Olhares 25 1 4 9 a n o s d e p o i s d a p r i m e i r a ava r i a O Comboio em Portugal Dario Silva | texto e fotografia Aqui, neste sítio quente e seco onde não chove há mais de um ano e onde me sento a escrever estas palavras, também é Portugal. Este é também um Portugal que me habituei a entender desde cedo, apesar de não ser este o meu “país”. Estou em Cuba, P.K. 147 da Linha do Alentejo (Portugal), e aqui em frente passa um Comboio, um Comboio português, pintado com as cores dos comboios do meu país. A História e as estórias dos Comboios no meu país ainda são do Tempo em que havia reis e rainhas e muitos pobres e analfabetos. Era o ano de 1856 e de Lisboa (“Caes dos Soldados”) partia em direcção ao Carregado o primeiro Comboio de muitos que haveriam de passar, com gente a fugir deles, a correr ao lado deles, a mandar pedras e cumprimentos a eles, a entrar e a sair deles, e outros, como eu hoje, a vê-los passar. O Comboio chegou a Portugal num Tempo em que não havia propriamente “estradas”, havia uns carreiros, umas caleches e uns mulares que alombavam com o corajoso “viajante” (naquele tempo não havia “clientes”). De Lisboa ao Porto, a diligência, se não fosse assaltada, demorava dois dias. De Braga ao Porto era uma tarde bem medida. Portugal era então um país muito grande e só por grande acidente haveria o comum dos minhotos de ouvir falar a língua do Algarve ou de Miranda do Douro. A 28 de Outubro de 1856 tudo começava a mudar; apesar de logo na primeira viagem o Comboio ter largado carruagens, por falta de potência das duas locomotivas importadas em terceira mão. Já em 1864 o Comboio chegava a Gaya, construindo Gustave Eiffel (que viveu em Barcelos) uma das suas mais notáveis obras, a Ponte D. Maria Pia, em 1877, para o trazer até ao Porto. A viagem de Lisboa ao Porto demorava agora apenas 14 horas. É também em 1877 que começam as viagens ferroviárias entre Portugal e a Europa, estreava-se o “Sud Express”, comboio de luxo e emblemático do meu país que ainda hoje circula, já de forma anacrónica e completamente democratizado (esquecido?) e entregue ao “emigrante” e aos inter-railers. Em 1875 chegava o Comboio a Braga e em1884 a Guimarães. O país começava a mudar; quase me atrevia a dizer que esse país que o Comboio transportou até à modernidade, morreu há uns minutos atrás, tanto é o que dele permanece ainda de pé (os edifícios e as pessoas), ofuscado pelo brilho da praça de portagem e pelo som másculo do pópó veloz comprado em 1000 prestações. Percorra-se Portugal (afinal, um país pequeno) e contemplem-se as 500 estações que já tivemos, cada uma delas (outrora) ponto de acesso a uma rede tão indispensável como a “Internet” dos nossos dias. Nessa rede portuguesa de Caminho de Ferro, outrora uns meros 3600 km, circulava a palavra, o compromisso, a notícia, 26 o correio, a garrafa de vinho para o “patrão”, o peixe do Algarve, o “Corpo Expedicionário Português” que embarcou na nossa estação de Braga com bilhete só de ida, o trigo guardado nestes silos (aqui neste país Além-Tejo) agora cheios apenas de altivez, a cortiça, a palha (se ao menos chovesse…), os adubos da antiga CUF do Barreiro, as cerâmicas da Pampilhosa, os mármores de Vila Viçosa, os cimentos de que se fazem agora as cidades, os têxteis do vale do Ave (que sem o Comboio…), o recruta fala-barato de Santa Margarida, de Elvas ou de Tancos, o recluso de Viana do Alentejo, Olhares 27 o estudante de Coimbra (e da Universidade do Minho, claro…), o devoto da Senhora da Agonia ou o folião do São João do Porto, o contrabandista de Seixas, as galinhas de Ganfei, o trabalhador sazonal que sobe o Douro, o gado de Mirandela que desce o Tua, os aquístas de Pedras Salgadas e do “Grande Hotel do Vidago”, os termalistas de Monção, de São Pedro do Sul e de Canas-Felgueira, o proletário suburbano de Ermesinde, da Amadora, da Baixa da Banheira, o pastor-barbeiro de Abrunhosa, o aluno de Couto de Cambeses ou a fidalguia da Linha (de Cascais), os padres, os seminaristas, os doentes e os doutores, os advogados, os juízes e o “passageiro sem bilhete”. Tudo e todos, a seu tempo, se encontraram nos Comboios do meu país, vá lá, em três classes, bancos de pau ou de veludo importado. Todos no Comboio, mas cada um no seu. Agora, 149 anos depois da primeira avaria de um Comboio português, a viagem continua: mais rápida (um pouco), mais silenciosa, mais segura e com “novos sorrisos”. O Comboio do meu país terá agora que provar que valeu a pena ter sobrevivido ao encarquilhar do Tempo, às Guerras Mundiais e Coloniais, às crises do petróleo, ao vício do automóvel, aos ataques despudorados dos burocratas e dos autarcas (burocratas eleitos pelo povo?) … terá que provar que ainda serve para transportar alguma coisa: pessoas e riqueza do meu país, do meu país que se tornou muito mais pequeno e mais rico graças ao Comboio. Quão curta é a Memória dos portugueses? < 28 E por falar em Caminho de Ferro, fui criando “O Comboio em Portugal”, o primeiro projecto editorial online dedicado à Vida, Património e Memória do Caminho de Ferro português. Era eu aluno ainda de Comunicação Social em Braga quando a ideia começou a ganhar forma. Entretanto, muitos caminhos têm sido percorridos: o projecto foi apresentado ao Programa Operacional do Conhecimento e tem vindo a ser apoiado desde 2004. Também a Biblioteca Nacional, o Centro Português de Fotografia e a REFER E.P. se vincularam ao projecto. Para além do muito que se vai publicando online, já foram realizadas actividades com escolas, já foram desenvolvidas parcerias motivadoras com a imprensa portuguesa e espanhola, foi criada uma colecção de postais de distribuição em espaços culturais e existe uma exposição fotográfica de promoção que já percorreu seis distritos… mais se há-de ver “ou já estava tudo esgutado”… A viagem continua em www.ocomboio.net [email protected]