Quer pintar a outra mão? Um dia antes de voltar para Espanha, no meu último dia de férias no meu querido Brasil, minha mãe me convenceu de que eu deveria fazer as unhas “pra voltar arrumadinha pra Europa”. Relembrando os domingos de dedicação exclusiva à arte da manicure na casa da minha avó, acompanhados do chato do Faustão (de todas as mulheres que eu já conheci a brasileira é a única que é auto‐manicure e pedicure nas horas vagas) aceitei a proposta, já que fazia anos que nem sabia o que era tirar a cutícula. O salão era simples mas bem grande, com dois andares, no centro do Tatuapé, que naquela época ainda não era o Alphaville gigante que virou hoje, e foi eleito especialmente pelas mãos leves da Genilda “que não corta tanto bife como outras açougueras do bairro” das quais minha mãe tinha pavor. E lá estava eu, com Genilda já na primeira capa de esmalte de uma mão, quando minha mãe percebeu que não tinha dinheiro na carteira, e teve que sair quinze minutinhos para depois voltar e acertar as contas. Aqui começaram os quinze minutinhos mais largos da minha vida. Genilda de repente ficou gelada e apertou minha mão dizendo “não se mexe porque acho que é assalto”. Olho pelo espelho e vejo na porta do salão dois meninos de uns dezesseis anos com uma 38 gigante na mão. Um ficou na porta vigiando, enquanto o outro gritava com a voz quebrada “todo mundo pro quarto do fundo”, apontando o revólver em várias direções. Uma parte de mim não acreditava que aquilo era real e fiquei uns instantes ali parada observando como se fosse a novela das oito. Genilda me puxou e fui seguindo os outros clientes num estreito corredor que saía no quartinho do fundo, passando por uma mini cozinha e um banheiro. No caminho, em meio ao desespero, uma senhora aproveitou pra esconder a bolsa dentro da pia da cozinha, enquanto um outro homem arremessou a carteira no banheiro. Já quase na entrada uma menina deixou deslizar o celular até o batente da porta. Se formou um círculo de umas dez pessoas e o ladrão nervoso com os olhos arregalados e vermelhos, foi checando um por um, pegando o que tinha valor e guardando numa sacola velha do Carrefour. Tirei meu relógio Swatch lilás e estirei o braço para entregá‐lo e o mané disse: “Essa porra de plástico da 25 de Março não precisa não”. Respirei aliviada, enquanto ele passou para o próximo chequeio. De repente o outro assobiou desde fora e quando o muleque já estava saindo, olhou para baixo e viu o celular no batente da porta... Furioso, deu a volta e começou a gritar: “Vocês tão querendo me enganar? Seus filho da puta, agora alguém vai ter que morrer pra pagar isso. Quem vai ser, quem vai ser?”‐ enquanto ia apontando a arma como se tratasse de uma roleta russa para cada um de nós. Olhou fixamente para mim e disse: “Você!”. “Euuuu??”‐ respondi no tom mais indignado que já tive na vida. “Sim, você mesmo patricinha, a única branquinha daqui, vai morrer hoje”. Me pegou pelo braço‐ eu já não sentia nada‐ e ia me levando para fora da sala, quando uma senhora negra, a mais idosa dali, se ajoelhou aos pés do rapaz e disse “pelo amor de Deus meu filho, não mata ela não, ela é muito nova, vai em paz, vai com Deus e não vai te acontecer nada” e começou a rezar o Pai‐Nosso compulsivamente. O menino olhou para cima, e como se algo tivesse feito “clic” na sua cabeça, olhou pra mim e falou: “se livrou por hoje moça”. Fechou a porta e saiu correndo. Um “Graças a Deus”, geral ecoou na sala, enquanto alguns gemiam ou riam e outros passavam mal. Uma senhora teve pressão alta e outra pressão baixa, e da‐lhe agua com açúcar para uma, e sal pra debaixo da língua da outra e abanar quem tivesse ainda deitado com exemplares velhos da “Caras”, enquanto todos voltávamos pouco a pouco a realidade. Comecei a procurar a senhora que me salvou a vida, mas na confusão a perdi. Perguntei para a dona do lugar se alguém já tinha chamado a polícia. E ela me disse: “Pra que? Já é a segunda vez nesse mês que isso acontece. Agora mesmo você está no lugar mais seguro de São Paulo!”. Os ladrões levaram várias tesouras e secadores também, e começaram os rumores de que um deles era um tal de Juninho, antigo funcionário, planejou o roubo para abrir outro salão em São Miguel. Não passaram nem dez minutos desde o choque e escutei o barulho de um secador e vi um dos cabeleleiros descalço, só com as meias postas (tinham roubado o Nike dele de 500 reais, e ainda faltavam duas prestações pra pagar) alisando o outro lado da escova de uma cliente. Vi a dona do lugar voltando ao seu banquinho na caixa registradora e a faxineira varrendo e colocando as cadeiras no lugar, quando Genilda ainda trémula pegou na minha mão e perguntou ”então, quer pintar a outra mão?”. Por Gabriela Albertoni. Publicado na revista impressa: Brasil com Z em 20/08/12 
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