10 CRÓNICA A OUTRA FACE DO ESPELHO arte em café 24 DE SETEMBRO A 7 DE OUTUBRO DE 2008 Arco da traição José Henrique Dias* [email protected] É tarde. Consome-se a hora como se alguém tivesse de vir bater à porta. É assim desde o princípio, não me habituo a esta inevitável solidão. Disparate. Estamos sempre sós. Como morremos sempre sós. Às vezes parece outra coisa porque não percebemos tudo até ao fim. A distracção assaltanos. A inquietude impacienta-nos. A realidade desfaz-nos. Somos uma espinha de peixe entre um gato e um esgoto. Recolhi um dia de um poema e depois falei disto, mas não sei onde nem quando. Há pouco tempo uma pessoa de quem gosto muito confrontou-me com a tirania que há dentro de mim. Perguntava com voz alterada: julgas-te deus? Não sei exactamente o que é isso, sei seguramente o que muitos julgam saber. Desde os primórdios do grande desamparo. Como Freud explica em O nascimento de uma ilusão. Para mim não era absolutamente preciso. Tinha pensado nisso, embora de maneira incipiente, era ainda um rapazinho. Passou a interessar-me cedo o problema da individuação. Ancorei-me a partir da Urvertrauen, a “confiança primordial” que articula a conceptualização de au- Homem e a Opressão da Mulher, com que estive às voltas para ver se saía do labirinto. É tarde, estava a dizer. Consome-se a hora como se alguém tivesse de vir bater à porta. Comecei por pensar. Quando se apertava o cerco em que me comprometi. As tarefas da profissão esgotamme. Pensar é penoso para quem se obriga à excelência. Lembrei-me agora que foi qualquer coisa assim que ela me disse a propósito de artes perfor- tonomia em Erik Erikson. Não sei porque estou assim. Que raio de coisa leva a que permaneça no labirinto de mim no à solta em Creta da traição do Eu? Já perceberam. “A vida é intrinsecamente um naufrágio constante. Mas ser náufrago não significa morrer afogado. […] A própria situação de naufrágio já é a salvação, uma vez que é essa a verdade da vida É por isso que já não acredito em pensamentos que não sejam de náufragos”. Coisas de Ortega y Gasset a propósito de Goethe. A verdade é que ninguém se importa com o que verdadeiramente somos. Só conta o sucesso que temos. A advertência vem-me de Arno Gruen, a espremer os miolos sobre a Desumanização do mativas na cama. Julgo que as palavras foram: para certos momentos exijo a excelência. Era a última hipótese que tinha para humilhar. As traições do corpo soltam a língua às oprimidas que se querem opressoras. Quando menos se espera atiram pedradas aos vidros da intimidade. Com a palavra amor diluída em baton. Guardei tudo isto em mim quando a vi passar a porta a renovar, naquela sua maneira de olhar para trás, o sorriso do até à próxima sessão. Terá sido um sonho. A narrativa foi de um sonho. Começou exactamente assim: esta noite tive um sonho muito estranho. Não era a primeira vez que se reconstituía em sonhos que apelidava de estranhos. Nunca chego a saber se lhe interessam as possíveis inter- pretações. Algumas são fáceis demais. Como se dizia no meu tempo de estudante, nas discussões filosofantes a um canto de A Brasileira, são da primeira folha da Sebenta. Um módico de inteligência decifra tudo. A Emerenciana tinha-me avisado. Já ali está aquela paciente muito especial. Mando entrar? Trabalha para mim há tantos anos que sei o que cada coisa quer dizer. Fica com alguma inquietação sempre que recebo uma mulher bonita. O que se acentuou desde que fiquei viúvo. Não passou muito tempo, parece que foi ontem, e no entanto correram cinco anos, sentenciou com algum atrevimento o senhor doutor depressa refaz a sua vida e bem merece. Sei o que estava a reverenciar. O relato começou ainda mal respirava do embate da aparição. Não posso negar que me perturba e apelo mais à disciplina interior do que ao aperto da deontologia. Os colegas das outras especialidade usam bata branca. Como diz algures o Torga, é como a cortiça de castidade. Que põem aos carneiros como um avental. Barreira de crueldade para o salto do desejo. A bata aspira funcionar no território subjectivo dos impulsos. Talvez alguns desamarrem o avental da metáfora. O sonho, doutor, foi assim: eu andava com ele de mão dada por ruas muito estreitas. Becos, um labirinto. E ele dizia-me olha como definho, pareço um cadáver. Vê como estou magro e pálido. Eu olhava e não me parecia, mas ele insistia, insistia, faziame sentir que ia morrer. Depois saiu não sei donde um enorme rato. Preto. Do tamanho de um cão. Odeio ratos e cães. Um terror. E eu gritava fora de mim. Depois insultei-o, humilhei quanto pude, despi-o até à ínfima nudez da impotência disfarçada, que eu finjo que não é. Transporto-me em memórias passadas… Não continuo. É tarde. Em verdade, nem sei há quanto tempo me contou o sonho. O desejo secreto de morte era sobreviver a um amor sem futuro. Quando diminui a autonomia cresce a agressividade. Ainda sinto a sua sombra além da porta. Guardo o rasto do perfume e retenho a produção a vermelho e negro dessa tarde. A blusa intensa Cor de sangue. O lento arfar do peito. O fato negro. O olhar onde só cabe a excelência. Sou fraco como os demais mas domino o possível. Não sei se é por isso que me elegeram para a comissão de ética. Desde que fiquei viúvo que a Emerenciana vigia os meus odores. Sabe que não passará pela minha cama. Traições do Eu. * Professor universitário