1 A ESCRITA EPISTOLAR E AUTOBIOGRÁFICA NA OBRA D’ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO: CARTAS DA GUERRA, DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES Erivelto da Silva Reis Faculdade de Letras / UFRJ 2013 2 A ESCRITA EPISTOLAR E AUTOBIOGRÁFICA NA OBRA D’ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO: CARTAS DA GUERRA, DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES por Erivelto da Silva Reis Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Linha de pesquisa: Estudos de narrativa portuguesa: relações entre Memória, História e Literatura. Orientadora: Profª. Drª. Ângela Beatriz de Carvalho Faria Rio de Janeiro Setembro de 2013 3 REIS, Erivelto da Silva. A escrita epistolar e autobiográfica na obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra, de António Lobo Antunes – Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2013. xii. 134f. 30 cm. Orientadora: Profª. Drª. Ângela Beatriz de Carvalho Faria Dissertação (mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas), 2013. Bibliografia: fls. 118-124. Anexos: fls.126-134 I. 1. Crítica Literária. 2. Prosa Portuguesa Contemporânea. 3. António Lobo Antunes. 4. Escrita epistolar. 5. Autobiografia. FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho II. UFRJ, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Área de Literatura Portuguesa. III. Título. 4 FOLHA DE APROVAÇÃO REIS. Erivelto da Silva. A ESCRITA EPISTOLAR E AUTOBIOGRÁFICA NA OBRA D’ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO: CARTAS DA GUERRA, de António Lobo Antunes. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa Contemporânea – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013. 134 p. Examinada por: Presidente, Profª. Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria – UFRJ Profª. Doutora Gumercinda Nascimento Gonda – UFRJ Profª. Doutora Lúcia Maria Moutinho Ribeiro – UNI-RIO Profª. Doutora Luci Ruas Pereira – UFRJ (Suplente) Profª. Doutora Maria Cristina Batalha – UERJ – (Suplente) Resultado: _______________ Data: ___/9/2013, Rio de Janeiro Setembro de 2013 5 AGRADECIMENTOS A Deus, sobre todas as coisas. À minha esposa Gloria Regina e aos nossos filhos Allynie, Erick e Ian. Ao meu pai José de Arimatéa, à minha mãe Maria Aparecida e aos meus irmãos Erivaldo, Erialdo e Elton e a todos os meus familiares, sem exceção. Às Faculdades Integradas Campo-grandenses, a gratidão pela formação recebida e por me permitir fazer parte da família FEUC. À Profª. Drª. Ângela Beatriz de Carvalho Faria, minha orientadora, grande exemplo de profissionalismo e sabedoria, tão importante em minha formação acadêmica e na realização desta dissertação. Aos professores Cinda Gonda, Teresa Salgado, Carmen Tindó, Jorge da Silveira, Luci Ruas, Teresa Cerdeira e Sérgio Gesteira, capazes e delicados nos gestos. A todos os meus colegas professores das Faculdades Integradas Campo-grandenses. Aos meus alunos. Sementes, raízes, folhas e frutos do ofício de educar. Aos meus amigos e colegas de jornada em todas as etapas de minha formação docente. Aos amigos mais próximos e aos mais distantes, também. Aos professores, coordenadores, funcionários e aos meus colegas do Curso de Pósgraduação em Letras Vernáculas da UFRJ pela alegria da convivência. À professora Mirian da Silva Pires e ao inesquecível amigo poeta Primitivo Paes, in memoriam. À editora Maria da Piedade Madeira Martins Ferreira e às caríssimas Maria José e Joana Lobo Antunes, filhas de Lobo Antunes, por, gentilmente, autorizarem a inclusão das fotos da obra “Cartas da Guerra”, no corpo desta dissertação. A todas as pessoas ligadas direta ou indiretamente à Educação neste país. 6 Dedico esta dissertação, com todo amor do mundo, a duas pessoas sem as quais eu não conseguiria chegar até aqui: minha esposa Gloria Regina, que sempre me incentivou a prosseguir com carinho e respeito e ao inesquecível e saudoso poeta Primitivo Paes, um pai que a poesia me deu e que me legou um exemplo de amor à Arte e à Literatura. 7 As Cartas Primitivo Paes Quero ver a nossa gente Fazer a nação crescer. Os lavradores plantando Para a família colher. Ter casa para morar, Escola para aprender; Para, quando for adulto, Não ser humilhado assim: Cabisbaixo, timorato, Vai à casa do vizinho. Tremendo, olhando pro chão, Chega falando baixinho, Coração acelerado Vai logo dizendo assim, Com uma carta na mão: "Leia essa carta pra mim!" Chegou carta dos parentes, Não sabemos o que fazer; Nem meu pai, nem minha mãe, Nem eu... não sabemos ler. Desculpe tomar seu tempo, Vir pedir pra você ler. As coisas vão melhorar, Eu ainda quero ver: Um dia vou pra escola, Eu vou aprender a ler, A somar, diminuir, Dividir, multiplicar... Para quando for pra usina, Cortar cana pra moer, Saber quanto vou ganhar E o tanto que vou perder! Mas quando as cartas chegarem Eu mesmo saberei ler. Segredos de meus parentes Vizinho nenhum vai saber! Daí ninguém me segura, Brasil, Estou com você! 8 A minha história e o meu amor à Literatura começou assim... Através das cartas. 9 [...] Há muito tempo, sim, que não te escrevo. Ficaram velhas todas as notícias. Eu mesmo envelheci: [...]. Carlos Drummond de Andrade [...] O objetivo mais ampla e intensamente cobiçado é a escavação de trincheiras profundas, possivelmente intransponíveis, entre o “dentro” e o “fora” de uma localidade territorial ou categórica. Fora: tempestades, furacões, ventos congelantes, emboscadas na estrada e perigos por toda parte. Dentro: aconchego, cordialidade, [...] vamos construir, cercar e fortificar um espaço indubitavelmente nosso e de mais ninguém, um espaço em cujo interior possamos nos sentir como se fôssemos os únicos e incontestáveis mestres. Zygmunt Bauman Uma coisa engraçada que tenho reparado em mim é que praticamente deixei de conversar, e, para além das perguntas inevitáveis [...] não digo nada a ninguém, e ando forrado de silêncio por dentro. Esse processo de “silenciação progressiva”, que começou já antes de sair daí está quase a atingir o zero absoluto. Qualquer dia não preciso de voz para nada... E, no entanto, cada vez me sinto menos indiferente em relação a tudo, e vou vivendo com raiva e desespero esta pobre vida de exilado [...] António Lobo Antunes 10 RESUMO REIS. Erivelto da Silva. A ESCRITA EPISTOLAR E AUTOBIOGRÁFICA NA OBRA D’ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO: CARTAS DA GUERRA, de António Lobo Antunes. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa Contemporânea – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013. 134 p. A presente dissertação de mestrado é um estudo acerca das características epistolares e autobiográficas presentes na obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005), de autoria de António Lobo Antunes, organizada pelas filhas do autor, Maria José e Joana Lobo Antunes, após a morte de sua mãe. Pretende-se, estabelecer, nesta dissertação, um protocolo de leitura e análise de algumas cartas, a partir das reflexões críticas presentes nas obras O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet (2008), de Philippe Lejeune, Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si (2009), de Elizabeth Muylaert Duque-Estrada e Os romances de António Lobo Antunes: análise, interpretação, resumos e guiões de leitura (2002) de Maria Alzira Seixo, em que há um capítulo sobre “autobiografia” na obra antuniana. Busca-se, inclusive, demonstrar como a experiência real do exílio e o horror da guerra encontram ecos na obra antuniana, e apontar as relações entre história, memória e ficção, priviligiando-se a postura do autor das cartas. PALAVRAS-CHAVE: António Lobo Antunes – D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra – escrita epistolar e autobiográfica – Ficção portuguesa contemporânea. 11 ABSTRACT REIS. Erivelto da Silva. A ESCRITA EPISTOLAR E AUTOBIOGRÁFICA NA OBRA D’ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO: CARTAS DA GUERRA, de António Lobo Antunes. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa Contemporânea – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013. 134 p. This dissertation is a study of the characteristics present in the epistolary and autobiographical work D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005), authoring António Lobo Antunes, organized by the author's daughters, Maria Jose and Joanna Lobo Antunes, after the death of his mother. Intends to establish, in this dissertation, a protocol for reading and analyzing some letters from critical reflections in the works O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet (2008), Philippe Lejeune, Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si (2009), Elizabeth Muylaert Duque-Estrada and Os romances de António Lobo Antunes: análise, interpretação, resumos e guiões de leitura (2002) Maria Alzira Seixo, in which there is a chapter on "autobiography" in the work antuniana. Seeks to even demonstrate how the actual experience of exile and the horror of war are echoes in the work antuniana, and point out the relationship between history, memory and fiction, Favoring up the posture of the author of the letters. KEYWORDS: António Lobo Antunes – D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra – epistolary and autobiographical writing – Contemporary Portuguese fiction. 12 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 13 2 GUERRA COLONIAL, ENLEVO E DESTERRO “NESTE PAPEL DESCRIPTO” 24 3 A ESCRITA EPISTOLAR 31 4 A ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA 40 5 MEMÓRIA E EXÍLIO EM LOBO AUTUNES 49 5.1 FICÇÃO, MEMÓRIA E HISTÓRIA 54 5.2 AS CARTAS DA GUERRA 63 6 “DEVIRES AUTOBIOGRÁFICOS” NOS ROMANCES ANTUNIANOS 88 6.1 LOBO ANTUNES: PERSONAGEM DE SI MESMO 92 6.2 A AGONIA DOS BÁRBAROS 100 CONSIDERAÇÕES FINAIS 113 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 118 ANEXOS 126 13 1 INTRODUÇÃO Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto. Jorge Luís Borges Literatura. História. Memória. Cada vez que se propõe a inter-relação entre estes três elementos na recente História de Portugal, sugere-se uma viagem pela experiência humana em aspectos que suprimem, de forma nítida e contundente, as diferenças supostas entre a Memória do real e a sua ficcionalização. A ficção, na mímesis da realidade, pode se apropriar de passagens históricas, do ethos de pessoas anônimas e/ou figuras notórias, na busca pela representação verossímil de uma realidade inventada pela força da linguagem literária. Naturalmente, se a História e/ou as pessoas reais podem ser ficcionalizadas, como não supor que textos como cartas, diários e outros, considerados documentos, não possam ser o ponto de partida para a investigação de elementos narrativos e recorrências temáticas em obras de ficção para construir a ilusão de realidade em uma narrativa. Em um contexto literário em que a ficção e a História se relacionam tão intimamente, o indivíduo que escreve passa a ser a “metonímia de uma nação” ou o testemunho de um momento específico apresentado pelo viés de um narrador-personagem que, às vezes, identifica-se com o autor. 14 A História oficial passa a dever, pelo menos o benefício da dúvida – neste caso, traduzido em obrigação de se ler e refletir sobre o texto literário –, à ficcionalização da trajetória individual daqueles que lutaram e sobreviveram para escrever sobre o que testemunharam e resgataram, através da memória de si e dos outros, à custa da literatura, de documentos, de fotos, de correspondências e de diários do período vivenciado. O benefício da dúvida, inclusive, insere-se da investigação inerente às áreas do conhecimento que abordam, empiricamente, os mesmos temas. Esta dissertação reflete sobre a construção epistolar da obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005), que reúne a correspondência enviada por António Lobo Antunes à sua esposa, e, busca detectar ou apontar a autobiografia evidenciada na escrita marcada pela presença do “eu”, sujeito da enunciação nas correspondências. O objetivo desta dissertação é analisar as cartas escritas do “campo de batalha”, durante o período da Guerra Colonial em África, por um médico (combatente e participante de um batalhão operacional) à sua esposa. Tais cartas relatam o seu cotidiano, as suas emoções, as suas impressões, o seu testemunho servem como verdadeiras declarações de amor à mulher amada. É importante destacar que, em um debate sobre o estatuto contemporâneo da biografia, Marília Rothier Cardoso e Pina Coco advertem-nos que inerente a toda e qualquer “verdade”, encontra-se a ficcionalização do vivido: Dentre os diversos tipos de discursos, o literário é aquele em que a ficcionalidade da linguagem é explícita e serve de ponto de partida da composição, invalidando qualquer nexo simplificador entre as frases e seus eventuais referentes extralinguísticos. Nesse caso, o estudioso de literatura não se sentirá tentado a ler uma biografia como a “verdade” sobre um indivíduo real em sua (suposta) plenitude. Há muitas décadas que a teoria da literatura ensina que os relatos da vida ocupam o “não lugar” fabricado pelas estruturas linguísticas resultantes de séculos de tradição narrativa épica e romanesca. (CARDOSO M., & COCO, 2003, p.7). 15 Assim, quando, alguns anos depois de ter estado no “campo de batalha”, o jovem médico português, António Lobo Antunes inicia sua carreira literária, seus temas são a guerra, a solidão e o choque que a morte produz nos homens e nas sociedades. Seus romances, embora baseiem-se em dados considerados factuais e verídicos, buscam, ficcionalmente, discutir como a sociedade portuguesa foi conduzida à guerra, como se comportou durante o período e como se reorganizará após o fim do conflito. Os romances iniciais de Lobo Antunes (e referimo-nos à Memória de Elefante, Os Cus de Judas e Conhecimento do inferno) relatam situações vividas por seus narradorespersonagens, autores, aparentemente, de relatos pseudo-autobiográficos, resultantes da estada em África ou da vivência em Lisboa após o trauma sofrido no exílio. A barbárie, o horror da morte, a crítica direta ou velada ao sistema e às instituições e o contato com o outro e com o que este representa como indivíduo ou como inimigo portador de ideologia e cultura diferentes são tematizados. Os romances surgem como um espelho, capaz de retratar o estranhamento e de refletir sobre os desmandos da política expansionista portuguesa. Espera-se, assim, ao longo da dissertação, demonstrar que António Lobo Antunes, ao ficcionalizar a sua trajetória como médico, a serviço do exército português na Guerra Colonial em África, já prenuncia, através das “Cartas da Guerra”, elementos que serão retomados em suas narrativas posteriores, principalmente, em Os Cus de Judas (1979). Nota-se que, no romance Os Cus de Judas, a trajetória ficcional do narradorpersonagem, o “eu” da enunciação, mescla-se à figura do autor e de sua autobiografia, diluída em frases, reflexões e situações narradas referentes às passagens da História. Em alguns romances posteriores, de maneira direta pelo viés da autoficção, como, por exemplo, em Sôbolos rios que vão, torna-se, ele mesmo, personagem de seus romances. 16 Em outros, resgata memórias, inventa outras, buscar solucionar, através da ficção, o que a vida construiu sem resposta (aparente/aceitável), sem volta, sem saída. Não nos esqueçamos de que a memória consagra as lembranças, a história evoca os vultos; a memória registra impressões, a história elenca fatos; a memória embaralha passagens, a história sinaliza as datas; a memória busca personae, a história congrega os nomes; a memória é lúdica, a história é cronológica; a memória motiva, a história impulsiona; a memória é literária, a história codifica; a memória simboliza, a história significa. Tal como se fossem faces da mesma moeda, porém, com valores díspares. A trajetória de Lobo Antunes revela a marca daqueles que passam pelo mundo e que produzem algo que ateste a sua presença: um livro, um filho, uma autobiografia, o engajar-se na luta por seu país ou o encontrar um determinado amor. É a dinâmica das relações humanas. É o destino dos que escrevem, é o destino dos que vivem e sonham. “Todas as cartas de amor são ridículas”, escreveu Fernando Pessoa. E, sob a égide do grande bardo português, nos seria possível questionar se todas as cartas de amor e de guerra não poderiam ser, também, autobiográficas e históricas? Assim, justifica-se a pesquisa que deu origem a esta dissertação: considerar o recurso da investigação de documentos da época da Guerra Colonial em África, especificamente, a correspondência escrita pelo médico António Lobo Antunes à sua esposa, como objetos característicos de uma escrita autobiográfica e epistolar que podem servir como uma espécie de pacto de veracidade na inter-relação entre a ficção e a História de Portugal, durante este período. Pretende-se considerar, inclusive, e a memória e a autobiografia do autor como elementos associados às características de seus narradores-personagens das obras iniciais e, sobretudo, como elementos que justificam a recorrência temática em seus romances. O corpus analisado durante esta dissertação é a obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005), organizada por Maria José e Joana Lobo Antunes, reunião 17 das cartas enviadas pelo pai das organizadoras da obra, o médico e escritor António Lobo Antunes, à sua esposa Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes, no início da década de 70, quando este estava a serviço do exército português na Guerra Colonial em África. António Lobo Antunes é um notável expoente da ficção portuguesa contemporânea, um dos autores portugueses mais conhecidos e mais lidos em todo o mundo, autor de, pelo menos, duas dezenas de romances considerados como grandes obras literárias; premiado e reconhecido internacionalmente, é um dos cânones da nova ficção portuguesa que propõe, ao longo das últimas três décadas, uma profunda reflexão sobre a história recente de Portugal e seus desdobramentos na organização cultural, política e social do país e sobre seu reposicionamento na nova ordem mundial. São temas recorrentes nos romances do autor a guerra, a solidão, a reconstrução do passado por uma memória fragmentada (a própria narrativa antuniana se constrói sobre a égide da fragmentação e do fluxo de consciência), o trauma da guerra, o exílio e a condição humana, marcada pela ausência de pertencimento e pelo isolamento, diante das transformações sociais e da incapacidade de interação com o outro. Seus personagens emergem das trincheiras de guerra, do horror letárgico de memórias traumatizantes, de relatos sombrios e confusos sobre a própria identidade e refletem as dificuldades em se fazer compreender pelos outros e de incorporar, novamente, os parâmetros sociais estabelecidos, após a experiência do exílio, da repressão salazarista e da morte pressentida. Seus narradores e personagens constituem-se, literal e metaforicamente, em uma prosa repleta de elementos que se aproximam do poético, para narrar o que pode ser torpe, vil e cruel e o que ressignifica e transfigura a percepção de objetos, épocas, sentimentos e pessoas que se reconstroem pela maneira de narrar. 18 Misturam-se, na obra antuniana, os tempos cronológico e psicológico e o pano de fundo é a história particular real ou inventada de narradores e personagens sobreposta à recente História de Portugal. A memória expurga e alimenta a narrativa. Coaduna-se com fatos verificáveis como reais e/ou verossímeis, traz à tona elementos novos, conhecidos in loco, através da vivência ou das experiências do autor que as reordena, corrige e exacerba, a fim de produzir uma catarse, ao experimentar uma purgação das emoções, através da representação ficcional do real. O problema que se pretende discutir, nesta dissertação, é a verificação de que as cartas escritas por Lobo Antunes, durante o seu período como médico a serviço do exército português, poderiam se configurar como uma espécie de pacto autobiográfico entre ele – como autor textual – e tal procedimento estende-se a seus narradores e personagens e à recorrência temática, presentes nos romances iniciais antunianos, no que concerne à guerra, à solidão e à construção narrativa fragmentada por memórias agudas e doloridas de um passado recente. Em suma, pretende-se constatar se haveria a sobreposição entre a figura elocucionária do autor, que esteve no “campo de batalha” (fato verificável pela história pessoal do autor e corroborado pela análise de suas cartas) e a estruturação de seus narradores e personagens. Assim, será destacada a presença de traços ou resíduos autobiográficos na elaboração dos romances iniciais de António Lobo Antunes, sobretudo, nesta dissertação, na obra Os Cus de Judas. A hipótese que norteia essa dissertação é a de que seria possível, em face do estudo da biografia e das cartas do autor, localizá-lo e às suas experiências ou vivências apreendidas, durante o período citado, seja no âmbito da História, seja no âmbito do Espaço, representado 19 como ficção, em suas obras iniciais. A Memória desses acontecimentos possibilita, assim, ao autor encontrar subsídios de representação temática para seus romances. Leia-se o professor Alcir Pécora, no texto “Velhos textos, crítica viva”, escrito como apresentação à obra A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio (2005), organizada por Emerson Tin: Levantar legibilidade de objetos antigos para ampliar o vocabulário crítico do presente: eis o que me parece ser um programa de estudos de excelência. [...] pode, perfeitamente, significar hipóteses criativas para a interpretação de objetos contemporâneos: da carta oficial até o e-mail. O levantamento em jogo aqui, longe de mumificar objetos culturais, quer testar hipóteses para escrituras do presente ainda inexploradas pelos lugares-comuns da crítica e da leitura. (PECORA, 2005, p. 13; 15). Entende-se, como hipótese, que a escrita das cartas e o conteúdo autobiográfico que elas possuem são um elo capaz de coadunar e ampliar a percepção da inter-relação entre a Memória, a História e a ficção na obra de António Lobo Antunes. É importante destacar que a epistolografia é o estudo da escritura de correspondências entre indivíduos e/ou grupos distantes ou separados contextualmente e que a estruturação da narrativa ficcional, através da simulação, do envio ou da troca de cartas entre personagens, torna-se, aqui uma característica da narrativa antuniana, embora não tenhamos acesso às cartas escritas pela esposa do autor Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes. Lembremo-nos de que nos séculos XVIII e XIX, diversos autores utilizavam-se do recurso ficcional no qual um narrador, ao explicar que encontrou um diário ou um conjunto de cartas sobre determinado personagem, buscava tornar credível o que narrava. Outros, por sua vez, ao estruturar capítulos ou trechos de suas obras, sob a forma do gênero epistolar, assumiam a sua autoria ou reproduziam, ao longo dos capítulos, cartas e páginas de diários inventados. A antologia de cartas elencadas na obra, D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005), é um conjunto de cartas reais, enviadas por um homem, um médico, 20 direto do “campo de batalha” para a sua amada – muito amada – esposa com a qual recentemente se casara e de quem se despedira, temporariamente, ao ser incorporado, ao exército (durante o regime fascista e salazarista português), deixando-a grávida da primeira filha do casal. O fato de esse médico vir a se tornar um dos autores mais consagrados e lidos, nos séculos XX e XXI, na literatura portuguesa e possuir, em sua lista de romances, títulos que demonstram a recorrência dos temas da guerra e da memória, decorrentes, possivelmente, de uma experiência pessoal, suscita a necessidade de uma leitura crítica dessa correspondência. Não se pretende, portanto, argumentar sobre a configuração de uma possível literatura epistolar recorrente na obra antuniana ou, ainda, apontar para a produção contundente, indiscutível e direta de uma autobiografia. Entende-se, igualmente, que as experiências autobiográficas contidas nas “Cartas da Guerra” (marcas de sua trajetória pessoal), potencializam e predispõem o leitor à superposição entre a figura do autor e a de seus narradores-personagens em narrativas que tenham como tema a Guerra Colonial em África ou a ela se refiram. As obras utilizadas como apoio teórico serão, principalmente, O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet (2008), de Philippe Lejeune e Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si (2009), de Elizabeth Muylaert Duque-Estrada. Em relação à ficção antuniana, o estudo crítico Os romances de António Lobo Antunes: análise, interpretação, resumos e guiões de leitura (2002), de Maria Alzira Seixo, uma das mais importantes pesquisadoras sobre a obra antuniana, bem como artigos, dissertações e ensaios produzidos acerca da obra do autor, servirão como suporte teórico para a nossa argumentação. Esta dissertação se estrutura em seis capítulos bem específicos. No capítulo dois, “Guerra colonial: enlevo e desterro ‘neste papel descripto’”, serão destacadas as situações, 21 aparentemente paradoxais do enlevo e do desterro, verificadas na leitura das “Cartas da Guerra”, os dados biográficos gerais de Lobo Antunes e sua esposa. A contextualização histórica da Guerra Colonial, apresentada de forma panorâmica, será inevitável. Os capítulos três e quatro, respectivamente intitulados “A escrita epistolar” e “A escrita autobiográfica”, vão trazer elementos teóricos sobre as duas modalidades de escrita. Os capítulos três e quatro, portanto, pretendem propor o diálogo entre as ideias de Lejeune sobre a autobiografia e a configuração textual de uma carta, através dos pressupostos fundadores historicamente estabelecidos por alguns importantes teóricos. Assim, seria possível estabelecer a aproximação entre a carta como documento e autobiografia, a motivação para essa modalidade de escrita e seus comprometimentos com relação à figura da enunciação na obra antuniana. No capítulo quatro, dedicado à escrita autobiográfica, será feita uma alusão à “escrita de si”, na acepção de Foucault. No capítulo cinco, “Memória e exílio em Lobo Antunes”, será desenvolvido um estudo que visa discutir as relações entre História, memória e ficção na literatura portuguesa contemporânea, evidenciando como as histórias particular e coletiva podem se interseccionar na obra literária. Como a experiência do isolamento leva o autor a desenvolver uma linguagem hiperbólica em que os sentimentos são exacerbados pelo trauma e pela solidão também será destacada. Na sequência das reflexões críticas apresentadas, neste mesmo capítulo, busca-se analisar as “Cartas da Guerra” de Lobo Antunes. Pretende-se caracterizá-las, contextualizar e contabilizar seu processo de produção, estabelecer-se um protocolo de leitura e destacar produções que destoem das demais cartas. Busca-se demonstrar como a sequência de cartas produz uma espécie de autobiografia e um diário que demonstra o avanço, os desdobramentos da estada do autor no front de batalha. 22 Neste capítulo da dissertação, é assinalado que o autor começa a produzir os primeiros textos e demonstra preocupar-se com os registros por escrito de sua experiência não apenas para informar à esposa sobre sua trajetória, mas para que possa, posteriormente, escrever sobre ela. Nesta etapa, surgem os primeiros poemas que o autor começa a produzir como maneira de destacar as inquietações do seu “eu” pessoal e poético. Haverá também uma análise detalhada e alegórica de um de seus poemas como forma de detectar uma estruturação literária, baseada no lirismo, a ser desenvolvida na escrita dos futuros romances (Não entres tão depressa nessa noite escura), por exemplo, será enquadrado pelo autor como “poema”. No capítulo seis da dissertação, “‘Devires autobiográficos’ nos romances antunianos”, busca-se analisar a transfiguração entre a enunciação do autor e a de seus narradorespersonagens. Os devires literários e biográficos se apresentam como uma perspectiva para analisar as inter-relações entre História, memória e ficção pela trajetória autobiográfica de Lobo Antunes. As relações com a filosofia e a literatura tão tênues são consideradas como fator de potencialização do pacto autobiográfico. Ainda no capítulo seis, acima referido, a obra Os Cus de Judas (2007), de António Lobo Antunes será comentada por nós, tomando-se como base a questão da barbárie testemunhada pelo autor. Insinuada em suas cartas, será exacerbada, no espaço romanesco, pelo fluxo de memórias de um narrador-personagem marcado pelo trauma da guerra. Um estudo bastante relevante sobre a obra – provavelmente, o primeiro na UFRJ e no Brasil – foi escrito por Gumercinda Nascimento Gonda, em sua dissertação de mestrado, intitulada “O Santuário de Judas: Portugal entre a Existência e a Linguagem”, defendida e aprovada em 1988, na Faculdade de Letras da UFRJ. A percepção de que este romance, que integra a trilogia inicial da obra antuniana ao lado de Conhecimento do Inferno (1980) e Memória de Elefante (1979), tem uma grande 23 verve autobiográfica apoia-se na análise desenvolvida pela obra crítica produzida pela pesquisadora portuguesa Maria Alzira Seixo. Na seção destinada aos anexos, será apresentado um quadro de produção das cartas antunianas por dia, mês, lugar e período de sua produção. Busca-se destacar, ainda, a reprodução de algumas fotos de Lobo Antunes e Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes; do autor, no cenário da guerra e a reprodução dos aerogramas manuscritos enviados por ele. Essas imagens fazem parte do grupo de fotos e documentos reproduzidos originalmente na obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005) e sua reprodução, nesta dissertação, foi gentilmente autorizada pelas filhas de Lobo Antunes, senhoras Maria José e Joana Lobo Antunes, e, por sua editora, senhora Maria da Piedade Madeira Martins Ferreira. 24 2 GUERRA COLONIAL, ENLEVO E DESTERRO “NESTE PAPEL DESCRIPTO” “Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, – o único existente.” Rainer Maria Rilke Muito do que se sabe sobre a vida e a análise crítica da obra de António Lobo Antunes é fruto da pesquisa realizada por Maria Alzira Seixo. Embora este seja um autor bastante pesquisado, alguns dos trabalhos mais relevantes têm sido realizados ou interagem com as pesquisas da ensaísta citada. Em sua obra, As Flores do inferno e jardins suspensos (2010, passim), há um capítulo dedicado a informações sobre a carreira literária e a trajetória pessoal do autor que serão citadas neste capítulo da dissertação a fim de se estabelecer algumas conexões entre a cronologia da vida e da obra de Lobo Antunes e a Guerra Colonial. Lobo Antunes nasceu em Lisboa a 1 de setembro de 1942. Fruto da união entre Maria Margarida de Almeida Lima e João Alfredo Lobo Antunes. Seu nome é resultado de uma promessa feita por seu avô paterno, António Lobo Antunes (1889-1960) – Visconde de Nazaré (Pará, Brasil) – a Santo Antônio de Pádua. É o mais velho de cinco irmãos. Por uma decisão de sua família, ingressa na Faculdade de Medicina em 1959. Forma-se em 1968 e licencia-se em 1969. Embarca como alferes-médico, para atuar como clínico, a 06 de janeiro de 1971. Servirá até 1973, quando será dispensado e dará baixa como tenente. Sobre a primeira esposa de Lobo Antunes não há muitas informações disponíveis. De acordo com Maria José e Joana Lobo Antunes (2005, p.12), Lobo Antunes casa-se com 25 Maria José Xavier da Fonseca e Costa, a quem conhecera e começara a namorar em 1966, na Praia das Maçãs. Segundo Maria Alzira Seixo (2010, p.366) o início do namoro teria ocorrido em 1964. O casamento, segundo as filhas do casal, ocorre a 08 de agosto de 1970 e Maria José adota o sobrenome do marido. Maria Alzira Seixo (2010, p. 366) afirma que a data seria 01 de agosto de 1970. Deste casamento com aquela que será, talvez, o grande amor de sua vida, nascem duas filhas: Maria José Lobo Antunes (1971) e Joana Lobo Antunes (1973). O casal se separa em 1976. As filhas do casal, após a morte da mãe, em 1999, realizando um desejo póstumo de sua mãe, organizam e publicam as cartas enviadas a ela por Lobo Antunes quando este estava a serviço do governo na Guerra Colonial. Esta obra chama-se D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005). O ano de 1999 também marcará o autor por ser o ano da morte de seu grande amigo, desde os tempos da guerra, Ernesto Melo Antunes. Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes nasceu na cidade de Viseu, filha de José Hermano Costa e Clara da Conceição de Barros Xavier da Fonseca e Costa, em 13 de outubro de 1946 e morreu em Lisboa, em 20 de fevereiro de 1999. Foi a segunda dos três filhos do casal. Estas “Cartas da Guerra” (2005) são extremamente sentimentais. Contêm declarações explícitas e apaixonadas e falam, entre outras coisas, da devoção, do amor e da saudade sentida por Lobo Antunes neste período. Além de permitirem o conhecimento de fatos através do relato dos acontecimentos ocorridos durante a guerra. Assim, nesta dissertação, as correspondências serão analisadas como documento de uma escrita epistolar e autobiográfica presente na trajetória antuniana. É preciso destacar que as cartas enviadas com as respostas de Maria José a Lobo Antunes não foram publicadas; apenas as que continham as fotos sobre o nascimento da primeira filha do casal e a presença 26 de ambas em Angola, durante o período de visita ao marido, vieram a ser reproduzidas no livro citado. As cartas de Lobo Antunes à esposa permitem aos leitores participarem de uma história de enlevo e de amor demonstrados, em plenitude e desassossego, em suas missivas, através de uma escrita intensa e contínua, que faz, também, com que se sintam desterrados e exilados, por saberem-nas escritas no contexto histórico da guerra. Uma vez destacados os personagens dessa história de amor: António Lobo Antunes e Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes, casados às vésperas do embarque do autor para unir-se às tropas portuguesas como alferes miliciano, é preciso que se contextualize o cenário do qual decorre a produção das apaixonadas cartas: a Guerra Colonial. A Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar inicia-se nos primeiros meses do ano de 1961. Para os africanos, ficaria conhecida como Guerra de Libertação Nacional. Os conflitos entre portugueses e os africanos iniciados nessa data irão durar até o histórico dia 25 de abril de 1974, quando ocorre a Revolução dos Cravos. A independência das chamadas possessões coloniais africanas – descolonização –, já havia sido determinada pela Assembleia Geral da ONU, no início dos anos 60; o desejo de extinção das políticas colonialistas no mundo ganhara ainda mais peso, após a chamada Conferência de Bandung, em 1955. Esta conferência reuniu países da Ásia, do Oriente Médio e da África. Entre os países africanos estavam Gana, Etiópia, Líbia, Sudão e Libéria. Nenhum dos quais fazia parte do grupo das colônias portuguesas em África que era composto por Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Portugal reagiria às pressões e às novas determinações da ONU, alegando que os países colonizados estariam enquadrados sob um estatuto específico que não os qualificaria a se tornarem independentes. Para o regime português, as colônias eram consideradas parte do seu território. Essa política de expansão ultramarina, iniciada desde o século XVI, a partir do 27 fim da II Guerra e do domínio do regime fascista de Salazar, irá produzir o mais importante período da História de Portugal no século XX. Leia-se um fragmento do texto escrito por Renato Monteiro e João Farinha para a obra Guerra Colonial: fotobiografia (1998): Cerca de dois meses depois dos assaltos a estabelecimentos prisionais de Luanda, ocorridos a 4 de fevereiro de 1961, a vaga de morticínios, perpetrados na região de Dembos, obriga o Governo e Lisboa a reagir militarmente. Os primeiros contingentes são mobilizados sob o slogan “Angola É Nossa”, enquanto se amplia e inova o material militar, adequando às características da guerra de guerrilha. Com estes seguem companhias da Guarda Nacional Republicana, efectivos da Polícia de Segurança Pública e legionários. (MONTEIRO & FARINHA, 1998, passim). Segundo José Brandão, que serviu como radiotelegrafista em Moçambique, entre 1969 e 1971, na obra Cronologia da Guerra Colonial: Angola, Guiné, Moçambique, 1961-1974 (2008, passim), Angola foi a primeira das colônias a insurgir-se contra o domínio português. Os autores da fotobiografia sobre a Guerra Colonial, Renato Monteiro e Luís Farinha (1998, p.62), utilizam uma passagem de um dos “Sermões” de António Vieira como prólogo ao capítulo II de sua obra, intitulado “Acção Armada”. A ideia e utilização da referência à Vieira são incrivelmente adequadas ao contexto e nos parece pertinente reproduzi-la, a fim de procurar demonstrar como, historicamente, a guerra representava para o ideário português uma ponderação sobre algo próximo e palpável, tanto na História da consolidação da nação portuguesa como na história humana. Leia-se um fragmento do capítulo II do Sermão Histórico e Panegírico nos Anos da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia, de Padre António Vieira: [...] É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem 28 segura a sua cela; e até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro. (VIEIRA, apud. MONTEIRO & FARINHA, 1998, p.62). Apesar das históricas ponderações de Vieira que alertam e ilustram, gradativamente, a dissolução de padrões sociais e morais ocasionados pela guerra e que chegam a afirmar que, até mesmo Deus não estaria a salvo da guerra, não havia dúvida: Portugal, definitivamente, ingressaria no pior e mais sangrento conflito de sua História no século XX. Vieram, na sequência dos conflitos entre portugueses e africanos, sublevações na Guiné-Bissau, a partir de 23 de janeiro de 1963, e Moçambique, em 25 de setembro de 1964. Ao longo dos treze anos de Guerra Colonial, 1961 a 1974, foram mortos aproximadamente nove mil portugueses. A maior parte deles, das tropas do exército. Estima-se em cerca de 30.000, o número de soldados que retornaram feridos da guerra e em 100 mil, o número de doentes. Nos países africanos as baixas seriam igualmente consideráveis e chegaria a casa dos milhões com as guerras civis ocorridas no período pós-independência. O cenário da guerra e os acontecimentos vivenciados por Lobo Antunes como médico alferes miliciano em Angola serão descritos e narrados nas cartas que integram a obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005) – reunião das cartas escritas por António Lobo Antunes à sua esposa quando este serviu como clínico geral no exército português durante a Guerra Colonial, como já mencionamos, na introdução. Estas cartas, cuja coletânea foi organizada por Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes, filhas de Lobo Antunes Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes, remetem às vivências e experiências reais de Lobo Antunes durante o período da Guerra Colonial africana (1971/1973), o que parece diluir, desde já, o estatuto ficcional e apontar para a presença ou a proximidade das experiências autobiográficas do autor contidas nas “Cartas da Guerra” e para o ethos de seus narradores-personagens, sobretudo nas obras 29 iniciais, entre elas Os Cus de Judas (1979), Memória de Elefante (1979) e Conhecimento do inferno (1980). A escrita que simule ou que represente a escrita de uma carta, que pré-exista ao universo da ficção, cada vez mais tem alcançado espaço nos estudos literários contemporâneos. Leia-se um fragmento da obra Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si (2009), de autoria de Elizabeth Muylaert Duque-Estrada: [...] Elas [as escritas autobiográficas] provocam uma perturbação na oposição entre ficção e realidade, fazendo com que a simplicidade da rígida linha demarcatória entre ambas dê espaço a uma relação mais complexa. A inquietante estranheza na qual elas se tecem tem o efeito de tornar supérflua e inoportuna a certeza da distinção entre memórias fingidas e memórias verdadeiras. Pois elas só permitem a referência à oposição real/fictício na condição de desautorizá-la, fazendo com que a escrita da realidade não possa mais negar a sua ficcionalidade, e que a ficção passe a trazer consigo uma valência de realidade autobiográfica. [...] (DUQUE-ESTRADA, [grifo nosso], 2009, p.61). Não se pretende, nesta dissertação, desvalorizar a ficção em oposição a uma escrita autobiográfica ou tomar-se esta por aquela. No entanto, entende-se que as relações de experiência de um fato histórico e a memória dele estejam completamente relacionadas no ethos da formação narrativo-discursiva de Lobo Antunes quer seja em suas narrativas, quer seja em características de seus narradores e personagens. E que estas experiências estejam evidenciadas ou omitidas por outras sensações e experiências (a paixão latente, a exacerbação do sentimento romântico, o exílio, a saudade, a solidão, o nascimento da filha), contidas nas cartas escritas pelo autor durante este período, é um fato evidente. Some-se a esse processo de composição e de investigação literária o fato de que, em se tratando de estudos que envolvam ficção, memória e história e seus desdobramentos nas obras literárias, é a carta, como representante de uma escrita do “eu,” um poderoso elo entre o “eu” autoral e os “eus” ficcionais. Não obstante, quaisquer cartas produzidas por escritores notórios representarem documentos de pesquisa pela simples razão da curiosidade biográfica e autoral, quando estas 30 cartas sinalizam para a possibilidade de seus fragmentos e/ou as experiências pessoais que contêm ganharem ecos no universo da obra de ficção produzida por seu autor, mesmo os pesquisadores mais céticos em relação à proximidade entre obra biográfica e obra ficcional poderiam se sentir motivados a uma leitura um pouco mais detida e arguta. Leia-se Maria Alzira Seixo: Não se trata, portanto, de introduzir na leitura dos textos reconhecimentos específicos da existência do escritor enquanto factores decisivos de um saber, num estabelecimento forçado de relações de coerência mais ou menos utilizadas pelas tendências de investigação de um biografismo mecanicista; trata-se, antes, de tentar entender um texto a partir de seu modo de evocar e de provocar o real, já que a escrita oferece garantias de materialidade e de consistência quais esse real as não dá, e nessa relação entre circunstância e sujeito, que pode ser dual, dúbia ou ambígua, poderemos tentar apreender a configuração constituída pelo espaço mental que constitui o seu intervalo, e que uma intersubjectivação em processo, do narrador dirigida a quem o lê, pode preencher, e levar a que comuniquem, e que através do texto se encontrem, o narrador-escritor e o leitor que, na sua senda, evoca e provoca também. [...] E vem a propósito citar, imediatamente, [...] [o romance de Lobo Antunes] Que farei quando tudo arde? Onde o traço autobiográfico onomástico (“chamar-me António”) se indecide entre o ludismo frequentemente praticado com o nome próprio do autor, e uma ocultação denegada da primeira pessoa narrativa que interpela directamente a ficção que o escritor desenvolve, dando-se a leitura um negativo de si próprio enquanto figura: [...] (SEIXO, 2002, p.475). Uma vez que pesquisadores da envergadura de Maria Alzira Seixo já tenham publicado estudos sobre os elementos autobiográficos contidos nas obras iniciais de António Lobo Antunes e demonstrado que esses elementos permanecem, embora, diluídos e ficcionalizados em outras obras, esta dissertação volta-se, antes, para a pesquisa do conjunto de cartas escritas por Lobo Antunes à sua esposa durante o tempo em que este serviu como médico no Exército português na Guerra Colonial em África e estende-se ao “pacto autobiográfico”, à sensação de veracidade e historicidade contida em passagens que se entendam como fruto de uma experiência real vivida e/ou ficcionalizada ora pelos narradores, ora pelos personagens dos romances de António Lobo Antunes. 31 3 A ESCRITA EPISTOLAR Todas as cartas de amor são Ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas. [...] A verdade é que hoje As minhas memórias Dessas cartas de amor É que são Ridículas. [...] Fernando Pessoa A produção literária portuguesa, ao longo das últimas décadas, se configura como bastante pródiga no hibridismo entre romance e as diversas formas de escrita. Romances que contêm fotografias, trechos de diários, maços e/ou trechos de cartas, sejam estes gêneros representados por documentos reais e/ou escritos para simular realidade, compõem diversos romances portugueses contemporâneos, sobretudo, os escritos após a Revolução dos Cravos. Leia-se o que escreveu a pesquisadora Gumercinda Nascimento Gonda em sua dissertação de mestrado O Santuário de Judas: Portugal entre a existência e a linguagem (1988), defendida e aprovada na Faculdade de Letras da UFRJ: Pode-se detectar a presença de alguns procedimentos que alinham o romance português na série romanesca contemporânea. Observa-se a fragmentação da forma; a diluição do personagem; o aspecto confessional e a contestação política. [...] O escritor contemporâneo entre os quais Lobo Antunes, passa a um procedimento de exclusão do mundo, mergulhando cada vez mais, em sua subjetividade (GONDA, 1988, p. 32; 46). 32 Notadamente nas cartas há um universo particular de subjetividade e confessionalidade baseadas no que o autor das cartas vive, naquilo que lhe é dado a conhecer, em seus medos e expectativas em relação ao porvir. Não se trata de afirmar que o autor das cartas já as escreva como se escrevesse um romance, mas, entende-se, a partir daí, que a experiência tornada texto através das cartas, além da subjetividade de quem as escreve, está carregada de referências autobiográficas que, mais tarde, aparecerão na ficção, nos romances antunianos. Em se tratando da escrita epistolar, que, inicialmente, se estabelece por um código de intimidade e/ou necessidade de interação entre indivíduos que se encontram distantes, na Literatura portuguesa contemporânea tem se revelado como possibilidade de se perceber e investigar, criticamente, o avesso da escrita, os bastidores da História, o devir da memória e as estratégias narrativas pós-modernas. Segundo Claudia Atanazio Valentim: O uso das cartas para estruturar uma narrativa permite que o leitor se aproxime mais da consciência íntima das personagens e o autor textual, ao elaborar o que as personagens poderiam escrever em determinadas circunstâncias, traz para a ficção o uso cotidiano das cartas: a correspondência informal, onde o objetivo era partilhar com seus(s) interlocutor(es) seus pensamentos e atos cotidianos. [...] (VALENTIM, 2006, p. 28). As cartas escritas por António Lobo Antunes compreendem um conjunto bastante peculiar e atraente ao exercício da investigação do processo de escrita construído pelo autor. Seja porque a subjetividade e o testemunho serão recorrentes nos primeiros romances do autor, seja porque dão a conhecer sobre diversos aspectos vistos e vivenciados pelo autor e reconfigurados em seus romances e, em diversos aspectos, sobrepostos ou reconhecidos como autobiográficos. As cartas interessam, sobremaneira, por registrarem o trauma de um regime de exceção vivido/testemunhado por Lobo Antunes, o exílio forçado para servir ao exército português e o aproximarem do narrador-personagem de suas obras iniciais. 33 Entende-se, portanto, que além de documentarem um período da recente História de Portugal, servem como base para se observar a estruturação de uma escrita autobiográfica que permitirá que os leitores dos romances de Lobo Antunes possam considerar a sua escrita não apenas como fruto de uma produção literária focalizada em um período histórico, mas como fruto de sua vivência, como parte de sua trajetória pessoal, como elementos possivelmente resgatados de sua memória. Nas palavras de Elizabeth Muylaert Duque-Estrada (2009:27), “os abalos que essa nova ordem de questões provocou sobre o espaço literário não deixou de afetar também a escrita e a reflexão sobre a autobiografia”. Com notável frequência, percebe-se a superposição entre uma forma de narrativa ficcional e a utilização da estruturação textual, através de cartas/correspondências entre personagens, a fim de explicitar e decodificar relações entre enredo e personagens e tempo e espaço nas narrativas. Leia-se Mikhail Bakhtin: [...] o romance biográfico, antes de defini-lo, o crítico russo faz uma advertência ao leitor, lembrando-nos que na Antiguidade não foi criado um romance biográfico tal como o conhecemos, mas desenvolveram-se nela formas biográficas e autobiográficas que influenciaram não só a biografia e a autobiografia europeias como também o romance europeu. [...] (BAKHTIN, 2006, p. 250). Entende-se que estas cartas, na situação de estruturadoras do desenvolvimento das narrativas, uma das possibilidades de interação ente as características de forma e conteúdo da ficção contemporânea, sejam recursos ficcionais e que potencializem, surpreendam, sirvam como pacto de veracidade, de testemunho. Convém lembrar, aqui, o conceito de “testemunho”, apontado por Márcio SeligmannSilva, em Palavra e imagem: memória e escritura (2006, p.211): “o testemunho como ‘testis’, verdade jurídica, não recobre o testemunho como ‘superstes’, sobrevivente que viu a morte de 34 perto”. Na obra antuniana de perspectiva autobiográfica, observa-se a presença do testemunho como afirmação da identidade daqueles que foram mobilizados para a Guerra Colonial. Acredita-se que, através de uma leitura crítica da escrita epistolar e (auto) biográfica de Lobo Antunes, seja possível perceber e demonstrar a proximidade entre o ethos “real” da experiência vivida pelo autor e projetar essa percepção nos desdobramentos temáticos recorrentes em seus romances e, assim, proceder à associação com os elementos de sua narrativa. Leia-se Andrée Rocha: Entendemos, também, que a correspondência informal, pelo seu tom autobiográfico, dá ao leitor a impressão de devassar a consciência íntima do signatário, desvendando seus segredos. Uma escrita, dois movimentos: no leitor, a marca da curiosidade, o voyeurismo; para o escritor, uma vez mortas as utopias, a escrita reflete “uma forma de salvação individual num mundo que começa a descrer de sucessivos modelos ideológicos de salvação coletiva” (ROCHA, 1992, p. 19). Não se pretende comparar as correspondências ficcionais das narrativas portuguesas na segunda metade do século XX, ou as obras que se apoiam nesse recurso que entendemos como narrativo e proposital em virtude do desejo de se atingir uma maior verossimilhança em relação ao enredo construído, com as cartas enviadas por António Lobo Antunes, durante sua atuação como médico na Guerra Colonial em África, à sua esposa Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes. Por epistolografia, entende-se o conjunto de cartas escritas e/ou enviadas e/ou textos ficcionais produzidos a partir da estrutura de uma carta. O estudo desse gênero ou das produções híbridas que dele se apropriem constitui cada vez mais um manancial de pesquisa na literatura contemporânea, sobretudo quando os romances ou as cartas se aproximam de temas que evocam a ficcionalização da história através da memória de autores (motivação da produção das obras) e personagens e narradores. Assim, busca-se estabelecer um pacto de veracidade através da construção de uma escrita testemunhal e/ou autobiográfica. Leia-se uma citação de Octávio Paz, feita pela 35 doutora Claudia Atanazio Valentim, em sua tese O romance epistolar na literatura portuguesa na segunda metade do século XX, defendida em 2006 na UFRJ: Numa análise das cartas ditas reais, uma questão que se coloca é de que maneira o sujeito se representa para o seu leitor. Sabendo que a carta, gênero em primeira pessoa, é uma escrita de cunho autobiográfico, como o signatário se expõe e quais partes de sua vida serão relatadas e retratadas para o outro? Este signatário, em seu discurso, consciente ou não, efetua uma apresentação de si para o outro; a maneira de ele dizer induz a construção de uma imagem, pois como já sublinhara Octavio Paz em Os filhos do barro, “o sujeito é uma cristalização mais ou menos fortuita da linguagem” (PAZ, 1984 apud. VALENTIM, 2006, p. 85). A partir da obra O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet (2008), de Philippe Lejeune e em confluência com a obra Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si (2009), de Elizabeth Muylaert Duque-Estrada, pretende-se analisar algumas das cartas enviadas por Lobo Antunes e estabelecer características e um possível protocolo de leitura. A partir daí, com auxílio de autores que produziram pesquisas sobre a obra antuniana, em especial, Maria Alzira Seixo, na obra Os romances de António Lobo Antunes, e nos próprios textos críticos de Lobo Antunes, demonstrar ecos autobiográficos na obra ficcional produzida pelo autor. Em se tratando do objeto de pesquisa dessa dissertação, a obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005), obra organizada por Maria José e Joana Lobo Antunes, filhas do escritor António Lobo Antunes, como já vimos, o próprio conjunto de cartas já se propõe convidativo à investigação de seus elementos verificáveis como verossímeis do ponto de vista da História e da Memória e de seus desdobramentos na produção ficcional de Lobo Antunes. Na obra antuniana de perspectiva autobiográfica, observa-se a presença do testemunho como afirmação da identidade daqueles que foram mobilizados para a Guerra Colonial. Percebe-se que se instaura um pacto, um jogo ficcional, que se pretende deflagrador da representação de uma possível realidade, ou que evoque um passado histórico construído pela 36 memória descrita através de correspondências, se estabelece a partir de uma espécie de “pacto” entre autor e/ou narrador e personagens, proposto pela estruturação narrativa através de cartas, mas, ao mesmo tempo compõe, por encontrar ecos e por buscar veracidade em elementos históricos verificáveis, uma escrita autobiográfica por destacar uma vivência ou um testemunho de seu autor. As cartas, os diários, as escritas do “eu”, de um modo geral, são estratégias narrativas e álibis da inverossimilhança verificadas na literatura portuguesa, pelo menos, desde o século XVIII. Pretende-se, nesta dissertação, afirmar que Lobo Antunes se utiliza desse tipo de recurso em outro nível, a partir da leitura de suas cartas, e, identificar algumas características da produção epistolar e autobiográfica desse autor que: a) dão a conhecer a sua estada no exército colonial português durante a guerra em África; b) vêm a ser relatos epistolares e autobiográficos; c) exemplificam essa experiência que será recorrente em algumas das obras antunianas. A fim de destacar algumas características verificáveis na escrita epistolar, buscamos, portanto, elementos teóricos na obra A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio, organizada por Emerson Tin (2005). De acordo com Emerson Tin (2005, p.19-20), organizador da coletânea de ensaios, Demétrio de Falero (354-283 a.C.), afirma que a carta se diferencia do diálogo que lida com a reação do improviso pelo fato de ser escrita e ser enviada a alguém como um presente. Mas que, ainda assim, deva primar por um estilo simples que deva aproximar-se de uma conversa entre amigos. Demétrio de Falero alerta, ainda, para o cuidado com a extensão e o estilo das cartas: “Ela deve ser a expressão breve de um sentimento amistoso e a exposição de um tema simples em termos simples […]”. Essa definição se encaixaria, por exemplo, nas características verificadas nas correspondências de Lobo Antunes: afetividade, subjetividade, concisão 37 textual e um texto epistolar que busca comunicar e aproximá-lo, o quanto mais possível, da sensibilidade do destinatário. Na visão de Marco Túlio Cícero (106-43 a. C.), citado por Emerson Tin (2005, p.21), a carta se configuraria como uma conversação através da escrita e como uma manifestação do caráter de quem a escreve. Leia-se Andrée Rocha, na obra A epistolografia em Portugal: [...] Três géneros de cartas missivas assinala o mesmo Túlio, aos quais alguns costumam reduzir muitas espécies delas. O primeiro é o das cartas de negócio, e das cousas que tocam à vida, fazenda e estado de cada um, que é o que para as cartas primeiro foram inventadas; que, por tratarem de cousas familiares, se chamaram assim. O segundo, de cartas dentre amigos uns aos outros, de novas e cumprimentos de galantarias, que servem de recreação [...] O terceiro, de matérias mais graves e de peso. [...] O primeiro gênero se divide em cartas domésticas, civis e mercantis. O segundo em cartas de novas, de recomendação, de agradecimento, de queixumes, de desculpas e de graça. O terceiro, que é mais grave [...] contém cartas públicas, invectivas, consoláveis, laudativas, persuasórias e outras que se pegam a cada uma delas que nomeei em todos os três géneros. [grifos da autora] (ROCHA, 1992, p.40). Entende-se que há, nas cartas escritas por Lobo Antunes, uma combinação das características observadas por Cícero em relação ao gênero epistolar. Leia-se um fragmento da 4ª carta escrita por Lobo Antunes durante o período da Guerra Colonial: 17.1.7 Minha joia querida Escrevo-te num domingo insuportável de calor, numa esplanada diante da baía, enquanto os barcos de pesca dos negros passam lentamente para um e outro lado num vagar tropical, [...] Que cidade horrível. É como passar um domingo em Benfica [...] Uns negros aleijados, arrastam-se a pedir esmola, outros oferecem objetos de madeira, objetos esculpidos, jornais, farrapos e miséria. Nunca pensei vir encontrar tanta pobreza, tanta porcaria, tanto calor. [...] As saudades são imensas e tu ocupas o primeiro lugar da minha cabeça à frente da minha indignação por aqui estar e de tudo o resto: um sentimento de perda irreparável. [...] Diz-me se tens recebido regularmente as minhas cartas, e passado quanto tempo, e se puderes envia-me um maço de aerogramas – são aqui extremamente difíceis de arranjar, e saem, claro, mais baratos. Aqueles que tenho usado são pedidos aqui e acolá aos outros mas não posso prolongar esta situação por mais tempo. [...] (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES M.J.L. & J.L., 2005, p.22-23). Entende-se que a comunicação entre Lobo Antunes e sua esposa, através das cartas, conteria elementos que permitiriam não apenas distinguir características inerentes à 38 personalidade de Lobo Antunes como as informações dos fatos vivenciados durante a sua trajetória como médico a serviço do exército português. Emerson Tin, organizador da obra A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio (2005, p. 27), assinala que, para Gregório de Nazianzeno (329-390 a.C.), as cartas devem conter as seguintes características: “concisão”, para determinar a extensão e os objetivos; “clareza”, para tornar bela e persuasiva a qualquer um que a leia; e “graça”, para eliminar a aridez da distância que a linguagem procura suprir ou a natureza do assunto abordado e produzir com parcimônia um texto que se distancie do rústico, mas que não extrapole o texto de ornatos. Para Caio Júlio Victor, no capítulo XXVII de sua Ars rethorica, citado por Emerson Tin (2005, p.29), as cartas se dividem em dois grupos: familiares e de negócios. À primeira, compete “brevidade” e “clareza”, uma vez que pontos obscuros da carta não poderão ser esclarecidos pelo remetente, a não ser em outra carta. Às cartas de negócios, devem constituirse de seriedade no estilo e por uma escrita concisa. No século XVIII, o alemão Johann Gottlieb Heinecke (1681-1741) publica um livro sobre fundamentos da epistolografia, intitulado Fundamenta, no qual revisita e elabora bibliografia sobre o tema desde a antiguidade clássica até os teóricos latinos. A coletânea Prezado senhor, presada senhora: estudos sobre cartas (2000), organizada por Walnice Nogueira Galvão e Nádia Batella Gotlib traz uma seleção de ensaios sobre a epistolografia. Entre os que se destacam, está o ensaio intitulado “A arte de escrever cartas: para a epistolografia portuguesa no século XVIII”, de Tiago C. P. dos Reis Miranda, cujo fragmento é citado a seguir: No tocante aos vários tipos de cartas, Heinecke procura mostrar que elas formam dois grupos principais: de um lado, as de caráter erudito, subdivididas em filosóficas, matemáticas, filológicas, críticas, teológicas, jurídicas e históricas; de outro, as familiares e as “de cerimônia” (elaboratiores). Nesse caso, as primeiras destinam-se a conversa de indivíduos momentaneamente separados (inter absentes colloquium); já as segundas têm sua origem num propósito mais específico: de 39 acordo com ele, podem ser, por exemplo: congratulatórias, petitórias, comendatícias, de pêsames, ou de agradecimentos [grifo do autor] (HEINECKE, apud. MIRANDA, 2000, p. 53). A busca pela definição de especificidade da tipologia epistolográfica em Lobo Antunes, não se configura, necessariamente, como a temática predominante nesta dissertação. As cartas de Lobo Antunes, em geral, atendem a uma demanda de comunicação que se estabelece na presentificação e na reconfiguração identitária, através da construção e manutenção constante de um ethos discursivo (remetente) para um destinatário específico, motivado pela afetividade e pela subjetividade. Deve-se observar, no entanto, que os tipos e a estrutura dos elementos organizacionais e narrativos presentes no estudo das cartas são evidências de um interesse latente em que essa escrita da interação pessoal, à distância, seduza e motive para a investigação do “entrelaçamento” secular da escrita epistolar e de suas possíveis relações com a História e a ficção. 40 4 A ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA “Porque nossa identidade reside na memória, no relato de nossa biografia.” Rosa Montero Na década de 1970, o mundo passava por grandes transformações em todas as áreas do conhecimento humano. É nesse contexto que o pesquisador e professor francês Philippe Lejeune – que iniciara a divulgação de suas pesquisas com o lançamento da obra L’autobiographie em France (1971), – lança a primeira versão do seu polêmico livro O Pacto Autobiográfico (1975). Nessa obra, o autor buscava demonstrar que os textos autobiográficos representariam e caracterizariam um gênero literário – o gênero autobiográfico –, passível de estudo dentro da área de Ciências Humanas e, sobretudo, nas cadeiras de Estudos Literários. Também demonstrava que os seus suportes tradicionais (cartas e diários – àquela época), seriam integrantes de uma tipologia textual que modalizaria a escrita autobiográfica. Afirmava ainda, em sua pesquisa, que a autobiografia constituiria, tacitamente, uma linguagem repleta de ficcionalidade e literariedade. Não parece difícil imaginar a celeuma e os ataques pelos quais o autor tem passado desde então. Os teóricos da Literatura o acusam, insistentemente, de um deslocamento da área de pesquisa, que invalidaria a sustentabilidade de sua argumentação dentro da área de Estudos Literários. Evidentemente, também não faltam estudiosos e pesquisadores que vejam em O Pacto Autobiográfico uma importante e relevante pesquisa, cuja fundamentação teórica e o corpus de análise conseguem preencher uma lacuna dentro da Literatura. Sobre o aspecto das críticas negativas às suas pesquisas, o próprio Lejeune afirmaria, em entrevista concedida em 2002: 41 Tornei-me historiador aprendendo a trabalhar com arquivos, e sociólogo, aprendendo a fazer pesquisas... Frequentei mais antropólogos e psicólogos que analistas de literatura. O resultado é que meus colegas de área me olham hoje de cara feia e me perguntam onde, para mim, termina a literatura. (LEJEUNE, 2008, p. 09). Posteriormente, Philippe Lejeune revisaria e ampliaria a discussão de alguns conceitos lançados e formulados em sua obra. É preciso salientar que a essência da obra aparece formulada em 1971, e vai sendo construída, revista e ampliada através de ensaios e estudos que dão conta dos avanços de suas pesquisas e discussões com teóricos de diversas áreas; bem como da criação de uma associação para analisar os textos autobiográficos. Essas realizações acabam por estruturar, finalmente, o livro O Pacto Autobiográfico: de Rousseau à Internet (2008), que apresenta a totalidade dos ensaios reunidos em livro e os novos suportes tecnológicos, caracterizadores de uma nova tipologia textual narrativo-discursiva (blogs, email, comunidades virtuais), para as escritas autobiográficas. Leia-se Lejeune: [...] A autobiografia se inscreve no campo do conhecimento histórico (desejo de saber e compreender) e no campo da ação (promessa de oferecer essa verdade aos outros), tanto quanto no campo do direito. Há mentirosos que são estigmatizados. Há malvados e indiscretos que são temidos e punidos. Há verdades que ferem. [...] (LEJEUNE, 2008, p. 104). Na obra citada, a alusão ao nome do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (17121778) ocorre na medida em que ele, ao longo de toda a sua obra e, sobretudo, na obra Confissões (1764), discute incessantemente a inserção do indivíduo – e a sua própria –, no contexto social através da leitura (percepção) e da interação dos seus antepassados e, a de seus contemporâneos, e da escritura do “eu”, do próprio indivíduo em contextos psicológicos, sociais e políticos. [...] O fato de a identidade individual, na escrita como na vida, passar pela narrativa não significa de modo algum que ela seja uma ficção. Ao me colocar por escrito, apenas prolongo aquele trabalho de criação de “identidade narrativa”, como diz Paul Ricoeur, em que consiste qualquer vida. É claro que, ao tentar me ver melhor, 42 continuo me criando, passo a limpo os rascunhos de minha identidade, e esse movimento vai provisoriamente estilizá-los ou simplificá-los. Mas não brinco de me inventar. Ao seguir as vias da narrativa, ao contrário, sou fiel a minha verdade: todos os homens que andam na rua são homens-narrativas, é por isso que conseguem parar em pé. Se a identidade é um imaginário, a autobiografia que corresponde a esse imaginário está ao lado da verdade. [...] (LEJEUNE, 2008, p. 104, §2º). Uma vez apresentada a obra de Lejeune, necessita-se apresentar, de forma clara e breve, a definição de autobiografia: “Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade.” (LEJEUNE, 2008, p. 14). Assim, pretende-se demonstrar, nesta dissertação, que há na obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005), de António Lobo Antunes, uma construção autobiográfica constituída através das cartas que este enviava, quase com a frequência de quem produzisse um diário, à sua esposa Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes. Leia-se Maria de Lourdes Soares: O livro põe-nos diante das fronteiras do literário: (Auto)biografia? Romance epistolar? Memórias do Ultramar? Contribui para o seu caráter híbrido o material nele incluído: algumas fotografias referidas nas cartas (registros do “viver aqui neste papel descripto” do remetente, em flagrantes de campanha, e também da destinatária, mantendo-se sempre esplendorosamente bela durante a gravidez e após o parto) e reproduções da cartilha de alfabetização do MPLA [aerograma de 1.3. 71] (ANTUNES, 2005: 70-71), que agregam à dimensão estética outras dimensões, notadamente as de cunho histórico e sociocultural. (SOARES, 2006, p.44). Observa-se que essas cartas, que relatam acontecimentos vividos e/ou testemunhados pelo autor, irão, ao longo de toda a obra de Lobo Antunes, se desdobrar em elementos narrativos, enredos literários, frases pontuais de seus personagens e de seus narradores. Além de, em casos específicos, passarem a integrar até a memória recriada da própria vida do autor. Philippe Lejeune, assim, amplia a definição de autobiografia: Nessa definição [a definição de autobiografia], entram em jogo elementos pertencentes a quatro categorias diferentes: 1. Forma da linguagem: a) narrativa; b) em prosa. 2. Assunto tratado: vida individual, história de uma personalidade. 3. Situação do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e do narrador. 4. Posição do narrador: a) identidade do narrador e do personagem principal; b) perspectiva retrospectiva da narrativa. (LEJEUNE, 2008, p.14). 43 Não se deseja apresentar, como cristalizados e inalterados, alguns dos elementos estruturantes do conceito de gênero autobiográfico. Muito menos, associar arbitrariamente a autobiografia ao gênero prosa – embora a incidência e a correlação entre prosa e autobiografia sejam muito maiores e mais perceptíveis que a relação entre poesia e autobiografia. Segundo afirma Lejeune (2008, p. 88), “A poesia não está em toda parte, a autobiografia também não. Uma pode ser instrumento da outra. Não há mal nenhum em reconhecer que são duas coisas diferentes e, ao mesmo tempo, admitir-se a possibilidade de que têm muitas interseções.” Antes, pelo contrário, espera-se, através da demonstração da discussão de bases e parâmetros teóricos, dentro da área de Letras Vernáculas, aproximar os mais recentes resultados advindos de ensaios e discussões sobre o tema, da argumentação sobre autobiografia que sustenta a presente pesquisa. Segundo Eurídice Figueiredo, no ensaio “Régine Robin: autoficção, bioficção, ciberficção”, publicado pela “Revista Ipotesi – Revista de Estudos Literários”, volume 11, nº 2 em 2007: Como apontava Philippe Lejeune em seu livro Le pacte autobiographique (1975), a autobiografia se definia pela existência de um pacto autobiográfico, ou seja, quando havia uma identificação entre o nome do autor tanto na capa/página de rosto quanto no interior do livro, ou seja, autor, narrador e personagem seriam um só, a pessoa que narra seria ao mesmo tempo o autobiográfo e autobiografado. Neste caso, o leitor esperava encontrar a narração de acontecimentos “verdadeiros” – embora esta questão da verdade tenha sido sempre muito problemática – ao contrário do romance, gênero ficcional que supõe um outro tipo de pacto. No entanto, o próprio Lejeune já demostrava que, mais importante que esta quase tautologia que ele pressupunha, seria o pacto fantasmático, em que as coisas se mostravam muito mais complexas e misturadas. [grifo da autora] (FIGUEIREDO, 2007, p. 21). Ao se considerar a possibilidade da existência de um “pacto fantasmático” estruturado pela mímesis (imitação/representação da realidade pela ficção) e pela verossimilhança (elaboração verossímil/crível da narração/descrição da realidade), na qual o leitor parece aceitar como possíveis os personagens e as situações elaboradas pela ficção; por que não 44 supor que em acontecimentos históricos, com situações e pessoas reais não se possa elaborar o pacto autobiográfico? O próprio Philippe Lejeune, na edição comemorativa de 25 anos do lançamento de sua obra sobre a autobiografia, afirma que: A autobiografia não pode ser simplesmente uma agradável narrativa de lembranças contadas com talento: ela deve manifestar um sentido, obedecendo às exigências frequentemente contraditórias de fidelidade e coerência. [...] Algo de essencial me guiava nesse trabalho: a recorrência obstinada de um certo tipo de discurso dirigido ao leitor, o que chamei de “pacto autobiográfico”. [...] Não tive, pois, de inventar o pacto autobiográfico, uma vez que ele já existia, só tive de colecioná-lo, batizá-lo e analisá-lo. (LEJEUNE, 2008, p.71-2). O contexto, a cultura, o conhecimento da História e a identificação pela rememoração de um fato podem servir como elementos que favoreceriam o estabelecimento de um pacto de reconhecimento entre o texto e o que ele representa como narrativa e a consideração desses elementos como constantes da memória e da biografia do autor. E sendo assim, considerandose que alguém escreva sobre o que viveu ou testemunhou, também poderia estar escrevendo textos autobiográficos. Na obra O que é uma obra?, o autor Michel Guérin (1995) chama a esse contato – primeiro plano de estabelecimento do pacto – , de “contemplação militante”. Segundo Guérin: É preciso concluir então: a cada um o seu universal [...] Se a obra torna alguns lúcidos e outros cegos – conforme a ordem –, pelo menos pode requerer daqueles aos quais é dirigida uma contemplação militante. Nada manifesta melhor a universalidade ordinal da obra que o seu caráter originariamente mimético e incoativo da contemplação. (GUÉRIN, 1995, p. 47). É possível dizer que, muitas vezes, o público, o leitor, o ouvinte – aqueles que têm contato com a obra – passam por um longo processo até que se estabeleça um pacto, um código – ou uma maneira particular e individual de decodificar a narrativa – e a materialidade que ela representa – livro, escultura, quadros, peças teatrais, espetáculos 45 coreográficos, etc. – e os significados (ou plurissignificados) do que ela evoca como arte, como história ou como memória. Leia-se Lejeune: Existem duas atitudes diametralmente opostas em relação à memória. Sabe-se que ela é uma construção imaginária, ainda que seja pelas escolhas que faz, sem falar de tudo o que inventa. Alguns optam por observar essa construção (fixar seus traços com precisão, refletir sobre sua história, confrontá-la com outras fontes...). Outros decidem continuá-la. Assim freiam, outros aceleram, e todos vislumbram como resultado desse gesto o fantasma da verdade. E, consequentemente, ambos estão convencidos de que outros estão enganados. (LEJEUNE, 2008, p. 106). Mas, note-se que algumas obras são tão impactantes para determinados indivíduos, sob determinados contextos, que o pacto – acordo de “contemplação militante”, o entendimento, a percepção de significados ocorre quase de forma imediata e vai se aprofundando, à medida que o contato se realiza e/ou intensifica. Os textos pós-modernos podem ser híbridos, mistos, em sua estruturação e em sua motivação. Os motivos para tal hibridismo podem residir não apenas em um possível esgotamento da forma tradicional da organização do romance enquanto gênero, mas também na motivação dos efeitos que o autor pretenda provocar nos leitores. Leia-se um fragmento de Charaudeau & Maingueneau a respeito do hibridismo dos textos: As atividades de fala efetivas nas quais são tomados os locutores são nomeadas mais frequentemente gêneros de discurso, e menos frequentemente, gêneros de textos (Rastier, 1989; Bronckart, 1996). Toda classificação rígida é impossível, pois “esses gêneros se adaptam permanentemente à evolução dos relacionamentos sociocomunicativos, e são portadores de múltiplas indexações sociais. Eles são organizados em nebulosas, com fronteiras incertas e instáveis” (Bronckart, 1996: 110). De qualquer maneira, podemos analisá-los e classificá-los somente recorrendo a critérios heterogêneos: estatuto dos participantes, meio, finalidade, lugar e momento, organização textual, em particular. [grifo do autor] (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2009, p. 470-471). Percebe-se que, quando o autor parece falar de uma situação vivida (e ficcionalizada subjetivamente) ou presenciada por ele, os leitores tendam a associar não a um recurso literário e narrativo, mas a uma narrativa verídica, uma história verdadeira acontecida com aquele autor – outro dos fundamentos estruturantes do conceito do gênero autobiográfico. 46 É bem verdade, que nem sempre é um pacto satisfatório para ambos, visto que ora um não se sente compreendido, lido, prestigiado, e, ora outro, não compreende ou não aprecia a maneira, a linguagem (e, implicitamente a combinação de suas funções) o tema, o gênero narrativo-discursivo (mesmo que não se dê conta, assim como, das combinações das funções de linguagem, da estruturação desse processo), escolhidas para contar/narrar a história a que se propôs. Segundo Antoine Compagnon (2010, p. 50), o personagem de ficção “[é] um ser de papel, não uma ‘pessoa’, no sentido psicológico, mas o sujeito da enunciação que não preexiste à sua enunciação, mas se produz com ela aqui e agora.” – criado pelo autor ou narrador e os personagens que ele ficcionaliza para informar, narrar, contar a sua percepção, o seu entendimento de um fato notório e relevante ou inusitado e, aparentemente, particular. O fenômeno da diluição, do esmaecimento entre a fronteira da ficção e da realidade pelo hibridismo do gênero literário, como expressão de um estilo ou de uma construção semiótica, e, consequentemente, a sua cognição, seu entendimento e a sensibilização para a história narrada é abordado na obra Estética da Criação Verbal. Mikhail Bakhtin, autor da obra, afirma: O homem, acostumado a sonhar concretamente consigo mesmo, quando procura imaginar sua imagem externa, zela pela impressão externa que ela suscita [...] o contexto de sua autoconsciência é confundido pelo contexto de sua consciência. Essa minha vida recriada pela imaginação será rica de imagens acabadas e indeléveis de outras pessoas em toda a sua plenitude externa visível, de rostos, de pessoas íntimas, familiares, até mesmo de transeuntes eventuais, com quem cruzei [na] vida, mas não haverá entre elas a imagem externa de mim mesmo. [...] irão corresponder ao meu eu as lembranças – as vivências reconstruídas da felicidade puramente interior, do sofrimento, do arrependimento, dos desejos, das aspirações que penetram o mundo visível dos outros, isto é, irei relembrar minhas diretrizes interiores em determinadas circunstâncias da vida e não da minha imagem exterior. (BAKHTIN, 2006, p. 55). Como se pode entender, a partir do fragmento da citação de Bakhtin, o autor do texto construiu a sua narrativa através de uma visão subjetiva e particular de algo ocorrido que veio a ser ficcionalizado ou não. 47 Ao aproximar a sua experiência pessoal das ações de seus narradores e personagens, Lobo Antunes mostra-se e indica como vê o processo. Finge-se de personagem para espelharse como pessoa. Resolve como personagem, ou expurga a memória de conflitos e sentimentos não resolvidos como indivíduo. Além disso, sabemos que o processo associativo de ideias pode levar o leitor a ligar, diretamente, autor e fato narrado no texto, considerando, parcialmente, aspectos semióticos do hibridismo do gênero narrativo-discursivo que são inerentes à estruturação textual e referentes às instâncias narrativas, a partir da mescla das funções de linguagem, o que permitiria a legitimação da memória e da sua interioridade e dos aspectos autobiográficos e subjetivos presentes ou percebidos como presentes na organização narrativa dos romances. Ângela Beatriz de Carvalho Faria, em sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Letras da UFRJ, em 1999 e intitulada Alice e Penélope na ficção portuguesa contemporânea, ao analisar, em um dos capítulos, o romance Autópsia de um mar de ruínas (1984), de João de Melo, aponta de que maneira o “contexto histórico da Guerra Colonial, ao suscitar um maior enclausuramento do indivíduo, torna-se capaz de produzir uma ‘escrita de si’, na acepção de Foucault, e uma invenção heróica de si mesmo.”. Diz ela: Ao resgatar a efemeridade convertida em memória, o autor coloca-se a si mesmo sob o olhar do outro, chamando-o como testemunha dos fatos e sentimentos. Essa ‘escrita de si’ objetiva ultrapassar a circunstância difícil do exílio e da absurda guerra em África. E, segundo Foucault, em O que é um autor? (1992), essa “escrita constitui uma prova é como que uma pedra de toque: ao trazer à luz os movimentos do pensamento, dissipa a sombra interior onde se tecem as tramas do inimigo.” (FOUCAULT, 1992, p.131). Parece-nos que em Autópsia de um mar em ruínas o furriel enfermeiro (duplo do autor) e o soldado Renato procederam a essa “invenção heróica de si mesmos”, através do espaço da escrita e da recorrência à hypomnimata e à correspondência. Essa escrita, elemento de exercício de autoconhecimento, é um veículo de subjetivação do discurso e, como bem nos ensina Foucault em O que é um autor?, assemelha-se a um caderno pessoal que servia de agenda, aonde o soldado Renato registrava ações de que tinha sido testemunha. Constituía um material passível de ser lido, relido, meditado, visando a entreter o próprio sujeito e os outros. O objetivo da hypomnimata é fazer a recolecção do logos fragmentário, impedindo a dispersão do ocorrido e construindo um “passado”, ao qual se podia sempre regressar e recolher-se. No entanto, os fragmentos dos discursos de guerra do soldado Renato não pertenciam apenas a uma espécie de diário íntimo, nem pretendiam revelar as arcana consciential de uma confissão purificada, mas 48 pressupunham a presença de um destinatário amoroso: “Ninguém melhor do que ti, amor…” (AMR, 176). Embora o sujeito da escrita continuasse a exercitar-se a si próprio, registrando de forma meticulosa e atenta o que se passava no corpo e na alma, buscava o olhar do outro assinalando-o como testemunha da História: “E tu, recordas?”; “E de lá vos mandei escrito de toda a memória que há sobre os dias desta guerra” (AMR, 25); “Lembras-te?” (AMR, 25): […] Escrevo, amor. Reconstruí-vos as senzalas moribundas de quantos se foram embora, para que possamos regressar, viver. Pergunta-lhes por mim, amor. O que fazia. O que inventava por vezes. O que escrevi aqui. (AMR, 238). (FARIA, 1999, passim). A citação um tanto longa justifica-se porque ambos os autores – João de Melo (também mobilizado para a Guerra Colonial em Angola) e Lobo Antunes – assumem o viver “aqui neste papel descripto”. Em ambos, observa-se o “sentido da permanência através do imaginário transformador e da configuração da ‘escrita de si’, que propõe uma ética intelectual: o desprendimento de si próprio como forma de auto-reconstituição incessante, uma arte de viver, uma estética da existência.” (FARIA, 1999, p. 65). Em ambos os autores citados, portanto, memória e exílio entrelaçam-se, como veremos a seguir. No entanto, instauram-se, à proporção que escrevemos, uma dúvida: será que tal “escrita de si”, ao “trazer à luz os movimentos do pensamento”, será capaz de “dissipar a sombra interior onde se tecem as tramas do inimigo” ou acentua-as? Vejamos. 49 5 MEMÓRIA E EXÍLIO EM LOBO AUTUNES O exílio nos compele estranhamente a pensar sobre ele, mas é terrível de experienciar. Ele é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada. E, embora seja verdade que a literatura e a história contêm episódios heroicos, românticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles não são mais do que esforços para superar a dor mutiladora da separação. As realizações do exílio são permanentemente minadas pela perda de algo deixado para trás para sempre. Edward Said António Lobo Antunes estava recém-casado quando foi convocado para servir na Guerra Colonial. Era o ano de 1970. O conflito, fruto da política de expansão ultramarítima colonialista do regime salazarista português, começara no ano de 1961. Ao tornar-se um médico a serviço do exército português e percorrer entre 1971 e 1973 as localidades de Gago Coutinho, Chiúme, Luanda e Marimba, em Angola, Lobo Antunes tornou-se um exilado. Leia-se um fragmento da dissertação de Gumercinda Nascimento Gonda: [...] A experiência da Guerra Colonial lhe oferecerá uma outra leitura do real, cuja origem se localiza no confronto entre uma visão de mundo sólido e estruturado, herança familiar burguesa, e a sua visão particular, a partir de África, de uma realidade complexa e inesperada [...] (GONDA, 1988, p.68). Desterritorializado, social e culturalmente, por ação imposta pelo governo, e por força de seu dever e juramento como médico, paulatina e inexoravelmente, o autor vê-se, numa 50 situação de estranhamento em relação a si mesmo e ao outro. O exílio é sentido. As colônias são um espaço português, mas a visão do mundo modificada e o estranhamento experenciado corroboram a sensação do exílio. A incerteza do retorno à pátria ora faz com que o autor a vislumbre como o ideal a ser reconquistado e pelo qual vale a pena a luta e a guerra, ora o leva a questionamentos cada vez mais ácidos e contundentes. Coexistem, nas cartas e na ficção antuniana, o deslumbre pelas novas paragens e o horror ao que esta nova experiência representa. Leia-se a décima carta enviada por António Lobo Antunes à Maria José, sua esposa: 31.1.71 Minha joia querida Começou a guerra a sério para nós. Uma das companhias, colocada em Ninda, foi atacada por morteiros e metralhadoras e as consequências, embora relativamente pouco importantes para nós [...] dão um bocado que pensar. Os dois aviõezitos da força aérea passaram a tossir por cima de nós e foram bombardear presumíveis acampamentos inimigos. Entretanto, encontraram-se, por aqui, papelada vária anunciando ataques para os dias 3,4 e 5, em que se comemora o aniversário do MPLA. Para mim o problema maior é o das viagens de avião que farei terça ou quarta, pois além de tudo o mais, têm caído aqui chuvadas gigantescas: em cinco minutos fica tudo alagado de charcos e poças imensas, como se chovesse durante horas e horas. E as trovoadas, fantásticas de intensidade, desabam em cima de nós numa cadência de Apocalipse. E ainda passaram. E ainda só passaram 15 dias, o que me faz começar a pensar que estou a pagar um preço muito caro pela possibilidade de voltar a viver aí um dia – que me parece cada vez mais distante. [...] Que vontade eu tenho de me ir embora daqui! [...] Curiosamente, nasceu-me ontem uma poesia, mas consegui afogá-la, sem a escrever, dentro da minha cabeça, e, hoje, já me esqueci dela. (Estou, de resto, vagamente arrependido). Desculpa-me a carta desanimada e desanimadora, mas o cinzento do tempo não me ajuda [...] começo eu a compreender: não voltarei a ser a pessoa que fui, nunca mais. Milhões e milhões de beijos. António. (ANTUNES, A. L. In: ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 35-37). A sua “área de conforto” começa a distanciar-se. A noção de pertencimento persiste, mas, aparentemente, dilui-se, ante o medo do outro, o medo de transformar-se, de mudar demais, de não reconhecer-se mais. A memória de um tempo anterior à guerra serve como apoio e a ela o autor se agarra. No entanto, mesmo esta, parece modificar-se e, assim, os valores, avaliados à distância (tempo e espaço), poderiam ser relativizados. 51 O conhecimento de um modelo de sociedade (não necessariamente uma sociedade ideal, – a portuguesa sob a repressão salazarista –, mas cujas regras e premissas são previamente temidas e reconhecidas), e o confronto entre o estigma do outro e a incerteza da guerra o forçam a reavaliar o conhecimento de si mesmo e o seu papel no mundo. Inicia-se, assim, a “dolorosa aprendizagem da agonia”, como ele mesmo, anos mais tarde iria descrever a experiência do exílio, aproximando a sua biografia da trajetória de um de seus narradores-personagens, ficcionalizada no romance Os Cus de Judas (1979). Em relação à teorização sobre a ideia de exílio construída por Said (2003:89), apresentada na epígrafe deste capítulo, sobressaem as ideias de “fratura”, “estranhamento”, “mutilação”. Expressões duras, que remetem ao fato – a transformação forçada pelo exílio – como um fato, consumado, já ocorrido. O exilado nem sequer é nômade, pois não muda por vontade própria ou em virtude de um acontecimento natural. Parece haver uma relação entre as expressões de Edward Said e o termo “tensão” atribuído por Gumercinda Nascimento Gonda (1988), ao analisar a experiência do exílio in continuum, ou seja, no momento de seu acontecimento e como algo que se repete e ecoa como sentimento/sensação através da ação da memória e como discurso, através da escrita. Leia-se um fragmento da 44ª escrita por Lobo Antunes: 20.3.71 Minha joia querida Mais uns dias sem escrever: passei-os sem dormir, e só agora, depois do almoço deste sábado quentíssimo e enevoado, estou deitado na cama e penso, finalmente dormir. Estive na picada de volta de vários feridos gravíssimos. Às 8 da noite de anteontem recebemos um rádio pedindo um médico com urgência. E como as máquinas voadoras não voam de noite, meti-me num rebenta-minas, com uma escolta e lá fomos. A mata não era tão densa que nos batia na cara, e a tensão constante. Um dos feridos não tinha uma perna já, e a única frase que ele dizia era o meu pai quando souber mata-se, o meu pai quando souber mata-se. Outro estava cego, e outro cheio de estilhaços, um negro, e rezava em voz alta. Nunca mais hei-de esquecer disto. [...] (ANTUNES, A. L. In: ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 95). 52 Visualizar o horror e o sofrimento do exílio e da Guerra Colonial não como um fato consumado, mas como uma experiência contínua, independente do fator tempo, em distanciamento ou em duração, parece destacar, na vida e na literatura, a importância que se estabelece entre a memória e a história. Na obra antuniana essa tríade – ficção, história e memória –, permanece. E parece ganhar novos ecos a cada nova obra, a cada recorrência ou alusão ao tema, à história particular do autor, a cada novo romance que traga ou toque na questão deste período histórico tão dramático para os portugueses. A fim de estruturar o presente estudo, na busca de dotá-lo de organização suficiente para situar os leitores no âmbito do preciso recorte da pesquisa, pretende-se apresentar definições ou perspectivas de abordagem teórica para os conceitos de “exílio” e “autobiografia”. Leia-se um trecho da obra Os males da ausência: ou a literatura no exílio (1998), de Maria José de Queiroz: [...] o léxico do exílio e dos seus males está longe de elucidar o próprio exílio na sua relação com o tempo, com o meio e com as ideias. Estereotipados em clichês – psicopatológicos, sociopolíticos e literários – desgastado pelo uso, e mormente pelo abuso, pois tem servido a todo e nenhum propósito, os seus vocábulos apenas informam, de si por si, sobre a instabilidade das leis e do Direito, sobre a violência política e sobre a ambiguidade dos sentimentos humanos. [...] Sofrido e padecido por exilados, banidos, desterrados, degredados, proscritos, deportados, o mal do exílio tanto se inclui num dos capítulos mais pungentes da história universal [...] como da literatura [...] (QUEIROZ, 1998, p.20). Ao considerar-se que escrever a distância não signifique, necessariamente, escrever no exílio, pois que a palavra “exílio” pressupõe, além da distância, a ação de forças filosóficas, políticas, ideológicas e culturais que fazem com que o (s) indivíduo (s) seja (m) forçado (s), que opte (m) pela permanência em um espaço (exílio geográfico) ou em um estado emocional, psicológico e ideológico (exílio cultural). Leia-se Carlos Ascenso André em sua obra Mal de ausência: o canto do exílio na lírica do humanismo português (1992): 53 Qualquer tentativa de definição conceptual de “exílio” tem por força de confrontarse com um problema essencial [...] longe de ser unívoca, essa palavra é caracterizada por forte índice de polissemia; as realidades que abrange são múltiplas; a ambiguidade é uma de suas marcas fundamentais. [...] De facto, ao longo dos séculos tornou-se corrente envolver na mesma designação o êxodo colectivo e a expatriação individual, a emigração, o refúgio, a deportação ou a proscrição e a partida voluntária, a opção assumida ou a pena imposta. (ANDRÉ, 1992, p.29). A distância é provocada pela partida. O exílio é fruto da permanência forçada ou escolhida. Exilar-se é permanecer de fora. É estar ausente na presença do que incomoda, agride, macula, machuca, faz sofrer, impede o exercício da vontade plena, ou configura uma prática em oposição ideológica a uma força em exercício. A essa experiência a elisão de antigos paradigmas, talvez nem sequer percebidos por quem os possuísse, parece inevitável. Confrontado com a solidão do exílio, Lobo Antunes, começa a construir um processo contínuo de escrita. Inicialmente, dando a conhecer de sua rotina, de suas tarefas, pequenos acontecimentos, lugares pelos quais vai passando. Leia-se um fragmento do poema enviado por Lobo Antunes na sua 258ª carta. Aqui o autor, através do “eu-lírico”, dá a conhecer, poeticamente, sobre o que viu e vivenciou no exílio: 12.3.72 20. (Relatório e contas) Vi morrer muita gente: Albrecht Dürer o comerciante notários escrivães senhoras idosas cochichando ainda Vi os mortos amortalhados de brancura na goma dos lençóis e os caixões que os levavam às costas pelas ruas de Ostende Vi que se desmoronasse devagar, pedra a pedra, apesar do lenço que lhe premia o queixo. Vi lábios de mármore de infanta sorrindo nos seus túmulos. Vi a chuva cair sobre as lágrimas e os gestos vi a escura muralha da noite erguendo-se em torno dos seus corpos. Neste céu de bruma o sol é uma maçã pálida como um rosto, um braço ainda suspenso. Um rio sem margens um dique para o mar que morre devagar no areal aguado. Vi como os navios morrem, como morrem as casas, como morre a memória, o passado e o futuro, como o silêncio morre e como, lentamente, vou morrendo com ele e com a minha vida ao ombro. [...] (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L, 2005, p. 374). 54 No poema, o “eu-lírico” enumera, através da construção em metáforas, passagens, acontecimentos resgatados da experiência do exílio. Esta carta é escrita alguns meses antes do seu retorno definitivo a Portugal, quando do término de sua convocação. O próprio título: “(Relatório e contas)” remete à condição de recapitulação e evocação da memória sensorial, visual, emocional daquilo que o autor / “eu-lírico” testemunhou: “vi”. Apontando para uma identidade em reconstrução, para o ethos discursivo do sujeito por trás do poema. É importante enfatizar que as “Cartas da Guerra” (2005) foram escritas no período do “exílio” ou afastamento temporário da pátria. Há o registro pontual, no calor dos fatos, não só das obrigações do médico português com os soldados, seus “colegas”, mas também com o outro, o colonizado. No momento de sua produção, as cartas relatam apenas acontecimentos recentes, vividos e experimentados. Alguns anos mais tarde, quando Lobo Antunes torna-se um escritor de renome, e pela recorrência temática específica desse período histórico e de sua própria trajetória pessoal é que, da nossa perspectiva atual, com os avanços das pesquisas de gênero é que nos parece adequado utilizar estas cartas como um apoio documental de um período distante, a fim de tentar estabelecer ligações entre a vida real e a História através da memória pessoal do autor – cujos indícios desse período podem ser buscados nas cartas –, e a ficcionalização desses relatos. 5.1 FICÇÃO, MEMÓRIA E HISTÓRIA “A invocação da verdade é um sinal de mentira.” Tzvetan Todorov Entende-se a proximidade entre a História e a Literatura, suas interações e a distinção entre o objeto desta e daquela. Percebe-se, porém, que a tênue linha que as une e as separa, 55 confunde não apenas os leitores, mas, não raro, pesquisadores que tomam esta por aquela e vice-versa. Segundo observou Erich Auerbach: O modo de observar a vida do ser humano e da sociedade humana é fundamentalmente o mesmo, quer se trate de assuntos do passado ou do presente; uma modificação do modo de observar a história, necessariamente, se transfere, sem demora, à observação dos assuntos presentes. Quando se reconhece que as épocas e sociedades não devem ser julgadas segundo uma concepção modelar daquilo que é absolutamente digno de esforço, mas segundo as suas próprias pressuposições; quando se contam entre essas pressuposições não somente as naturais, como o clima e o solo, mas também as espirituais e históricas, da incomparabilidade dos fenômenos históricos e sua mobilidade; [...] mas também na arte, na economia, na cultura material e espiritual, nas profundezas do dia-a-dia e do povo, porque só lá pode ser apreendido o verdadeiramente peculiar, o que é intimamente móvel, o que tem validade universal, tanto num sentido mais concreto, quanto num sentido mais profundo; [...] (AUERBACH, 2009, p. 395). Se a História, a escrita factual, individual, coletiva e ficcional, decorrente da observação das trajetórias das sociedades, está em constante transformação, vê-se na Literatura, escrita subjetiva, resgate de fragmentos históricos, divulgação de sensações e impressões do espírito humano, a forma de contar com arte, a criatividade e a inventividade do espírito humano e a manipulação consciente das linguagens possíveis aos indivíduos. Na obra Guerra colonial: fotobiografia (1998), de Renato Monteiro e Luís Farinha, os autores afirmam: [...] excluído o curto período de 1961 a 1963, a reportagem de guerra não foi cultivada na imprensa escrita ou na televisão portuguesas, uma e outra constrangidas pelas normas censórias do regime, que impunha uma estratégia ideológica fundamentalmente apostada na minimização do esforço e na ocultação, quase sistemática, da guerra perante a opinião pública. (MONTEIRO & FARINHA, 1998, p. 12). A História portuguesa do período da Guerra Colonial em África é marcada pela censura aos meios de comunicação. Após o 25 de abril o país e o mundo precisaram contar com a investigação de documentos, com as obras literárias escritas por aqueles que foram tocados por este período e, sobretudo, com a memória e com o testemunho em depoimentos e em obras de ficção daqueles que estiveram no campo de batalha. 56 Sobre as relações da Literatura portuguesa contemporânea e as suas relações com a História, leia-se um trecho da introdução da obra José Saramago: entre a história e a ficção (1989), da professora e pesquisadora Teresa Cristina Cerdeira da Silva: [...] Sabemos que a história se constitui como uma indagação sobre a verdade, mas que o seu resultado é sempre parcial, comprometido com o sujeito do enunciado, com o tempo do discurso e, por isso mesmo, plural. [...] As fronteiras começam, pois, a apagar-se. Se a literatura caminha pelas sendas ficcionais em busca da verdade, a história só existe enquanto discurso sobre a verdade, aproximando-se, assim, como diz Georges Duby, da arte, de uma arte essencialmente literária. (SILVA, 1989, p. 23-24). Pretende-se demonstrar o hibridismo das formas e funções da escrita epistolar e autobiográfica e como elas são potencializadas por uma situação contextual específica, causada pela distância, pelo exílio e pela situação de exceção da guerra presentes na obra de Lobo Antunes. Agente, autor, narrador, testemunha e personagem entretecem-se na narração, ficcionalizada e na ordenação cronológica e espacial referente a um período histórico e a uma trajetória pessoal. Observa-se, assim, um homem no meio do turbilhão da História, um médico e seu desejo de tornar-se escritor. Segundo Teresa Cristina Cerdeira da Silva: [...] Se a História tende assim para o literário, não é menos evidente que a ficção, de modo geral, sonhe penetrar nos domínios seguros da verdade histórica. É na medida em que consegue criar a ilusão da verdade que o discurso ficcional cria a armadilha à qual o leitor não escapa, já que acrescenta ao fascínio do discurso do belo o terreno firme do “verdadeiro”, que ilusoriamente é capaz de criar. A essa estratégia poderíamos chamar de “pacto de veracidade” [termo de LEPECKI, Maria Lúcia. in: O romance português contemporâneo na busca da história e da historicidade, (1984)] do qual o romancista não se pretende alienar se desejar criar com o leitor o fingimento da verdade. (SILVA, 1989, p. 26 [grifo nosso]). Não se pretende equiparar, de forma reducionista, a escrita epistolar (escrita de cartas) ao mesmo processo de confecção de um romance, por exemplo. Mas entende-se que o “pacto autobiográfico” parece conter em seu cerne o “pacto de veracidade” que nos permite atribuir e associar um ato, um sentimento, um acontecimento, uma história, à trajetória pessoal e particular daquele que a conta, a escreve e/ou dela participa, diz participar, ou a apresenta (no caso de “Cartas da Guerra”, de Lobo Antunes, apresentam por ele), através de 57 textos, documentos, cartas, papéis e fotos que o ligam diretamente ao processo. Leia-se Verônica Prudente Costa, que em um trecho de sua dissertação de mestrado, comenta que: O título escolhido e o subtítulo “Cartas da Guerra” resumem a vivência autobiográfica do autor: um homem isolado de tudo e de todos durante dois anos de Guerra Colonial em Angola que escreve à mulher amada sucessivos aerogramas. Vale a pena observar, principalmente, a par da temática erótico-amorosa, a solidão, o desespero, a desesperança, a tentativa de colocar ordem no caos, através do subterfúgio da escrita (Lobo Antunes iniciava-se em sua carreira de escritor e enviava trechos de um romance que desejava publicar para serem lidos e criticados pela mulher Maria José). Em meio a isso, há alusões a operações de guerra, ao contato com o outro, o africano, ao processo de autoconhecimento, [...] Assim, a “identificação em curso” do sujeito manifesta-se através da escrita. [grifo nosso] (COSTA, 2006, p.17-18). Mas, ao se analisar a escrita de um indivíduo – Lobo Antunes – como partícipe de um processo histórico, traumatizante como o de uma guerra, numa situação-limite de vida e morte, em face de que tudo o que estava sendo escrito leva-se em conta um destinatário diferente do próprio autor (a escrita diarística tem como destinatário primário o próprio autor do diário que escreve de si para si, e ainda assim, pode se inventar, reinventar-se), no caso, sua esposa, Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes de quem viria a se separar em 1976 e que faleceria em 1999. Leia-se Lejeune: [...] A carta tem três aspectos: [a] a partir do momento em que é postada, torna-se fisicamente propriedade do destinatário e quando este morre, de seus herdeiros; mas o exercício de seu direito de propriedade é limitado estritamente pelos dois aspectos seguintes: [b] mesmo postada, a carta continua sendo, intelectual e moralmente, propriedade de seu autor – e, depois de sua morte, a publicação (conforme a lei de 1957 sobre a propriedade intelectual); mas o exercício desse direito poderá ser limitado, de facto, se o autor não estiver mais com a carta (salvo na caso de uma cópia ter sido conservada) e, de jure, pelo terceiro aspecto: [c] na medida em que a carta desvela a vida privada, toda pessoa envolvida (o autor, o destinatário ou terceiros) pode se opor à divulgação e à publicação (código civil, artigo nove). (LEJEUNE, 2008, p. 253). Acredita-se que essas cartas possam dar conta de uma determinada forma de escrita epistolar e autobiográfica, e que sirvam ao propósito de conter informações sobre a trajetória do autor em sua passagem pelo exército, durante a Guerra Colonial em África, especificamente no Leste de Angola. 58 Ao considerar a importância da Literatura portuguesa que aborda a questão da guerra, o escritor João de Melo – que, assim como Lobo Antunes, serviu ao exército português –, afirmou no prefácio da segunda edição da obra Os anos da guerra (1961-1975):os portugueses em África. Crônica, ficção e história (1998): É talvez o único domínio da sociedade portuguesa a desaceitar o tabu de um passado que forjou e modificou para a vida uma nova geração de homens. Actualmente, ela é, com efeito, um dos únicos meios de expressão que não faz silêncio nem tábua rasa sobre o enorme logro do nosso passado colonial. Daí que ela seja – essa literatura – muito discriminada entre nós. (MELO, 1998, p.30). O próprio João Melo, que parece querer confrontar a sociedade portuguesa com a necessidade de reconhecer o trauma da Guerra Colonial, afirma na introdução da obra Guerra Colonial: fotobiografia (2003), “Uma imagem vale por milhões de palavras”, de Renato Monteiro e Luís Farinha: De uma forma ou de outra, e por muito que alguns queiram recusá-lo, foram de todos os portugueses os dias e os longos anos da Guerra Colonial – desde 1961 até ao fim de um novo ciclo de nossa história recente: queda da ditadura, solução das chamadas lutas de libertação nacional, descolonização dos territórios. À parte um pequeno reduto da opinião que ainda hoje resiste à simples ideia dessas independências, parece notório à inteligência portuguesa que um tal epílogo (tardio, feito ao arrepio das grandes pressões endógenas e exógenas) era há muito inevitável. O caso é que à luz do espírito deste século, durante o qual o mundo foi mirando num quase permanente desconcerto da condição humana, a conjugação do verbo “descolonizar” entrara definitivamente na gramática dos tempos modernos. Daí que o colonialismo português persistisse para além da sua própria medida: anacrónico, isolado na sua obstinação, submetido apenas à lógica falida da última ditadura ocidental. Outro é já hoje o tempo, assim como a noção preciosa de que dele vamos tendo nós. Outras também as opções políticas e institucionais deste pequeno país europeu que tem agora o destino da Democracia, mas cuja cultura histórica tarda por vezes a reencontrar o murmúrio, a raiz, a memória, e a sabedoria da própria História. Tempo, pois, de uma espécie de movimento invisível que se processa entre a consciência reprimida e a ignorância de duas gerações: a do vivido na África e aquela que já hoje reclama sua justa e total “inocência” africana, opondo-a aos valores que julga serem os rumos próximos e futuros da sociedade portuguesa. Entre uma e outra dessas atitudes, sobra talvez a não pequena virtude de quantos se dispõem a provar que África é ainda um assunto profundamente nosso. [...] (MELO apud. MONTEIRO & FARINHA, 2003, p. 08). João Melo indica que haja quase uma obrigatoriedade, a princípio percebida pela arte, notadamente, pela literatura, de discutir os descaminhos colonialistas portugueses e os massacres ocorridos em África. 59 O título da introdução da obra: “Uma imagem vale por milhões de palavras”, além de subverter hiperbolicamente o dito popular “uma imagem vale mais do que mil palavras”, para iniciar o diálogo literário e imagético com a fotobiografia de Renato Monteiro e Luís Farinha (2003), naturalmente alude aos milhões de mortos da Guerra Colonial em África. A sua capacidade de dialogar, como autor, com a ficcionalização de fatos históricos se estrutura também pela memória de fatos históricos e esta será corroborada pela existência de tais cartas. Leia-se Foucault: O documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesma, e de pleno direito, memória; a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e elaboração à massa documental de que ela não se separa. Digamos, para resumir, que a história, em sua forma tradicional, se dispunha a "memorizar" os monumentos do passado, transformá-los em documentos e fazer falarem estes rastros que, por si mesmos, raramente são verbais, ou que dizem em silêncio coisa diversa do que dizem; em nossos dias, a história é o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, interrelacionados, organizados em conjuntos. (FOUCAULT, 2008, p. 08). Como não supor, portanto, que haja deliberada intenção de tornar em Literatura algo que tenha sido uma experiência individual real? Como não supor que a verdade e a realidade se transformem em um devir, um pacto implícito formulado entre a figura do autor através de seus personagens e narradores e os leitores se o autor esteve no cerne dos acontecimentos, fez parte deste momento da História? Nas “Cartas da Guerra”, Lobo Antunes, nitidamente, encontra-se no cenário que virá a ser retratado em alguns de seus romances. Suas cartas, na perspectiva do tempo em que foram escritas, são depoimentos, registro de atividades, declarações hiperbólicas de amor. Hoje, sob nosso ponto de vista, podem ser lidas como documento. Memória escrita palpável de elementos que permeiam a História de Portugal, da trajetória pessoal do autor e a tessitura narrativa de alguns de seus romances. 60 Pode-se discutir, até mesmo, os elementos narrativos de representação ficcional do autor pelos conteúdos que já, a esta altura, estão presentes nas cartas e que não são ficção. Leia-se um trecho da 7ª carta enviada por Lobo Antunes: 27.1.1971 Minha namorada querida Aqui cheguei finalmente a Gago Coutinho, depois de uma viagem apocalíptica, como nunca pensei ter de fazer em qualquer época da minha vida. [...] Isto é o fim do mundo: pântanos e areia. A pior zona de guerra de Angola: 126 baixas no batalhão que rendemos, embora apenas com dois mortos, mas com amputações várias. Minas por todo o lado. [...] (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L & J.L., 2005, p. 27;29). Ou ainda, a percepção do outro, do colonizado. A quebra do estigma através da real percepção de como aquele que é tido como exótico (o que se vê apenas do ponto de vista externo, exterior). Leia-se um fragmento da 106ª carta de Lobo Antunes à esposa: 2.6.71 Minha alma querida Aqui estou, nervoso, à tua espera: é dia de cartas, de notícias, de ternas palavras de amor. [...] E recomeço a passear na areia de mãos nos bolsos. [...] Tudo aqui parece inalterável: nenhuma nuvem, e que um tempo desagradavelmente ventoso. Talvez por estarmos num alto, numa espécie de pequeno morro. Ao longe vê-se a imensa chana do Quango. Quango-Cubango. Pegado ao arame um quimbo de 70 habitantes. O soba, que fala bastante bem português, é um nacionalista feroz. [...] Quase todos os habitantes têm alcunhas postas pela tropa. (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L & J.L., 2005, p. 183-184). Enquanto espera pelas cartas da esposa, Lobo Antunes relata que a relação entre os soldados e os habitantes dos lugarejos pelos quais a tropa vai passando em Angola se dá, ora pelo confronto, mutilação e morte de rebeldes e soldados, ora pela convivência de subserviência dos angolanos para com os portugueses. O autor ainda revela na carta que os africanos são apelidados conforme suas compleições físicas e pela maneira como suas características e personalidade são notadas pelos soldados e oficiais da tropa. Ao escrever sobre isso, vale-se, inclusive, de palavras e 61 expressões na língua dos nativos, a fim de demonstrar, possivelmente, o “domínio” de algumas dessas expressões e a sua percepção do exotismo das palavras e do povo angolano. Se o equilíbrio entre a verossimilhança da realidade e a verdade já se tornara complexo e fragilizado pela necessidade humana de contar e pela necessidade literária de narrar, imagine-se o embate entre esses paradigmas quando o próprio autor sente necessidade ou pretenda narrar algo que ele mesmo tenha vivenciado. Leia-se um fragmento da obra História e Memória (1990), de Jacques Le Goff: [...] Que relações tem a história com o tempo, com a duração, tanto com o tempo "natural' e cíclico do clima e das estações quanto com o tempo vivido e naturalmente registrado dos indivíduos e das sociedades? Por um lado, para domesticar o tempo natural, as diversas sociedades e culturas inventaram um instrumento fundamental, que é também um dado essencial da história: o calendário; por outro, hoje os historiadores se interessam cada vez mais pelas relações entre história e memória. [...] A dialética da história parece resumir-se numa oposição – ou num diálogo – passado/presente (e/ou presente/passado). Em geral, esta oposição não é neutra mas subentende, ou exprime, um sistema de atribuição de valores, como por exemplo nos pares antigo/moderno, progresso/reação. Da Antiguidade ao século XVIII desenvolveu-se, ao redor do conceito de decadência, uma visão pessimista da história, que voltou a apresentar-se em algumas ideologias da história no século XX. Já com o Iluminismo afirmou-se uma visão otimista da história a partir da ideia de progresso, que agora conhece, na segunda metade do século XX, uma crise. Tem, pois, a história um sentido? E existe um sentido da história? [...] A história é incapaz de prever e de predizer o futuro. Então como se coloca ela em relação a uma nova "ciência", a futurologia? Na realidade, a história deixa de ser científica quando se trata do início e do fim da história do mundo e da humanidade. Quanto à origem, ela tende ao mito: a idade de ouro, as épocas míticas ou, sob aparência científica, a recente teoria do big bang. Quanto ao final, ela cede o lugar à religião e, em particular, às religiões de salvação que construíram um "saber dos fins últimos" – a escatologia –, ou às utopias do progresso, sendo a principal o marxismo, que justapõe uma ideologia do sentido e do fim da história (o comunismo, a sociedade sem classes, o internacionalismo). Todavia, no nível da práxis dos historiadores, vem sendo desenvolvida uma crítica do conceito de origens e a noção de gênese tende a substituir a ideia de origem. [...] Em contato com outras ciências sociais, o historiador tende hoje a distinguir diferentes durações históricas. Existe um renascer do interesse pelo evento, embora seduza mais a perspectiva da longa duração. Esta conduziu alguns historiadores, tanto através do uso da noção de estrutura quanto mediante o diálogo com a antropologia, a elaborar a hipótese da existência de uma história "quase imóvel". Mas pode existir uma história imóvel? E que relações tem a história com o estruturalismo (ou os estruturalismos)? E não existirá também um movimento mais amplo de "recusa da história"? [...] A ideia da história como história do homem foi substituída pela ideia da história como história dos homens em sociedade. Mas será que existe, se é que pode existir, somente uma história do homem? Já se desenvolveu uma história do clima – não se deveria escrever também uma história da natureza? [...] (LE GOFF, 1990, p.07-09). 62 Como não supor que haja deliberada intenção de tornar em Literatura algo que tenha sido uma experiência individual real, mas não completamente verdadeira? Como não supor que a verdade e a realidade se transformem em um devir, um sentimento de transformação concluído somente através da obra literária, de um pacto implícito formulado entre a figura do autor através de seus personagens e narradores e os leitores? Estes, os leitores, pela suposição de se encontrarem diante de um texto documental, por tratar-se de uma situação verossímil do ponto de vista do autor, da história, da percepção e da aceitação das faculdades de sua memória, mostram-se suscetíveis de entender as cartas como elementos autobiográficos, oriundos de uma vivência real, particular do fato histórico. Nas palavras de Norberto do Vale Cardoso (2004: 11), “[...] talvez aí resida o papel da cultura, e, nela, da literatura: realizar uma autognose, ou seja, preservar a memória, contar a guerra, contar o que é indizível.”. Assim, Lobo Antunes assume, à sua maneira, de forma absolutamente individual, um status particular, na literatura, de contar (descontruindo a narrativa convencional desde o fim do século XX e no limiar do século XXI), através do que se reconhece ser em parte verdade e em parte ficção, mas tornado real pelo viés da Literatura. A fim de analisar a postura intra e extratextual, verificada nos romances iniciais de Lobo Antunes e associá-la à questão autobiográfica na correlação entre história e literatura, verdade e ficção, cita-se aqui o texto de Michel Montaigne “A condição humana”, da obra Ensaios de Montaigne (1930, cap. II), citado e apresentado, em sua estrutura discursiva, por Erich Auerbach em sua obra Mimesis (2009): 1º) Descrevo uma vida baixa e sem brilho; mas isto não importa; também na mais baixa das vidas está o todo da humanidade. 2º) Não descrevo, como os outros, uma aptidão especializada ou uma aptidão especial que eu tenha adquirido [...] 3º) Quando me lançam ao rosto o fato de eu falar demasiado a respeito de mim mesmo, respondo com a refutação: vós nem pensais em vós mesmos. 4º) Não é acintoso o querer tornar de um conhecimento público e geral um caso individual tão limitado?[...] 5º) a) ninguém jamais foi tão perito no seu assunto como eu no meu; b) ninguém jamais aprofundou tanto o seu assunto nem o perseguiu tanto em todas as suas articulações e ramificações; ninguém jamais levou a cabo tão exata e completamente a sua intenção. 6º) Para conseguir isto, nada preciso além da sinceridade sem rebuços, e esta não me falta. As convenções tolhem-me um pouco; 63 bem que gostaria de ir um pouco além, mas desde que estou envelhecendo, permitome neste sentido alguma liberdade que é mais perdoável a um homem velho. 7º) A mim não pode acontecer o que acontece a mais de um especialista: que o homem e a obra não estejam em concordância; que se admire a obra, mas que se considere o autor, no trato, bastante medíocre, ou vice-versa. [...] Meu livro e eu somos uma coisa em comum; quem falar de um, falará simultaneamente do outro. (MONTAIGNE apud. AUERBACH, 2009, p.249-276). Assim, de uma escrita epistolar direta que resume acontecimentos passados, Lobo Antunes vai transitar para a exacerbação do amor e da saudade sentidos até a construção de uma escrita que se aproxime de um projeto de possíveis e futuras obras. Um tipo de escrita dolorosa para quem lê, um amor vivido à distância, concretizando, mas, parcialmente interrompido pelas circunstâncias. 5.2 AS “CARTAS DA GUERRA” [...] As palavras trazidas pelo autor são um conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que um leitor não pode deixar passar em silêncio, nem em barulho. [...] Interpretar um texto significa explicar por que essas palavras podem fazer várias coisas (e não outras) através do modo pelo qual são interpretadas. [...] Umberto Eco “Cada um vive quase somente para si próprio e para as cartas que recebe, preocupado com a própria sobrevivência e mais nada.” António Lobo Antunes 64 A obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005) é a reunião de cartas escritas por António Lobo Antunes quando este contava 28 anos. Foram escritas durante dois anos, no início da década de 1970, com três breves interrupções. O título da obra batizaria/nomearia o primeiro romance publicado por Lobo Antunes, porém, o título inicialmente atribuído, Memória de Elefante, é recusado pela editora. As “Cartas da Guerra” (2005), escritas por António Lobo Antunes, perfazem, aproximadamente, 300 cartas; boa parte delas, aerogramas (correspondências próprias da comunicação escrita entre militares e seus familiares, em situação de serviço, e que não precisavam de selo para seu envio). Muitas dessas correspondências portavam fotografias, descrições dos lugares pelos quais o autor/médico/militar vai passando e situações narradas. Há o envio de alguns poemas e documentos, mas quase todas, demonstram uma exacerbação do sentimento. Planos, projetos, calendário e itinerário da tropa, aludidos nessas correspondências, remetem ao contexto histórico. As correspondências e as fotografias e impressos da guerra enviadas por Lobo Antunes perfazem um total de 29 fotos assim organizadas: 13 fotos enviadas por Lobo Antunes sendo assim distribuídas 02 (p. 62-63); 01 (p. 231); 01 (p.297); 03 (p.372-373); 01 (p.395); 05 (p.400-402). Essas fotos, em geral, reproduzem o ambiente e os locais pelos quais o autor ia passando em sua campanha militar, e, colegas e companheiros mais próximos em ações militares cotidianas ou em momentos de descontração. Das fotografias restantes, há três de Lobo Antunes e da esposa Maria José Xavier da Fonseca e Costa. Duas são do casamento (capa da obra e p.165) e a da folha de rosto é uma reprodução de um momento em sociedade do casal. 65 O teor das correspondências da esposa para Lobo Antunes não foi publicado, ou seja, não se tem, como objeto de pesquisa, ou de leitura, simplesmente, as respostas dela ao marido militar, no entanto, as fotos enviadas por ela perfazem um total de 13 fotografias e servem para informar sobre o nascimento da filha e da vida, em compasso de espera, da esposa recém-casada. Em uma sequência de cartas, Lobo Antunes reclama, através de cartas com saudações formais, ao invés das hiperbólicas, metafóricas e apaixonadas habituais, a ausência de resposta às suas missivas. As cartas trazem, em lugar da frequente saudação “minha joia querida” (e suas variações), a expressão “Dona Maria José”. Há também duas cartas dirigidas à filha, recém-nascida, Maria José. As fotos enviadas a Lobo Antunes estão assim distribuídas: 02 (p.59-60); 01 (p.89); 02 (p.229 – o nascimento da filha Maria José); 02 (p.279); 02 (p.285), 02 (p.339); 01 (p.419 – essa foi tirada pelo próprio Lobo Antunes e lhe fora enviada, quando de seu último regresso ao campo de guerra). Há, também, a reprodução fac-similar de cartas e documentos. A saber: 02 do MPLA (Movimento pela Libertação de Angola – força revolucionária em oposição ao exército português – p.70-71). E dos aerogramas: 02 (p.33-34); 01 (p.81); 01 (p.87); 01 (p.133); 02 (p.200-201); 02 (p. 376-377); 01 (p. 396); 01 (p.405). E duas cartas são reproduzidas: 01 (p.63) e 01 (p.166). O autor também dá conhecimento à esposa de um início de produção literária, através do envio de poemas, da “produção de um romance”, do relato de algumas obras lidas ou lembradas. Entende-se que Lobo Antunes, em diversas cartas, optasse por omitir de sua esposa a descrição de passagens trágicas por ele testemunhadas. Naturalmente para que a esposa não se preocupasse ainda mais com sua segurança e por que ele estava consciente da 66 censura imposta pelo regime oficial e que este veiculava uma mensagem falsa dos conflitos ocorridos, minimizando-os. Os poemas são assim distribuídos: 01 (p. 214); 01 (p. 243-244 – em francês); (01 (p. 305); 01 (p.349); 01 (355-356); 01 (p.364-365); 01 (p. 374-375; 378). Sobre a produção do romance, o autor escreve, dispersamente, ao longo de dezenas de cartas, informações sobre a motivação, as características que o romance terá, instruções para destruição dos originais, número de páginas e possíveis títulos. Observa-se, no entanto, que o autor não chega a publicar o romance com o título ou com as características que descreve nas cartas. Não se trata, especificamente, de estabelecer um escore quantitativo do conteúdo das “Cartas da Guerra” (2005), mas, em se tratando da proposta dessa dissertação, de abordar a epistolografia e a autobiografia na obra antuniana. Essa análise do material epistolar foi possibilitada, em grande parte, pelo trabalho cuidadoso e, acredita-se, devotado, das organizadoras, filhas do casal, ao selecionar as cartas e os documentos que compõem a antologia de textos. Leia-se um trecho da apresentação da coletânea de cartas escrito por Maria José e Joana Lobo Antunes: As cartas que aqui se leem são transcrições integrais dos originais, apenas com a correção de gralhas e actualização ortográfica. Decidimos eliminar alguns nomes, usando letras que não as iniciais, para não ferir susceptibilidades das pessoas referidas e de suas famílias. [...] Julgamos que o interesse destas cartas vai muito além da identificação de todas as citações, poemas, livros e autores de que nelas se fala, e damos espaço ao leitor para as descobrir se assim entender. [...] Este é o livro de amor dos nossos pais, de onde nascemos e do qual nos orgulhamos. Nascemos de duas pessoas invulgares em tudo, que em parte vos damos a conhecer nestas cartas. O resto é nosso. [...] Maria José Lobo Antunes Joana Lobo Antunes Lisboa, Março de 2005 (ANTUNES, M. J. L. & Joana L., 2005, p. 12-13) Observa-se que até mesmo a organização e a seleção editorial para a publicação das “Cartas da Guerra”, ao longo das 431 páginas da obra, produz um espaço propício para o 67 pacto de que o que não apenas o teor textual autobiográfico das cartas, – “este é o livro de amor de nossos pais” –, mas o material (fotos e documentos) que vai compor e ilustrar sua leitura, além, naturalmente, das claras informações sobre as datas de cada carta (quase um “diário de guerra”, em alguns períodos) e a indicação geográfica presente nas cartas contribuirá para atestar a sua veracidade. A seguir, será reproduzida uma carta bastante particular em estrutura e conteúdo. Em consideração à observação de teor profundamente sentimental das filhas de Lobo Antunes e Maria José de que as “Cartas da Guerra” compõem um “Livro de Amor”, e por considerar igualmente importante para as considerações críticas sobre a escrita epistolar e autobiográfica antuniana. Leia-se a 70ª carta: 17.4.71 Meu amor querido Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miosótis minha estrela aldebaran minha amante minha Via Láctea minha filha minha mãe minha esposa minha margarida meu gerânio minha princesa aristocrática minha preta minha branca minha chinezinha minha Paulina Bonaparte minha história de fadas minha Ariana minha heroína de Racine minha ternura meu gosto de luar meu Paris minha fita de cor meu vício secreto minha torre de andorinhas três horas manhã minha melancolia minha polpa de fruto meu diamante meu sol meu copo de água minhas Escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha ferida aberta minha extensão polar minha floresta meu fogo minha única alegria minha América e meu Brasil minha vela acesa minha candeia minha casa meu lugar habitável minha mesa posta minha toalha de linho minha cobra minha figura de andor meu anjo de Boticelli meu mar meu feriado meu domingo de Ramos meu setembro de vindimas meu moinho no monte meu vento norte meu sábado à noite meu diário minha história de quadradinhos meu recife de Manuel Bandeira minha Passargada meu templo grego minha colina meu verso de Hölderlin meu gerânio meus olhos grandes de noite minha linda boca macia dupla como uma concha fechada meus seios suaves e carnudos meu enxuto ventre liso minhas pernas nervosas minhas unhas polidas meu longo pescoço vivo e ágil minhas palavras segredadas meu vaso etrusco minha sala de castelo espelhada meu jardim minha excitação de risos minha doce forquilha de coxas minha eterna adolescente minha pedra brunida meu pássaro no mais alto ramo da tarde meu voo de asas minha ânfora meu pão de ló minha estrada minha praia de Agosto minha luz caiada meu muro meu soluço de fonte meu lago minha Penélope meu jovem rio selvagem meu crepúsculo minha aurora entre ruínas minha Grécia minha maré cheia minha muralha contra as ondas meu véu de noiva minha cintura meu pequenino queixo zangado minha transparência de tules minha taça de oiro minha Ofélia meu lírio meu perfume de terra meu corpo gémeo meu navio de partir minha cidade meus dentes ferozmente brancos minhas mãos sombrias minha torre de Belém meu Nilo meu Ganges meu templo hindu minha areia entre os dedos minha aurora minha arpa meu arbusto de sons meu país minha ilha minha porta para o mar meu mangerico ,eu cravo de papel minha Mandragoa minha morte de amor minha Ana Karénine minha lâmpada de aladino minha mulher (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 131-132). 68 Nesta carta, composta por 406 palavras escritas sem um único ponto ou vírgula, reside a ideia de possuir e de ser possuído não apenas pelo amor, mas de possuir o ser que sente amor. É uma carta estruturada através de metáforas que dimensionam, (hiperbolicamente), do mais íntimo e cotidiano da vida do casal, até a comparação com imagens, locais, personagens, plantas, animais, minerais, sentimentos formas e sensações, passado e presente. Tende a apresentar a ideia de completude. Como se na ausência do ser amado, o amor completasse aquele que o sente e atingisse o ápice de seus significados possíveis. Em correspondência enviada a 27.2.71 – a 27ª carta – Lobo Antunes escreve: “Li numa revista [...] que a Editora Inova [...] publicou as poesias completas de Ângelo de Lima que muito gostaria de ter e ler por se tratar de uma das minhas preferências desde sempre.”. Segundo as organizadoras da obra, Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes, o título da obra D’este viver aqui neste papel descripto: [...] é a citação de uma carta escrita pelo poeta Ângelo de Lima (1872- 1921) ao Prof. Miguel Bombarda. Esta referência encontra-se na página 237 na 143ª carta escrita por Lobo Antunes: 12.7.71 Minha querida joia Mais uma longa e triste segunda-feira, “deste viver aqui neste papel descripto”, como o Ângelo de Lima diz numa carta ao dr. Miguel Bombarda. Deste viver aqui neste papel descripto. [...] Entretanto a história parece definitivamente empanada. Raios a partam – mas que posso eu fazer? Que bonito é “deste viver aqui neste papel descripto”! (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 237). O poeta Ângelo Lima, que passou vários anos de sua vida internado em hospitais psiquiátricos, deu origem a um estudo clínico efetuado por Lobo Antunes. O estudo sobre o poeta deu origem à obra escrita em parceria com Maria Inês Dias (Ângelo de Lima: Loucura e criação artística: Ângelo de Lima, poeta de Orpheu) em 1974. A publicação ganhou o Prêmio Sandoz de Psiquiatria neste mesmo ano. 69 Curiosamente, o nome do Prof. Miguel Bombarda daria nome ao Hospital no qual Lobo Antunes viria a trabalhar em 1973. Leia-se Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes no prefácio da obra: As cartas deste livro foram escritas por um homem de 28 anos na privacidade de sua relação com a mulher, isolado de tudo e de todos durante dois anos de Guerra Colonial em Angola, sem pensar que algum dia viriam a ser lidas por mais alguém. Não vamos aqui descrever o que são estas cartas: cada pessoa irá lê-las de forma diferente, seguramente distinta da nossa. Mas qualquer que seja a abordagem, literária, biográfica, documento de guerra ou história de amor, sabemos que é extraordinária em todos os aspectos. [...] A escolha de as publicar não é nossa: é a vontade expressa de nossa Mãe, destinatária e conservadora deste espólio até há pouco tempo. Sempre nos disse que as poderíamos ler e publicar depois de sua morte, e esse momento chegou agora. (ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.12). As cartas escritas iniciam a correspondência entre o autor e sua esposa em 07.01.1971 e encerram-se em 30.01.1973. Seu conteúdo relata a saudade de António Lobo Antunes, seu remetente, suas leituras (romances e poemas), algumas influências culturais, o nascimento da filha (Maria José), e os lugares pelos quais vai passando, na geografia do exílio: Ilha da Madeira, Luanda, Gago Coutinho, Chiúme, Ninda (as Terras do fim do mundo) e Marimba, estes últimos em Angola. Há, também, espaço para o registro de alguns poemas esparsos (poemas autobiográficos de exacerbação amorosa e crítica da condição de solidão de exilado) e o esboço da escrita do que seria um “romance”. Inicialmente, vão sendo enviadas páginas que vão compondo a primeira dezena de páginas, num arremedo de capítulo, e com recomendações expressas para destruição das páginas em caso de desistência do desejo de uma possível publicação. Sobre o possível “romance” que começa a produzir, já na 19ª carta (11.2.71) o autor afirma: “A história cá se vai fazendo com o pouco tempo que para ela tenho, com facilidade e sem muletas [...]” (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 50). Na 52ª carta, enviada em 27.3.71, Lobo Antunes escreve: 70 A história cá vai andando rapidamente. Será este o 1º livro a sair. Tudo o resto deve ser destruído. Eu próprio rasgarei o que trouxe para aqui quando acabar esta epopeia, e as historietas miseráveis que por aí estão devem seguir imediatamente para o lixo. Se eu as encontrar quando aí for, FICO MUITO MUITO MUITO ZANGADO. Portanto, e desde já, PEÇO-TE QUE AS DESTRUAS O MAIS RAPIDAMENTE POSSÍVEL. Só quero que guardes os dois sonetos que sabes quais são e que pode ser deem alguma coisa se a poesia um dia me visitar outra vez. TUDO O RESTO, PEÇO-TE QUE O DESTRUAS DESDE JÁ. É MUITO IMPORTANTE PARA MIM QUE O FAÇAS!!!!! Esta história está de tal maneira boa que o resto deixou de ter valor. Faz o que te peço, sim? É que ao lado deste romance ter essas merdas é uma vergonha para mim. Dá-me a tua palavra de honra que o fizeste. [grifos do autor] (ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.108). O romance, de cunho autobiográfico, chega à página de número 60. É criada a partir do medo de voar do autor, de uma cidade a outra, em aviões claudicantes ou do pouso em condições, quase sempre, precárias seria intitulado, segundo a 57ª carta (3.4.71) como “O Voo Nupcial de J. Carlos Gomes.” (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.115). A 25.6.71, na 127ª carta, o autor decide-se por um título para o que poderia ter sido o seu primeiro romance publicado: “O Voo”, com o subtítulo de “Crónica da Morte Portuguesa”. Nesta carta também são definidos os nomes da primeira filha, Maria José Lobo Antunes, e a data do batizado, 08 de agosto, na cidade de Benfica. (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.210). Ao que parece, a esposa cumpriu à risca as determinações do marido, pois não consta em sua bibliografia nenhum romance com o título “O Voo: Crónica da Morte Portuguesa”, Segundo o próprio autor, na 51ª carta, “uma coisa sarcasticamente trágica, um retrato natural da nossa amarga condição de portugueses”. (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.106). Na 116ª carta, numa clara referência à escrita epistolar (que vai registar impressões e acontecimentos extraordinários e cotidianos), utilizada por nomes como Flaubert e Baudelaire, entre outros, (14.6.71) afirma: “Estou a fazê-la em blocos de cartas como o Gide (André), e não me tenho dado mal com o processo.” (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.196). 71 Sobre o processo de criação de um possível romance e sobre suas prováveis características, idealizado ainda nos campo de guerra, Lobo Antunes escreve na 91ª carta: 15.5.71 Meu querido amor No fim deste mês ou nos primeiros dias do próximo espero dar-te, portanto, o primeiro caderno da história, para que me digas a tua opinião severa – o mais severa possível – a seu respeito. Eu queria que fosse uma espécie de História Natural dos Portugueses, corrosiva, sarcástica, chamativa, caricatural, cruel e terrível, uma crónica da morte lisboeta. Tenho 28 anos e não me posso dar ao luxo de continuar a escrever porcarias [...]. [grifo nosso] (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 161). O autor ainda considera outra possibilidade para um romance, expressa na 138ª carta, enviada em 7.7.71: [...] o projecto era ambicioso: uma feroz e patética descrição de nós todos, portugueses, [...] De Lisboa. E do envelhecimento, sobretudo do envelhecimento, mecanismo que me horroriza e apaixona. Das relações de um velho casal consumido pelo ódio recíproco. E da impossibilidade do amor. Da final inutilidade de tudo. De um mundo morto. Da desesperada ternura. Durante algum tempo pensei em chamar a isto Saída para o Mar. [...] [grifo nosso] (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 230). Leia-se uma reflexão crítica às Cartas de Lobo Antunes feita por Maria de Lourdes Soares, na Revista SOLETRAS da UERJ em 2006: Os quase trezentos aerogramas do médico alferes à amada Maria José (dois dos quais dedicados à filha recém-nascida, batizada, por decisão de Lobo Antunes, com o nome da esposa) constituem “uma espécie de diário do amor ausente [aerograma de 12.11.71]” (ANTUNES, 2005: 294), um amor suspenso, em pleno vigor da juventude, adiado por contingências históricas, por uma guerra absurda e inútil como soem ser todas as guerras. Ele parte deixando para trás um casamento recéminiciado, a esposa grávida, impedido de acompanhar a gestação, o nascimento e os primeiros meses de vida da filha. “Porque não nos deixam ser felizes? Porque nos tiram assim alguns dos melhores anos da nossa vida? [aerograma de 15.6.71]” (ANTUNES, 2005: 198 apud. SOARES, 2006, p.42-43). Algumas das cartas servem para o envio de documentos, fotos e poemas. As respostas de sua esposa não foram publicadas, mas a sequência de cartas pode dar pistas da interlocução epistolar do casal. O tratamento é sempre carinhoso, apaixonado e intenso. Há certo exagero na escrita, coisa que se percebe pela repetição, aglutinação de adjetivos e do uso de hipérboles. Sobretudo, em “até ao fim do mundo”, saudação final recorrente em inúmeras 72 cartas, que remete ao mito do amor entre D. Pedro e Inês de Castro. Leia-se mais um fragmento do texto de Maria de Lourdes Soares: A leitura deste livro provoca ao mesmo tempo comoção e reflexão. Comove e faz refletir já a partir do contraste entre a emanação de felicidade da fotografia da capa – um jovem casal de noivos - e os presságios de desgraça, evidenciados no subtítulo. A comoção desta foto amplia-se na foto em página dupla, referente ao aerograma de 17.5.71 (ANTUNES, 2005: 164-165), ante a beleza e desprevenida alegria das faces dos nubentes, vivendo a ilusão de um futuro que logo se quebrará. Punge pela maravilhada inocência do que está no começo, pela promessa de felicidade, pura potencialidade de ser – o casamento, a profissão, a literatura, os sonhos... [...] Tocanos porque essa é também a nossa história, de alguma forma contemporâneos e de alguma maneira atingidos pelo monstro da guerra e pelo espectro da morte. (SOARES, 2006, p.42). O autor vai buscar elementos na leitura de poemas (Os de Ângelo de Lima, por exemplo; estudo crítico de Jorge de Sena sobre os Lusíadas – p.100, 46ª carta; poemas de Bocage – p.205, 121ª carta.), romances (Obras completas, de Almada Negreiros – p. 94, 43ª carta; A barca dos sete lemes, de Alves Redol – p.206, 122ª carta; Diálogo em setembro, de Fernando Namora – p.210, 126ª carta; A queda, de Camus e Aparição, de Vergílio Ferreira – p. 331 – 221ª carta). Lobo Antunes, ao longo de todas as cartas encontra, sistematicamente, espaço para comentar e solicitar as leituras. Em grande parte das cartas, ao referir-se às obras, trabalha a partir do nome de seus autores. E relembra leituras realizadas em momentos anteriores ao exílio. Compara as obras de mesmo autor e compara o estilo dos escritores entre si. Daí, identificar-se a leitura de (William) Faulkner, (Jorge Luís) Borges, (Júlio) Cortázar (talvez a grande decepção do autor neste período, visto que Lobo Antunes passe vários meses aguardando o envio da obra, e depois, revele-se decepcionado), (Mário Vargas) Llosa, Graham Greene, Georges Bataille, Truman Capote, John Lé Carré, (Jack) Kerouac, (John) Updike, mas não exatamente, explicitamente a qual das obras destes autores Lobo Antunes se refere. Em muitas cartas, ao citar os autores, simplesmente refere-se somente ao sobrenome. Os nomes assinalados entre parênteses não foram mencionados nas cartas. 73 O que pode revelar, entre outras coisas, o desejo de dar ritmo à escrita das cartas, busca por aproveitamento do espaço destinado para a escrita das cartas, uma vez que os aerogramas, embora abundantes, em geral eram insuficientes para o trânsito de informações entre Lobo Antunes e sua esposa e intimidade com a leitura das obras e a prática da reflexão crítica sobre as temáticas e o estilo dos autores. Além de comentar, tecer comparações, expressar seu entusiasmo e a sua decepção em relação às obras lidas e de solicitar, constantemente, o envio de livros a sua esposa. Chega até a solicitar à esposa que não pense em gastar dinheiro com seus pedidos de livros. As cartas contêm, não raro, a lembrança de músicas, filmes e programas de televisão assistidos e obras lidas anteriormente. O alferes/médico/homem/autor, Lobo Antunes, em experiência de exílio, vai se refugiar na arte e nos referentes culturais que propiciam a intertextualidade. Com a finalidade de ratificar o diálogo entre a História, a Literatura – fato que se verifica desde a escolha de sua epígrafe deste capítulo, escrita por Umberto Eco (2005, p.28) sobre “um conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que um leitor não pode deixar passar em silêncio”, sobre os embaraços que o deslumbramento pela Literatura e o desconhecimento da História podem produzir em relação à compreensão seja da obra literária, seja do fato histórico, ou da relação entre ambos, leia-se um trecho da reflexão crítica presente na obra O demônio da teoria: literatura e senso comum (2010), de Antoine (outro Antônio notório) Compagnon: A descrição da literatura como bem simbólico, à maneira de Bourdieu, ou o estudo da cultura como produto do jogo do poder, no rastro de Foucault, sem romper com o programa prescrito por Lanson [o francês Gustave Lanson – 1857-1934], Febvre [o francês Lucien Paul Victor Febvre – 1878-1956] e Barthes [o francês Roland Barthes – 1915-1980] para a história da instituição literária, reorientam essa história num sentido francamente mais engajado, a partir do momento em que a objetividade é considerada um engodo. Como a teoria e a história ocupam, para muitos, posições geralmente opostas, esses novos estudos históricos são frequentemente considerados antiteóricos, ou ainda, antiliterários [...] A coerência de toda crítica indeterminista deriva dessa crença, que, aliás, lembra paradoxos mais antigos, como este, que aparece no Journal dos Gongourt em 1862: “A história é um romance que foi; o 74 romance é a história que poderia ter sido.” [...] A partir de então, que será uma história literária senão, muito mais modestamente que no tempo de Lanson ou mesmo no de Jauss [o alemão Hans Robert Jauss – 1921-1997], uma justaposição, uma colagem de textos e de discursos fragmentários ligados a cronologias diferenciais, alguns mais históricos, outros mais literários [...] (COMPAGNON, 2010, p.219-220 [grifo nosso]). É preciso perceber que os autores citados por Compagnon, no fragmento acima, foram pensadores, articuladores da proposta e da elaboração das bases para os métodos para o diálogo entre a História e a Literatura e de sua recepção por parte dos leitores. Destaque-se que a obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005), de António Lobo Antunes não é a escrita autobiográfica de suas organizadoras, visto que não fala diretamente da existência e da trajetória de Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes, filhas do autor das correspondências, mas que o conjunto de cartas escritas por Lobo Antunes, objeto da publicação, por elas reunido, possui as características que denotam a escrita epistolar e autobiográfica de seu conteúdo. Leia-se Käte Hamburguer: Quanto ao gênero mimético-ficcional, está estabelecido em sua estrutura que os conceitos de “assunto” e “material” pertencem a sua fenomenologia. Ele é praticamente definido pelo fato de ser a realidade, por mais irreal que seja, o seu assunto. A noção de assunto, não inteiramente inequívoca em seu uso, tanto pode significar a realidade elaborada, fictícia (ação, personagens, etc.), como também pode ser empregada no sentido de pretexto ainda situado fora da obra literária. (HAMBURGUER, 1986, p. 250). Ainda, explicitando a abordagem teórica dessa pesquisa, a representação da “realidade” pela ficção, ou quando a ficção se vale do pacto de realidade, de dizer a “verdade” que uma carta evoca, define-se gênero epistolar como a literatura ou textos produzidos ou registrados em cartas. Como carta, pode-se compreender um texto produzido em suporte físico por um remetente e enviado (ou não) a um destinatário que não o próprio remetente. O conceito de carta foi ampliado para correspondência virtual, em face do desenvolvimento dos novos suportes tecnológicos. 75 No caso específico de Lobo Antunes, no contexto das “Cartas da Guerra”, a utilização dos aerogramas postais militares, numa razão de 130 aerogramas/mês, cujas despesas de postagem corriam por conta do governo, possibilitava e, paradoxalmente, limitava a comunicação. Ou ainda, definia seu ritmo, pelo espaço fixo determinado para a escrita. A relevância da leitura dessas cartas se dá por uma situação histórica contextual na qual se vê um médico, escritor, no exílio, na guerra, escrevendo sobre si mesmo, sobre o que testemunha e se reinventando por amor, pela saudade, para amenizar a tristeza e o sofrimento, por esperança em dias melhores como homem e como cidadão para a mulher que está distante e que o espera. Antes de se estabelecer, talvez uma espécie de protocolo de leitura das cartas de Lobo Antunes, pretende-se destacar que essas cartas podem ser lidas quase como se tecidas como um diário das experiências de Lobo Antunes: Leia-se Lejeune: [...] O diário é, muitas vezes, uma atividade de crise: a descontinuidade lhe é habitual e se inscreve, aliás, no âmago do seu ritmo. Há duas escolas: os que, por questões de higiene mental ou método, escrevem todos os dias, sofrem quando saltam um dia, “recuperam” os atrasos, preenchem omissões; e os que escrevem, de maneira mais ou menos regular, quando têm necessidade. [...] Um diário [ou a escrita sequencial de cartas a um destinatário] preenche várias funções ao mesmo tempo. Trata-se da expressão, da reflexão, da memória e do prazer de escrever. [...] [a] Exprimir-se: dividirei essa primeira função em duas desabafar e se comunicar. [...] Desabafar: descarregar o peso das emoções e dos pensamentos no papel. Essa pulsão pode estar associada à de conservar, mas tem afinidades ainda maiores com a pulsão do destruir. Pôr no papel já é se separar, se purificar, se lavar; em uma segunda etapa, pode-se levar a purificação a termo livrando-se do papel. [...] O eu futuro está liberado do peso do passado pela destruição, depois que o eu presente foi aliviado pela escrita. A função de expressão é dissociada da função de memória – podemos dizer que está associada à função de esquecimento. [...] Comunicar-se: esvaziamos o coração no papel porque estamos sós, por não poder esvaziá-lo em um ouvido amigo. [...] Encontramos uma pessoa com quem podemos conversar ou a quem podemos escrever [...] e a carta ou o diálogo quotidiano tomarão o seu lugar. [...] [b] Refletir: duas faces também – analisar-se [e] deliberar. [Oferecer] um espaço e um tempo subtraídos às pressões da vida. Refugiamo-nos [nas cartas] tranquilamente, para “desenvolver” a imagem do que acabamos de viver e meditar. E para analisar as escolhas que devemos fazer. [...] essa atividade de reflexão, em diários de longa duração [e em um conjunto de cartas], está muitas vezes associada às funções de expressão e de memória. [...] [c] [Memória] Fixar o tempo: construir para si uma memória de papel, criar arquivos do vivido, acumular vestígios, conjurar o esquecimento, dar à vida a consistência e a continuidade que lhe faltam... [...] Sua lógica é a da coleção. A série [de cartas] colecionada ganhando uma unidade por dia. [...] [d] Sentir prazer em escrever: pois escrevemos também porque é agradável. É delicioso dar forma ao que se vive, progredir na escrita, criar um objeto no qual nos reconhecemos. Mas diferentes formas de escrita podem satisfazer essa necessidade e 76 entrar em concorrência. Assim, abandonar o diário quando sua função principal não é a da memória e quando ele não é a única forma de escrita não tem nada de dramático. Frequentemente, ouvimos escritores (principalmente homens, aliás) dizerem que o diário é um desperdício de tempo, bom para os períodos de entressafra entre dois projetos de escrita. [...] [grifos nossos] (LEJEUNE, 2008, p. 275-277). Tradicionalmente, as cartas possuem a identificação do destinatário, o corpo da mensagem e as despedidas. Na obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005), as cartas poderiam ser divididas e/ou organizadas, como recurso de leitura e estruturação individual de leitura, texto a texto, em linhas gerais, no contexto dessa pesquisa, em estruturas específicas. Poderiam ser consideradas como premissas protocolares de leitura recorrentes na forma como Lobo Antunes vai escrevendo/produzindo a sequência (diarística) de suas correspondências com a sua esposa: saudações, proposições emocionais, relatos de fatos pontuais no contexto da guerra e despedidas. As saudações e os relatos de fatos pontuais no contexto da guerra poderiam ser lidos como pertencentes aos elementos historicizantes, que poderiam ser situados no espaço geográfico e no tempo cronológico. Leia-se o trecho inicial da carta selecionada: 14.1. 71 Minha joia querida Escrevo-te ainda de bordo do Vera Cruz, na véspera da chegada a Luanda, a fim de colocar esta carta no correio mal chegue às Áfricas. As saudades são já indescritíveis, e a solidão enorme, ao fim de 9 dias de barco, apesar do luxo em que aqui se vive (os oficiais, claro), no aspecto dos camarotes, salas e comida. Ao jantar e ao almoço, uma velha oxigenada, com duplo queixo e chinelos, toca piano com uma dificuldade míope, e ao lanche (chá e bolos), servido por uma nuvem de criados, a orquestra “Vera Cruz”, na qual deles com a melhor pinta de chulo lisboeta, magrinhos, brilhantinados, de olhar maroto, esfolam música de cabaré de putas. À noite há cinema no salão, do tipo dos filmes de Santa Margarida* (Um quarto para dois, Garotas e recrutas, etc), e por vezes, no escuro tenho a sensação horrível de que, se me levantar e sair, posso meter-me no caminho de casa e de ti. Nunca te esqueças que te amo com todas as forças que tenho, e que estou contigo sempre e em todos os momentos. É horrível ver a orquestra a tocar para uma sala cheia de tipos fardados, afundados nas cadeiras numa melancolia sem remédio: sinto-me tão arrependido de não termos ido dançar mais vezes, e apetece-me tanto dançar contigo, sinto-me tão arrependido dos momentos em que discutimos, e apetece-me tanto pedir-te desculpa, de lágrima nos olhos, juro e dizer-te que gosto sempre e tudo de ti. Consegui ainda escrever 3 postais da ilha da Madeira, que é de uma beleza extraordinária, sob um céu de chumbo e calor. [...] (ANTUNES, António L. apud ANTUNES, Maria J. L. & ANTUNES Joana L., 2005, p. 18-20). 77 As saudações e os relatos de fatos pontuais no contexto da guerra, como elementos historicizantes, possibilitam, uma vez identificados, a sua comprovação histórica, portanto, empírica. A saber: com o destinatário, sempre a esposa – mesmo quando se trata de falar de outras ou a outras pessoas, estabelece-se um pacto de interlocução direta; o registro das datas – das quais, eventualmente, o autor parece ter dúvida ou que justapõe, dependendo do horário em que escreva; as referências aos locais em que o sujeito está e as referências culturais – livros, textos, cartazes, fotos; a previsão dos acontecimentos – movimentos de suas tropas, das tropas inimigas, notícias e informações que circularam –, e de suas consequências. Ainda, procedendo à leitura da carta, leia-se o que Lobo Antunes escreve: O Funchal é uma cidade diferente de todas as que conhecemos, e com um aspecto estranhamente inglês: se eu voltar havemos de ir lá em lua de mel, sem o nosso filho, sozinhos os dois como no Algarve. Não te mando aí o SPM* [Serviço Postal Militar; organizado pelas Forças Armadas, responsável pelo encaminhamento de toda a correspondência oficial e particular] porque não o sei: a confusão é enorme. Em princípio, ficaremos em Luanda (no Grafanil) seis ou sete dias, e depois faremos uma horrível viagem de 2.000 km de camioneta até Nova Lisboa, de comboio até ao Luso, já armados e escoltados, e de camioneta de novo, até Gago Coutinho: 6 dias sempre em movimento, com as consequências inerentes e os perigos respectivos, de modo a chegarmos a cerca do fim do mês, para uma estadia que deve demorar 14 ou 15 meses, antes do recuo para uma zona melhor. O comandante deve, talvez amanhã ou depois, fazer a distribuição dos médicos pelas companhias. Um deve ficar em Gago Coutinho, onde estacionarão 2 companhias e um pelotão de morteiros, outro a 90 km e outro a 120 km com as companhias destacadas. Claro que o melhor, em teoria, seria ficar em G. Coutinho, que parece ter uma pequena pista de aviação e um helicóptero, mas a distância para Luanda é gigantesca. A missão do batalhão será policiar a fronteira com a Zâmbia, para não permitir a entrada dos elementos do MPLA*[Movimento Popular de Libertação de Angola] que tentam aí estabelecer um corredor até ao norte. O problema principal são as minas, mas eu vou fazer o possível para ver onde ponho os pés. [grifo nosso a partir de glossário da obra] (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 18-20). Observa-se que o sujeito autobiográfico da narrativa, autor do discurso contido nas cartas, apresenta a visão do período histórico: o panorama do movimento de tropas, alusão às organizações militares e aos códigos de procedimentos realizados, a relação entre os soldados e seus superiores, a expectativa em relação aos combates e às armas a posterior descrição dos locais das batalhas e dos acampamentos e a emissão de juízos sobre tais lugares e tais 78 situações. A esse registro objetivo alia-se a confissão da intimidade (o carinho com o outro – sobretudo, a esposa –, o desabafo implícito, os medos e as incertezas). Leia-se Foucault: Mas o que pertence propriamente a uma formação discursiva e o que permite delimitar o grupo de conceitos, embora discordantes, que lhe são específicos, é a maneira pela qual esses diferentes elementos estão relacionados uns aos outros: a maneira, por exemplo, pela qual a disposição das descrições ou das narrações está ligada às técnicas de reescrita; a maneira pela qual o campo de memória está ligado às formas de hierarquia e de subordinação que regem os enunciados de um texto; a maneira pela qual estão ligados os modos de aproximação e de desenvolvimento dos enunciados e os modos de critica, de comentários, de interpretação de enunciados já formulados etc. É esse feixe de relações que constitui um sistema de formação conceitual. A descrição de semelhante sistema não poderia valer por uma descrição direta e imediata dos próprios conceitos. Não se trata de fazer seu levantamento exaustivo, de estabelecer os traços que podem ter em comum, de tentar classificálos, de medir-lhes a coerência interna ou testar sua compatibilidade mútua; não se toma como objeto de análise a arquitetura conceitual de um texto isolado, de uma obra individual ou de uma ciência em um dado momento. Colocamo-nos na retaguarda em relação a esse jogo conceitual manifesto; e tentamos determinar segundo que esquemas (de seriação, de grupamentos simultâneos, de modificação linear ou recíproca) os enunciados podem estar ligados uns aos outros em um tipo de discurso; tentamos estabelecer, assim, como os elementos recorrentes dos enunciados podem reaparecer, se dissociar, se recompor, ganhar em extensão ou em determinação, ser retomados no interior de novas estruturas lógicas, adquirir, em compensação, novos conteúdos semânticos, constituir entre si organizações parciais. Esses esquemas permitem descrever não as leis de construção interna dos conceitos, não sua gênese progressiva e individual no espírito de um homem, mas sua dispersão anônima através de textos, livros e obras; dispersão que caracteriza um tipo de discurso e que define, entre os conceitos, formas de dedução, de derivação, de coerência, e também de incompatibilidade, de entrecruzamento, de substituição, de exclusão, de alteração recíproca, de deslocamento etc. Tal análise refere-se, pois, em um nível de certa forma pré-conceitual, ao campo em que os conceitos podem coexistir e às regras às quais esse campo está submetido. [...] [grifo do autor] (FOUCAULT, 2008, p. 65-66). Em suma, tem-se o indivíduo como partícipe de um processo coletivo, em que ele é mais um num contexto de interesses políticos, sociais e ideológicos. Está a serviço da pátria. O bem-estar social, a vitória, os ideais e objetivos norteiam suas ações. Não pode dar-se ao luxo de esquivar-se de suas responsabilidades para com seu país. Nas proposições emocionais e nas despedidas, vê-se o lado lúdico, a construção identitária, por evocação da memória de fatos e emoções, potencializada pelo exílio situação-limite, entrelugar de aniquilação, exclusão ou contenção ideológica, geográfica ou emocional da vontade; o ethos de um discurso amoroso. Tais elementos estão em campos específicos dentro da estrutura textual da carta, antes, permeiam-na. 79 Os valores culturais, os sentimentos, as lembranças de fatos passados ou a idealização de encontros futuros estão presentes nas cartas. A escrita é intensa, subjetiva, intimista, por vezes erotizada. O casamento e a futura paternidade ocupam boa parte do espaço dos aerogramas. Os papéis sociais e familiares desempenhados pelo remetente e suas expectativas em relação ao desempenho de sua parceira tornam-se evidentes e bem demarcados. Leia-se outro trecho da carta selecionada: Contra o que eu esperava não enjoei. O único problema é a orelha, que me não dá descanso... O calor é enorme e grosso: dá-me a sensação de respirar a palha de um colchão. [...] Meu amor eu adoro-te e penso em ti sempre, com muita saudade muita ternura. Tenho muita pena de não poder assistir ao crescimento do nosso filho. Como vai a barriga? Eu tirei, tiraram-me no barco uma fotografia que vou tentar mandar embora não esteja grande coisa, para lembrares melhor de mim. O dia da despedida, lembro-me dele como de uma coisa que tivesse passado durante uma anestesia; o cansaço, o sono, a saudade, a agitação entravam e saíam de mim numa leveza gasosa. Já nem me lembro bem da família que lá estava e não estava. Mas, do barco, procurei-te sem te encontrar: uma tia Luísa minúscula disse-me, por gestos, que te tinhas ido embora, e foi só então que eu tive a certeza de que me ia embora. Fui para o camarote e sentei-me na cama e ouvia os gritos e os choros sem pensar em nada, e não chorei porque homem não chora. E nada disto importa porque nos temos um ao outro até ao fim do mundo. Ao barco chegavam constantemente telegramas, recebi dois da tua família mas nenhum de ti. Ainda fui várias vezes ao comissariado mas não havia lá mais nada para mim. [...] Amanhã chegaremos às 2 da tarde. Entretanto, já só faltam 103 semanas, todas curtas menos umas 10, de férias. Não é assim tão mau como isso. [...] (ANTUNES, António L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 18-20). O espaço das proposições emocionais é o espaço da explosão da sentimentalidade, da fragilidade masculina, da reafirmação de um amor, da expiação de culpas, de pequenos desentendimentos conjugais – estes apenas supostos – ou inferidos a partir de construções semânticas; da valorização de detalhes da convivência. É também o espaço das reminiscências. O que é escrito tanto pode evidenciar o que de fato tenha ocorrido entre o casal – a vista da descrição das emoções experimentadas, como podem ser projeções, depositadas, por resgate sinestésico, numa ação mnemônica, por fluxo de consciência, ou outra estratégia narrativa, aleatoriamente, no corpo do texto. No espaço das despedidas, ocorre a estruturação das hipérboles, do espaço da confirmação emocional, da reafirmação masculina. É o espaço em que o lírico, o 80 autobiográfico, a memória e a identidade se encontram através da assinatura da carta, da declaração hiperbólica, dos pós-escritos, da separação proposital de uma parte do texto, de seu conteúdo imediatamente anterior – algo como dois espaços em relação ao parágrafo de cima. É nesse momento que os votos matrimoniais são reafirmados, que o reencontro é marcado e, as informações pessoais mais relevantes, presentes no corpo das cartas, são reapresentadas, para que não se percam, para que sejam localizadas facilmente. Em várias cartas, as despedidas tornam-se híbridas e trazem elementos que poderão ser retomados nas saudações da correspondência posterior. Essa estrutura pode dar margem à presunção da natureza do diálogo, das respostas da interlocutora, esposa do escritor, destinatário das cartas. Leia-se o trecho final da carta de Lobo Antunes: Agora vou me despedir: Muitos beijos e muitas saudades e muitos beijos outra vez do António. [...] Gosta sempre de mim. Imagino o frio que aí estará, a nossa casa de que me hei-de lembrar sempre, apesar de nunca mais voltarmos para lá, o porteiro, a rua, os móveis, a cozinha, a cama com o cobertor ao meio, as gravuras, e vejo como fui feliz aí contigo, como tenho sido sempre feliz contigo, como gostaria de voltar, de voltar depressa para poder ver-te, tocar-te, falar-te, meter a minha chave na fechadura do teu corpo, a língua na tua boca, apertar-te o peito com as mãos, morder-te o pescoço, voar, lembro-me de pormenores e absurdos, do sinal do peito do teu pé, do teu dente de ouro, do canal da tua nuca, e gosto absurdamente de todos: minha senhora, eu amo-a. Se eu não a conhecesse, persegui-la-ia pelas ruas com propostas sórdidas e veementes. Recordo-me do primeiro dia em que a vi, do seu perfil de Boticelli, recordo-me do ano seguinte na praia, do seu cabelo preso atrás e da sua risca ao meio, do seu aspecto de retrato de Ingress, recordo-me do seu cabelo cortado e do seu ar de midinette, e amo perdidamente todas as suas encarnações, sem poder escolher entre elas. Amo a sua gravidez, os seus gestos, os seus sorrisos e as suas fúrias. Amo as suas zangas e a solenidade calada e digníssima de seus amuos. Amo as vossas recriminações e os seus beijos. E amo o seu filho, o filho de Vossa Excelência, meu amor. (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 18-20). Esses elementos – saudações, proposições emocionais, relatos de fatos do contexto da guerra e despedidas –, assim dispostos, estabelecem um “pacto de escrita” autobiográfica viabilizado pela escrita epistolar e está presente em boa parte das “Cartas da Guerra”. Segundo Carlos Ascenso André (1992, p.18), “O fenómeno literário, como fruto das circunstâncias em que se produz, não poderia deixar de reflectir esta situação [...]”. O que, 81 considerando-se a leitura das cartas de Lobo Antunes enviadas à sua esposa, demonstra que realmente há um pacto de escrita autobiográfica viabilizado pela escrita epistolar. Leia-se Lobo Antunes em entrevista recente concedida a João do Céu e Silva para o Diário de Notícias em 28.10.2010: Cada vez mais me é claro que o que escrevo não são romances no sentido da palavra. Não me interessa a intriga, a história ou as personagens! Há um tempo atacaram-me dizendo que não tinha personagens. Esse é o maior elogio que me fazem... Queria que fosse uma viagem ao coração. É como dizerem que o livro é autobiográfico - seja lá o que isso queira dizer. O que interessava era fazer o melhor que podia e desembaraçar-me dele, porque é um objecto independente de mim e que não me pertence. Na vida, é muito difícil separar o que é invenção do que é memória. [grifos nossos] (ANTUNES, in: Diário de Notícias, 28.10.10 <www.ala.com.t15.org>. Acessado em 17 de julho de 2011.). Observa-se em D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005), coletânea das cartas escritas por António Lobo Antunes entre 1971-1973, uma escrita que fala da guerra no momento em que ela ocorre, do homem que testemunha, se desloca em um espaço estranho em virtude do conflito e dele participa; o relato de um indivíduo comum que busca, incessantemente, reafirmar sua identidade e resolver suas questões. Leia-se um trecho da obra Memória e identidade (2011) de Joël Candeau: A história pode vir a legitimar, mas a memória é fundadora. Ali onde a história se esforça em colocar o passado a distância, a memória busca fundir-se nele. Halbwachs distinguiu a “memória histórica”, que seria a memória emprestada, aprendida, escrita, pragmática, longa, unificada, e a “memória coletiva”, que seria então uma memória produzida, vivida, oral, normativa, curta, plural. Pierre Nora, por sua vez, opõe radicalmente a memória e a história. A primeira é a vida, levada pelos grupos vivos, em permanente evolução, múltipla e desmultiplicada, “aberta à dialética da lembrança e da amnésia, inconsciente de suas sucessivas deformações, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível a longas latências e súbitas revitalizações”. Afetiva e mágica, enraizada no concreto, no gesto, na imagem e no objeto, a memória “se compõe dos detalhes que a confortam; nutre-se de lembranças vagas, globais e flutuantes, particulares e simbólicas, sensíveis a todas as formas de transmissão, censura ou projeções.” Ela pode, portanto, integrar-se nas estratégias identitárias. A história, ao contrário, “vincula-se às continuidades temporais, às evoluções e à relação entre as coisas.” Ela pertence a todos e a ninguém e tem vocação ao universal. É uma operação intelectual e laicizante que leva à análise, ao discurso crítico, à explicação de causas e consequências. A história é sempre prosaica e, enquanto a “memória instala a lembrança no sagrado, a história busca se distanciar do mesmo.” (CANDEAU, 2011, p. 132). 82 Ao se analisar as colocações acima, propostas por Candeau, sobre o posicionamento de Maurice Halbwachs a respeito da ideia de “memória coletiva” e de Pierre Nora sobre “memória e história”, entende-se que a construção das identidades, quer sejam individuais e mnemônicas, quer sejam coletivas e históricas, podem compor a tessitura de documentos, reportagens, cartas e diários, por exemplo; e, de igual maneira, integrar a narrativa de obras de ficção (crônicas, contos e romances, por exemplo), através de processos intercambiáveis que inter-relacionam a História e a ficção. Julga-se apropriado proceder a algumas considerações, talvez até subjetivas; mas, decorrentes da leitura e da reflexão sobre a História e a memória na construção da identidade autobiográfica do sujeito que se pronuncia através das cartas. Na sequência, será analisado um poema na busca por estabelecer um diálogo com do teor das informações contidas nas “Cartas da Guerra”, sobretudo, com o contexto em que tanto as cartas quanto os esparsos poemas que estas contêm, foi produzido. Naturalmente, por se tratar de um poema, a polissemia da linguagem poética poderia permitir outras leituras possíveis. A análise a seguir é apenas uma das inúmeras possibilidades de interpretação que privilegia o contexto da guerra como motivação pessoal, lírica e histórica. Leia-se o poema de Lobo Antunes: 28.2.72. 2 do velho E poderás então compreender a chuva não este abundante pólen torrencial diurno frutificando nos telhados num trigo de tulipas ardendo o seu petróleo nos ossos das janelas girando nos ouvidos com a humanidade no sangue esta rede de espelhos reflectindo os pássaros quando à noite me deito de costas para o mar e escuto nos móveis aquele velho silêncio dos grandes bois de pedra do princípio do mundo (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.364, §1º e 2º). 83 Pressupõe-se que as duas primeiras estrofes sejam quase um pedido de desculpas à esposa (interlocutor autobiográfico) e à nação portuguesa (interlocutor literário) pela condição portuguesa de estar no campo de batalha há tanto tempo. Um tempo cronológico (autobiográfico) e também literário (simbolizado pela memória e pela evocação do conhecimento da História de Portugal). Este poema evoca, provavelmente, o clima de pessimismo criado por Camões para o Canto IV de seu poema épico. A figura do Velho do Restelo e a eterna dúvida sobre se terá valido a pena ultrapassar os limites geográficos e existenciais, evocada no poema pessoano surgem, agora, construídas não por alguém que não esteja a bordo da nau ou que se reconheça no espaço atemporal de um “eu-lírico” que medita sobre um fato histórico, mas por alguém que está vivendo, testemunhando, interagindo e sentindo para depois contar. Supõe-se que o “eu-lírico” e o “eu-autobiográfico”, neste poema, pudessem se unir para dizer: “há de chegar um dia em que...”. Para pedir perdão, propor questões e desconstruir não só a certeza de uma possível vitória, ou o medo que emanasse da derrota, questiona-se até mesmo as sensações causadas pela chuva, ou pelo raiar do sol, a noite e o silêncio e os seus significados, quando da paz ou quando das batalhas, como se para bradar, ao menos liricamente, que a guerra não é um fenômeno natural. Prosseguindo a leitura do poema de Lobo Antunes: mas apenas a água o feltro vertical de mil dedos descendo de mil cisnes de cinza esta tosse de peixe este azeite ferido a onda que tritura as manhãs submergidas por um inverno absoluto como o olhar de um cego Não quero mais viver por dentro destas casas ser a raiz da sombra no coração da luz esquecer-me de voar quando os comboios partem transportando consigo os crepes da aventura (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.364, §3º e 4º). 84 No espaço compreendido pelas duas estrofes intermediárias, o “eu-lírico” é confrontado com o cenário real de sua trajetória. Pressupõe-se os dedos dos soldados no gatilho dos rifles e das baionetas, os ferimentos, as mutilações do corpo e do espírito das sensações passadas e a impossibilidade de novas sensações límpidas no futuro. A marca que a guerra imprime no “eu-autobiográfico” se materializando na necessidade de expulsar, nem que seja pela literatura, ao menos um pouco do horror e do silêncio forçado pela dor e pelo medo. As sombras são vistas pelos cegos, aqueles que cegam para as prioridades de uma sociedade tradicional, católica, civilizada e progressista. E parece que não são percebidas pelos líderes, pela sociedade portuguesa que os esquece, ou esta mesma sociedade, abafada pelo regime salazarista, é incapaz de supor, ou supõe de uma forma que por mais que seja realista, não se aproxima em idealização do que de fato seja o ambiente de sofrimento e horror da guerra. O atrito triturante e torturante revela um processo contínuo de ações descontínuas e inesperadas que não dão cabo do sofrimento com uma espécie de golpe de misericórdia. Na noite escura da guerra, o “eu-lírico” se vê oprimido, vencido, mesmo no intervalo das batalhas, antes mesmo que elas ocorram, ante a aparente impossibilidade de salvação. Supõe-se que não haja um momento em que se possa abstrair o espaço em que o sujeito se encontra, seja escrevendo poemas ou traçando rotas táticas de ação, seja combatendo ou tentando dormir. Todos os momentos revelam uma grande angústia que emana do “eu-autobiográfico”, do sujeito em plena interação com um fato histórico, com a figura da voz lírica, metafórica, mas não menos contundente, porque telúrica, porque intensa, que se inscreve como “eulírico”, ao mesmo tempo em que se desenha como “eu-autobiográfico”, num momento histórico real. Leia-se o trecho final do poema de Lobo Antunes: 85 Não quero que me esperem do outro lado do tempo esses rostos de outrora que odeio e desejo as bocas circunflexas escondidas nos retratos o iodo que dissolve as figuras sentadas Sou do jovem país onde o teu corpo respira e pouso no teu ombro como a noite nas árvores pertenço aos teus gestos e em cada um me solto da tua boca fujo na espuma de um suspiro sou o fungo que cresce no cheiro do vinagre o leite da manhã que ferve na cozinha as palavras sonâmbulas que sobem do teu sono e o coração do sol batendo nas vidraças FIM E, é claro, adoro-te. António. (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.364-365). Nas estrofes finais do poema, apesar da agudeza das metáforas, apesar da contundência lírica dos versos, apesar da força telúrica das imagens, o “eu-autobiográfico”, o personagem anônimo da batalha, potencializa a voz que poderia ser de muitos, que poderia ser de todos os que testemunham ou intuem o que seja a barbárie de uma guerra, em um pedido pelo seu término, não apenas de imediato, mas, a posteriori. O “eu-lírico” não deixa de revelar o desejo pessoal de consumar, junto ao ser amado, os eflúvios e arroubos passionais e afetivos que se espera, não esmoreçam, ante o trauma ocasionado pela vivência da solidão, do exílio, da morte e da guerra. Potencializa-se, também, a voz de um “sujeito” da história, idealizando para a sociedade um tempo de paz e alento, de liberdade e proteção. Um tempo em que aquele que partiu para a guerra, mesmo voltando diferente, seja visto como igual e incorporado à sociedade. Em que cada homem que carregue na memória as manchas de sangue de irmãos ou de inimigos mortos no campo de batalha, possua, aos olhos de seus pares, a tez polida dos que sonharam ao longe o tempo da paz, em que os homens que formam a nação e a nação que os abriga construam a História que desejaram escrever. 86 Mesmo que a História anterior traga em suas páginas as marcas do sangue dos que viveram e morreram na guerra, mesmo que os que viveram tenham a alma embotada pelo trauma, as novas gerações possam ter o brilho e a alegria da claridade, da independência, da liberdade, brilhando intensamente, mesmo se vistas pela janela do tempo, pela experiência de outros. O foco da narração, o seu ethos discursivo na narrativa de ficção, pode ser considerado e analisado sem que haja necessariamente uma relação entre o criado, o narrado, o texto literário e a vida de seu autor. Observe-se, no entanto, que para o que esta dissertação discute – a escrita epistolar e autobiográfica –, a “Escrita da Vida”, como definiu Roland Barthes na obra A preparação do romance II (2005), algumas considerações são necessárias. Leia-se Roland Barthes: [...] Escrita de Vida = quanto mais a escrita e a vida fragmentam (não buscam unificar-se abusivamente), mais cada fragmento é homogêneo. [...] Poderíamos [...] esboçar uma tipologia dos papeis varridos pela escrita de vida, isto é, de fato, dos eus que sucessivamente escrevem: a) Persona: a pessoa civil, cotidiana, privada, que “vive” sem escrever. [...] b) Scriptor: o escritor como imagem social, aquele de quem se fala, que se comenta, que se classifica numa escola, num gênero, aquele dos manuais etc. [...] c) Auctor: o eu que se coloca como fiador daquilo que escreve; pai da obra assumindo sua responsabilidade; o eu que se considera, social ou misticamente escritor. [...] d) Scribens: o eu que está na prática da escrita, que está escrevendo, que vive cotidianamente a escrita. [...] (BARTHES, 2005, p.173-174). A escolha do poema, enviado na correspondência de 28.2.72, pretende demonstrar que a sua estruturação lírica, o ritmo, as metáforas inéditas reincidem no conjunto das “Cartas da Guerra”, em que observamos: a) uma recorrência estrutural que se vale de uma mescla temporal: o tempo futuro surge idealizado, a partir da evocação de um passado e da constatação de um presente de escolhas inadequadas ou erradas, passíveis de configurar a metáfora de um país; b) a superposição entre as figuras enunciativas do “eu-lírico” – a voz que se expressa no poema – e a do “eu-autobiográfico”, capaz de revelar o sujeito no contexto da sua existência real e histórica; c) a mescla entre a memória individual e a memória 87 coletiva, verificada a partir da ficcionalização de acontecimentos históricos, vivenciados e/ou testemunhados por Lobo Antunes. Assim, espera-se demonstrar que, em relação à “Escrita da Vida”, verifica-se, ao longo das cartas, e de alguns poemas esparsos que elas contêm, as variações do ethos antuniano. Pode-se perceber o autor em transição de um discurso a outro, intercalando-os, sobrepondo-os ou diluindo a “rigidez” das categorias propostas por Roland Barthes. Assim viria a ser: “Persona” (marido/ alferes/ médico) que escreve; “Scriptor” (o missivista/ remetente das cartas) situado num tempo futuro; “Auctor” (a testemunha da guerra que escreve sobre o que vê e que se considera um escritor); a “Scribens” (o autor que sente e prenuncia sobre o que pretenderá escrever a partir da experiência relatada nas cartas). 88 6 “DEVIRES AUTOBIOGRÁFICOS” NA OBRA DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES Antes de tudo, há dois tipos de escritores: aqueles que escrevem em função do assunto e os que escrevem por escrever. Os primeiros tiveram pensamentos, ou fizeram experiências, que lhes parecem dignos de ser comunicados; os outros precisam de dinheiro e por isso escrevem, só por dinheiro. [...] Arthur Schopenhauer Na literatura portuguesa contemporânea, a expressão “devir”, tomada por empréstimo à filosofia, exemplifica e ajuda a perceber o cenário de permanente transformação dos indivíduos (autores e personagens), e, destaca a percepção das transformações ocorridas no país durante e, sobretudo, após 25 de abril de 1974. O “devir” é a mudança, a transformação, a transcendência, a expectativa, o espelhamento, no texto autobiográfico, entre o registrado e o verificado como real, ou a possibilidade de percepção da força dos elementos responsáveis pela transformação ou agentes de seu impedimento. Ou, nas palavras de Regina Schöpke (2004, p.26): “Essas forças, advindas do corpo, das paixões ou qualquer interesse sensível, desviam o pensamento de seu objeto específico, fazendo-o tomar o falso pelo verdadeiro”. Como não supor, nas circunstâncias enfrentadas por Lobo Antunes, que as experiências vividas, testemunhadas ou idealizadas por ele como sujeito da história individual não possam se expressar através de uma projeção do sentimento coletivo, estreitados os limites entre a emoção individual e a memória da percepção de um fato histórico? 89 Assim, entende-se que um devir autobiográfico pode ser amplificado se percebido em cartas – como no caso das “Cartas da Guerra” (2005), de António Lobo Antunes, ou na estrutura narrativa que ficcionaliza, pelo viés da memória individual, a história coletiva, e permite demonstrar a transformação, a evolução narrada/testemunhada por um indivíduo/personagem, como possível de identificar-se com o processo vivenciado por um grupo. Leia-se Tzvetan Todorov: Será preciso exigir, então, que cada um tome para si toda a infelicidade do mundo e não durma tranquilo enquanto subsistir o menor traço de injustiça em algum lugar do mundo? Que pensemos em todos e de nada nos esqueçamos? Certamente, não. Uma tarefa como essa é sobre-humana e levaria à morte quem a assumisse, antes que pudesse dar o primeiro passo. O esquecimento é grave; mas também é necessário. Ninguém, salvo os santos, pode viver em estrita verdade, renunciando a todo conforto e a todo consolo. Por isso mesmo, poderíamos nos dar um objetivo mais modesto e mais acessível: em tempos de paz, dispensar cuidados a nossos próximos; e, contudo, em tempos de infortúnio e desespero encontrar em nós mesmos a força para estender esse grupo além dos limites habituais, reconhecendo como próximos até mesmo aqueles cujos rostos nos são desconhecidos. (TODOROV, 1995, p.171). Ao escrever do epicentro do campo de batalha à sua amada esposa, com a qual contraíra núpcias recentemente, Lobo Antunes lega à posteridade a sua escrita epistolar e autobiográfica. Escreve cartas sobre si mesmo, sobre o que vê, o que sente e o que espera. Naturalmente com as sensações exacerbadas pelo medo, pela saudade, pelo exílio, pelo que é novo e diferente, seu testemunho, provavelmente será traído pela memória e a reconstituição de uma verdade histórica será parcial e, em muitas situações, apenas subjetiva. Leia-se um fragmento da obra Arqueologia do Saber (2008), de Michel Foucault: Mas cada uma dessas questões e toda essa grande inquietude crítica apontavam para um mesmo fim: reconstituir, a partir do que dizem estes documentos - às vezes com meias-palavras -, o passado de onde emanam e que se dilui, agora, bem distante deles; o documento sempre era tratado como a linguagem de uma voz agora reduzida ao silêncio: seu rastro frágil mas, por sorte, decifrável. Ora, por uma mutação que não data de hoje, mas que, sem dúvida, ainda não se concluiu, a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações. (FOUCAULT, 2008, p.8). 90 Não obstante, ao inserir no texto literário, as situações vivenciadas, o seu devir, a sua alteridade (o que se é e o que se poderia/poderá vir a ser) o sujeito da enunciação propõe uma articulação entre o tempo da memória, o espaço da história e o enredo de uma verdade testemunhal/autobiográfica, para que sua experiência perdure e lance ecos sobre possíveis bastidores dos fatos apresentados. A Literatura, se não muda a História, através dos devires autobiográficos de autores como Lobo Antunes, por exemplo, muda a maneira de ver os seus bastidores, possibilita entender os mecanismos de articulação e simulação de uma pseudo “verdade” oficial, desmascara o regime político vigente. A pesquisadora e ensaísta Elizabeth Muylaert Duque-Estrada, em sua obra Devires autobiográficos: atualidades da escrita de si (2009:13), inicia sua explanação apresentando a anedota sobre o poeta Lamartine que teria modificado a casa onde passara sua infância porque esta em tudo diferia da criação literária proposta e evocada pela memória na construção de seu poema. Não se trata, nesta dissertação, de propor que Lobo Antunes tenha sido capaz de enxergar a transformação da sociedade portuguesa a ponto de mimetizá-la e ficcionalizá-la em sua obra e que esta reprodução corresponda ao ethos real dos portugueses; ou que suas cartas ou seus romances sejam a cópia fiel, o documento fidedigno da memória da história do que se passou no campo de batalha ou na história recente de Portugal. É bastante possível, no entanto, supor que a cognição e a sensibilização do público leitor sejam aguçadas, através da estratégia narrativa de Lobo Antunes de realizar a superposição entre a História coletiva e a individual. E estabelece assim, o pacto de veracidade com o leitor crítico, não alienado. Leia-se Elizabeth Muylaert Duque-Estrada: [...] Não se narra o que se é, mas o que se poderá vir a ser. [...] Tais autobiografias, ao deslocarem o centro vital de sua narrativa da dimensão do privado, do mundo particular, para a esfera do mundo social, público, tornam-se locais privilegiados para uma discussão que abrange não somente questões literárias, mas também temas ligados à crítica cultural. Ou seja, tais narrativas se inscrevem como documentos de consciência cultural e, neste sentido, podem ser pensadas, não como expressão da 91 capacidade do sujeito de dispor de si mesmo, mas sim de uma falta de poder de um sujeito que encerraria, contudo, uma positividade. É que, nesta perspectiva, esta falta de poder não diz respeito a um estado de impotência pura e simples, mas, antes, a um movimento de transição de um estado de exclusão para afirmação de sua força diferencial. [...] (DUQUE-ESTRADA, 2009, p.157). Imagina-se que o relato, presente nas cartas da experiência in loco de Lobo Antunes, se deu por um determinado período de tempo; que durante este tempo o autor teve uma perspectiva diferenciada dos acontecimentos históricos e que a sua trajetória particular poderia ser transmutada em narrativa ficcional (devir autobiográfico) para seus romances, redimensionando uma história individual que poderia ser considerada a metáfora da história da nação portuguesa no período da Guerra Colonial. A partir da leitura das “Cartas da Guerra” (2005), pode-se destacar, através da reconstituição narrativa e mnemônica do texto literário, nas obras produzidas por Lobo Antunes, a confluência entre História e memória. Leia-se Maria Alzira Seixo: Porque a questão autobiográfica só tem sentido se o traço que remete para a figura do escritor, para a sua circunstância ou para a sua experiência, criar uma interpelação do texto em relação àquele que o lê, e obrigar essa interpelação a seguir um caminho de conjectura quanto aos labirintos da produção artística. (SEIXO, 2002, p. 476). O autor não reconstrói a casa para que ela se encaixe na sua metáfora literária, ou se enquadre aos moldes de sua narrativa. Ele questiona, através de seus narradores-personagens, percebidos, em alguns casos, em função de coincidências de locais, situações e datas, como autobiográficos, ou como construções provenientes de quem testemunhou os fatos e refletiu sobre eles, a construção do ethos de História oficial do País que emergiu de um longo período de fascista que, supostamente, precisasse de outros elementos – notadamente, a ficção – para questionar a História. 92 6.1 LOBO ANTUNES: PERSONAGEM DE SI MESMO [...] As artes, as interações, as relações de rivalidade ou de conflito, ou mesmo os acasos felizes ou infelizes que formam o curso das diferentes histórias de vida, não são mais que umas tantas oportunidades de manifestar a essência das personagens desdobrando-a no tempo sob a forma de uma história. [...] cujos elementos, unidos por uma combinatória quase sistemática, estão sujeitos ao conjunto das forças de atração ou de repulsão que exerce sobre eles o campo do poder, pode ser lida como uma história, que a estrutura, que organiza a ficção, e que fundamenta a ilusão de realidade que ela produz, dissimula-se, como na realidade, sob as interações entre pessoas, que ela estrutura. [...] Pierre Bourdieu Para se pensar “Lobo Antunes como personagem de si mesmo”, pode-se recuperar a reflexão proposta pela professora Ângela Beatriz Faria, na resenha intitulada “A noite escura da alma”, sobre a obra Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes, publicada no Jornal do Brasil, em sua edição do dia 06 de setembro de 2003: [...] [o narrador-personagem] Vítima de um sistema opressor, ‘ocupante involuntário em um país estrangeiro’, torna-se testemunha da barbárie no período da Guerra Colonial que antecede a Revolução dos Cravos e a libertação das colônias africanas, nas décadas de 60 e 70. Sua memória estilhaçada, situada agora no período pós-colonial, superpõe tempos e espaços diferenciados e seu ininterrupto fluxo de consciência registra o ‘espectro da agonia’, ‘as madrugadas repletas de desespero, amargura, angústia, remorso e rancor’ a indignação necessariamente reprimida e a barbárie exterior perpetrada pelos africanos e portugueses. (FARIA, JB, 06/09/ 2003, p.06). Não obstante a definição e a delimitação do objeto pesquisado, procura-se demonstrar que as experiências do autor, como médico no campo de batalha, não apenas marcam seus 93 romances iniciais como romances que apresentam vestígios autobiográficos como admitem, ainda, a possibilidade de que haveria, ao longo do processo ficcional antuniano, a dispersão e a transformação – o devir autobiográfico – das vivências e das memórias do autor transferidas para os seus narradores e/ou personagens. A pesquisadora e ensaísta Maria Alzira Seixo afirma: A questão da autobiografia, quando não corresponde a um género literário específico, coloca-se à perspectiva crítica de um modo problemático, por vezes mesmo incómodo pelos efeitos da mimese imediata que pode sugerir, mas permite alargar perspectivas esclarecedoras nos caminhos da leitura dos textos. Entende-se quase consensualmente que é abusivo encadear formulações conceptuais, que elaboradas a partir da materialidade da escrita, com dados projectados de situações ou comportamentos empíricos, sobretudo quando assumidos (ou assumíveis) por uma pessoa que coincide (de modos diversos, e nem sempre inequívocos) com a entidade autoral; por isso, a autobiografia, enquanto forma genealógica, integrando não o suporte existencial directo que, enquanto imagem ou comportamento, quase sempre se faz com ela coincidir. (SEIXO, 2002, p. 473.). É importante destacar que na obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005), de António Lobo Antunes, a consciência de si próprio revela-se, apenas, para uma pessoa especial – a mulher amada – e enreda-se aos acontecimentos históricos. Outro aspecto que deve ser considerado, ao se lidar com a leitura e análise das cartas e sua relação com o que viria se tornar a ficção antuniana, é pensar no padrão de intimidade ao qual a correspondência está condicionada. Lobo Antunes as escreve somente tendo como destinatário a esposa. Não havia, no momento da escritura das cartas, nenhuma intenção do autor de torná-las públicas. A fim de reforçar essa ideia, observa-se o fato de que, ao longo de, pelo menos uma centena das cartas, o remetente dá a conhecer à sua amada sobre a escrita do que viria a ser um romance crítico, ácido, sarcástico sobre a História recente dos portugueses e faz considerações sobre os prováveis títulos que este romance teria. Considera-se que ele não misture a escrita da narrativa de ficção com o processo da produção da escrita epistolar. Note-se, porém, que a experiência pessoal do autor durante a 94 Guerra Colonial é determinante para pensar sua escrita, para pensar seu país e como sua literatura poderia ser. Leia-se mais um fragmento da reflexão crítica produzida por Maria Alzira Seixo: É por esta via que chegaremos à questão da autobiografia na obra de António Lobo Antunes, ou melhor, à questão de ponderar sobre os vários modos que nos aparecem como mais correctos para falar da escrita autobiográfica em romances que, se por um lado se apresentam como ficções, por outro (e a partir de depoimentos do autor em entrevistas, crónicas ou outros ditos que, não vá sem ser dito, não têm o mesmo selo de garantia dos textos publicados como romances) não enjeitam esse lado vivido, a consagração de uma experiência e de uma carreira extraliterária que tem sido a do escritor e é documentada pela sua existência civil. [...] Podemos, é certo, encarar esta questão autobiográfica de ângulos muito diversos: a autobiografia como género, a escrita do eu que compõe as suas remissões referenciais, a introdução de factores biográficos no texto narrado na primeira pessoa (ou noutra pessoa qualquer), a composição memorialística que proceda de um rememorar subjectivo determinado, a própria relação do relato subjectivante com um eventual discurso da História, etc. Seja como for o problema que a autobiografia antes de mais coloca é o de que, em literatura, a subjectividade escrita acarreta, de forma mais ou menos evidenciada ou mais ou menos subtil, a projeção de uma circunstância efectiva directa, transformada, reelaborada ou contrastiva, que de algum modo aponta para o autor que a escreve. (SEIXO, 2002, p. 475). Seria possível, para um leitor crítico, perceber na obra antuniana o movimento de inter-relação entre o resgate da memória da experiência vivida, corroborado por sua biografia e atestado pelo conteúdo das cartas e a focalização narrativa de seus romances iniciais. Leiase um fragmento da obra Os Cus de Judas (2007), de Lobo Antunes: Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do ringue de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer [...] Não sei se lhe parece idiota o que vou dizer mas aos domingos de manhã, quando nós lá íamos com meu pai, os bichos eram mais bichos [...] (ANTUNES, 2007, Cap. “A”, Os Cus de Judas, p.7). Ao analisarmos um fragmento extraído da 183ª carta de Lobo Antunes, do dia 6.11.71, lê-se: Sábado 6.11.71 Chiúme Meu querido amor [...] Estão agora a tocar nos cassetes [...] o Lago dos Cisnes, que me faz lembrar o ringue do Jardim Zoológico, onde ia patinar aos domingos de manhã. Entre os remorsos que trago está o de lá não ter ido, quanto mais não fosse em homenagem à minha própria infância. (ANTUNES, A.L., apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.289). 95 Observa-se uma experiência que se instaura, a princípio, num plano pessoal, relatada em uma sequência de cartas, e, ficcionalizada, posteriormente, em suas criações literárias. Isso naturalmente aponta para a tendência de, pelo menos, se investigar as motivações ou os ecos de memórias dessas vivências fragmentadas, diluídas, sobrepostas ou dispersas ao longo das obras, quer na enunciação discursiva de um “eu” identificado com o autor, quer na fala de um fictício narrador-personagem. É preciso, portanto, questionar até que ponto “a particularidade da imaginação autobiográfica reside em uma capacidade de desdobramento narcísico que permite ao sujeito inventar para si um duplo ideal ou não, e tornar possível uma forma de autoficcionalização.”. (VILAIN, 2005, p.119 apud. FIGUEIREDO, 2007, p.23). Analisar as “Cartas da Guerra”, provavelmente, redimensione o entendimento sobre a focalização temática e justifique a recorrência semântica. E, quem sabe, possa servir como justificativa a alguém que pretenda encontrar ou resgatar a trajetória pessoal, a figura extratextual de Lobo Antunes e suas experiências em cada novo romance. Leia-se um fragmento da 132ª carta, escrita em 1.7.71, em Chiúme: 1.7.71 Chiúme Meu amor querido [...] Tudo isto é obsoleto e triste. Ainda te lembrarás de mim? Às vezes nem eu me lembro de mim próprio. Olho-me ao espelho e é um estranho que vejo. Mas estou na mesma por fora, acho eu. Por dentro é que mudei. Surpreende-me o meu próprio silêncio, e a minha voz. Falo pouco e tudo o que digo é num tom seco e melancólico, que não era o meu. Eu tenho sempre uma ruga na testa e uma dobra amarga na boca. As tuas cartas chegam cheias de amor. Leio-as como quem reza. [...] (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 221). Não se trata de afirmar que Lobo Antunes escreva sempre sobre si mesmo, ou que sua vida esteja refletida em todas as suas obras como autobiografia. Narciso, o mito, talvez difira do Narciso, personagem autobiográfico ou autoficcionalizado que se perceba nas obras antunianas. Aquele, mitológica figura, mirava-se para observar sua própria beleza; este, o 96 personagem, ao autoficcionalizar-se, se assim procede, o faz para expurgar seu trauma. Para enxergar suas feridas e, quem sabe, reencontrar a voz do ethos perdido na solidão da guerra. Julgamos que as ideias de Roland Barthes (2003:173-174) sobre Escrita de Vida e de Maria Alzira Seixo (2002:475) sobre a autobiografia, podem ser correlacionadas. Considerese, no entanto, que há o entendimento dos objetos de análise. Barthes teoriza a partir de estudo sobre a obra Em busca do tempo perdido (1983), de Proust, entre outras, e, Maria Alzira Seixo, a partir da exegese das obras antunianas. Leia-se Roland Barthes: Todos esses eus são tecidos, cintilações na escrita, tal como a lemos, segundo diversas preponderâncias. Mas a escrita de vida implica, evidentemente, que certo valor criativo é atribuído à persona; a escrita surge na parte não escrita da vida, ela esbarra continuamente naquilo que está fora da escrita e mantém com essa parte não escrita, uma relação de analogia deformada [...] Persona e Scribens podem juntar-se diretamente: a “vida” se torna obra “imediatamente” (sem mediação) [...] (BARTHES, 2003, p. 174). Pode-se inferir, portanto, a partir deste espelhamento entre a teorização de Roland Barthes e as considerações de Maria Alzira Seixo, que a autobiografia realiza-se como escrita de uma vida, de um testemunho, de um diário; constitui-se de uma visão narcísica do próprio autor, do relato de algo já passado ou que se vivencia no momento da escrita, como expiação, aconselhamento ou remissão para o futuro. Poderia constituir-se de imagens, depoimentos, entrevistas, pensamentos associados a datas, lugares, acontecimentos e/ou pessoas. Estes elementos, naturalmente, são passíveis de verificação, e ao mesmo tempo, de questionamentos. Incluem-se aí, depoimentos e entrevistas do próprio autor. Veja-se “Receita para me lerem”, de Lobo Antunes, publicado no Segundo livro de crónicas (2002): Sempre que alguém afirma ter lido um livro meu fico decepcionado com o erro. É que meus livros não são para ser lidos no sentido que usualmente se chama ler: a única forma parece-me de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma doença. [...] Aquilo que por comodidade chamei de romances, como poderia ter chamado poemas, visões, o que se quiser, apenas se entenderão se os tomarem por outra coisa. [...] as palavras são apenas signos de sentimentos íntimos, e as personagens, situações e intriga os pretextos de superfície 97 que utilizo para conduzir ai fundo avesso da alma. [...] Quem não entender isto aperceber-se-á apenas dos aspectos mais parcelares e menos importantes dos livros: o país, a relação homem-mulher, o problema da identidade e da procura dela, África e a brutalidade da exploração colonial, etc., temas se calhar muito importantes do ponto de vista político, ou social, ou antropológico, mas que nada têm a ver com meu trabalho. [...] os mal entendidos em relação ao que faço, derivam do facto de abordarem o que escrevo como nos ensinaram a abordar qualquer narrativa. E a surpresa vem de não existir narrativa no sentido comum do termo, mas apenas largos círculos concêntricos [...] Reparem como as figuras que povoam o que digo não são descritas e quase não possuem relevo: é que se trata de vocês mesmos. Disse em tempos que o livro ideal seria aquele em que todas as páginas fossem espelhos: reflectem-me a mim e ao leitor [...] Porque os meus romances são muito mais simples do que parecem: a experiência da antropofagia através da fome continuada [...] (ANTUNES, 2002, p.109-111). Lobo Antunes parece consciente (ou, ao menos, parece supor) que a memória individual processa escolhas e que a ficção seleciona palavras e situações e reconstrói outras para problematizá-las. Segundo Duque-Estrada (2009, p.135), “A carta era, como se dizia na época, uma “cópia da alma”, o lugar onde se podia estabelecer uma relação marcadamente subjetiva com o outro e também consigo mesmo”. Assim, o escritor a utiliza para confessar-se, comunicar-se e para atenuar ou exacerbar seus conflitos, suas renúncias ou escolhas. Leia-se Maria Alzira Seixo: [...] atentemos na questão autobiográfica, tal como ela nos parece enriquecer o estudo dos romances de António Lobo Antunes, através sobretudo de quatro tipos de abordagens: 1. a que organiza os arredores do eu na efabulação romanesca, constituindo-se por assim dizer, o sociotexto; 2. a que diz respeito à experiência específica do eu (na formação, na profissão, nas contingências do percurso existencial e anímico), constituindo de algum modo o contexto em que se insere e que ele próprio movimenta; 3. a que se centra na designação do nome próprio e dos patrocínios, quer para o narrador, quer para as personagens, indiferenciando-se assim a voz que vive da voz que escreve, dinamizando portanto a criação das várias vozes da escrita, e criando manifestações singulares, através do nome, de uma espécie de inconsciente do texto; e, finalmente, 4. a que, libertando a remissão da escrita para a experiência e o nome do próprio (auto-bio-grafia), insiste na configuração deíctica, sublinhando o significado do tempo e do espaço que lhe são coextensivos na enunciação destes romances, [...] (SEIXO, 2002, p. 477). Segundo pode-se entender da teorização proposta por Maria Alzira Seixo, António Lobo Antunes possuiria, na condição de alferes-médico mobilizado para a guerra, como psiquiatra, cidadão e escritor, todos os componentes para, minimamente, levar o leitor a 98 buscar elementos particulares e individuais, supostos ou contextualmente verificáveis em sua trajetória pessoal. Estes componentes poderiam ser deflagradores de registros em diários e cartas, e, também, passíveis de transfiguração ou transposição para a ficção, através da configuração enunciativa inerente a narradores e personagens criados pelo autor. Em suma, a vida de Lobo Antunes o credencia a propor um pacto de escrita autobiográfica ou a levar o leitor a aceitar esse “pacto” de veracidade dentro do universo da ficção. As cerca de 300 cartas escritas por Lobo Antunes poderiam ser lidas e analisadas na perspectiva de um registro autobiográfico e colocam ou enquadram D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra, segundo pode-se depreender da análise desenvolvida pela pesquisadora e ensaísta Maria Alzira Seixo (2002, p.477), da seguinte forma: 1) um texto autobiográfico e epistolar sobre acontecimentos históricos – sociotexto –, que envolvem o sujeito (a Guerra Colonial, por exemplo, e suas consequências); 2) um texto que dá (de forma hiperbólica ou amenizada) a conhecer à esposa a sua trajetória de cidadão e intelectual, inserido em um determinado contexto; 3) um texto que, ao inscrever o nome próprio do autor (António – a assinatura das cartas), indiferencia a “voz que vive da voz que escreve”, o que influenciará o autor, inconscientemente, a compor o substrato de sua produção ficcional (a polifonia dos ethos de narradores e personagens); 4) um texto em que se abstrai o nome do autor e sua experiência singular, capaz de apontar, em tese, o “significado do tempo e do espaço que lhe são coextensivos na enunciação dos romances” que privilegiam o período de ocupação, manutenção e derrocada do Império colonial em África e/ou que denunciam “a imagem da sociedade enclausurada e orgulhosamente só”, oprimida por uma ideologia salazarista, desmotivada e apática. 99 Em D’este viver aqui neste papel descripto, por exemplo, é possível, através das cartas, dar a conhecer de si ao outro e expurgar, lembrar, punir e proteger (se) de repetições do que se considera trágico, inadequado e negativo. À maneira da epistolografia setecentista e das cartas doutrinárias, Lobo Antunes, confessa e purifica-se da dor e do sofrimento, e, faz projeções para o homem que espera ser no futuro, ao lembrar-se do homem que foi e que é. No exercício da escrita, imprime as pistas para o autor que pretende se tornar. Segundo Maria Alzira Seixo (2002, p. 477-478), em obras como Fado Alexandrino, O Esplendor de Portugal e Memória de Elefante, além da obra Os Cus de Judas, Lobo Antunes espelha a sua experiência nos personagens e narradores criados por ele. Esses, ao se manifestarem em 1ª pessoa, no espaço textual, configurariam pseudo-autobiografias: Leia-se Maria Alzira Seixo: [...] Por outras palavras: os romances narrados numa primeira pessoa [Fado Alexandrino, Memória de elefante e Os Cus de Judas] factualmente muito próxima da personalidade do autor António Lobo Antunes não estão mais próximos da autobiografia (nem menos) do que os que lhe seguem, e, numa segunda fase, repartem essa primeira pessoa por várias sensibilidades também do mesmo modo pseudo-autobiografadas, para numa fase mais recente, a partir de Tratado das paixões da alma, e mais sensivelmente ainda depois de O manual dos inquisidores, reatarem com uma primeira pessoa diferente. (SEIXO, 2002, p. 485-486). Assim, o eu autobiográfico, presente no ethos da enunciação narrativa, se sobrepõe à voz e à existência imaginada (ou recordada) do autor, tomada à História de sua vida, ou de seu país na construção de sua obra literária. Rejeitar ou aceitar tal identificação não seria, necessariamente, a questão primordial para o leitor, mas, sim, ingressar na viagem da leitura e no reconhecimento de si próprio, a partir daquilo que lê, como alude António Lobo Antunes em “Receita para me lerem”. São verificados, na maioria dos romances que tematizam a Guerra Colonial ou os resíduos da História, os traços de uma escrita autobiográfica e ficam evidentes, não apenas a 100 linguagem fragmentada, metafórica e poética, como também o fluxo contínuo, confuso e intenso das memórias criadas ou resgatadas pelo autor através de seus personagens. O enredo, por sua vez, que se apresenta nas obras antunianas, revela uma parte da História – o que ela foi, o que teria sido e como não deveria ser. O tempo da narrativa, se não se iguala e se equipara à infância, à juventude e à velhice das personagens, destaca a atemporalidade do trauma e da experiência da guerra que se travou fora e dentro de Portugal. O espaço da narrativa antuniana é múltiplo em conflitos internos e externos ao homem, ao País e às ideologias políticas e culturais. Seus personagens e narradores espelham a pátria portuguesa, seus medos, suas frustrações, paixões e desejos obscuros, sombras e discursos inauditos e/ou repetidos à exaustão. Como se pudessem contabilizar derrotas, celebrar vitórias e resgatar sonhos que talvez já não existam ou que não se possa esquecer. 6.2 A AGONIA DOS BÁRBAROS [...] Porque é já noite, os bárbaros não vêm e gente recém-chegada das fronteiras diz que não há mais bárbaros. Sem bárbaros o que será de nós? [...] Antes de 1911 Konstantinos Kaváfis 101 [...] De resto, vejo o sol nascer e se pôr, como e durmo e estou contente. Quando morrer, espero merecer três linhas em letra miúda na gazeta imperial. Não pedi nada mais que uma vida tranquila em tempos tranquilos. [...] Mas no ano passado começaram a nos chegar da capital histórias de inquietação entre os bárbaros [...] J.M. Coetzee A leitura da ficção portuguesa contemporânea, estudada a partir das reflexões críticas sobre a inter-relação das Escrituras da História e Memória, tem se revelado, cada vez mais, como uma possibilidade de confrontação com elementos extraídos do solo fértil da imaginação dos autores, sem que se possa deixar de considerar que se originaram, tantas vezes, em acontecimentos oriundos da realidade, da vivência e do conhecimento de fatos históricos. Com destacada verve autobiográfica, Lobo Antunes compõe, no estágio inicial de sua carreira literária, como vimos, uma trilogia – Memória de Elefante (1979), Os Cus de Judas (1979) e Conhecimento do Inferno (1980) –, em que a figura do médico (profissão efetivamente exercida por Lobo Antunes e que o levou a trabalhar na Guerra Colonial em África), é a responsável por desencadear as narrativas. É importante ratificar que António Lobo Antunes serviu ao exército português durante o período da Guerra Colonial em África durante três anos no início da década de 70. Foi representante involuntário da barbárie promovida pelos conflitos da guerra, foi vítima da barbárie do governo ditatorial que sentenciou um médico recém-casado a uma experiência traumatizante, através do testemunho, in loco, da morte e do sofrimento causados pela guerra e do exílio forçado. Leia-se as considerações de Ângela Beatriz Faria, presentes na resenha crítica citada anteriormente: 102 [...] O que interessa narrar, para que não se esqueça, é o avassalador “gigantesco absurdo da guerra” que faz o sujeito sentir-se “na atmosfera irreal, flutuante e insólita”, [...] é a falência da educação familiar e ideológica equivocada [...] No imaginário do sujeito acumulam-se e superpõem-se fragmentos de referentes culturais da sua cultura letrada e ocidental contraposta à dos nativos em África. (FARIA, JB, Caderno Ideias, 06/09/2003, p.6). A agonia dos bárbaros, nesta dissertação, remete a três posições/condições dos narradores-personagens, que poderiam ser verificáveis nos romances antunianos que trazem a Guerra Colonial como tema ou como pano de fundo espaço-temporal, ou a ela façam referências como dado histórico, através da descrição dos acontecimentos resgatados pela memória ou pela superposição deliberada da ficção e da História. Referimo-nos, em especial, ao romance Os Cus de Judas, originalmente publicado em 1979, em Portugal. Nesta dissertação, considera-se a presença da agonia e a barbárie, segundo elementos que poderiam ser verificados a partir de sua recorrência na obra antuniana. A saber: 1) Os africanos seriam os bárbaros, os não civilizados, os exóticos; aqueles cujos hábitos, costumes, tradições seriam observados apenas com curiosidade e estranhamento pelos europeus; indivíduos cuja capacidade de articular e de se organizar social, política e religiosamente os colocaria em uma posição de inferioridade em relação aos portugueses e sua sociedade. A agonia, inerente a eles, seria proveniente do desespero de combater o exército, as forças representantes de uma nação melhor organizada economicamente, evoluída e preparada belicamente para dominar e impor sua cultura e seu idioma, motivada por interesses políticos e econômicos. 2) Os portugueses seriam os bárbaros, por deterem um poderio econômico e bélico, por sua organização social, por pertencerem a um continente historicamente formado por nações acostumadas a dominar e a conquistar à custa da força. Ao não compactuar com a política salazarista de dominação em África, sua agonia estaria em: a) omitir-se forçadamente (medo das reações internas do poder estabelecido), 103 por conta de um governo opressor e assistir a seus cidadãos marcharem para o horror da guerra, obrigados por uma ideologia perversa, cruel e reacionária; b) aguardar, temendo e/ou constatando a morte dos seus cidadãos. Assistir ao retorno de seus entes mutilados física e psicologicamente, traumatizados, desequilibrados e modificados em conduta e espírito pelo que sofreram ou pelo que foram obrigados a praticar. Sua agonia residiria no sofrimento da partida, no espaço da ausência, na incerteza do retorno e na constatação da modificação indisfarçável daqueles que retornaram; c) retornar, transformados, modificados, traumatizados, deslocados em relação ao que viveram antes e durante a guerra e com incertezas em relação à sua nova vida; 3) Os escritores seriam considerados bárbaros ou civilizados? Sua agonia residiria na reincidência da temática, na tentativa de expurgar o trauma, o horror, reavivando-o através da evocação da memória pessoal ou do conhecimento de fatos extraídos das páginas de uma história não oficial ou tomados por empréstimo à História oficial, a fim de ressignificá-los pela ficção. Sua agonia é saber que a luta permanece e não deve ceder espaço a uma forma de contemplação melancólica e que, para evitar a repetição da dor, a Literatura mantém, ao menos, o latejar da ferida para que ela cicatrize, mas que não seja esquecida. Segundo Margarida Calafate Ribeiro, na obra Uma história de regressos: império, guerra colonial e pós-colonialismo, Lobo Antunes surge na ficção portuguesa contemporânea: [...] Tendo como fio de união o rasto autobiográfico do narrador [...] entre os universos psiquiátricos e a memória da guerra, [...] propõe-nos [...] uma reflexão sobre o poder e o exercício fascista do poder através da análise das posições e percursos dos protagonistas de suas narrativas. [...] Em Conhecimento do Inferno o narrador é um médico que como tal exerce uma forma de poder sobre os doentes de um hospital psiquiátrico [...] Em Os Cus de Judas o narrador-personagem é também um médico, mas médico-militar na Guerra Colonial, sobre o qual a instituição militar exerce o seu poder exigindo-lhe a reconstituição dos corpos explodidos na guerra. (RIBEIRO, 2004, p. 259-260). Na Literatura portuguesa contemporânea, a Guerra Colonial em África é, com muita frequência, retratada, discutida, revisitada, representada em diversas obras, por diversos 104 autores. Logo, elementos como a História, o Trauma, a Guerra, o Desejo, a Liberdade, o Sonho, a Linguagem, o “Eu” e o “Outro” alinham-se, intercalam-se e se sobrepõem nas narrativas que discutem ou se relacionam direta ou indiretamente ao tema. Leia-se Lobo Antunes: [...] De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida ao Governo que me possibilitava, grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso no cais, consentindo, num arroubo de fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidão agitada e anónima semelhante à do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir, impotente, à sua própria morte. [...] (ANTUNES, 2007, cap. “A” de Os Cus de Judas, p. 14). Assim, a Literatura Portuguesa e autores como António Lobo Antunes, Lídia Jorge (A Costa dos Murmúrios) e João de Melo (A Memória de Ver Matar e Morrer e seu título posterior Autópsia de um Mar de Ruínas) entre outros, retratam, abordam, ficcionalizam, discutem o desenrolar da guerra, a memória e a história de seus horrores e de suas consequências na sociedade e nos indivíduos. Porque a guerra deforma, agride, aniquila e traumatiza, de acordo com Márcio Seligmann-Silva (2001:48), “a linguagem tenta cercar e dar limites àquilo que não foi submetido a uma forma no ato de sua recepção.”. Assim, considerando-se as premissas que permitam uma interação entre a vida do autor e os desdobramentos de suas experiências na confecção de sua obra ficcional, busca-se analisar a ficção e o discurso fragmentado da memória inerente à personagem. Entende-se que como o testemunho desenha um quadro narrativo-descritivo da barbárie sofrida e/ou praticada (individual ou institucionalmente), tal procedimento não se configura apenas pelo ato de dar a voz ao outro, mas pretende prestar reverência aos mortos e seus ideais. Ao dar conta da própria trajetória, o sujeito que manipula a linguagem para apontar os bastidores da História. A barbárie choca por encontrar eco na percepção de que a ausência do conceito de “civilização” se traduz na agonia, ou como destaca Maria Alzira 105 Seixo (2002:37) na “dolorosa aprendizagem da agonia”, quer seja de um indivíduo, quer seja de toda uma sociedade. Ao analisar mais detidamente os significados associados à palavra “agonia”, a partir da leitura da versão eletrônica, em CD-Room, do Dicionário Houaiss, observa-se que o termo pode significar “desejo veemente”, “sofrimento agudo de origem física ou moral”, “declínio institucional, moral, etc.”. Entende-se, a partir do uso da palavra “agonia”, presente no título do capítulo escrito por Maria Alzira Seixo (2002:37), sobre o romance Os Cus de Judas (2007), de António Lobo Antunes, que as situações narrativas relacionadas a todos esses significados podem ser encontradas na obra. Aqui, nesta dissertação, são discutidas em consonância com o conceito de barbárie. Leia-se Lobo Antunes: [...] o silêncio de cemitério dos refeitórios, casernas de zinco a apodrecer devagar, descíamos para as Terras do Fim do Mundo, a dois mil quilómetros de Luanda, Janeiro acabava, chovia e íamos morrer, íamos morrer e chovia, chovia, sentado na cabina da camioneta, ao lado do condutor, de boné nos olhos, o vibrar de um cigarro infinito na mão, iniciei a dolorosa aprendizagem da agonia. (ANTUNES, 2007, cap. “D”, de Os Cus de Judas, p.36). Em Os Cus de Judas (2007), o narrador-personagem narra o cumprimento de seu bárbaro dever, na Guerra Colonial em África e também a sua nova situação emocional e psicológica, após regressar ao seu país. Em um romance no qual as letras do alfabeto, de “A” a “Z”, servem como título dos capítulos, o narrador-personagem dirige-se a uma interlocutora com quem pretende relacionar-se fisicamente e que não lhe retruca, pergunta ou responde diretamente. Seus questionamentos são inferidos a partir da retomada do monólogo/diálogo, quando o narrador-personagem parece emergir de um estado constante de rememoração, percebido pelo fluxo de suas memórias que surgem fragmentadas, mas, paradoxalmente, sempre 106 organizadas, como se pretendessem mostrar a “dolorosa aprendizagem da agonia”, justificar seus atos ou proporcionar o entendimento de sua relevância. O narrador-personagem vomita seus conflitos, sangra suas feridas entreabertas, expele o pus abjeto das escaras de sua alma. É a agonia da apoteose de uma memória confusa, fragmentada, exacerbada pela barbárie sofrida/praticada e pelo trauma da vivência cruel e desumana da qual foi agente e vítima. Leia-se um fragmento do romance Os Cus de Judas: [...] soldados seminus cambaleavam no calor insuportável da caserna, que o relento do suor e dos corpos por lavar entontecia como os hálitos nauseabundos dos cadáveres, se nos inclinamos para eles à espera das tristes palavras apodrecidas que os mortos legam aos vivos num borbulhar de sílabas informes. [...] vi a miséria e a maldade da guerra, a inutilidade da guerra nos olhos de pássaros feridos dos militares, no seu desencorajamento e no seu abandono, o alferes em calções espojado pela mesa, cães vadios a lamberem restos na parada, a bandeira pendente do seu mastro idêntica a um pénis sem força [...] (ANTUNES, 2007, cap. “T”, de Os Cus de Judas, p.160). Até a descrição de certos acontecimentos agride. É a revitalização do trauma, não a sua expurgação. Por mais que a ingestão do álcool ou o medo da solidão incentivem-na. Compare-se o trecho acima com o trecho de duas das cartas enviadas por Lobo Antunes: 22.3.71 [...] Ontem, novo alarme à noite no quartel, tiros, correrias, o pandemónio que já se havia tornado quotidiano e habitual. O Capitão que embirrava comigo – agora adora-me!?!?!? –, borrado de medo, gritava alucinado apaguem as luzes apaguem as luzes, a encolher-se já para se meter debaixo da mesa de jantar. Nunca vi tanto pavor num só homem, quer dizer, concentrado numa única cabeça, como nesse velho malcriado. [...] 23 (suponho). 3.71 Minha querida joia Pouca coisa aconteceu de ontem para hoje, exceptuando-se um alferes dos comandos que ficou sem uma perna no Luma-Cassai aqui perto, o que realmente não tem grande importância para o desenrolar da guerra. (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 100-101). O ensaísta Renato Cordeiro Gomes, no ensaio, “Narrativa e paroxismo: será preciso um pouco de sangue verdadeiro para manifestar a crueldade?” (2004:146-147), publicado na obra Estéticas da Crueldade, afirma que: “A crueldade estaria relacionada ao registro do 107 implacável e do desespero [...] atrelando-se a uma possível prova de ‘verdade’ que ultrapassa a linguagem a serviço da ilusão extratextual”. Leia-se um fragmento da obra de Lobo Antunes passível de exemplificar a reflexão crítica citada: [...] O rapaz chegou já morto, disse-lhe eu, e nenhum truque de ilusionismo médico o safou fez-me uma impressão danada ver-lhe os cabelos loiros, parecia-se comigo aos vinte anos, Os tipos emboscaram-se a dois metros da picada, disse o capitão, havia sangue deles nos arbustos, marcas de arrastarem corpos de feridos [...] (ANTUNES, 2007, cap. “H” de Os Cus de Judas, p. 63). A violência, a morte imposta pela guerra, a repressão salazarista, a destruição de prédios, templos e cidades; o exercício do preconceito, como paradigma de qualidade comparativa entre indivíduos de qualquer natureza; a manipulação de ordem política, econômica e social para extermínio, aniquilação e controle de grupos, entidades e/ou indivíduos são formas de barbárie. A barbárie coloca os que sofrem em estado de constante agonia, e denota a submissão ou a imposição política, estrategicamente, explícita ou implícita, de um indivíduo, um grupo, entidade ou país. Leia-se um fragmento da obra Sete aulas sobre Linguagem, Memória e História (1997), de Jeanne Marie Gagnebin: [...] uma concepção da sociedade humana fundada no logos, isto é, no diálogo argumentativo entre iguais que procuram juntos uma regra comum de ação; a este paradigma racional e democrático se opõe uma concepção do social baseada no poder e na vontade (para não dizer na vontade de poder!) do mais forte, na sua transgressão das regras do convívio social e na sua expansão sem limites. Este conflito, que perdura até hoje, preside a oposição-mestra das histórias, a oposição entre gregos e bárbaros. (GAGNEBIN, 1997, p. 22). Não é só na guerra que a barbárie ocorre. Em seu ensaio, introdutório à coletânea Civilização e barbárie, intitulado “Crepúsculo de uma civilização”, Adauto Novaes (2004:18) questiona: “Que outro nome dar à civilização tecnológica que conduz à clandestinidade as artes, a política, a vida vivida, a experiência do outro em nós (germe da civilização universal), senão o de barbárie?”. Tampouco seria possível afirmar que a barbárie seja exclusividade de 108 Portugal, do regime salazarista opressor, dos soldados ocidentais em África ou da sociedade portuguesa, nesse período histórico. Lobo Antunes consegue denunciar, pela natureza testemunhal, pela articulação da linguagem, plena de hipérboles, metáforas e anamorfoses, a barbárie testemunhada na Guerra Colonial em África (representá-la, resgatá-la, reconstruí-la e reconfigurá-la). No entanto, não se limita a apenas isso, pois “põe o dedo na ferida” da organização social de um país semiperiférico, dominado politicamente pelo regime salazarista. Leia-se um trecho da obra Capelas Imperfeitas (2002), de Isabel Allegro de Magalhães: Sobre esta Guerra, há hoje (2002) já um volume substancial de textos: romances, contos, diários, poesia, obras dramáticas. Mesmo sem estar ainda feito um inventário completo poder-se-á estimar a existência de algumas dezenas de obras de ficção narrativa. [...] são homens e mulheres [autores e autoras]: Cristóvão de Aguiar, Manuel Alegre, António Lobo Antunes, Maria de Carvalho, Carlos Coutinho, Carlos Vale Ferraz, José Martins Garcia, Álvaro Guerra, Lídia Jorge, João de Melo, José Manuel Mendes, Álamo Oliveira, Joana Ruas, Wanda Ramos. Todos esses escritores estiveram lá como combatentes ou como seus acompanhantes, como é o caso das mulheres-de-oficial. Não sendo embora da experiência que a literatura se faz, é sempre da sua intensidade, ou da imaginação dela, que nascem as figurações simbólicas. (Curiosamente, em relação às narrativas sobre a guerra, existe uma, cujo autor nunca esteve na guerra). [...] (MAGALHÃES, 2002, p. 163). O romance Os Cus de Judas (2007) não é apenas a descrição, pelo resgate de elementos da memória do autor narrador-personagem, da crueldade, da barbárie e da agonia de soldados africanos ou portugueses, como também o espelhamento da barbárie da imposição da política, da traição dos princípios, da omissão de uma elite pedante e inapta. É o testemunho da inauguração de um ciclo de dor e perda, longe da pátria, em nome da pátria, por um projeto de nação construído, a partir de interesses econômicos e destrutivos, violentos em métodos e meios, cuja finalidade não os justificaria jamais. Vejamos a representação ficcional dessa questão: [...] Trazíamos vinte e cinco meses de guerra nas tripas, vinte e cinco meses de comer merda, e beber merda, e lutar por merda, e adoecer por merda, e cair por merda, nas tripas, vinte e cinco intermináveis meses dolorosos e ridículos nas tripas, de tal jeito ridículos que, por vezes [...] desatávamos de súbito a rir, na cara uns dos outros, gargalhadas impossíveis de estancar [...] e a troça escorria-nos em lágrimas 109 de piedade, e de escárnio, e de raiva [...] e nos calávamos como as crianças se calam em meio ao seu choro,[...] (ANTUNES, 2007, cap. “U”, de Os Cus de Judas, p.170). A promessa de evolução e transformação que não se cumpre, o escambo desigual de bens e serviços, a imposição de dogmas e rituais de natureza religiosa, o impedimento da possibilidade argumentativa de grupos ou a desqualificação das entidades e/ou indivíduos seriam indícios contrários à configuração de uma sociedade considerada como “Civilizada”. Antes, são nuances de uma prática discutível e, por seu raio de alcance e destruição em relação ao outro, bárbara. Em um dos ensaios inseridos na obra Civilização e barbárie (2004), Francis Wolff (2004: 19-47) apresenta a pergunta crucial: “Quem é bárbaro?”. Wolff destaca: [...] “O que é ser bárbaro?” [...] a barbárie, a ideia simples e única de barbárie, oposta à ideia única e simples de civilização, não existe. Há várias formas de barbárie e, contrariando o preconceito evolucionista, elas não estão ligadas entre si. Não existe um único eixo na humanidade que parta da selvageria primitiva e se encaminhe para a mais alta civilização. [...] Ora, a verdadeira “barbárie” não é exatamente essa? Não é o recurso ordinário ou sistemático a práticas ferozes, desumanas, cruéis? – seja na escala familiar das mutilações rituais ou uma escala política dos extermínios em massa? [...] Uma cultura civilizada é sempre virtualmente mestiça. Em suma, uma civilização é enriquecida por uma pluralidade de culturas, enquanto uma cultura é bárbara quando é apenas ela mesma, só pensa nela mesma, só pode ser ela mesma, permanece centrada, e, portanto, fechada sobre si mesma. (WOLFF, 2004 apud. NOVAES, 2004, p. 30; 42). Theodor Adorno afirma, na obra Educação e emancipação (2002:158), que “a barbárie existe em toda a parte em que há uma regressão à violência física primitiva”. Notese, no entanto, que os mesmos indivíduos que fazem parte do grupo que pretenda reafirmar sua “superioridade”, em qualquer nível, parecem possuir a tendência à percepção de seus métodos e meios não como bárbaros, mas como uma oportunidade de oferecer ao outro a implantação da civilização. A consciência da falta de experiências ou a superficialidade das experiências existentes é o que motiva o testemunho em agonia dos bárbaros. Em contraposição, aqueles que constatam o mal histórico, a tragédia e o trauma, lutam contra eles e escrevem sobre eles. 110 E porque não são capazes de parar, de abrir mão de continuar lutando, partilham experiências, escrevendo. Já, aqueles contra os quais pesam adjetivos pouco lisonjeiros, acusações; aqueles contra os quais os que desejam libertar-se se rebelam, afirmam, com sua ideologia, sua postura abjeta e desumana. Leia-se um fragmento do ensaio “Experiência e pobreza”, escrito por Walter Benjamin em 1933 (2008): A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra. A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno grupo de poderosos, que sabe Deus não são muito mais humanos que os outros; na maioria bárbaros, mas não no bom sentido. Porém os outros precisam instalar-se, de novo e com poucos meios. São solidários dos homens que fizeram do novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia. Em seus edifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali um som bárbaro. Perfeito. No meio tempo, possa o indivíduo dar um pouco de humanidade àquela massa, que talvez um dia retribua com juros e com os juros dos juros. [...] 1933. (BENJAMIN, 2008, p.119). Este fragmento do ensaio de Walter Benjamin dialoga diretamente com os conceitos de barbárie e cultura, além de suscitar os questionamentos acerca de uma postura humanitária que deveria estar presente na literatura pós-moderna. Pelo fato de a barbárie ser parte do processo de evolução das sociedades, o diálogo proposto pelos estudiosos e/ou o espelhamento proposto pelos artistas faz com que a barbárie possa impelir as novas sociedades a um processo de reflexão sobre meios e métodos escusos, utilizados pela nação para manter sua hegemonia. Leia-se Lobo Antunes: [...] Mas não podíamos urinar sobre a guerra, sobre a vileza e a corrupção da guerra: era a guerra que urinava sobre nós os seus estilhaços e os seus tiros, nos confinava à estreiteza da angústia e nos tornava em tristes bichos rancorosos, violando mulheres contra o frio branco e luzidio dos azulejos, ou nos fazia masturbar à noite, na cama, à espera do ataque, pesados de resignação e de uísque, encolhidos nos lençóis, à laia de fetos espavoridos [...] (ANTUNES, 2007, cap. “V”, de Os Cus de Judas, p.179). 111 A coexistência entre civilização e barbárie, ou antes, o seu espelhamento, exacerbado pela memória e pelo testemunho, na obra de Lobo Antunes, demonstra que não só os angolanos sofreram com a barbárie, infligida pelos portugueses, mas também os que foram mobilizados para manter as colônias ou possessões ultramarinas em África. A obra Os Cus de Judas (2007) permite a nós conhecer homens, mutilados no corpo e na alma, traumatizados pela guerra, desterritorializados em sua trajetória, desumanizados em seus desejos, mutilados em seus sonhos. São soldados em agonia no campo de batalha. São bárbaros civis sem civilidade ou sem humanidade, obrigados pela imposição política. As duas epígrafes deste capítulo, intencionalmente, possuem o mesmo título e trazem fragmentos do poema de Konstantinos Kaváfis e um trecho do romance J.M. Coetzee (deliberadamente inspirado no poema de Kaváfis); buscam explicitar que não se trata apenas de uma dicotomia entre bons e maus, certo ou errado, ideologia e progresso, dominados e dominantes, invasores e invadidos, ditaduras e democracias, capitalismo e socialismo. Francis Wolff (2004:43) afirma que “[...] existem, sim, bárbaros e civilizados, práticas ou culturas bárbaras, práticas ou culturas civilizadas, mesmo que toda cultura, qualquer que seja, possa ser exemplo de civilização ou mergulhar na barbárie”. Dessa forma, deve-se observar a importância da função que a ética, a literatura e a arte têm no processo de estabelecer o respeito à pluralidade cultural, à miscigenação, ao reconhecimento de processos culturais e religiosos diferentes e coexistentes. A diferença entre culturas e paradigmas não deve, barbaramente (no sentido negativo da barbárie), representar antagonismos e se traduzir em guerras e em mortes. Entende-se que aniquilar a barbárie não seria punir os “culpados” e proteger os “inocentes”; mas, num sentido mais amplo, promover a coexistência e o respeito às diferenças culturais, pois não se trata de eleger um modelo de civilização para fazer cessar a barbárie. Trata-se, antes, de entender que as tradições e os processos culturais e/ou religiosos cumprem 112 caminhos diversos em sociedades distintas. Elegem dogmas, sacralizam ritos, cristalizam filosofias e costumes e que estes evoluem e se modificam paulatinamente. A transformação forçada pela revolução, pela violência, pela dominação de qualquer natureza e pela imposição não se afirma como evolução; é, antes, um massacre, quer seja do corpo das vítimas, quer seja da alma do algoz – espelhamento ao qual a Literatura e a Arte, de quando em vez, dão voz, esperando, talvez utopicamente, que isso não se repita. 113 CONSIDERAÇÕES FINAIS Alguns romances iniciais, da autoria de Lobo Antunes, apresentam situações vividas por narradores-personagens, através de relatos pseudo-autobiográficos, que podem ser correlacionados à vida do autor, durante o período histórico da Guerra Colonial. A barbárie, o horror da morte, a crítica direta ou velada ao sistema e às instituições e o contato com o outro e com o que este representa como indivíduo ou como inimigo portador de ideologia e cultura diferentes estão presentes no espaço ficcional. De modo geral, tais romances podem ser considerados um espelho que além do desvendamento de uma subjetividade fraturada, retrata o estranhamento do sujeito descentrado que emite, de forma contundente ou sutil as reflexões sobre os desmandos da política expansionista portuguesa. Nesta dissertação, o objeto de pesquisa foram as cartas escritas por Lobo Antunes quando este serviu ao exército português na Guerra Colonial em África. Detivemo-nos nelas, Por considerá-las documentos, objetos característicos de uma escrita autobiográfica e epistolar que podem servir como uma espécie de pacto de veracidade na inter-relação entre a ficção e a História de Portugal, durante este período. A memória e a autobiografia do autor como elementos associados às características de seus narradores-personagens das obras iniciais e, sobretudo, como elementos que justificam a recorrência temática em seus romances também foram apontados por nós. O corpus analisado durante esta dissertação, a obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005), organizada por Maria José e Joana Lobo Antunes, é a reunião das cartas enviadas pelo pai das organizadoras da obra, o médico e escritor António Lobo Antunes, à sua esposa Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes, no início da década de 70, quando este estava a serviço do exército português. 114 O problema discutido foi a possibilidade de que tais cartas, que se aproximariam de um diário íntimo, escritas por Lobo Antunes, durante o seu período como médico a serviço do exército português se configurarem como uma espécie de pacto autobiográfico entre ele – autor intratextual e seus leitores. Observou-se não só a recorrência temática, no que concerne à guerra e à solidão, como também a construção narrativa fragmentada, em decorrência de memórias agudas e doloridas de um passado recente, como se verifica, sobretudo, na estruturação narrativa de seus romances iniciais. Em suma, pretendeu-se observar se haveria uma sobreposição entre a figura elocucionária do autor, que esteve no “campo de batalha” (fato verificável pela história pessoal do autor e corroborado pela análise de suas cartas), e a elaboração ficcional de seus narradores e personagens. E ainda: se haveria a possibilidade de se verificar traços ou resíduos autobiográficos na escritura das “Cartas da Guerra” e na elaboração dos romances posteriores de António Lobo Antunes. A hipótese que norteou essa dissertação foi a de que seria possível, em face do estudo da biografia e das cartas do autor, localizá-lo e às suas experiências e/ou vivências apreendidas durante esse período, seja no âmbito da História, seja no âmbito do Espaço, representado como ficção, e, recuperado através da Memória desses acontecimentos, passíveis de fornecerem subsídios para o processo de representação utilizado em seus romances. Considerou-se, portanto, que a escrita das cartas e o conteúdo autobiográfico que elas possuem são um elo capaz de coadunar e potencializar a percepção da inter-relação entre a Memória, a História e a ficção na obra de António Lobo Antunes. Destacou-se que as cartas elencadas na obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005) são um conjunto de cartas reais, enviadas por um homem, um médico, direto do campo de batalha para a sua amada – muito amada – esposa com a qual 115 recentemente se casara e de quem se despedira, a serviço do exército (durante a repressão salazarista em Portugal), deixando-a grávida da primeira filha do casal. Não se pretendeu, no entanto, argumentar sobre a configuração de uma possível literatura epistolar recorrente na obra antuniana, ou ainda, apontar para a produção contundente e direta de uma autobiografia, presente em obras posteriormente escritas. Entende-se, igualmente, que há resíduos ou traços de experiências autobiográficas que predispõem o leitor a superpor entre a figura do autor à de seus narradores-personagens, em narrativas que tenham como tema a Guerra Colonial em África ou a ela se refiram. As obras utilizadas como apoio teórico foram, principalmente, O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet (2008), de Philippe Lejeune e Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si (2009), de Elizabeth Muylaert Duque-Estrada. Em relação à ficção antuniana, o estudo crítico, Os romances de António Lobo Antunes: análise, interpretação, resumos e guiões de leitura. (2002), de Maria Alzira Seixo, bem como artigos, dissertações e ensaios produzidos acerca da obra do autor, serviriam como suporte teórico para a nossa argumentação. Esta dissertação se estruturou em seis capítulos bem específicos. No capítulo dois, discutiu-se o enlevo amoroso e o desterro verificado nas cartas, foram apresentados os dados biográficos gerais sobre Lobo Antunes e Maria José, sua esposa, e, buscou-se contextualizar o período da Guerra Colonial, cenário deflagrador da produção das “Cartas da Guerra”. Nos capítulos três e quatro, foram apresentados os pressupostos teóricos para a escrita epistolar e para a escrita autobiográfica, a partir da teoria de Lejeune e da configuração textual de uma carta. Buscou-se destacar a aproximação entre a carta como documento e autobiografia, e, a motivação para essa modalidade de escrita e seus comprometimentos com relação às figuras da enunciação nos discursos real e literário. 116 Aludiu-se, também, à “escrita de si”, na acepção de Foucault, teorizada em O que é um autor?, reflexo “d’este viver aqui neste papel descripto”. No capítulo cinco, desenvolveu-se um estudo sobre as interações entre a memória e o exílio na obra de Lobo Antunes. Foram apresentadas as relações entre História, memória e ficção na literatura portuguesa contemporânea e como as histórias particular e coletiva podem se interseccionar na obra literária. Observou-se, inclusive, como a experiência do isolamento levou o autor a desenvolver uma linguagem hiperbólica em que os sentimentos são exacerbados pelo trauma e pela solidão. Na sequência, ainda no capítulo cinco, buscou-se analisar as “Cartas da Guerra” de Lobo Antunes. Pretendeu-se caracterizá-las, contextualizar seu processo de produção, estabelecer-se um protocolo de leitura, contabilizar sua produção e destacar produções que destoassem das demais cartas. Buscou-se demonstrar como a sequência de cartas produz uma espécie de autobiografia e um diário que demonstra o avanço, os desdobramentos da estada do autor no front de batalha. Neste capítulo da dissertação, foi assinalado que o autor começa a produzir os primeiros textos ficcionais e demonstra preocupar-se com os registros por escrito de sua experiência não apenas para informar à esposa sobre sua trajetória, mas para que possa, posteriormente, escrever sobre ela. Nesta etapa, surgem os primeiros poemas que o autor começa a produzir como maneira de destacar as inquietações do seu “eu” pessoal e poético. Apresentou-se, também, uma análise detalhada e alegórica de um de seus poemas, como forma de demonstrar sua relação com a experiência vivida pelo autor das cartas e uma estruturação literária que se desenvolverá com a escrita dos romances. No capítulo seis, analisou-se a transfiguração entre a enunciação do autor e a de seus narradores-personagens. Os devires literários e biográficos foram, mais uma vez, apresentados como uma perspectiva para se analisar as inter-relações entre História, memória e ficção pela 117 trajetória autobiográfica de Lobo Antunes. As relações com a filosofia e a literatura, tão tênues, foram consideradas como fator de potencialização do pacto autobiográfico. Ainda no capítulo seis, aludiu-se à obra Os Cus de Judas (2007), de António Lobo Antunes, tendo como base a questão da barbárie testemunhada pelo autor referenciada em suas cartas, mas, agora, exacerbada pelo fluxo de memórias de um narrador-personagem fragmentado, marcado pelo trauma da Guerra Colonial, pelo desencantamento do mundo e pela incomunicabilidade plena com o outro. A percepção de que este romance, que integra a trilogia inicial da obra antuniana ao lado de Conhecimento do Inferno (1980) e Memória de Elefante (1979), tem uma grande verve autobiográfica é apoiada pela análise desenvolvida pela obra crítica produzida pela pesquisadora e ensaísta portuguesa Maria Alzira Seixo. Assim, fecha-se um ciclo de análise que pretendeu demonstrar como a escrita autobiográfica permeia a construção das cartas e a escrita embrionária dos poemas, através do registro de um “eu-lírico” que reaparecerá nas obras iniciais de António Lobo Antunes. A conclusão a que se chegou, após a estruturação crítica e argumentativa proposta por esta dissertação, é a de que a autobiografia pode permear as inter-relações entre História e Memória na ficção antuniana, o que nos levou, em especial, a nos deter no romance Os Cus de Judas (2007), e a apontar a influência das experiências vivenciadas ou testemunhadas pelo autor durante o seu serviço como médico na Guerra Colonial em África. Como proposta de desdobramento de pesquisa, seria possível investigar ao longo das demais obras antunianas, a recorrência e/ou a diluição das experiências do autor no ethos de outros personagens e narradores ou na construção de situações narrativas que se percebam apoiadas, estruturadas em reconstruções a partir do resgate de elementos da memória, seja ela real ou inventada e as representações possíveis de tempo e espaço que ela promova. 118 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ANDRADE, Carlos Drummond de. “Carta”. In:______. Poesia completa. Volume único. Fixação de texto e notas Gilberto Mendonça Telles. Introdução de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2008. ANDRÉ, Carlos Ascenso. Mal de ausência: o canto do exílio na lírica do humanismo português. Coimbra: Minerva, 1992. ANTUNES, António Lobo. “De repente, percebi que sou mortal”. Diário de Notícias. Edição digital, 28 de Outubro de 2010. Entrevista concedida a João Céu e Silva. In: <http://www.ala.t15.org/entrevistas/DN281010.htm>. Acessado em 17 de julho de 2011. ANTUNES, António Lobo. Os Cus de Judas. 2. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. ANTUNES, António Lobo. D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra. In: ANTUNES, Maria José Lobo & Joana Lobo (Orgs.). Lisboa: Dom Quixote, 2005. ______. Boa tarde às coisas aqui em baixo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. ______. "Receita para me lerem". In:______. Segundo livro de crónicas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002. p.109-111. AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 5. ed. Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2009. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Traduzido por Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa: Tzvetan Todorov. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. BARTHES, Roland. A preparação do romance II: a obra como vontade. Traduzido por Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 119 BAUMAN, Zygmunt. Identidade – entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza”. In:______. Magia e técnica, arte e política. Volume I. 7. ed. Traduzido por Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008. BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Volume I. Traduzido por Carlos Nejar. Rio de Janeiro: Globo, 1998. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Traduzido por Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia da Letras, 1996. p. 28. BRANDÃO, José. Cronologia da Guerra Colonial: Angola, Guiné, Moçambique, 1961-1974. Lisboa: Prefácio, 2008. CANDEAU, Joël. Memória e identidade. Traduzido por Maria Letícia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2011. CARDOSO, Norberto do Vale. Autognose e (Des)memória: Guerra Colonial e identidade nacional em Lobo Antunes, Assis Pacheco e Manuel Alegre. Braga: Universidade do Minho, Portugal. Tese de Mestrado em Teoria da Literatura Portuguesa. 186 fls. Portugal, Universidade do Minho, 2004. Arquivo em PDF, acessado em: 03 de junho de 20013. http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/2865/1/Tese.pdf CARDOSO M., Marília Rothier & COCO, Pina. “Apresentação: perspectivas (auto) biográficas nos estudos de literatura”. Palavra, nº 10, 2003. Departamento de Letras da PUCRio. Rio de Janeiro: Editora Trarepa, 2003. CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, Patrick & Dominique. Dicionário de análise do discurso. Coord. da tradução Fabiana Komesu. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008. COETZEE, J.M.. À espera dos bárbaros. Traduzido por José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. 2. ed. Traduzido por Cleonice Paes Barreto Mourão. Série: Humanitas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 120 COSTA, Verônica Prudente. A perda do caminho para casa em Fado Alexandrino, de António Lobo Antunes. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 127 fls. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. <http://www.letras.ufrj.br/posverna/mestrado/CostaVP.pdf. > Arquivo em PDF. Acessado em 15 de fevereiro de 2013. DUQUE-ESTRADA, Elizabeth Muylaert. Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si. Rio de Janeiro: NAU/Editora PUC-Rio, 2009. ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Traduzido por MF. Revisão da tradução e texto final de Monica Stahel. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho. “A noite escura da alma”. Jornal do Brasil. (Caderno Ideias). Rio de Janeiro, 06 de setembro de 2003, p. 06. _____. Alice e Penélope na ficção portuguesa contemporânea. Tese de doutorado. Faculdade de Letras, UFRJ, 1999. Banco de Dissertações e Teses da Pós-Graduação em Letras da UFRJ. Rio de Janeiro, RJ, 1999. Tese consultada em 1 de julho de 2013. FIGUEIREDO, Eurídice. “Régine Robin: autoficção, bioficção, ciberficção”. Ipotesi, Revista de Estudos Literários, volume 14, número 2, jul./dez.. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2007. p. 21-23. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Traduzido por António Fernando Cascais e Edmundo Cordeiro. Editorial Vega, Passagens, 1992. [s.l.] ______.A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre Linguagem, Memória e História. Rio de Janeiro: Imago, 1997. 121 GOMES, Renato Cordeiro. “Narrativa e Paroxismo: será preciso um pouco de sangue verdadeiro para manifestar a crueldade?”. In: DIAS, Ângela Maria & GLANADEL, Paula. (Orgs.). Estéticas da crueldade. Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2004, p. 143-154. GONDA, Gumercinda Nascimento. O Santuário de Judas: Portugal entre a Existência e a Linguagem. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa. Departamento de Letras Vernáculas. Banco de Dissertações e Teses da Pós-Graduação em Letras da UFRJ. Número de registro: 0594 – 28 de setembro de 1988. Rio de Janeiro - RJ: 1988. Dissertação consultada em 01 de junho de 2013. GUÉRIN, Michel. O que é uma obra?. Traduzido por Cláudia Schilling. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. HAMBURGUER, Käte. A lógica da criação literária. 2. ed. Traduzido por Margot P. Malnic. São Paulo, Perspectiva, 1986. HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico. Versão em CD-Room. 2007. KAVÁFIS, Konstantinos. “À espera dos bárbaros”. In: PAES, José Paulo. Poesia Moderna da Grécia. Seleção, tradução direta do grego, prefácio, textos críticos e notas de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986. LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão et. alii. Campinas, SP: UNICAMP, 1990. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Jovita Maria Gerheim Noronha. (Org.). Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008. (Série: Humanitas). MAGALHÃES, Isabel Allegro de. Capelas Imperfeitas. Lisboa: Livros Horizonte, 2002. MELO, João de. Os anos da guerra: 1961-1975 – os portugueses em África. Crônica, ficção e história. Vol. I e II. Lisboa: Publicação Dom Quixote, 1988. 122 MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. “A arte de escrever cartas: para a epistolografia portuguesa no século XVIII”. In: GALVÃO, Walnice Nogueira & GOTLIB, Nádia Batella. (Orgs.). Prezado senhor, prezada senhora: estudos sobre cartas. São Paulo: Cia das Letras, 2000. MONTEIRO, Renato & FARINHA, Luís. Guerra colonial: fotobiografia. 2.ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998. MONTERO, Rosa. A louca da casa. Traduzido por Paulina Wacht e Ari Roitman. 2. reimpressão. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. NOVAES, Adauto. (Org.). “Crepúsculo de uma civilização”. In:______. Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. PAES, Primitivo. “As cartas”. In:______. Livro de Poemas. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2004. PÉCORA, Alcir. “Velhos textos, crítica viva”. In: TIN, Emerson. (Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005. PESSOA, Fernando. “Todas as cartas de amor são ridículas.”. In:________. Poemas escolhidos. Seleção e organização: Frederico Barbosa. Rio de Janeiro: Klick, 1997. QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência: ou a literatura e exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. RIBEIRO, Margarida Calafate. Uma história de regressos: império, guerra colonial e póscolonialismo. Porto: Edições Afrontamento, 2004. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Traduzido por Marina Appenzeller. Volume 2. São Paulo: Martins Fontes, 1995. RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Traduzido por Paulo Rónai. 14. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1986. 123 ROCHA, Andrée. A epistolografia em Portugal. 2. ed. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. SAID, Edward. “Reflexões sobre o exílio”. In:______. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.46-60. SCHÖPKE, Regina. Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade. São Paulo: Edusp, 2004. SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Organização, tradução, prefácio e notas de Pedro Süssekind. (Vol. 479). Porto Alegre, RS: L&PM, 2009. SEIXO, Maria Alzira. “Autobiografia”. In:______. Os romances de António Lobo Antunes: análise, interpretação, resumos e guiões de leitura. Portugal: Dom Quixote, 2002. ______. As Flores do inferno e jardins suspensos: Vol. II de Os romances de António Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó, SC: Argos, 2006. ______. (Org.). História, Memória, Literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2001. SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Lisboa: Dom Quixote, 1989. SOARES, Maria de Lourdes. Até ao fim do mundo: D’este viver aqui neste papel descripto de António Lobo Antunes. Revista SOLETRAS, Ano VI, N° 12. São Gonçalo: UERJ, jul./dez, 2006. Arquivo em PDF. http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/soletras/article/view/4644>. Acessado em 28 de maio de 2013. 124 TIN, Emerson. (Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005. TODOROV, Tzvetan. A poética da prosa. Traduzido por Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______. Em face do extremo. Tradução de Egon de Oliveira Rangel e Enid Abreu Dobránszky.Campinas:Papirus, 1995. (Coleção Travessia do Século). VALENTIM, Claudia Atanazio. O romance epistolar na literatura portuguesa na segunda metade do século XX. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 116 Rio fls. mimeo. de Tese Janeiro: de UFRJ, Doutorado 2006. em Literatura Arquivo Portuguesa. em PDF. <http://www.letras.ufrj.br/posverna/doutorado/ValentimCA.pdf >. Acessado em 10 de dezembro de 2012. WOLFF, Francis. “O que é bárbaro?”. Traduzido por Dorothée Du Bruchard. In: NOVAES, Adauto (Org.). Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 125 ANEXOS 126 Anexo 01 ANTUNES, António Lobo. D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra. In: ANTUNES, Maria José Lobo & Joana Lobo (Orgs.). Lisboa: Dom Quixote, 2005. CARTAS DE LOBO ANTUNES – MÊS A MÊS 1971 (DATAS/Nº) JANEIRO 1972 (DATAS/Nº) 1973 (DATAS/Nº) 10 cartas MADEIRA 15 cartas 06 cartas (7, 14, 16, [Luanda], 17, CHIÚME MARIMBA 20, 21, 27 [Gago (02, 03, 04, 05, [15, 17, (16, 18, 20, 22, Coutinho], 28, 29, 31) 18, 19, 20, 21, 24, 25, 27, 30) p. 17-37. 26, 27/28, 29] p. 420-425. MARIMBA) Fim do serviço. p. 330-345. FEVEREIRO 18 cartas 18 cartas NADA (01, 02, 04, 05, 06, 07, MARIMBA 08/09, 10, 11, 13, 14, 15, (02, 03, 05, 06, 08, 10, 16, 24, 25, 26, 27, 28) 11, 12, 13, 15, 16, 18, p.37-71. 20, 22, 23, 25, 26, 28, 29) p. 346-366. MARÇO 25 cartas (01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08, 09,10, 11, 12, 13, 17, 20,21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30/31). p. 72-112. ABRIL MAIO 20 cartas NADA MARIMBA (03, 04, 06, 10, 11, 12 [um poema], 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 22, 25, 26, 28, 29, 30, 31) p. 366-392. 25 cartas 12 cartas NADA (01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, MARIMBA 08, 09, 11, 12, 13, 17, 19, (01, 02, 04, 05, 07, 08, 20, 21/22, 11, 12, 13, 14, 16, 17) [25, 26, 27, 28, 29, 30,] p. 392-409 NINDA) p. 112-145. 25 cartas NADA NADA NINDA (01, 04, 05, 06, 07, 08, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 26, 27, 28, [30, 31] CHIÚME) p. 146-182. 127 NADA NADA 09 cartas MARIMBA (15, 16, 18, 20, 22, 24, 26, 28, 30) p. 410-419. NADA NADA NADA NADA NADA Férias em Lisboa NADA OUTUBRO NADA NOVEMBRO 19 cartas 03 [GAGO COUTINHO], CHIÚME: 04, 05, 06, 07, 09, 10,12, 13, 15, 16, 17, 19, 21, 22, 23, 24, 28, 30) p. 286-308. NADA JUNHO JULHO AGOSTO SETEMBRO 27 Cartas CHIÚME (01, 02, 03, 04, 05, 07, 08, 09, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27 [um poema], 28, 29) p. 182-219. 24 cartas CHIÚME (01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08, 09, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 17, 19, 20, 21, 22/23, 25, 26, 27, 28) p. 220-256. 15 cartas GAGO COUTINHO (01, 02, 03, 04, 05, 07, 08, 09, 10, 12, 13, 15, 16, 28, 31) p. 256-273. 09 cartas GAGO COUTINHO (01, 02, 03, 05, 07, 09, 11, 13, 15) p. 274-284. DEZEMBRO 21 cartas CHIÚME (01, 02, 04, 05, 06, 08, 09, 10, 12, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 22, 27, 28, 29, 30) p.309-329. NADA NADA TOTAL: TOTAL GERAL: 218 CARTAS 74 CARTAS 06 CARTAS 298 CARTAS 128 Anexo 02 ANTUNES, António Lobo. D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra. In: ANTUNES, Maria José Lobo & Joana Lobo (Orgs.). Lisboa: Dom Quixote, 2005. a) Fotografias de António Lobo Antunes e Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes – Reprodução gentilmente cedida por Maria José e Joana Lobo Antunes, filhas do autor das cartas. [01] “Casamento” – Fotografia de 01[08] de agosto de 1970 – Il. (2005, p. 164-165). Reprodução 15X10 cm do original que ocupa as páginas centrais da obra. 129 [02] “Casamento – detalhe do rosto dos noivos” – Fotografia de 01 [08] de agosto de 1970 Il. (2005, reprodução da capa do livro). 130 [03] “Lobo Antunes e Maria José em um evento social” – Il. Color 10x15 cm Reprodução de fotografia (2005, folha de rosto). 131 [04] “279ª carta” – 11.4.72 (MARIMBA) “A fotografia em que estou rodeado de negros foi tirada no mercado da ginguba, nome que aqui tem o amendoim quando a população vem vender aos comerciantes [...]”. Il. 15X10 cm – reprodução de fotografia (2005, p.401). 132 [05] “189ª carta” 15.11.71 (Chiúme) – “Lobo Antunes fardado” Il. 15X10 cm – reprodução de fotografia (2005, p.297). 133 Anexo 02 ANTUNES, António Lobo. D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra. In: ANTUNES, Maria José Lobo & Joana Lobo (Orgs.). Lisboa: Dom Quixote, 2005. a) Reprodução dos aerogramas enviados por Lobo Antunes à esposa. [01] Il. “Aerograma – visão externa” – Chiúme – 16.4.71 [Na realidade, 16.6.71] – Reprodução do original. Medida 15x10 cm (2005, p. 201). Destaque para o nome e o endereço do destinatário, escrito em caixa alta, para o desenho feito por Lobo Antunes e para a “técnica” de aproveitamento do espaço do aerograma. (2005, p.200-201). 134 [02] Il. “Detalhe do aerograma” – A carta de 05.4.72 é a única não transcrita na obra. Prevalece a reprodução das palavras do aerograma. 15x 10 cm – Reprodução do original. (2005, p.396).