ACERVO-FICÇÃO Ana Cristina da NATIVIDADE UFRGS Doutoranda em Geografia. Bolsista CAPES. Rua Alcides Maia, 165 - Bairro Açorianos - Viamão RS 94410-390 E-mail: [email protected] Resumo: Um certo uso dos acervos particulares de fotografia atualiza as práticas do imaginário do espaço social cotidiano: nas maneiras de imaginar as relações entre ficções de si; na espacialização das ficções de si, as maneiras de tensão-espaço criam sentidossensações do viver. Essas tensões-espaço (certas relações de elementos, qualidades, valores imediatamente do humano) provocam soluções-espaço. As maneiras de contar a si mesmo segue a “lógica do verossímil, ou do provável, que preside aos debates arriscados na prática”, com regras de persuasão e não com regras de demonstração. Pelo ato de fazer ficção, de criar efeitos de si mesmo apresenta as tensões e os elementos que são postos em relação. Esse ato de fazer-se fazendo ficção de si mesmo apresenta maneiras de fazer-se junto com outro. A prática interpretativa nos acervos fotográficos é a mesma que afeta a vitalidade humana no espaço cotidiano, levando a pensar os acervos de fotografia particulares como “metáforas vivas” para o espaço social. Palavras-chave: Acervo de fotografias particulares. Ficções de si. Espaço cotidiano. FICTION-COLLECTION Abstract: A certain use of the private picture collections updates the imaginary practices of daily social interactions: the ways of imagining the relations between fictions of oneself, in the spatiality of the fictions of oneself, the ways of space-tensions create meaningssensations of living. These space-tensions (certain relations of elements, qualities, immediate values of the human) prove space-solutions. The ways of telling yourself follows the "logic of the verisimilar, of the probable, that presides the debates risked in practice", with rules of persuasion and not with rules of demonstration. By the act of making fiction, of creating effects of oneself presents the tensions and the elements that are put in relation. This act of being made making fiction of oneself presents ways of being made with another. The interpretative practice in the photographic collections is the same that affects the human vitality in the daily space, causing us to think that the private picture collections as "living metaphors" for the social space. Key-words: Collection of private pictures. Fictions of oneself. Daily space. Introdução Um certo uso dos acervos particulares de fotografia atualiza as práticas do imaginário no espaço social cotidiano: nas maneiras de criar as relações entre ficções de si; na espacialização das ficções de si. Considero as maneiras de criar relações como maneiras de criar tensões que, por sua vez, significam a experiência do viver. As relações de interdependência nos processos de formação e transformação do ser humano, das sociedades e das relações físico-sociais podem ser observadas em um determinado espaço e tempo, em formas provisórias (figuras) que tomam as relações, o espaço, o grupo os modos de olhar. Por ser uma relação de interlocução, de interdependência ocorre uma configuração, uma figuração, uma formação mútua. Nesse processo de configuração destacamos as ficções de si como fator mobilizador e motriz das ações e interações dos usuários dos acervos fotográficos particulares com o acervo. As formas e os modos de visibilidade servem de indicadores do tipo de pessoas e de espaço interfigurado, indicam também as possibilidades da vida em um local específico. Observar as maneiras como essas pessoas fazem a si mesmas nos modos de utilizar as fotografias na forma de um acervo possibilita compreender a articulação entre vitalidade humana e práticas culturais. Susanne Langer (1989) afirma que a tessitura real da vida humana é uma intrincada teia do significado tecida por relacionamentos entre signos com significados, entre símbolos com conceitos e conceitos com coisas, e entre atribuição de símbolos a certos análogos na experiência (ibid., p.86); o mundo do homem é constituído de símbolo e significado (ibid., p.39). Encontro a vitalidade humana no simbolizar a experiência, nos usos de dados sensoriais, no “reino da concepção e da expressão” (ibid., p.38), ultrapassando a aquisição de experiência ou o âmbito do sentido, da sensação. O significado é um padrão visualizado da relação total de um termo com os outros termos ao seu redor (ibid., p.65). Um acervo de fotografias no seu conjunto é um quadro de uma estrutura de um estado de coisas; é um símbolo e não uma duplicata daquilo que representa, representa as relações das partes às quais nos prendemos ao formular a concepção da coisa. Focalizo a mobilização de certas tensões-espaço que entretecem vitalidade humana e espaço cotidiano nas maneiras de apresentar um acervo particular de fotografias. Essas tensões-espaço (certas relações de elementos, qualidades, valores imediatamente do humano) provocam soluções-espaço (LANGER, 1980). O homem cotidiano mobiliza certas tensões-espaço que podem ser apreendidas nas maneiras de apresentar o acervo particular de fotografias. Aproximo Michel de Certeau (2003a) no aspecto do fazer: fazer a si mesmo não como “obra de arte”, mas como “modo de viver” - como fazemos a nós mesmos numa “projeção” com o outro. A formação de si mesmo; fazer a si mesmo - são proposições diferentes; congregam modos diferentes de tensionar elementos da experiência cotidiana de si mesmo e de expressar essas tensões em um certo quadro - limita e assenta os meios pelos quais qualquer resposta a ela possa ser dada; proporciona o ângulo e a perspectiva, a paleta, o estilo em que o quadro é traçado; indica os princípios de análise (LANGER, 1989, p. 15). Se a questão fosse formulada “como você se formou” o foco da atenção incidiria sobre a forma e suas mudanças. Preferi a questão sobre “como você se fez” por intuir que o foco cairia sobre as “tarefas”, o trabalho pequeno, contínuo, insone de ter feito a si mesmo. Parte do pressuposto que há uma “concepção” e percepção da forma-eu, mas não pergunto sobre ela e sim sobre a ação contínua, cotidiana de ter sido feito por si mesmo - suas escolhas e não-escolhas - sobre as tensões-espaço que criou. Certeau (2003b) faz uma “ciência prática do singular” ou seja, sugere maneiras de pensar as práticas cotidianas. Desse modo, identifica um estilo e um uso que no seu cruzamento formam um estilo do uso, uma maneira de ser e uma maneira de fazer. Um uso: da fotografia; um estilo: fotografias soltas que se combinam e re-combinam em uma seqüência de acordo com o interlocutor. O estilo do uso desse acervo de fotografias é um modo de fazer-se fazendo-se ficção. Acervos particulares de fotografia Lembrar precisa de um ponto de partida, lembrar o quê, para quê. Precisa de um ponto inicial que condensa e move o pensamento. A memória se configura quando uma certa pergunta é feita; pergunta é um complexo, um feixe de tensões-espaço. Se não há pergunta não há figura, há uma ação adensada vivido-viver. A pergunta provoca um descolamento, uma objetivação. Um estranhamento provoca a pergunta. Se a ação se volta para a minha prática, para a minha ação memorável, realiza um esfacelamento maior e minucioso daquilo que pressinto como “meu eu”. Um estranhamento provoca um descolamento entre o vivido e o viver: (a) se me posiciono de um certo modo no vivido uma certa imagem do viver se configura; (b) se me posiciono de um certo modo no viver uma certa imagem do vivido se configura; (c) se focalizar o deslocamento entre vivido e viver, uma certa imagem do movimento se configura; (d) se focalizar o deslocado nesse movimento, uma certa imagem da mobilidade se configura. Mobilidade como qualidade daquilo que é móvel. Des-locar. Assim, o que é deslocado quando nos movimentamos? Deslocar-se não é o mesmo que sair do lugar? Deslocado é o que está fora do lugar ou está em outro lugar que não o seu? Que idéia é essa de lugar próprio? Próprio ou apropriado (adequado ou tomado?). Essa “minoração” do lugar, retira o lugar como elemento de poder. O que sobra? Com os acervos de fotografia me detive no quarto item, a (4) mobilidade. Mobilidade não implica a visualização do percurso, mas estar em um ponto e depois aparecer em outro ponto diferente. Se não há necessariamente visualização do percurso, não há necessariamente visualização do movimento. Por isso optamos pela fotografia e não pelo vídeo ou cinema. Assim o ponto inicial da narrativa não será necessariamente na ordem cronológica dos acontecimentos vividos e as fotografias correspondentes, mas sim a fotografia que começa a história. Esse ponto inicial poderá ser modificado de acordo com o(s) interlocutor(es). Em um vídeo a materialidade da gravação está dada, a seqüência é fixa (mostra outros elementos, mas não o foco dessa pesquisa). O que é móvel é a narrativa que se faz na interlocução, que se renova, que se inventa ou produz entre uma fotografia e outra. Desse modo é possível intensificar a atenção para os modos de “usar” as fotografias, como são encadeadas, relacionadas - o foco dirige-se para o modo de relacionar e não para a relação feita. Acervo 1 Para “compor” a pesquisa iniciei com meu acervo particular de fotografias realizadas nos anos de 2004 e 2005. Lembrar inicialmente foi tecido sobre o tempo presente, foi escrever o que estava vivendo, pois o problema estava em viver o dia a dia; tomou a forma de um diário, sobrepôs-se ao meu cotidiano. Aos poucos três distanciamentos se tornaram possíveis: afastar-me mais no tempo e visualizar algumas práticas de vida que lidas provocaram a visualização de um ponto motriz: a vida construída pelo deslocamento espacial com a impressão de tempo único, eterno. Relatar o processo das imagens da memória foi a dificuldade seguinte, pois diferentes entradas para o texto se mostravam. O segundo, um afastamento espacial - por meio da forma visualizada - expôs a relação entre uma configuração significativa e a concepção de uma realidade. E, enfim, o terceiro distanciamento foi a criação de uma projeção de mim mesma em ação: para pensar sobre minha experiência de vida foi preciso criar uma ficção de mim. Quando me detive a pensar sobre as imagens do acervo e como organizá-lo para contar à alguém ou para mim mesma percebi que não era possível uma ordem cronológica no modelo passado-presente-futuro; ou no modelo começo-meio-fim. Percebi também diversos cortes, dimensões e escalas espaciais: a relação do espaço vivido com o espaço imaginário não era de correspondência literal ou indicial. Os espaços de mim mesma não podiam ser configurados em um modelo cartográfico/topológico. O significado para esse acervo fotográfico não era acessado na memória de um mesmo modo sempre e nem as imagens da memória se apresentavam da mesma forma. Diferentes padrões são traçados e diferentes configurações apareceram, diferentes dimensões de uma mesma vida. Escolhi algumas fotografias que foram copiadas da tela do computador a lápis em papel transparente, definindo as linhas de contorno que compunham a imagem. Desse modo, foram suprimidas as cores, as texturas, identidades: vemos o vulto de uma pessoa, de uma criança, de um homem, da casa, da rua, mas não podemos identificar essas imagens com sua localização no real. Percebemos que se trata de uma rua, ou de uma casa pois expressa a mesma relação das partes a partir da qual a concepção desses espaços foi formulada. Com isso, entram em foco as linhas de contato entre uma figura e outra, de uma figura com uma não-figura, entre não-figuras. Elimino o caráter indicial das fotografias que no seu detalhamento da imagem apresentam significação [quase] puramente literal. (LANGER, 1989, p.278). Depois de algumas fotografias quatro dimensões tomaram forma: a face, a casa, a cidade-mundo e o quarteirão. A face A face como esfinge que inverte o foco do deciframento e provoca o pensamento. A figura da bisavó é a tensão que congrega um mundo. A bisavó como esfinge pergunta: diga-me quem és ou te devoro. Na inversão do foco, voltar-se para o interior indica um caminho diferente e um modo de caminhar outro no qual o passeio com o olhar sobre superfícies, sobre objetos, sobre coisas exteriores remete a uma outra relação espacial. Não penso por reflexão, mas por inflexão. No mundo dos objetos exteriores me relaciono com o outro incontrolável, mas no mundo interior o espaço é o espaço mental no qual transito, detalha e particulariza o outro em tipos com os quais revisto as faces particularizadas do meu eu. Pierre Clastres (2003) fala que a face é uma invenção européia; entre os “índios” da América-latina não há destaque para o indivíduo, mas para a formação do grupo. A face responde a um desejo de identidade, segundo Clastres uma tautologia nem sempre evidente de que um espelho é um espelho: os índios se olhavam por um certo tempo, várias vezes ao dia, de diversas maneiras, o próprio rosto que lhes pertencia e não lhes oferecia, quando tentavam tocá-lo com a ponta dos dedos só encontravam a superfície fria e dura. O princípio de identidade diz que A é A ao mesmo tempo que A não é não-A . “Nomear a unidade das coisas, nomear as coisas segundo sua unidade, é também assinalar-lhes o limite, o finito, o incompleto” (CLASTRES, 2003, p.190-191) . A dimensão da face não é um espelho, objetivamente não faço a mim mesma por reflexão, mas rebato o olhar e inflexiono o pensamento sobre um imaginário que reflete as faces. A face se apresenta em pose e rosto; uma superfície que define o espaço em tensionamentos interior-exterior. A casa A casa é um envoltório mais que uma fachada; são as pessoas em uma prática de convivência e celebração da vida diária. Pertenço à casa. A casa se desloca comigo. A casa não é um lugar, mas é como se fosse um corpo. Pierre Mayol nos diz que “[o] território onde se desdobram e se repetem dia a dia os gestos elementares das ‘artes de fazer’ é antes de tudo o espaço doméstico, a casa da gente.” (2003, p. 203). A casa é feita por força da mãe: quem distribui as coisas, as horas, quem é quem e faz o quê. É difícil sair da casa feita pela mãe e fazer a própria casa: quase não sei fazer isso: antes morava na casa, agora preciso fazê-la e precisa ser feita todos os dias, a toda hora, o tempo todo. A casa se apresenta nos seus moradores. A cidade-mundo A cidade-mundo aparece quando preciso organizar os deslocamentos, as viagens, as mudanças de casa, de cidade. Quando a tensão agrupa como um conjunto um aglomerado de vivências e imagens. Trabalhando sobre as fotografias que desenham essa dimensão a cidade-mundo são as ruas, as estradas percorridas diversas vezes. De uma certa forma a rua é um espaçointervalo, está entre a casa e o quarteirão, pode ser uma linha de fuga, e/ou o contorno de uma forma (seu limite, sua pele), uma fronteira, um horizonte, uma interface, uma rachadura, uma ranhura. A metrópole Porto Alegre vivida ao longo de quarenta anos como uma aproximação; como uma metrópole que transborda e enovela-se com todos os caminhos, todas as ruas das cidades onde morei. Sempre como um “centro do mundo” fez-se no imaginário uma cidade-mundo. Nas ficções de mim mesma a dimensão da cidade-mundo é um dos “espaços do si mesmo” que se apresenta no imaginário ao tensionar os deslocamentos entre cidades diferentes no decorrer de um tempo de vida (40 anos). A cidade-mundo como prática de vida e como espaço rememorado se faz por obra do pai que devido ao seu emprego mudou de cidade muitas vezes. Os deslocamentos e mudanças de residência fazem sentido nesse acervo em função da metrópole, da cidade-mundo que é um centro, é um fundo, é um feixe de entradas e saídas que não pela sua materialidade, mas o seu “uso” no decorrer de um tempo de vida a fez “mágica”. Essa “característica” mágica me faz viver Porto Alegre como um lugar ao qual orbito. Porto Alegre é a cidade-mundo, mas é um lugar no qual apesar de morar não estou nela; também não me permite ficar muito tempo nela - me lança para outros espaços, tornase muito “apertada”. Desse modo, os caminhos são espaços da metrópole, as ruas de todas as cidades também. Assim como na metrópole real encontro essas outras cidades não como representações reais, mas a conexão entre alguns aspectos do real com a lembrança de uma atmosfera vivida no passado. A cidade-mundo se apresenta em três distanciamentos: o primeiro, mais próximo a casa, perto; o segundo, fora da casa, na rua; e o terceiro, longe, as ruas que formam o quarteirão. O quarteirão O quarteirão se faz nas fachadas das casas; na liquidez das pessoas, sua fugacidade; do formato das ruas, seu entrelaçamento. Me escapa como objeto: é preciso refazê-lo sempre; só existe se o percorro como uma unidade imaginária. A descoberta de um padrão para a movimentação da vida cotidiana, ou a modelagem do pensamento-caminhada, foi percebido ao percorrer as ruas e pressentir uma unidade nesse conjunto de casas, nesta configuração das ruas, na aparição (?!) (aparência) do uso que as pessoas lhe dão. Foi percorrer de uma forma lenta, na velocidade dos passos de um bebê que começa a andar e a olhar as coisas do mundo. Depois pesquisando sobre essas ruas que o compõe soube que no seu conjunto fizeram parte de um loteamento do início do século XX. A unidade imaginária permanece mesmo que muitas de suas casas não existam mais. São as ruas da minha memória, as faces e casas da minha memória que me trazem e dão forma e se concentram em um ponto que é o quarteirão. Mas não são as memórias sobre este quarteirão. Olhando para o quarteirão objetivamente não reconheço meu passado; olhando para o quarteirão objetivamente as imagens da memória se desfazem; meu imaginário é suspenso, quase se desfaz. O quarteirão se apresenta em duas escalas: a primeira, são as fachadas das casas; a segunda, o interior do quarteirão. Acervo 2 Foram realizadas conversas prévias até a solicitação do acervo fotográfico. Realizei entrevistas conversacionais sobre o acervo com o proprietário do armazém (O-) que foram gravadas, e analisadas 16 fotografias realizadas pelo proprietário. Realizei fotografias do armazém - exterior - com máquina digital. Para análise as fotografias receberam o mesmo tratamento do acervo 1. O armazém Ao entrar no armazém da esquina foi como entrar numa linha de fronteira: uma mistura de mundos, onde um não deixa de ser o que é e se entrelaça ao outro; não se misturam, entrelaçam-se; não transparecem, entrelaçam-se; não são escalas ou dimensões de um mesmo espaço. Os balcões no centro do ambiente e nas laterais dos corredores têm por referência o chão do edifício e representam o mundo contemporâneo; as prateleiras que estão coladas nas paredes (e que dão a impressão de que se forem retiradas a casa irá cair) fazem parte de um tempo quase sem memória, anterior ao atual proprietário. Quase sem memória porque quase sem acesso ao usuário do armazém: este depende da ação do atendente. Nesse armazém-fronteira a organização do espaço interno e a inserção espaçovisual do armazém na rua, podem ser compreendidas como uma maneira de inventar um ambiente onde se queira viver. Um espaço que apresenta registradas as invenções de seus proprietários. Invenções que se sobrepõem, não como um palimpsesto, mas se entrelaçam, permeiam-se; outras invenções se interpõem nas entrelinhas dessa disposição de objetos. O- dividiu seu acervo fotográfico em três períodos: 1) quando iniciou no bar da sua mãe; 2) em uma cidade do interior por conta própria onde aprendeu o que precisava para administrar um armazém; 3) atualmente onde queria chegar. As fotografias mostram no primeiro período sua figura predominando com o armazém de cenário; no segundo período vemos sua figura um tanto diminuída em relação ao estabelecimento, parecendo imergir no prédio que começa a migrar para o primeiro plano da fotografia. neste segundo período são apresentadas fotografias do interior do estabelecimento mostrando a organização do ambiente, mas não aparecem outras pessoas; no terceiro período temos uma seqüência de fotografias do interior do estabelecimento, aparecendo a esposa e as filhas, mas O- não aparece; mostra as mudanças que transcorreram com o tempo no armazém. Apresenta também fotografias da fachada do estabelecimento de como era quando iniciou e de como está agora de acordo com suas idéias; as fotografias do terceiro período mostram as intervenções de O- no ambiente e não o que ficou da organização anterior mas que ele mantém até hoje. Resultados 1. As maneiras de contar a si mesmo seguem a “lógica do verossímil, ou do provável, que preside aos debates arriscados na prática”, com regras de persuasão e não com regras de demonstração; é dizer não que houve mas o que poderia haver. Narrativas de invenção. Pelo ato de fazer ficção, de criar efeitos de si mesmo o homem cotidiano apresenta as tensões e os elementos que são postos em relação na vida do dia-a-dia. Esse ato de fazer-se fazendo ficção de si mesmo apresenta maneiras de fazer-se junto com. Os acervos-ficção como fato são performances, o percurso de uma interlocução, existem enquanto existe interlocução. A interlocução como modo de fazer um “texto” se depara com o fato de que nem sempre os interlocutores participam de um diálogo “frente a frente”, mas expressam-se ao mesmo tempo sobre assuntos diferentes com o mesmo interesse ou foco. Não falam do mesmo “ponto de vista”, mas focalizam o “mesmo” ponto: um espaço vazio no qual se faz a narrativa fugaz. Luiz Costa Lima (2006, p. 173) quando pensa sobre a distância entre o narrador e seu objeto, o estabelecimento de uma distância entre si e o mundo, destaca que a cena privada se destaca e o ponto de vista privado é realçado, quando a escrita se interpõe, estabelecendo automaticamente a distância entre o que narra e seu público, pois quem conta ou quem lê “tem tempo de refletir sobre o que está fazendo.” (Goody, J, apud LIMA, 2006, p.177). Nos acervos-ficção temos uma mistura de narrativa oral e escrita, temos a interlocução e as fotografias, ora nos aproximamos ora nos afastamos. 2. O homem cotidiano se põe como questão quando pela ficção “rompe com os automatismos que presidem as interações cotidianas e, simultaneamente, o fluxo difuso da fantasia.” (LIMA, 2006, p.284). No enunciado performático o mundo deixa de ser a sua circunstância e se configura com o texto, não congelando o tempo no presente, mas o configura no ato de se cumprir (ibid., p.231). Lima diferencia fábula de ficção: na fábula a cena remete ao passado imemorial; na ficção a cena cria seu tempo e espaço próprios (ibid. p.232). Mas as ficções de si do homem cotidiano misturam fábula e ficção. 3. Os acervos são narrativas que retornam do futuro aos seus narradores; são ficções que instauram seus narradores. Inventar o espaço vazio e inventar-se como personagem a cada vez que conta a si mesmo seria como (des)locar-se, (des)territorializar-se, inventar-se pela mobilidade. O espaço vazio, o intervalo proporciona uma relação de tabuleiro, o espaço entre um fragmento e outro possibilita a mobilidade das peças, encadeando o jogo (OLIVEIRA, 1994-95). Os acervos-ficção não mediam as relações humano-sociais que configuram o espaço cotidiano: apresentam o espaço na sua configuração; produzem um modo de ver o espaço cotidiano, o espaço comum; seus fragmentos; como fragmentos. O modo (extra)ordinário como a língua-foto é fabricada mostra/indica o modo (extra)ordinário como o espaço cotidiano é instaurado - diverso, diferente, semelhante. Na espacialização das ficções de si, as maneiras de tensão-espaço simbolizam as concepções do viver, da experiência diária. 4. O homem (extra)ordinário nos acervos de fotografia particulares é obra da “engenhosidade semântica”. Ao interpretar uma metáfora organizamos um evento por meio da instauração de uma perspectiva e esse aspecto do ‘evento’ promovido apenas via interpretação da metáfora que se perde. Uma metáfora não pode ser confrontada com os fatos do mundo observável. Uma metáfora é um filtro através do qual vemos um evento (OLIVEIRA, 1997). Na ficção a metáfora é o evento, ou o evento é a metáfora. A prática interpretativa nos acervos fotográficos é a mesma que afeta a vitalidade humana no espaço cotidiano, levando a pensar os acervos de fotografia particulares como “metáforas vivas” para o espaço social. Luiz Costa Lima (2006, p.310) nos diz que a ficcionalidade (poiesis em estado puro) se apresenta em uma forma discursiva sem possibilidade de exercício do poder, talvez por ela provocar instabilidade em todas as crenças. A prática de fazer-se personagem, de fazer ficção, se dá na relação da força consigo mesma: a maneira pela qual a força se afeta, se dobra sobre si mesma, na criação de modos de existência, de estilos de vida (FOUCAULT, 2004). Na relação de forças, entre interlocutores: a maneira pela qual as forças se afetam, se desdobram, se costuram. Conclusões No acervo encontramos fotografias realizadas por seu proprietário e de si mesmo realizadas por outros. Ele tem a direção do acervo, não é um amontoado de imagens sem articulação, mas uma “exposição de conjunto”, apresenta as conexões, designa a forma de exposição, a maneira de ver as coisas (WITTGENSTEIN, 2005, Parágrafo 122). Um rearranjo das regras para o uso das imagens perturba a norma que fixa as imagens como elementos de um código, mostra o tratamento singular do simbólico. Identifica estilo e uso que no seu cruzamento formam um estilo do uso, uma maneira de ser e de fazer (CERTEAU, 2003a). Tomei a prática cultural do cotidiano como uma “ciência prática do singular” (CERTEAU, 2003b, p.341). Essa ciência prática que apresenta os usos que o homem cotidiano faz das técnicas, dos objetos técnicos, dos instrumentos; no caso, a fotografia, decorre de uma compreensão pragmática da cultura ordinária, ou seja como ela é praticada, aquilo que a sustenta prioriza “o oral, o operatório e o ordinário” (ibid., p.335). Os acervos-ficção existem com a interloculação. A operatividade, essa pragmática da cultura se refere aos modos de tratamento da informação/dos códigos através de uma série de operações em função de objetivos e de relações sociais: primeiro aspecto estético, segundo aspecto, polêmico, terceiro aspecto, ético. Essa sensação de si desliza sobre uma busca estética, na direção da experiência estética como algo comum ao ser humano, não igual, ou padronizado, mas como processo vital do ser humano. Demonstra uma polêmica ao apoderar-se de um saber e subverter o objeto do qual trata e produz quando faz uma geografia do eu. Um último aspecto o ético, no qual produz “um espaço de jogo” no qual abre um campo de ação à operatividade dos leitores que sentem poder fazer sua própria geografia. (ibid., p.339-340). O ordinário. Certeau nos diz que o essencial da análise deverá se inscrever na análise combinatória sutil, de tipos e operações de registros que coloca em cena e em ação um fazer-com, aqui e agora, que é um ato singular ligado a uma situação. Circunstâncias e atores particulares.”(ibid., p.341). Existe uma matriz combinatória para criar um certo efeito no interlocutor. O efeito que ser quer é sempre o mesmo apenas alterando os caminhos; ou o efeito que se quer é diferente dependendo do interlocutor. O efeito é condicionado pela prática cultural que preside aquele cotidiano. Mostra um tratamento singular do simbólico que reside na dimensão performática da vitalidade humana no espaço cotidiano. Essa dimensão não se fixa, não cria um lugar para si, mas se entrelaça ao espaço concreto desse modo inventando o espaço cotidiano. Estas fotografias particulares são interpretações sobre o que é importante para fazer a si mesmo. Interpretar é inventar um modo de conhecer que se mostra pois faz o que diz. Tem força performativa - realiza o que diz (Certeau, 2003a, p. 209). A prática de fazer-se personagem tem sua razão de ser na interação de efeitos de si com o outro, no fazer-com; na ampliação do viver que tem na repetição de “gestos elementares” não simulacros ou simulações, mas a invenção de si que territorializa e desterritorializa maneiras de ser-estar por meio do imaginário, imaginário este que se afirma como a “casa da gente”, um espaço doméstico que organizamos-desorganizamos continuamente, reordenamos; “manuseamos” as regras e com as regras; o qual vivemos e no qual convivemos com todos os outros efeitos-personagem das outras pessoas com quem entramos em contato. Parece um brincar, um jogar, recupera um certo gosto do nãotrabalho, talvez seja uma prática de contra-trabalho, uma prática “selvagem”, infantil; as fotografias particulares servem a esse jogo das próprias possibilidades, das inúmeras formas que cruza o ser-estar com o aqui-agora, é um jogo performático. Assim um estudo tal não se ocupa com competências ou habilidades, mas com a performance, e não para julgar competências e habilidades, mas para compreender aquilo que vitaliza o humano no espaço cotidiano. Assim, o que vitaliza não é ser este ou aquele modo de personagem, mas sim manusear com as possibilidades, reinventar-se, fazer-se sempre com algumas modificações, fazer-se impermanente e duradouro e nisto reside a experiência estética. A espacialização desta experiência no espaço doméstico, um espaço privado. Assim, os acervos particulares de fotografia são meios de comunicação cuja questão é criar tensões entre práticas e representações transformadas em ícones que por meio da interlocução renovam a experiência do “espaço de jogo”, um convite à fabulação com o outro. A prática das ficções de si na convivência humana instaura formas de viver que se espacializam em função de um imaginário. Assim podemos pensar a geografia como um agregado de certos tipos de ações sistematizadas em torno de valores que orientam as relações e organiza, de um certo modo, a compreensão e a imaginação – os atos de conhecer e fabular respectivamente – constituindo os movimentos do pensamento e do sentimento para um certo espaço social. Bibliografia CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano:1. artes de fazer. 9.ed. Petrópolis: Vozes, 2003a. ___. A invenção do cotidiano: 2. morar, cozinhar. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 2003b. CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado - pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac e Naify, 2003. FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. LANGER, Susanne. Filosofia em nova chave. São Paulo: Perspectiva, 1989. ___. Sentimento e forma. São Paulo: Perspectiva, 1980. LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. OLIVEIRA, Ana Lúcia M. de. Um plano sobre o caos. In: História, Ciências, Saúde Manguinhos I (2): 69-86, nov. 1994 - feb. 1995. OLIVEIRA, Roberta Pires. A manhã é uma esponja: um estudo sobre a engenhosidade semântica. In: DELTA, v.3, n.2, São Paulo: agosto de 1997. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2005.