto de partida, olhou para a torrente encapelando-se sobre a orla e abanou a cabeça. Não havia outro caminho. A água estava fria e a correnteza forte quando entrou no rio. Nadou para o meio e deixou que o fluir das águas a levasse, contornando a catarata. Mais adiante, já o rio tinha alargado, obliquou de volta para a margem. Nadar cansou-a, mas ficou mais limpa do que antes, excepto o cabelo, enriçado e baço. Pôs-se de novo a caminho, sentindo-se mais fresca, mas por pouco tempo. O dia estava invulgarmente tépido para finais da Primavera e, a princípio, quando as árvores e silvados começaram a dar lugar à pradaria aberta, o sol quente soube-lhe bem. Porém, quando a bola ardente subiu mais alto, os seus raios escaldantes levaram grande parte das magras reservas da menina. Pela tarde, cambaleava ao longo de uma estreita tira de areia entre o rio e uma falésia íngreme. Por baixo, as cintilações na água reflectiam o brilho do sol, enquanto, por cima, o arenito repercutia a luz e o calor, aumentando a intensidade do clarão. 17 Urso xp** 5/5/06 18:07 Page 18 Na outra margem, e dali até ao horizonte, estendiam-se pequenas flores brancas, amarelas e roxas, fundindo-se, com nova vida, no verde brilhante da erva em crescimento. Mas a criança não tinha olhos para a efémera beleza primaveril das estepes. A fraqueza e a fome faziam-na delirar, e começou a ter alucinações. – Eu disse que ia ter cuidado, mãe. Só nadei um bocadinho, mas para onde é que tu foste? – balbuciou. – Mãe, quando é que vamos comer? Tenho tanta fome e está calor. Porque não vieste quando te chamei? Chamei, chamei, mas não vieste. Onde é que tens estado? Mãe? Mãe! Não vás embora outra vez! Fica! Mãe, espera por mim! Não me deixes aqui! Correu na direcção da miragem, enquanto a visão se desvanecia, seguindo o sopé da falésia. Foi-se afastando da orla, desviando-se do rio, e deixou para trás a fonte de água. Correndo às cegas, deu uma topada numa pedra e caiu pesadamente. Isso devolveu-a à realidade, ou quase. Sentou-se, a massajar o dedo do pé, tentando coordenar os pensamentos. A parede irregular de arenito era pontuada por buracos escuros de cavernas e rasgada por estreitas fracturas e fendas. A dilatação e a contracção resultantes dos extremos de calor abrasador e das temperaturas negativas tinham esfarelado a pedra macia. A criança espreitou para um pequeno buraco na parede rochosa, junto ao chão, mas a exígua caverna não lhe causou boa impressão. Muito mais impressionante era a manada de auroques pastando pacificamente na luxuriante erva nova, entre a falésia e o rio. Na pressa cega de seguir a miragem, não tinha reparado nas grandes reses selvagens, de um castanho avermelhado, com 1,80m de altura de cernelha e longos cornos recurvados. Quando se deu conta, um medo súbito varreu-lhe do espírito as últimas fantasias. Recuou para junto da parede de pedra, de olhos fitos num corpulento macho que interrompera a sua refeição para a observar. Depois, voltou-lhe costas e começou a correr. Num relance por cima do ombro, susteve a respiração ao vislumbrar uma mancha veloz em movimento e estacou, aterrada. Uma enorme leoa, com o dobro do tamanho de qualquer felino que, muito depois, viria a povoar as savanas mais a sul, tinha-se aproximado furtivamente da manada. A menina reprimiu um grito quando a monstruosa fera saltou sobre uma das fêmeas. Numa confusão de dentes agressivos e garras selvagens, a leoa gigante deitou por terra o pesado auroque. Com uma dentada de poderosas mandíbulas, o enorme carnívoro rasgou-lhe o pescoço, pondo ter- 18 Urso xp** 5/5/06 18:07 Page 19 mo ao berreiro apavorado do bovino. O sangue esguichou, manchando o focinho do caçador quadrúpede e salpicando-lhe de escarlate o amarelo acastanhado do pêlo. As patas do auroque continuaram a agitar-se em espasmos, enquanto a leoa lhe rasgava o estômago e lhe arrancava um naco de carne, vermelha e quente. Um terror total acometeu a garota. Pôs-se em fuga, num pânico selvagem, cuidadosamente observada por outra fera. A criança caíra em território de leões das cavernas. Normalmente, os grandes felinos desdenhariam para presa uma criatura tão pequena como um humano de cinco anos, preferindo um robusto auroque, um bisonte graúdo ou um alce gigante para satisfazer as necessidades de uma família de leões com fome. Porém, a criança, ao fugir, aproximara-se demasiado da caverna que abrigava um par de crias choronas, recém-nascidas. De guarda aos filhotes enquanto a leoa caçava, o leão de juba hirsuta rosnou um aviso. A pequena ergueu a cabeça e sobressaltou-se ao avistar o gigantesco predador agachado numa saliência rochosa, pronto para a atacar. Gritou, escorregou ao tentar parar e caiu, esfolando a perna no cascalho solto, junto à parede rochosa. Lutou, de pés e mãos, para inverter o sentido da fuga e correu de volta pelo caminho que tomara, espicaçada por um medo agora ainda maior. O leão das cavernas pulou com lânguida facilidade, confiante na sua capacidade para apanhar a pequena intrusa que ousara violar a santidade da caverna feita berçário. Não tinha pressa. A menina movia-se com lentidão, comparada com a sua velocidade ligeira, e apeteceu-lhe jogar ao gato e ao rato. Em pânico, foi apenas o instinto que conduziu a menina a um pequeno buraco na falésia, junto ao solo. Ofegante e dorida, comprimiu-se através de uma abertura onde mal cabia. A caverna era exígua e pouco profunda, pouco mais que uma fenda. Foi-se contorcendo no limitado espaço até ficar ajoelhada, de costas contra a parede, tentando fundir-se na rocha maciça. O leão das cavernas rugiu de frustração quando chegou ao buraco e viu a sua perseguição contrariada. A menina estremeceu ao ouvir o rugido e observou, com um terror hipnótico, a fera a enfiar a pata no minúsculo esconderijo, estendendo as aduncas e aceradas unhas. Sem ter como fugir, viu as garras cada vez mais perto e guinchou de dor quando as sentiu firmar-se na sua coxa esquerda, rasgando quatro fundos golpes paralelos. Enroscou-se toda para fugir ao seu alcance e deu com uma pequena depressão na parede escura, à sua esquerda. Meteu lá as pernas e enros- 19 Urso xp** 5/5/06 18:07 Page 20 cou-se o mais que pôde, sustendo a respiração. A pata voltou a entrar pela pequena abertura, quase bloqueando a escassa luz que penetrava no nicho, mas dessa feita nada encontrou. O leão das cavernas rugiu e tornou a rugir, caminhando de um lado para o outro, diante do buraco na falésia. A criança permaneceu na acanhada caverna durante o resto do dia, toda essa noite e a maior parte do dia seguinte. A perna inchara e o ferimento infectado causava-lhe uma dor constante, além de que o exíguo espaço de paredes ásperas não lhe permitia voltar-se nem estender-se. Durante a maior parte do tempo, delirou de fome e de dor e teve pesadelos assustadores, com terramotos, garras afiadas e pavores de solidão e dor. Mas não foi a ferida, nem a fome, nem sequer as dolorosas queimaduras solares que finalmente a levaram a abandonar o refúgio. Foi a sede. Espreitou, a medo, pela estreita abertura. Salgueiros e pinheiros dispersos, enfezados pela ventania, projectavam longas sombras de fim da tarde. A criança observou durante muito tempo a extensão de terra coberta de erva e a cintilante superfície da água, mais além, antes de reunir a coragem necessária para ousar sair. Lambeu os lábios gretados com a língua ressequida, enquanto perscrutava o terreno. Só a erva mexia, varrida pelo vento. O bando de leões tinha partido. A leoa, ansiosa com a segurança das crias e desconfiada do odor desconhecido da estranha criatura tão perto da caverna, decidira procurar novo reduto. A menina deslizou para fora do buraco e levantou-se. Sentia a cabeça latejar e via pontos luminosos a dançar diante dos olhos, vertiginosamente. Vagas de dor assolavam-na a cada passada e os ferimentos começavam a exsudar um verde amarelado doentio, que lhe escorria pela perna inchada. Não sabia se ia conseguir chegar à água, mas a sede era mais forte. Caiu de joelhos, rastejou os últimos metros e, estendida de borco, engoliu avidamente a água fria, em grandes goles. Quando, finalmente, saciou a sede, tentou levantar-se de novo; mas tinha atingido o limite da sua resistência. Pontos de luz flutuavam-lhe diante dos olhos e sentia a cabeça a andar à roda. Tudo escureceu quando caiu. Uma ave necrófila voava preguiçosamente em círculos, espiando a forma imóvel, e baixou sobre ela para a apreciar mais de perto. 20