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— Peruca, cadê seu pai?
— Meu pai? Lá no fundo.
— Lá no fundo?
— É, lá no fundo. Guardando os engradados que acabaram
de chegar. Eu acho. Não tenho certeza. Ou talvez ele tenha dado
uma saída. Disse que precisava passar no Freitas, pegar guardanapos. Ou eram canudos? Um dos dois. Vai ver ele foi primeiro
lá no fundo, guardar os refrigerantes e depois passou no Freitas
pegar guardanapos e canudos. Ou só guardanapos. Ou…
— Tudo bem, Peruca. Tudo bem. Não precisa continuar.
Sento e espero. Givaldo, essa coxinha saiu agora? Dá uma pra
mim. Não! Não! Essa não, pelo amor de Deus! Pega a maior, Givaldo. A maior. Essa aqui, ó. A outra parece um croquete, de tão
pequena. Tá louco? Agora deu para mutretar freguês antigo?
Quero a coxinha maior, rapaz. Essa do canto. Ô Peruca, fala para
ele. Venho aqui há um par de anos. Não vem regular comigo, não.
Fala pra ele, Peruca. Que sou freguês antigo do seu pai.
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— É, sim. Antigo mesmo. Lembro. Desde que eu tinha oito
anos. Ou sete? Porque, com sete, eu ainda estudava lá na Brigadeiro Galvão. Então talvez sejam oito. Mas com nove eu…
— Tudo bem, Peruca. Tudo bem. Já peguei minha coxinha, vou sentar no canto e esperar pelo seu pai, tá bom? Venha ele dos fundos, do Freitas ou de qualquer outro lugar.
Charllynho detestava ser chamado de Peruca. Óbvio. Péssimo apelido. Mas quem escolhe nosso apelido são os outros.
Infelizmente. Eu, por exemplo, num carnaval em Mococa, tentei
divulgar “Rambo do Ipiranga” como se fosse meu próprio apelido. Na minha cabeça, impressionaria várias garotas. “Oi, tudo
bom? Sou o Rambo do Ipiranga. Qual o nome da gatinha?” Triste
ilusão. Triste ilusão. Não só não colou, como o maldito do Miltinho decidiu tirar um sarro e saiu espalhando que São Paulo inteira me conhecia por “Barbie da Paulista”. Adivinhe como foi a noite? Exato. Fracasso total. Total. Não, não. Não tem jeito. Quem
dá nosso apelido são os outros. O meu, o seu. O do Charllynho
também. Num dia qualquer, sem querer, alguém perguntou se
o cabelo dele era peruca. Dali a pouco, outro comentou sobre
o “moleque de peruca”. Pronto, o estrago estava feito. Sei que
Peruca não é legal, Charllynho. Muito pelo contrário. Mas repito: ninguém escolhe o próprio apelido. Melhor aceitar. Você é
Charllynho Peruca. Melhor aceitar.
Não que, efetivamente, Charllynho usasse peruca. Não.
Onde já se viu? Um moleque usando peruca? Não. Aquele grande volume encaracolado, subindo num enorme topete, é cabelo
mesmo. Sim, acredite. Cabelo. Medonho, não? Medonho.
Por que ele não corta? Escolhe um penteado mais normal?
Olha, bem que Charllynho queria. Um cabelo curto. Comum. Ah,
se queria… Mas Rose, sua mãe, trabalha como cabelereira. No
Stilus. Conhece? Não? O Stilus. Aquele salão de beleza na São
João. Parede rosa, ao lado da Rudínei Mágicas. É famosa, a Ru-
dínei Mágicas. Vários mágicos profissionais compram lá. Então.
De mês em mês, Charllynho vai até o Stilus para que Rose teste,
na cabeça do próprio filho, sua mais recente invenção. Para azar
de Charllynho, a mãe alia um péssimo gosto a muita imaginação.
O resultado? De mês em mês, o pobre garoto sai do Stilus com o
cabelo mais feio do planeta. E não adianta tentar convencê-la do
contrário.
— Mãe…
— O que?
— Que tal um corte simples hoje? Hein? Básico. Só pra dar
uma variada. Hein? Igual ao de todo mundo…
— Ah, não! Não! Você não é “igual a todo mundo”. É meu
príncipe. Nada de “básico”. Vai, endireita essa cabeça. Não, mais
pra cá. Isso, retinho — e, com o filho em posição, punha mãos à
obra até sorrir, orgulhosa, frente ao trabalho concluído.
— Tchã-rã!! E então? Meu príncipe está um arraso!!
Assustado com o próprio visual, Charllynho mal conseguia responder.
— Ai, meu Deus, mãe. De onde você tirou esse corte de cabelo?
— De uma revista.
— De uma revista? Mas era assim mesmo? Tem certeza?
Com o topete deste tamanho?
— Ai, filho. Não lembro exatamente. Mas acho que sim.
Eu sou uma artista, meu lindo. Não saio copiando os outros. Vejo
o look dos astros de Hollywood e, em cima disso, crio. Artistas
criam, não copiam.
— Mas, mãe, nunca vi ninguém com um topete deste tamanho em Hollywood. Só em filme de terror.
— Charllynho…
— É verdade. Mais um pouco batia no teto… Estou parecendo o…
— Vai continuar com besteira? Se nunca viu igual, é por-
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que só você tem, meu lindo. Só você tem. E sabe por que? Sabe?
— Para ser avacalhado?
— Não, seu tonto! Por que você é especial, Charllynho.
Não é como os outros. Não é qualquer um. É especial — piscava,
cúmplice, sacudindo a toalha que cobria o filho.
E lá seguia Charllynho Peruca, três quarteirões Aurora acima, até a esquina com a rua do Arouche, divertir o pessoal da lanchonete com mais um penteado absurdo. No caminho,
esforçava-se para acreditar em sua mãe. “Sou especial”, repetia.
“Único”. Mas, à primeira gargalhada seguida de “Peruca nova,
Charllynho?”, desistia. O que, afinal, a mãe queria dizer com
aquilo? “Especial.” Charllynho não sabia. Vestia o colete vermelho e sentava desanimado no degrau da frente, esperando Charllão anunciar a próxima entrega.
Charllão, como você deve imaginar, é o pai de Charllynho.
Os dois, Charllys. Charllys Carvalho Souza e Charllys Carvalho
Souza Junior. Charllynho, claro, é o Junior. Nenhum pai é Junior.
A não ser que seja Junior do avô. Mas, nesse caso, o filho tem que
ser “Junior-Junior”. Ou “Junior 2”. Não conheço nenhum. JuniorJunior. Você conhece? Também não? Mas deve existir, né? Deve.
Afinal, tem de tudo neste mundo. De tudo. Uma tia do Claudinei,
que trabalha comigo, se chama Gaveta. É mole? Gaveta. Se é sobrenome? Não, não. É nome. Gaveta. Tia Gaveta. Ora, se existe
uma mulher chamada Gaveta, certamente existe alguém de sobrenome Junior-Junior. Certamente. Mas, enfim, não é o caso
aqui. Charllys Junior. Só.
Toda tarde, depois da escola, Charllynho batia cartão na
lanchonete. Aos sábados e domingos, expediente completo, nove
às sete. Inicialmente, sem função específica. “Fica aí olhando e
aprende como tocar o comércio”, foram as ordens do pai. Charllão trabalhava lá desde que chegara a São Paulo. Após três anos
no balcão, o antigo dono se meteu num rolo com a ex-mulher e
colocou o negócio à venda. Charllão apressou-se na oferta. Metade à vista, metade na parcela. E a antiga “Princesa da Aurora” deu
lugar à “Charlly’s Lanches”. Mês seguinte, por conta de um prédatado, foi àquele atacadão na Casa Verde tirar satisfação com
o fornecedor de frango. Entrou furioso, pronto para a porrada.
Mas se encantou com a mocinha que ficava no caixa. Esqueceu
cheque, frango ou briga e, em pouco tempo, estavam casados.
Charllynho nasceu seis anos depois. Hoje, moram no andar de
cima. Os três.
Eram quatro. Sim, quatro. Charllynho tem uma irmã, alguns anos mais velha. Thanilly. Mas, véspera de Natal retrasada, após um enorme quebra-pau com os pais, ela saiu de casa.
Charllynho nunca mais teve notícias. Até tentou perguntar. Mas,
como Charllão fechava a cara e Rose se desfazia em lágrimas,
achou melhor não tocar mais no assunto. E, hoje, moram no andar de cima. Só os três.
Eu gosto da Charlly’s Lanches, sabe? Gosto. Gosto, sim.
Frequento. Não direto, mas frequento. Afinal, tem coisa melhor
do que petisquinho e bate-papo no fim do trampo? Não tem, não.
Delícia. Mas, para ser sincero, é uma lanchonete como qualquer
outra. Mesmo jeitão. Aliás, pensando bem, talvez tenha sido o
motivo pelo qual Charllão inventou o XisXarllys. Para se diferenciar da concorrência. Quer minha opinião? Sanduíche horrível.
Ora, X-salada com abacaxi? Dá licença… Horrível. Não entendo
como alguém pode comer hambúrguer com abacaxi. Não entendo. Mas, pelo visto, sou minoria. Assim que a faixa “experimente
o sensacional XisXarllys” foi colocada sobre o toldo, muita gente
das redondezas começou a ligar para a lanchonete atrás do seu.
Charllão achou que daria conta. Bastava mandar um dos dois
funcionários, Givaldo e Minhoca, levar os pedidos. Mas o que
ficava, invariavelmente, não conseguia dividir a atenção entre
chapa e balcão. Então, cansado de tantos fregueses reclamando e
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bifes queimando, Charllão mudou de ideia. E “promoveu” o filho
a entregador.
Por isso lá está ele. Sentado no degrau da frente. De colete vermelho. Nas costas, “Charlly’s Lanches Sanduíches Porções Almoço Marmitex Fazemos Entregas 3862-5121” bordado
em amarelo. Esperando o próximo pacote, o próximo endereço. É mais um dia de sua vida. Mais um dia da vida sem graça de
Charllynho Peruca.
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11 DE MARÇO
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Diferente do meio de semana, quando a lanchonete vivia
num frenético entra e sai do pessoal que trabalhava por perto, os
sábados e domingos se arrastavam lentamente. Os mesmos fregueses, debruçados no balcão, horas a fio. Aqueles a quem o fim
de semana esquecera de incluir na sua lista de convidados.
— Caubyyyy!
Charllynho seguia sentado no degrau quando ouviu o grito de um deles. Dona Matilde. Anunciando, com estardalhaço,
sua chegada ao Charlly’s. Como fazia todo sábado, onze e meia
da manhã.
— Caubyyyy! — repetiu, no volume máximo.
Charllynho não deu bola. Afinal, não era com ele. Seu
nome era Charllys Junior. Não Cauby.
— Tá a cara do Cauby, menino! Que penteado lindo! — a
velha parou em frente a Peruca, apertando com força suas bochechas — A cara do Cauby!
Era com ele.
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— A cara de quem, dona Matilde?
— Do Cauby!
— Quem?
— Não conhece o Cauby? Cauby Peixoto. Cantor.
— Não, não conheço.
— Tá a cara dele, linducho! Dê os parabéns à Rose. Sua
mãe acertou a mão desta vez — e, virando o rosto do menino,
completou — se bem que, aqui atrás, ela inventou, né? O Cauby
não tinha esse raio na nuca, não... Mas, olhando de frente, tá lindo! Lindo! Vem cá, Cauby, dá uma beijoca!
Lambuzou Charllynho Peruca de batom vermelho e sentou-se — Givaldinho! Aquela água que passarinho não bebe,
anjo! Capricha, minha tentação morena.
Givaldo enchia o copo sem dar ouvidos à tanto assanhamento. Não só ele, aliás. Ninguém se animava com aquela mulher
pra lá dos sessenta, falando alto e bebendo cachaça a tarde inteira
até se levantar, completamente trôpega, no início da noite.
Porque dona Matilde não limitava o desfile de seu duvidoso charme a um único alvo. Não, não. Atirava para todos os lados.
Até comigo, uma vez, tentou se engraçar, acredita? Sério. Naquela época em que, por conta da auditoria, a gente trabalhou alguns
fins de semana. Tentou, sim. Juro. Eu estava com o Claudinei,
tranquilo, quando a velha berrou do outro lado do bar: “Bonitão
de camisa cinza! Já disseram que você parece o Mário Gomes?”
Quequeéisso... Não tive dúvidas: dei um chega pra lá na manguaceira. “Sai fora, tia! Não sou coveiro pra encarar defunto.” De
bate pronto. “Não sou coveiro pra encarar defunto.” Boa, não?
Boa, boa. O Claudinei rachou o bico. Depois, confesso, me vi no
espelho e achei até que ela tinha razão. Eu e Mário Gomes éramos mesmo parecidos. O jeito de olhar, sabe? O jeito de olhar.
— Manfred bonitãão! Dá um oi aqui pra Matildinha, dá?
Meu Poderoso Thor!
Manfred, ao contrário dos demais, mantinha a boa educação. Fosse a cantada do dia “Poderoso Thor”, “Deus Nórdico” ou
“Flash Gordon”, sempre retribuía o cumprimento, sorridente.
— Como vai, dona Matilde? Comigo tudo bem, também.
Graças a Deus. Givaldo, por favor, uma água com gás. É, com gás.
Quais marcas você tem?
— Quais marcas?
— Sim, quais marcas de água com gás. San Pellegrino?
Perrier? Vichy?
— Ô alemão, metido à besta. Você tá cansado se saber que
só tem essa aqui, ó. Nada desses nomes, não. Aqui não é lugar de
fresco. Fala para ele, Peruca. Marca de água com gás? Onde já se
viu... — Givaldo gargalhava — Água é água, alemão. Fala para ele,
Peruca. Água é água, ora essa!
Ao contrário do garçom, Charllynho admirava Manfred.
Após vinte e dois anos de fartura, o taxista perdera todo o dinheiro com a morte do pai. Como a vida despreocupada não lhe
dera uma profissão, raspou a pequena herança no ponto da Bento
Freitas. Uma década depois, as histórias dos tempos áureos ainda eram seu assunto predileto. Contava-as diariamente no táxi,
não importando quem fosse o passageiro. Aos sábados, quando
o movimento caía, narrava-as no Charlly’s. Viagens internacionais, festas sofisticadas e jantares caríssimos. Do que restava na
vida de Manfred, só as lembranças o mantinham de pé.
— Charllynho, meu jovem, não dê ouvidos a esse desclassificado. Ele não entende nada de águas com gás. Nada. Eu, que já
rodei o planeta, conheço mais de cem tipos de sparkling water.
Impressionado, Peruca sentava-se a seu lado para ouvir
histórias que pareciam revelar a existência de um mundo muito
diferente daquele a que estava acostumado.
— Cem tipos? Jura? Onde?
— Em vários lugares. Vários. Punta, Aspen, Genéve… Vá-
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rios. Mesmo aqui em São Paulo existem opções. Nos Jardins, na
Vila Nova…
— Aqui? Em São Paulo? Por que meu pai não compra?
— Ah, Charllynho. O público desta área é muito sem classe, sabe? Não conseguiria apreciar.
— Eu conseguiria. Eu conseguiria. Daqui a alguns anos,
quando tiver idade, tiro carta para fazer as entregas de moto,
sabe? Aí posso conhecer esses lugares.
— De moto?
— É, de moto — Charllynho respondia animado — É meu
sonho.
— Não, não, não. Que sonho mais sem classe, menino.
— Sem classe?
— É, Charllynho. Motoboy? Muito sem classe. Precisa ter sonhos maiores.
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— Maiores?
— Maiores.
— Hmmm… — Charllynho pensava, tentando descobrir o
que seriam os tais “sonhos maiores” — Acho que entendi, Manfred. Então quero ser chapeiro! Isso, chapeiro! Que nem o Minhoca.
Com as mãos na cabeça, simulando desespero, o taxista o
interrompeu — Não, Charllynho! Não! Chapeiro? Não!
— Não?
— Não! Pense em algo mais sofisticado. Olhe para o Minhoca, menino! Isso lá é sonho?
Charllynho olhava para o magricela de avental azul, cantarolando enquanto preparava os sanduíches. Não lhe parecia tão
ruim assim, para dizer a verdade. Mas Manfred seguia em frente:
— Chef de cuisine, designer, diplomata. Manhattan, Paris,
London. Isso sim, são sonhos com classe. Entendeu?
Não. Charllynho não entendia. Porém, com vergonha por
não saber o significado daquelas palavras difíceis, fingia que sim,
assertindo com a cabeça.
— Entendi sim, Manfred. Entendi. E como eu consigo?
— Consegue o que?
— Sonhar isso.
Quando o taxista se preparava para responder, a conversa
foi cortada por Charllão, berrando do caixa:
— Charllynhô! Chega de papo! Hora de trabalhar, moleque! Pega com o Minhoca dois XisXarllys e entrega aqui. Aqui.
Toma aqui — e deu ao filho um endereço anotado à mão. — Sabe
onde é, né?
— Sei sim, pai. Floriano. Sei. É pra lá. Pra lá… Ou pra cá?
— Ai, moleque. Preste atenção. Vai reto. Reto. Chegou no
Patriarca, pega a Direita, até o fim.
— Até o fim.
— Até chegar na praça.
— Até chegar na praça. Sei, sei… Peraí, pai… Peraí. Até o
fim? Ou até chegar na praça?
— Filho! O fim é na praça! O fim é na praça! É a mesma coisa! Jesus Maria José!
— Entendi, pai. Entendi. Desculpe. Já estou indo.
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“Tom Cruise.”
“Malu Mader.”
“Madonna.”
“Minhoca.”
“Não, não é o Minhoca. Como se chama aquele cantor esquisitão? Michael Jackson. Isso. Michael Jackson.”
Enquanto os olhos de Charllynho admiravam os rostos
desenhados à lapis, na República, sua mente insistia em quais seriam os sonhos maiores que devia querer para si. Os tais sonhos
com classe. Se Manfred tivesse ao menos soletrado aquelas palavras complicadas, ele…
— Quer que eu faça seu retrato?
Charllynho virou-se para o barbudo sentado ao lado dos
desenhos — Meu?
— É. Seu. Tá parado há um tempo aqui. Posso fazer um
igualzinho a este, do Tom Cruise.
— Igual ao Tom Cruise? —empolgou-se o menino.
— Igual, claro. Igual. Quer dizer, igual no sentido de mesmo estilo. Porque a cara do Tom Cruise é dele. E a sua é sua.
— Entendi. Sabe, nunca havia reparado que ele era vesgo.
— Vesgo?
— Vesgo. O Tom Cruise. Ele está vesgo no desenho. Olha
só — completou, apontando o dedo para a folha de papel. O velho hippie se irritou:
— Tá me tirando?
— Eu. Não, não. Desculpe. Pensei que ele fosse mesmo
vesgo e, nos filmes, o pessoal da computação gráfica corrigisse.
Que nem este desenho da Malu Mader. Não sabia que era nariguda. Mas a tv engana, né? Ela deve mesmo ser nariguda. Parece até
um travesti, olha só o tamanho do…
— Aê, pivete. Você tá me tirando. Quer tomar um
corretivo?
— Eu? Não, não. Desculpe. Desculpe, desculpe.
— Vai o retrato ou não? Quinze.
— Quinze?
— Quinze. Quinze reais.
— Quinze reais? — Charllynho apalpou os bolsos da calça,
atrás de um dinheiro que sabia não possuir — Não tenho. Não tenho quinze reais. Tenho dois. Não, não. Dois e cinquenta. Achei
uma moeda aqui no…
— Sai fora, pivete! Sai fora, que já tô na pilha pra te
socar!
Charllynho Peruca, evidente, disparou. Mesmo porque,
precisava entregar os XisXarllys. Senão esfriam, o freguês reclama e sobra pra ele. Sempre sobra pra ele. Cruzando a Barão,
pensava que, se a gorjeta fosse de quinze reais, posaria para um
desenho. Não, não. Nem precisava de quinze. Doze e cinquenta.
Doze reais e cinquenta centavos bastavam. Havia o risco de apanhar do velho, mas valeria a pena. Porque o Tom Cruise, vesgo
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ou não, é um astro. Famoso. E deve ser isso o que Manfred quis
dizer. Sobre ter classe. Deve ser isso. Bastava dar sorte na gorjeta,
e pronto. Ele também teria classe.
Alcançou o Patriarca. Próximo à estátua, vinte e poucas
pessoas de aglomeravam em círculo. Ficou curioso e parou para
ver também. Entre um saco plástico e uma mão decepada de borracha, ambos no chão, um gordo cabeludo gesticulava com voz
gutural:
— Eeesta mããão! Eeesta mããão fantaaasma vai entrar naqueeele saaaco! Soziiinha! Queeem duvida? Queeem duvida?
Todos mantinham silêncio, atentos.
— Queeem duvida? Eeesta mããão! Eeesta mããão
fantaaasma. Vai entrar, soziiinha, naqueeele saaaco! Queeem duvida?
Charllynho duvidava. Ora, como uma mão de borracha vai
andar cinco metros até um saco? Impossível. Completamente
impossível.
— Queeem duvida? Estão com meeedo? Vocêêê, menino! Está com meeedo?
— Eu?
— É, vocêêê, do cabelo engraçaaado! Veeenha!
Charllynho foi.
— Vocêêê acredita que eeesta mããão fantaaasma vai
entrar, soziiinha, naqueeele saaaco?
— Eu? Bom, pra ser sincero com o senhor, não acredito,
não. Porque quem anda são as pernas. Ou patas, no caso dos…
— Nããão?
— Não. Quer dizer, se…
— Vocêêê teeem dinheeeiro?
— Dinheiro?
— Dinheeeiro!
— Tenho dois. Dois e cinquenta, porque achei uma…
— Dááá ele aquiiiii!
— Meu dinheiro?
— Siiiiim!
— Por quê?
— Porque eeesta mããão precisa de dinheeeeiro para
entrar, soziiinha, naqueeele saaaco!
— Hã?
— Siiiim! Dááá aqui os dois e cinqueeeenta! Não tem
maaaais, nããão?
— Não, só… — e, mal Charllynho sacou nota e moeda do
bolso, o gordão tomou-os para si e colocou no saco plástico, voltando-se rapidamente para toda a platéia.
— Agoooora! Vocês vão veeeeer! Eeesta mããão! Eeesta mããão fantaaasma vai entrar naqueeele saaaco!
E não é que a mão começou mesmo a andar? Um pulo torto aqui, outro ali e, em menos de um minuto, já estava lá dentro.
Impressionante.
Todos aplaudiram com entusiasmo e voltaram às suas vidas. Charllynho continuava parado.
— Que foi? O show acabou. — disse o gordão, desta vez
com voz normal.
— Meu dinheiro.
— Quê?
— Meu dinheiro. Eu dei dois e cinquenta. Para a mão entrar no saco.
— Eu sei.
— Então. Cadê?
— Cadê o quê?
— O meu dinheiro.
— Ih. Já era. A mão levou — e desatou a gargalhar, enquanto empacotava tudo e ia embora.
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Charllynho? Charllynho mantinha-se imóvel. Fora engambelado. Dera o pouco dinheiro que possuía a um mutreteiro
profissional. Para piorar, os XisXarllys já deviam estar completamente gelados. Gorjeta boa, nem pensar. Mas engoliu a raiva e
seguiu adiante. Fazer o que?
Em poucos minutos, chegava ao fim da rua Direita. Era ali.
Floriano Peixoto, número doze. Ai, meu Deus. Era ali. Naquele
enorme prédio caindo aos pedaços, com pinta de mal assombrado. “Não vou entrar nesse lugar, não” pensou. “Não, não.” Ensaiou voltar. Mas como explicar ao pai? “Desculpe, eu demorei
porque fiquei olhando as banquinhas na República, depois caí
no conto de um trapaceiro e, finalmente, tive medo de entrar no
prédio, por isso não entreguei o lanche.” Era surra na certa. Sinto
parecer repetitivo, Charllynho, mas fazer o que? Seguir adiante.
Seguir adiante.
Ao se aproximar, reparou que um moleque maltrapilho,
parado na esquina, o encarava. “Deve ser viciado”, pensou. “Tem
muito moleque viciado na rua. Por que está me olhando? Será
que planeja me assaltar?”
Faltando pouco para a porta enferrujada, o menino ainda
o fitava. Apreensivo, Charllynho nem notou que um careca de camisa azul clara fechava a entrada do prédio e deu-lhe uma sonora
trombada.
— Desculpe, senhor. Desculpe, eu não vi que…
— Calma, calma. Posso ajudar?
— Vim fazer uma entrega. Conjunto quarenta e cinco. Em
nome de Edileine. Sou da Charlly’s Lanches. Charllys Junior.
— Quarenta e cinco? A antiga ótica.
— Ótica?
— Ótica. O quarenta e cinco era uma óptica.
— Não sei. Tenho aqui anotado Edileine, conjunto quarenta e cinco.
— Querido, sou Rivelino, zelador deste prédio, e estou lhe dizendo: o quarenta e cinco era uma ótica.
Charllynho já não sabia o que responder.
— Mas eu tenho aqui anotado, olhe…
— Tudo bem, garoto. Tudo bem. Sobe lá — e, saindo de
lado, revelou uma escada estreita e mal iluminada —Dois lances,
terceira porta à esquerda. Tem uma placa. Ótica.
Peruca já tinha assistido vários filmes de terror. Vários.
Gênero que eu, particularmente, não curto. Aquele monte de
sangue jorrando, gritaria. Não, não curto. Mês passado o Claudinei agitou com a Michelle, do crédito fácil, um cineminha. Ela
falou que iria levar uma amiga, então fui na cola. Mas a anta do
Claudinei escolheu “O massacre dos zumbis sangrentos”. Anta.
Como achava que eu iria conseguir chegar na gatinha com aquele
monte de tripas voando na tela? Sem condições. Passei mal. Mal
mesmo. Ele? Nem aí. Ficou curtindo o escurinho. Mas eu passei
mal. A amiga nem quis deixar telefone. Comigo, nada de crédito
fácil. Maldito Claudinei.
Mas por que estou contando essa história? Zumbis sangrentos e meninas do crédito fácil? Não, não. Quero esquecer
aquela tarde. Voltemos ao Charllynho. Como ia dizendo, ele já
tinha assistido vários filmes de terror. Mas, ao subir os degraus
sujos e crepitantes, concluiu que era muito diferente ver pela televisão e sentir-se dentro de um. O corredor? Pior ainda. Parcamente iluminado por uma janelinha bem lá no fundo. Deserto e
empoeirado. Morrendo de medo, passou a primeira porta. A segunda. Na terceira, em tinta descascada, “Ótica Lopes — cj.45”.
Tocou a campainha.
Nada.
Tentou de novo, imaginando que, se não houvesse resposta desta vez, voltaria. “Ninguém quis receber, pai.”
Mas a porta se abriu. Pela fresta, uma cigana enorme, ve-
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lha e desdentada, encarou Charllynho que, cada vez mais apavorado, mal conseguia abrir a boca.
— E-e-e-e-e...
— Edileine.
— Sim, sim. Lanches. Sanduíche.
— Demorou, hein?
De tão assustado, Peruca não falava coisa com coisa.
— XisXarllys. Mão fantasma. Tom Cruise.
— É louco? Dá aqui a sacola. Toma, toma o dinheiro
— e bateu a porta com força.
Assim, lá vai Charllynho Peruca. Pela segunda vez no mesmo capítulo, correndo em disparada pelas ruas.
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