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A ESCRITA EPISTOLAR E AUTOBIOGRÁFICA NA OBRA
D’ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO: CARTAS DA GUERRA,
DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Erivelto da Silva Reis
Faculdade de Letras / UFRJ
2013
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A ESCRITA EPISTOLAR E AUTOBIOGRÁFICA NA OBRA
D’ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO: CARTAS DA
GUERRA, DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES
por
Erivelto da Silva Reis
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).
Linha de pesquisa: Estudos de narrativa portuguesa:
relações entre Memória, História e Literatura.
Orientadora: Profª. Drª. Ângela Beatriz de Carvalho Faria
Rio de Janeiro
Setembro de 2013
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REIS, Erivelto da Silva.
A escrita epistolar e autobiográfica na obra D’este viver aqui neste
papel descripto: cartas da guerra, de António Lobo Antunes – Rio de
Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2013.
xii. 134f. 30 cm.
Orientadora: Profª. Drª. Ângela Beatriz de Carvalho Faria
Dissertação (mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras,
Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literaturas
Portuguesa e Africanas), 2013.
Bibliografia: fls. 118-124.
Anexos: fls.126-134
I.
1. Crítica Literária. 2. Prosa Portuguesa Contemporânea. 3. António
Lobo Antunes. 4. Escrita epistolar. 5. Autobiografia.
FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho
II. UFRJ, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, Área de Literatura Portuguesa.
III. Título.
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FOLHA DE APROVAÇÃO
REIS. Erivelto da Silva.
A ESCRITA EPISTOLAR E AUTOBIOGRÁFICA NA OBRA
D’ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO: CARTAS DA GUERRA, de António
Lobo Antunes. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa Contemporânea –
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013. 134 p.
Examinada por:
Presidente, Profª. Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria – UFRJ
Profª. Doutora Gumercinda Nascimento Gonda – UFRJ
Profª. Doutora Lúcia Maria Moutinho Ribeiro – UNI-RIO
Profª. Doutora Luci Ruas Pereira – UFRJ (Suplente)
Profª. Doutora Maria Cristina Batalha – UERJ – (Suplente)
Resultado: _______________
Data: ___/9/2013,
Rio de Janeiro
Setembro de 2013
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AGRADECIMENTOS
A Deus, sobre todas as coisas.
À minha esposa Gloria Regina e aos nossos filhos Allynie, Erick e Ian.
Ao meu pai José de Arimatéa, à minha mãe Maria Aparecida e aos meus irmãos
Erivaldo, Erialdo e Elton e a todos os meus familiares, sem exceção.
Às Faculdades Integradas Campo-grandenses, a gratidão pela formação recebida e por
me permitir fazer parte da família FEUC.
À Profª. Drª. Ângela Beatriz de Carvalho Faria, minha orientadora, grande exemplo de
profissionalismo e sabedoria, tão importante em minha formação acadêmica e na realização
desta dissertação.
Aos professores Cinda Gonda, Teresa Salgado, Carmen Tindó, Jorge da Silveira,
Luci Ruas, Teresa Cerdeira e Sérgio Gesteira, capazes e delicados nos gestos.
A todos os meus colegas professores das Faculdades Integradas Campo-grandenses.
Aos meus alunos. Sementes, raízes, folhas e frutos do ofício de educar.
Aos meus amigos e colegas de jornada em todas as etapas de minha formação docente.
Aos amigos mais próximos e aos mais distantes, também.
Aos professores, coordenadores, funcionários e aos meus colegas do Curso de Pósgraduação em Letras Vernáculas da UFRJ pela alegria da convivência.
À professora Mirian da Silva Pires e ao inesquecível amigo poeta Primitivo Paes, in
memoriam.
À editora Maria da Piedade Madeira Martins Ferreira e às caríssimas Maria José e
Joana Lobo Antunes, filhas de Lobo Antunes, por, gentilmente, autorizarem a inclusão das
fotos da obra “Cartas da Guerra”, no corpo desta dissertação.
A todas as pessoas ligadas direta ou indiretamente à Educação neste país.
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Dedico esta dissertação, com todo amor do mundo, a duas pessoas
sem as quais eu não conseguiria chegar até aqui: minha esposa
Gloria Regina, que sempre me incentivou a prosseguir com carinho e
respeito e ao inesquecível e saudoso poeta Primitivo Paes, um pai que
a poesia me deu e que me legou um exemplo de amor à Arte e à
Literatura.
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As Cartas
Primitivo Paes
Quero ver a nossa gente
Fazer a nação crescer.
Os lavradores plantando
Para a família colher.
Ter casa para morar,
Escola para aprender;
Para, quando for adulto,
Não ser humilhado assim:
Cabisbaixo, timorato,
Vai à casa do vizinho.
Tremendo, olhando pro chão,
Chega falando baixinho,
Coração acelerado
Vai logo dizendo assim,
Com uma carta na mão:
"Leia essa carta pra mim!"
Chegou carta dos parentes,
Não sabemos o que fazer;
Nem meu pai, nem minha mãe,
Nem eu... não sabemos ler.
Desculpe tomar seu tempo,
Vir pedir pra você ler.
As coisas vão melhorar,
Eu ainda quero ver:
Um dia vou pra escola,
Eu vou aprender a ler,
A somar, diminuir,
Dividir, multiplicar...
Para quando for pra usina,
Cortar cana pra moer,
Saber quanto vou ganhar
E o tanto que vou perder!
Mas quando as cartas chegarem
Eu mesmo saberei ler.
Segredos de meus parentes
Vizinho nenhum vai saber!
Daí ninguém me segura, Brasil,
Estou com você!
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A minha história e o meu amor à Literatura começou assim...
Através das cartas.
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[...] Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: [...].
Carlos Drummond de Andrade
[...] O objetivo mais ampla e intensamente cobiçado é a
escavação
de
trincheiras
profundas,
possivelmente
intransponíveis, entre o “dentro” e o “fora” de uma
localidade territorial ou categórica. Fora: tempestades,
furacões, ventos congelantes, emboscadas na estrada e
perigos por toda parte. Dentro: aconchego, cordialidade,
[...] vamos construir, cercar e fortificar um espaço
indubitavelmente nosso e de mais ninguém, um espaço em
cujo interior possamos nos sentir como se fôssemos os
únicos e incontestáveis mestres.
Zygmunt Bauman
Uma coisa engraçada que tenho reparado em mim é que
praticamente deixei de conversar, e, para além das
perguntas inevitáveis [...] não digo nada a ninguém, e ando
forrado de silêncio por dentro. Esse processo de
“silenciação progressiva”, que começou já antes de sair
daí está quase a atingir o zero absoluto. Qualquer dia não
preciso de voz para nada... E, no entanto, cada vez me
sinto menos indiferente em relação a tudo, e vou vivendo
com raiva e desespero esta pobre vida de exilado [...]
António Lobo Antunes
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RESUMO
REIS. Erivelto da Silva. A ESCRITA EPISTOLAR E AUTOBIOGRÁFICA NA OBRA
D’ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO: CARTAS DA GUERRA, de António
Lobo Antunes. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa Contemporânea –
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013. 134 p.
A presente dissertação de mestrado é um estudo acerca das características epistolares e
autobiográficas presentes na obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra
(2005), de autoria de António Lobo Antunes, organizada pelas filhas do autor, Maria José e
Joana Lobo Antunes, após a morte de sua mãe. Pretende-se, estabelecer, nesta dissertação, um
protocolo de leitura e análise de algumas cartas, a partir das reflexões críticas presentes nas
obras O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet (2008), de Philippe Lejeune, Devires
autobiográficos: a atualidade da escrita de si (2009), de Elizabeth Muylaert Duque-Estrada e
Os romances de António Lobo Antunes: análise, interpretação, resumos e guiões de leitura
(2002) de Maria Alzira Seixo, em que há um capítulo sobre “autobiografia” na obra
antuniana. Busca-se, inclusive, demonstrar como a experiência real do exílio e o horror da
guerra encontram ecos na obra antuniana, e apontar as relações entre história, memória e
ficção, priviligiando-se a postura do autor das cartas.
PALAVRAS-CHAVE: António Lobo Antunes – D’este viver aqui neste papel descripto:
cartas da guerra – escrita epistolar e autobiográfica – Ficção portuguesa contemporânea.
11
ABSTRACT
REIS. Erivelto da Silva. A ESCRITA EPISTOLAR E AUTOBIOGRÁFICA NA OBRA
D’ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO: CARTAS DA GUERRA, de António
Lobo Antunes. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa Contemporânea –
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013. 134 p.
This dissertation is a study of the characteristics present in the epistolary and autobiographical
work D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005), authoring António
Lobo Antunes, organized by the author's daughters, Maria Jose and Joanna Lobo Antunes,
after the death of his mother. Intends to establish, in this dissertation, a protocol for reading
and analyzing some letters from critical reflections in the works O pacto autobiográfico: de
Rousseau à Internet (2008), Philippe Lejeune, Devires autobiográficos: a atualidade da
escrita de si (2009), Elizabeth Muylaert Duque-Estrada and Os romances de António Lobo
Antunes: análise, interpretação, resumos e guiões de leitura (2002) Maria Alzira Seixo, in
which there is a chapter on "autobiography" in the work antuniana. Seeks to even demonstrate
how the actual experience of exile and the horror of war are echoes in the work antuniana, and
point out the relationship between history, memory and fiction, Favoring up the posture of the
author of the letters.
KEYWORDS: António Lobo Antunes – D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da
guerra – epistolary and autobiographical writing – Contemporary Portuguese fiction.
12
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
13
2 GUERRA COLONIAL, ENLEVO E DESTERRO
“NESTE PAPEL DESCRIPTO”
24
3 A ESCRITA EPISTOLAR
31
4 A ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA
40
5 MEMÓRIA E EXÍLIO EM LOBO AUTUNES
49
5.1 FICÇÃO, MEMÓRIA E HISTÓRIA
54
5.2 AS CARTAS DA GUERRA
63
6 “DEVIRES AUTOBIOGRÁFICOS” NOS ROMANCES ANTUNIANOS
88
6.1 LOBO ANTUNES: PERSONAGEM DE SI MESMO
92
6.2 A AGONIA DOS BÁRBAROS
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
113
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
118
ANEXOS
126
13
1 INTRODUÇÃO
Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo.
Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens
de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus,
de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros,
de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre
que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu
próprio rosto.
Jorge Luís Borges
Literatura. História. Memória. Cada vez que se propõe a inter-relação entre estes três
elementos na recente História de Portugal, sugere-se uma viagem pela experiência humana em
aspectos que suprimem, de forma nítida e contundente, as diferenças supostas entre a
Memória do real e a sua ficcionalização.
A ficção, na mímesis da realidade, pode se apropriar de passagens históricas, do ethos
de pessoas anônimas e/ou figuras notórias, na busca pela representação verossímil de uma
realidade inventada pela força da linguagem literária. Naturalmente, se a História e/ou as
pessoas reais podem ser ficcionalizadas, como não supor que textos como cartas, diários e
outros, considerados documentos, não possam ser o ponto de partida para a investigação de
elementos narrativos e recorrências temáticas em obras de ficção para construir a ilusão de
realidade em uma narrativa.
Em um contexto literário em que a ficção e a História se relacionam tão intimamente,
o indivíduo que escreve passa a ser a “metonímia de uma nação” ou o testemunho de um
momento específico apresentado pelo viés de um narrador-personagem que, às vezes,
identifica-se com o autor.
14
A História oficial passa a dever, pelo menos o benefício da dúvida – neste caso,
traduzido em obrigação de se ler e refletir sobre o texto literário –, à ficcionalização da
trajetória individual daqueles que lutaram e sobreviveram para escrever sobre o que
testemunharam e resgataram, através da memória de si e dos outros, à custa da literatura, de
documentos, de fotos, de correspondências e de diários do período vivenciado. O benefício da
dúvida, inclusive, insere-se da investigação inerente às áreas do conhecimento que abordam,
empiricamente, os mesmos temas.
Esta dissertação reflete sobre a construção epistolar da obra D’este viver aqui neste
papel descripto: cartas da guerra (2005), que reúne a correspondência enviada por António
Lobo Antunes à sua esposa, e, busca detectar ou apontar a autobiografia evidenciada na
escrita marcada pela presença do “eu”, sujeito da enunciação nas correspondências.
O objetivo desta dissertação é analisar as cartas escritas do “campo de batalha”,
durante o período da Guerra Colonial em África, por um médico (combatente e participante
de um batalhão operacional) à sua esposa. Tais cartas relatam o seu cotidiano, as suas
emoções, as suas impressões, o seu testemunho servem como verdadeiras declarações de
amor à mulher amada.
É importante destacar que, em um debate sobre o estatuto contemporâneo da biografia,
Marília Rothier Cardoso e Pina Coco advertem-nos que inerente a toda e qualquer “verdade”,
encontra-se a ficcionalização do vivido:
Dentre os diversos tipos de discursos, o literário é aquele em que a ficcionalidade
da linguagem é explícita e serve de ponto de partida da composição, invalidando
qualquer nexo simplificador entre as frases e seus eventuais referentes
extralinguísticos. Nesse caso, o estudioso de literatura não se sentirá tentado
a ler uma biografia como a “verdade” sobre um indivíduo real
em sua (suposta) plenitude. Há muitas décadas que a teoria da literatura
ensina que os relatos da vida ocupam o “não lugar” fabricado pelas estruturas
linguísticas resultantes de séculos de tradição narrativa épica e romanesca.
(CARDOSO M., & COCO, 2003, p.7).
15
Assim, quando, alguns anos depois de ter estado no “campo de batalha”, o jovem
médico português, António Lobo Antunes inicia sua carreira literária, seus temas são a guerra,
a solidão e o choque que a morte produz nos homens e nas sociedades. Seus romances,
embora baseiem-se em dados considerados factuais e verídicos, buscam, ficcionalmente,
discutir como a sociedade portuguesa foi conduzida à guerra, como se comportou durante o
período e como se reorganizará após o fim do conflito.
Os romances iniciais de Lobo Antunes (e referimo-nos à Memória de Elefante, Os
Cus de Judas e Conhecimento do inferno) relatam situações vividas por seus narradorespersonagens, autores, aparentemente, de relatos pseudo-autobiográficos, resultantes da estada
em África ou da vivência em Lisboa após o trauma sofrido no exílio.
A barbárie, o horror da morte, a crítica direta ou velada ao sistema e às instituições e o
contato com o outro e com o que este representa como indivíduo ou como inimigo portador de
ideologia e cultura diferentes são tematizados. Os romances surgem como um espelho, capaz
de retratar o estranhamento e de refletir sobre os desmandos da política expansionista
portuguesa.
Espera-se, assim, ao longo da dissertação, demonstrar que António Lobo Antunes, ao
ficcionalizar a sua trajetória como médico, a serviço do exército português na Guerra Colonial
em África, já prenuncia, através das “Cartas da Guerra”, elementos que serão retomados em
suas narrativas posteriores, principalmente, em Os Cus de Judas (1979).
Nota-se que, no romance Os Cus de Judas, a trajetória ficcional do narradorpersonagem, o “eu” da enunciação, mescla-se à figura do autor e de sua autobiografia, diluída
em frases, reflexões e situações narradas referentes às passagens da História.
Em alguns romances posteriores, de maneira direta pelo viés da autoficção, como, por
exemplo, em Sôbolos rios que vão, torna-se, ele mesmo, personagem de seus romances.
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Em outros, resgata memórias, inventa outras, buscar solucionar, através da ficção, o que a
vida construiu sem resposta (aparente/aceitável), sem volta, sem saída.
Não nos esqueçamos de que a memória consagra as lembranças, a história evoca os
vultos; a memória registra impressões, a história elenca fatos; a memória embaralha
passagens, a história sinaliza as datas; a memória busca personae, a história congrega os
nomes; a memória é lúdica, a história é cronológica; a memória motiva, a história impulsiona;
a memória é literária, a história codifica; a memória simboliza, a história significa. Tal como
se fossem faces da mesma moeda, porém, com valores díspares.
A trajetória de Lobo Antunes revela a marca daqueles que passam pelo mundo e que
produzem algo que ateste a sua presença: um livro, um filho, uma autobiografia, o engajar-se
na luta por seu país ou o encontrar um determinado amor. É a dinâmica das relações humanas.
É o destino dos que escrevem, é o destino dos que vivem e sonham. “Todas as cartas de amor
são ridículas”, escreveu Fernando Pessoa. E, sob a égide do grande bardo português, nos seria
possível questionar se todas as cartas de amor e de guerra não poderiam ser, também,
autobiográficas e históricas?
Assim, justifica-se a pesquisa que deu origem a esta dissertação: considerar o recurso
da investigação de documentos da época da Guerra Colonial em África, especificamente, a
correspondência escrita pelo médico António Lobo Antunes à sua esposa, como objetos
característicos de uma escrita autobiográfica e epistolar que podem servir como uma espécie
de pacto de veracidade na inter-relação entre a ficção e a História de Portugal, durante este
período. Pretende-se considerar, inclusive, e a memória e a autobiografia do autor como
elementos associados às características de seus narradores-personagens das obras iniciais e,
sobretudo, como elementos que justificam a recorrência temática em seus romances.
O corpus analisado durante esta dissertação é a obra D’este viver aqui neste papel
descripto: cartas da guerra (2005), organizada por Maria José e Joana Lobo Antunes, reunião
17
das cartas enviadas pelo pai das organizadoras da obra, o médico e escritor António Lobo
Antunes, à sua esposa Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes, no início da
década de 70, quando este estava a serviço do exército português na Guerra Colonial em
África.
António Lobo Antunes é um notável expoente da ficção portuguesa contemporânea,
um dos autores portugueses mais conhecidos e mais lidos em todo o mundo, autor de, pelo
menos, duas dezenas de romances considerados como grandes obras literárias; premiado e
reconhecido internacionalmente, é um dos cânones da nova ficção portuguesa que propõe, ao
longo das últimas três décadas, uma profunda reflexão sobre a história recente de Portugal e
seus desdobramentos na organização cultural, política e social do país e sobre seu
reposicionamento na nova ordem mundial.
São temas recorrentes nos romances do autor a guerra, a solidão, a reconstrução do
passado por uma memória fragmentada (a própria narrativa antuniana se constrói sobre a
égide da fragmentação e do fluxo de consciência), o trauma da guerra, o exílio e a condição
humana, marcada pela ausência de pertencimento e pelo isolamento, diante das
transformações sociais e da incapacidade de interação com o outro.
Seus personagens emergem das trincheiras de guerra, do horror letárgico de memórias
traumatizantes, de relatos sombrios e confusos sobre a própria identidade e refletem as
dificuldades em se fazer compreender pelos outros e de incorporar, novamente, os parâmetros
sociais estabelecidos, após a experiência do exílio, da repressão salazarista e da morte
pressentida.
Seus narradores e personagens constituem-se, literal e metaforicamente, em uma prosa
repleta de elementos que se aproximam do poético, para narrar o que pode ser torpe, vil e
cruel e o que ressignifica e transfigura a percepção de objetos, épocas, sentimentos e pessoas
que se reconstroem pela maneira de narrar.
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Misturam-se, na obra antuniana, os tempos cronológico e psicológico e o pano de
fundo é a história particular real ou inventada de narradores e personagens sobreposta à
recente História de Portugal.
A memória expurga e alimenta a narrativa. Coaduna-se com fatos verificáveis como
reais e/ou verossímeis, traz à tona elementos novos, conhecidos in loco, através
da vivência ou das experiências do autor que as reordena, corrige e exacerba,
a fim de produzir uma catarse, ao experimentar uma purgação das emoções,
através da representação ficcional do real.
O problema que se pretende discutir, nesta dissertação, é a verificação de que as cartas
escritas por Lobo Antunes, durante o seu período como médico a serviço do exército
português, poderiam se configurar como uma espécie de pacto autobiográfico entre ele –
como autor textual – e tal procedimento estende-se a seus narradores e personagens
e à recorrência temática, presentes nos romances iniciais antunianos, no que concerne
à guerra, à solidão e à construção narrativa fragmentada por memórias agudas e doloridas
de um passado recente.
Em suma, pretende-se constatar se haveria a sobreposição entre a figura elocucionária
do autor, que esteve no “campo de batalha” (fato verificável pela história pessoal do autor
e corroborado pela análise de suas cartas) e a estruturação de seus narradores e personagens.
Assim, será destacada a presença de traços ou resíduos autobiográficos na elaboração
dos romances iniciais de António Lobo Antunes, sobretudo, nesta dissertação,
na obra Os Cus de Judas.
A hipótese que norteia essa dissertação é a de que seria possível, em face do estudo da
biografia e das cartas do autor, localizá-lo e às suas experiências ou vivências apreendidas,
durante o período citado, seja no âmbito da História, seja no âmbito do Espaço, representado
19
como ficção, em suas obras iniciais. A Memória desses acontecimentos possibilita, assim, ao
autor encontrar subsídios de representação temática para seus romances.
Leia-se o professor Alcir Pécora, no texto “Velhos textos, crítica viva”, escrito como
apresentação à obra A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam,
Justo Lípsio (2005), organizada por Emerson Tin:
Levantar legibilidade de objetos antigos para ampliar o vocabulário crítico do
presente: eis o que me parece ser um programa de estudos de excelência. [...] pode,
perfeitamente, significar hipóteses criativas para a interpretação de objetos
contemporâneos: da carta oficial até o e-mail. O levantamento em jogo aqui, longe
de mumificar objetos culturais, quer testar hipóteses para escrituras do presente
ainda inexploradas pelos lugares-comuns da crítica e da leitura. (PECORA, 2005, p.
13; 15).
Entende-se, como hipótese, que a escrita das cartas e o conteúdo autobiográfico que
elas possuem são um elo capaz de coadunar e ampliar a percepção da inter-relação entre a
Memória, a História e a ficção na obra de António Lobo Antunes. É importante destacar que a
epistolografia é o estudo da escritura de correspondências entre indivíduos e/ou grupos
distantes ou separados contextualmente e que a estruturação da narrativa ficcional, através da
simulação, do envio ou da troca de cartas entre personagens, torna-se, aqui uma característica
da narrativa antuniana, embora não tenhamos acesso às cartas escritas pela esposa do autor
Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes.
Lembremo-nos de que nos séculos XVIII e XIX, diversos autores utilizavam-se
do recurso ficcional no qual um narrador, ao explicar que encontrou um diário
ou um conjunto de cartas sobre determinado personagem, buscava tornar credível o que
narrava. Outros, por sua vez, ao estruturar capítulos ou trechos de suas obras, sob a forma
do gênero epistolar, assumiam a sua autoria ou reproduziam, ao longo dos capítulos, cartas
e páginas de diários inventados.
A antologia de cartas elencadas na obra, D’este viver aqui neste papel descripto:
cartas da guerra (2005), é um conjunto de cartas reais, enviadas por um homem, um médico,
20
direto do “campo de batalha” para a sua amada – muito amada – esposa com a qual
recentemente se casara e de quem se despedira, temporariamente, ao ser incorporado,
ao exército (durante o regime fascista e salazarista português), deixando-a grávida da primeira
filha do casal.
O fato de esse médico vir a se tornar um dos autores mais consagrados e lidos, nos
séculos XX e XXI, na literatura portuguesa e possuir, em sua lista de romances, títulos que
demonstram a recorrência dos temas da guerra e da memória, decorrentes, possivelmente, de
uma experiência pessoal, suscita a necessidade de uma leitura crítica dessa correspondência.
Não se pretende, portanto, argumentar sobre a configuração de uma possível literatura
epistolar recorrente na obra antuniana ou, ainda, apontar para a produção contundente,
indiscutível e direta de uma autobiografia. Entende-se, igualmente, que as experiências
autobiográficas contidas nas “Cartas da Guerra” (marcas de sua trajetória pessoal),
potencializam e predispõem o leitor à superposição entre a figura do autor e a de seus
narradores-personagens em narrativas que tenham como tema a Guerra Colonial em África
ou a ela se refiram.
As obras utilizadas como apoio teórico serão, principalmente, O pacto autobiográfico:
de Rousseau à internet (2008), de Philippe Lejeune e Devires autobiográficos: a atualidade
da escrita de si (2009), de Elizabeth Muylaert Duque-Estrada.
Em relação à ficção antuniana, o estudo crítico Os romances de António Lobo
Antunes: análise, interpretação, resumos e guiões de leitura (2002), de Maria Alzira Seixo,
uma das mais importantes pesquisadoras sobre a obra antuniana, bem como artigos,
dissertações e ensaios produzidos acerca da obra do autor, servirão como suporte teórico para
a nossa argumentação.
Esta dissertação se estrutura em seis capítulos bem específicos. No capítulo dois,
“Guerra colonial: enlevo e desterro ‘neste papel descripto’”, serão destacadas as situações,
21
aparentemente paradoxais do enlevo e do desterro, verificadas na leitura das “Cartas da
Guerra”, os dados biográficos gerais de Lobo Antunes e sua esposa. A contextualização
histórica da Guerra Colonial, apresentada de forma panorâmica, será inevitável. Os capítulos
três e quatro, respectivamente intitulados “A escrita epistolar” e “A escrita autobiográfica”,
vão trazer elementos teóricos sobre as duas modalidades de escrita.
Os capítulos três e quatro, portanto, pretendem propor o diálogo entre as ideias de
Lejeune sobre a autobiografia e a configuração textual de uma carta, através dos pressupostos
fundadores historicamente estabelecidos por alguns importantes teóricos. Assim, seria
possível estabelecer a aproximação entre a carta como documento e autobiografia, a
motivação para essa modalidade de escrita e seus comprometimentos com relação à figura da
enunciação na obra antuniana. No capítulo quatro, dedicado à escrita autobiográfica, será feita
uma alusão à “escrita de si”, na acepção de Foucault.
No capítulo cinco, “Memória e exílio em Lobo Antunes”, será desenvolvido um
estudo que visa discutir as relações entre História, memória e ficção na literatura portuguesa
contemporânea, evidenciando como as histórias particular e coletiva podem se interseccionar
na obra literária. Como a experiência do isolamento leva o autor a desenvolver uma
linguagem hiperbólica em que os sentimentos são exacerbados pelo trauma e pela solidão
também será destacada.
Na sequência das reflexões críticas apresentadas, neste mesmo capítulo, busca-se
analisar as “Cartas da Guerra” de Lobo Antunes. Pretende-se caracterizá-las, contextualizar e
contabilizar seu processo de produção, estabelecer-se um protocolo de leitura e destacar
produções que destoem das demais cartas. Busca-se demonstrar como a sequência de cartas
produz uma espécie de autobiografia e um diário que demonstra o avanço, os desdobramentos
da estada do autor no front de batalha.
22
Neste capítulo da dissertação, é assinalado que o autor começa a produzir os primeiros
textos e demonstra preocupar-se com os registros por escrito de sua experiência não apenas
para informar à esposa sobre sua trajetória, mas para que possa, posteriormente, escrever
sobre ela. Nesta etapa, surgem os primeiros poemas que o autor começa a produzir como
maneira de destacar as inquietações do seu “eu” pessoal e poético.
Haverá também uma análise detalhada e alegórica de um de seus poemas como forma
de detectar uma estruturação literária, baseada no lirismo, a ser desenvolvida na escrita dos
futuros romances (Não entres tão depressa nessa noite escura), por exemplo, será enquadrado
pelo autor como “poema”.
No capítulo seis da dissertação, “‘Devires autobiográficos’ nos romances antunianos”,
busca-se analisar a transfiguração entre a enunciação do autor e a de seus narradorespersonagens. Os devires literários e biográficos se apresentam como uma perspectiva para
analisar as inter-relações entre História, memória e ficção pela trajetória autobiográfica de
Lobo Antunes. As relações com a filosofia e a literatura tão tênues são consideradas como
fator de potencialização do pacto autobiográfico.
Ainda no capítulo seis, acima referido, a obra Os Cus de Judas (2007), de António
Lobo Antunes será comentada por nós, tomando-se como base a questão da barbárie
testemunhada pelo autor. Insinuada em suas cartas, será exacerbada, no espaço romanesco,
pelo fluxo de memórias de um narrador-personagem marcado pelo trauma da guerra.
Um estudo bastante relevante sobre a obra – provavelmente, o primeiro na UFRJ e no
Brasil – foi escrito por Gumercinda Nascimento Gonda, em sua dissertação de mestrado,
intitulada “O Santuário de Judas: Portugal entre a Existência e a Linguagem”, defendida e
aprovada em 1988, na Faculdade de Letras da UFRJ.
A percepção de que este romance, que integra a trilogia inicial da obra antuniana ao
lado de Conhecimento do Inferno (1980) e Memória de Elefante (1979), tem uma grande
23
verve autobiográfica apoia-se na análise desenvolvida pela obra crítica produzida pela
pesquisadora portuguesa Maria Alzira Seixo.
Na seção destinada aos anexos, será apresentado um quadro de produção das cartas
antunianas por dia, mês, lugar e período de sua produção. Busca-se destacar, ainda, a
reprodução de algumas fotos de Lobo Antunes e Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo
Antunes; do autor, no cenário da guerra e a reprodução dos aerogramas manuscritos enviados
por ele. Essas imagens fazem parte do grupo de fotos e documentos reproduzidos
originalmente na obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005) e sua
reprodução, nesta dissertação, foi gentilmente autorizada pelas filhas de Lobo Antunes,
senhoras Maria José e Joana Lobo Antunes, e, por sua editora, senhora Maria da Piedade
Madeira Martins Ferreira.
24
2 GUERRA COLONIAL, ENLEVO E DESTERRO “NESTE PAPEL DESCRIPTO”
“Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade.
Neste caráter de origem está o seu critério, – o único
existente.”
Rainer Maria Rilke
Muito do que se sabe sobre a vida e a análise crítica da obra de António Lobo Antunes
é fruto da pesquisa realizada por Maria Alzira Seixo. Embora este seja um autor bastante
pesquisado, alguns dos trabalhos mais relevantes têm sido realizados ou interagem com
as pesquisas da ensaísta citada.
Em sua obra, As Flores do inferno e jardins suspensos (2010, passim), há um capítulo
dedicado a informações sobre a carreira literária e a trajetória pessoal do autor que serão
citadas neste capítulo da dissertação a fim de se estabelecer algumas conexões entre
a cronologia da vida e da obra de Lobo Antunes e a Guerra Colonial.
Lobo Antunes nasceu em Lisboa a 1 de setembro de 1942. Fruto da união entre Maria
Margarida de Almeida Lima e João Alfredo Lobo Antunes. Seu nome é resultado de uma
promessa
feita
por
seu
avô
paterno,
António
Lobo
Antunes
(1889-1960)
–
Visconde de Nazaré (Pará, Brasil) – a Santo Antônio de Pádua.
É o mais velho de cinco irmãos. Por uma decisão de sua família, ingressa
na Faculdade de Medicina em 1959. Forma-se em 1968 e licencia-se em 1969. Embarca como
alferes-médico, para atuar como clínico, a 06 de janeiro de 1971. Servirá até 1973, quando
será dispensado e dará baixa como tenente.
Sobre a primeira esposa de Lobo Antunes não há muitas informações disponíveis.
De acordo com Maria José e Joana Lobo Antunes (2005, p.12), Lobo Antunes casa-se com
25
Maria José Xavier da Fonseca e Costa, a quem conhecera e começara a namorar em 1966,
na Praia das Maçãs. Segundo Maria Alzira Seixo (2010, p.366) o início do namoro teria
ocorrido em 1964. O casamento, segundo as filhas do casal, ocorre a 08 de agosto de 1970
e Maria José adota o sobrenome do marido. Maria Alzira Seixo (2010, p. 366) afirma
que a data seria 01 de agosto de 1970.
Deste casamento com aquela que será, talvez, o grande amor de sua vida, nascem duas
filhas: Maria José Lobo Antunes (1971) e Joana Lobo Antunes (1973). O casal se separa
em 1976. As filhas do casal, após a morte da mãe, em 1999, realizando um desejo póstumo
de sua mãe, organizam e publicam as cartas enviadas a ela por Lobo Antunes quando este
estava a serviço do governo na Guerra Colonial. Esta obra chama-se D’este viver aqui neste
papel descripto: cartas da guerra (2005). O ano de 1999 também marcará o autor por ser
o ano da morte de seu grande amigo, desde os tempos da guerra, Ernesto Melo Antunes.
Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes nasceu na cidade de Viseu, filha
de José Hermano Costa e Clara da Conceição de Barros Xavier da Fonseca e Costa,
em 13 de outubro de 1946 e morreu em Lisboa, em 20 de fevereiro de 1999. Foi a segunda
dos três filhos do casal.
Estas “Cartas da Guerra” (2005) são extremamente sentimentais. Contêm declarações
explícitas e apaixonadas e falam, entre outras coisas, da devoção, do amor e da saudade
sentida por Lobo Antunes neste período. Além de permitirem o conhecimento de fatos através
do relato dos acontecimentos ocorridos durante a guerra.
Assim, nesta dissertação, as correspondências serão analisadas como documento de
uma escrita epistolar e autobiográfica presente na trajetória antuniana. É preciso destacar que
as cartas enviadas com as respostas de Maria José a Lobo Antunes não foram publicadas;
apenas as que continham as fotos sobre o nascimento da primeira filha do casal e a presença
26
de ambas em Angola, durante o período de visita ao marido, vieram a ser reproduzidas no
livro citado.
As cartas de Lobo Antunes à esposa permitem aos leitores participarem de uma
história de enlevo e de amor demonstrados, em plenitude e desassossego, em suas missivas,
através de uma escrita intensa e contínua, que faz, também, com que se sintam desterrados e
exilados, por saberem-nas escritas no contexto histórico da guerra.
Uma vez destacados os personagens dessa história de amor: António Lobo Antunes e
Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes, casados às vésperas do embarque do
autor para unir-se às tropas portuguesas como alferes miliciano, é preciso que se contextualize
o cenário do qual decorre a produção das apaixonadas cartas: a Guerra Colonial.
A Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar inicia-se nos primeiros meses do ano de
1961. Para os africanos, ficaria conhecida como Guerra de Libertação Nacional. Os conflitos
entre portugueses e os africanos iniciados nessa data irão durar até o histórico dia 25 de abril
de 1974, quando ocorre a Revolução dos Cravos.
A independência das chamadas possessões coloniais africanas – descolonização –, já
havia sido determinada pela Assembleia Geral da ONU, no início dos anos 60; o desejo de
extinção das políticas colonialistas no mundo ganhara ainda mais peso, após a chamada
Conferência de Bandung, em 1955. Esta conferência reuniu países da Ásia, do Oriente Médio
e da África. Entre os países africanos estavam Gana, Etiópia, Líbia, Sudão e Libéria. Nenhum
dos quais fazia parte do grupo das colônias portuguesas em África que era composto por
Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
Portugal reagiria às pressões e às novas determinações da ONU, alegando que os
países colonizados estariam enquadrados sob um estatuto específico que não os qualificaria a
se tornarem independentes. Para o regime português, as colônias eram consideradas parte do
seu território. Essa política de expansão ultramarina, iniciada desde o século XVI, a partir do
27
fim da II Guerra e do domínio do regime fascista de Salazar, irá produzir o mais importante
período da História de Portugal no século XX.
Leia-se um fragmento do texto escrito por Renato Monteiro e João Farinha para a obra
Guerra Colonial: fotobiografia (1998):
Cerca de dois meses depois dos assaltos a estabelecimentos prisionais de Luanda,
ocorridos a 4 de fevereiro de 1961, a vaga de morticínios, perpetrados na região de
Dembos, obriga o Governo e Lisboa a reagir militarmente. Os primeiros
contingentes são mobilizados sob o slogan “Angola É Nossa”, enquanto se amplia e
inova o material militar, adequando às características da guerra de guerrilha. Com
estes seguem companhias da Guarda Nacional Republicana, efectivos da Polícia de
Segurança Pública e legionários. (MONTEIRO & FARINHA, 1998, passim).
Segundo José Brandão, que serviu como radiotelegrafista em Moçambique, entre 1969
e 1971, na obra Cronologia da Guerra Colonial: Angola, Guiné, Moçambique, 1961-1974
(2008, passim), Angola foi a primeira das colônias a insurgir-se contra o domínio português.
Os autores da fotobiografia sobre a Guerra Colonial, Renato Monteiro e Luís Farinha
(1998, p.62), utilizam uma passagem de um dos “Sermões” de António Vieira como prólogo
ao capítulo II de sua obra, intitulado “Acção Armada”.
A ideia e utilização da referência à Vieira são incrivelmente adequadas ao contexto e
nos parece pertinente reproduzi-la, a fim de procurar demonstrar como, historicamente, a
guerra representava para o ideário português uma ponderação sobre algo próximo e palpável,
tanto na História da consolidação da nação portuguesa como na história humana. Leia-se um
fragmento do capítulo II do Sermão Histórico e Panegírico nos Anos da Rainha D. Maria
Francisca de Sabóia, de Padre António Vieira:
[...] É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e
quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade
terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em
um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade
composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça,
ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o
rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem
segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem
28
segura a sua cela; e até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro.
(VIEIRA, apud. MONTEIRO & FARINHA, 1998, p.62).
Apesar das históricas ponderações de Vieira que alertam e ilustram, gradativamente, a
dissolução de padrões sociais e morais ocasionados pela guerra e que chegam a afirmar que,
até mesmo Deus não estaria a salvo da guerra, não havia dúvida: Portugal, definitivamente,
ingressaria no pior e mais sangrento conflito de sua História no século XX.
Vieram, na sequência dos conflitos entre portugueses e africanos, sublevações
na Guiné-Bissau, a partir de 23 de janeiro de 1963, e Moçambique, em 25 de setembro
de 1964. Ao longo dos treze anos de Guerra Colonial, 1961 a 1974, foram mortos
aproximadamente nove mil portugueses. A maior parte deles, das tropas do exército.
Estima-se em cerca de 30.000, o número de soldados que retornaram feridos da guerra e em
100 mil, o número de doentes. Nos países africanos as baixas seriam igualmente consideráveis
e chegaria a casa dos milhões com as guerras civis ocorridas no período pós-independência.
O cenário da guerra e os acontecimentos vivenciados por Lobo Antunes como médico
alferes miliciano em Angola serão descritos e narrados nas cartas que integram a obra
D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005) – reunião das cartas escritas
por António Lobo Antunes à sua esposa quando este serviu como clínico geral no exército
português durante a Guerra Colonial, como já mencionamos, na introdução.
Estas cartas, cuja coletânea foi organizada por Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo
Antunes, filhas de Lobo Antunes Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes,
remetem às vivências e experiências reais de Lobo Antunes durante o período da Guerra
Colonial africana (1971/1973), o que parece diluir, desde já, o estatuto ficcional e apontar
para a presença ou a proximidade das experiências autobiográficas do autor contidas nas
“Cartas da Guerra” e para o ethos de seus narradores-personagens, sobretudo nas obras
29
iniciais, entre elas Os Cus de Judas (1979), Memória de Elefante (1979) e Conhecimento do
inferno (1980).
A escrita que simule ou que represente a escrita de uma carta, que pré-exista ao
universo da ficção, cada vez mais tem alcançado espaço nos estudos literários
contemporâneos. Leia-se um fragmento da obra Devires autobiográficos: a atualidade da
escrita de si (2009), de autoria de Elizabeth Muylaert Duque-Estrada:
[...] Elas [as escritas autobiográficas] provocam uma perturbação na oposição entre
ficção e realidade, fazendo com que a simplicidade da rígida linha demarcatória
entre ambas dê espaço a uma relação mais complexa. A inquietante estranheza na
qual elas se tecem tem o efeito de tornar supérflua e inoportuna a certeza da
distinção entre memórias fingidas e memórias verdadeiras. Pois elas só permitem a
referência à oposição real/fictício na condição de desautorizá-la, fazendo com que a
escrita da realidade não possa mais negar a sua ficcionalidade, e que a ficção passe a
trazer consigo uma valência de realidade autobiográfica. [...] (DUQUE-ESTRADA,
[grifo nosso], 2009, p.61).
Não se pretende, nesta dissertação, desvalorizar a ficção em oposição a uma escrita
autobiográfica ou tomar-se esta por aquela. No entanto, entende-se que as relações de
experiência de um fato histórico e a memória dele estejam completamente relacionadas no
ethos da formação narrativo-discursiva de Lobo Antunes quer seja em suas narrativas, quer
seja em características de seus narradores e personagens. E que estas experiências estejam
evidenciadas ou omitidas por outras sensações e experiências (a paixão latente, a exacerbação
do sentimento romântico, o exílio, a saudade, a solidão, o nascimento da filha), contidas nas
cartas escritas pelo autor durante este período, é um fato evidente.
Some-se a esse processo de composição e de investigação literária o fato de que, em se
tratando de estudos que envolvam ficção, memória e história e seus desdobramentos nas
obras literárias, é a carta, como representante de uma escrita do “eu,” um poderoso elo entre o
“eu” autoral e os “eus” ficcionais.
Não obstante, quaisquer cartas produzidas por escritores notórios representarem
documentos de pesquisa pela simples razão da curiosidade biográfica e autoral, quando estas
30
cartas sinalizam para a possibilidade de seus fragmentos e/ou as experiências pessoais que
contêm ganharem ecos no universo da obra de ficção produzida por seu autor, mesmo os
pesquisadores mais céticos em relação à proximidade entre obra biográfica e obra ficcional
poderiam se sentir motivados a uma leitura um pouco mais detida e arguta. Leia-se Maria
Alzira Seixo:
Não se trata, portanto, de introduzir na leitura dos textos reconhecimentos
específicos da existência do escritor enquanto factores decisivos de um saber, num
estabelecimento forçado de relações de coerência mais ou menos utilizadas pelas
tendências de investigação de um biografismo mecanicista; trata-se, antes, de tentar
entender um texto a partir de seu modo de evocar e de provocar o real, já que a
escrita oferece garantias de materialidade e de consistência quais esse real as não dá,
e nessa relação entre circunstância e sujeito, que pode ser dual, dúbia ou ambígua,
poderemos tentar apreender a configuração constituída pelo espaço mental que
constitui o seu intervalo, e que uma intersubjectivação em processo, do narrador
dirigida a quem o lê, pode preencher, e levar a que comuniquem, e que através do
texto se encontrem, o narrador-escritor e o leitor que, na sua senda, evoca e provoca
também. [...] E vem a propósito citar, imediatamente, [...] [o romance de Lobo
Antunes] Que farei quando tudo arde? Onde o traço autobiográfico onomástico
(“chamar-me António”) se indecide entre o ludismo frequentemente praticado com o
nome próprio do autor, e uma ocultação denegada da primeira pessoa narrativa que
interpela directamente a ficção que o escritor desenvolve, dando-se a leitura um
negativo de si próprio enquanto figura: [...] (SEIXO, 2002, p.475).
Uma vez que pesquisadores da envergadura de Maria Alzira Seixo já tenham
publicado estudos sobre os elementos autobiográficos contidos nas obras iniciais de António
Lobo Antunes e demonstrado que esses elementos permanecem, embora, diluídos e
ficcionalizados em outras obras, esta dissertação volta-se, antes, para a pesquisa do conjunto
de cartas escritas por Lobo Antunes à sua esposa durante o tempo em que este serviu como
médico no Exército português na Guerra Colonial em África e estende-se ao “pacto
autobiográfico”, à sensação de veracidade e historicidade contida em passagens que se
entendam como fruto de uma experiência real vivida e/ou ficcionalizada ora pelos narradores,
ora pelos personagens dos romances de António Lobo Antunes.
31
3 A ESCRITA EPISTOLAR
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas. [...]
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas. [...]
Fernando Pessoa
A produção literária portuguesa, ao longo das últimas décadas, se configura como
bastante pródiga no hibridismo entre romance e as diversas formas de escrita. Romances que
contêm fotografias, trechos de diários, maços e/ou trechos de cartas, sejam estes gêneros
representados por documentos reais e/ou escritos para simular realidade, compõem diversos
romances portugueses contemporâneos, sobretudo, os escritos após a Revolução dos Cravos.
Leia-se o que escreveu a pesquisadora Gumercinda Nascimento Gonda em sua dissertação de
mestrado O Santuário de Judas: Portugal entre a existência e a linguagem (1988), defendida
e aprovada na Faculdade de Letras da UFRJ:
Pode-se detectar a presença de alguns procedimentos que alinham o romance
português na série romanesca contemporânea. Observa-se a fragmentação da forma;
a diluição do personagem; o aspecto confessional e a contestação política. [...] O
escritor contemporâneo entre os quais Lobo Antunes, passa a um procedimento de
exclusão do mundo, mergulhando cada vez mais, em sua subjetividade (GONDA,
1988, p. 32; 46).
32
Notadamente
nas
cartas
há
um
universo
particular
de
subjetividade
e
confessionalidade baseadas no que o autor das cartas vive, naquilo que lhe é dado a conhecer,
em seus medos e expectativas em relação ao porvir.
Não se trata de afirmar que o autor das cartas já as escreva como se escrevesse um
romance, mas, entende-se, a partir daí, que a experiência tornada texto através das cartas,
além da subjetividade de quem as escreve, está carregada de referências autobiográficas que,
mais tarde, aparecerão na ficção, nos romances antunianos.
Em se tratando da escrita epistolar, que, inicialmente, se estabelece por um código de
intimidade e/ou necessidade de interação entre indivíduos que se encontram distantes, na
Literatura portuguesa contemporânea tem se revelado como possibilidade de se perceber e
investigar, criticamente, o avesso da escrita, os bastidores da História, o devir da memória e as
estratégias narrativas pós-modernas. Segundo Claudia Atanazio Valentim:
O uso das cartas para estruturar uma narrativa permite que o leitor se aproxime
mais da consciência íntima das personagens e o autor textual, ao elaborar
o que as personagens poderiam escrever em determinadas circunstâncias, traz para a
ficção o uso cotidiano das cartas: a correspondência informal, onde o objetivo era
partilhar com seus(s) interlocutor(es) seus pensamentos e atos cotidianos. [...]
(VALENTIM, 2006, p. 28).
As cartas escritas por António Lobo Antunes compreendem um conjunto bastante
peculiar e atraente ao exercício da investigação do processo de escrita construído pelo autor.
Seja porque a subjetividade e o testemunho serão recorrentes nos primeiros romances do
autor, seja porque dão a conhecer sobre diversos aspectos vistos e vivenciados pelo autor e
reconfigurados em seus romances e, em diversos aspectos, sobrepostos ou reconhecidos como
autobiográficos.
As cartas interessam, sobremaneira, por registrarem o trauma de um regime de
exceção vivido/testemunhado por Lobo Antunes, o exílio forçado para servir ao exército
português e o aproximarem do narrador-personagem de suas obras iniciais.
33
Entende-se, portanto, que além de documentarem um período da recente História de
Portugal, servem como base para se observar a estruturação de uma escrita autobiográfica que
permitirá que os leitores dos romances de Lobo Antunes possam considerar a sua escrita não
apenas como fruto de uma produção literária focalizada em um período histórico, mas como
fruto de sua vivência, como parte de sua trajetória pessoal, como elementos possivelmente
resgatados de sua memória.
Nas palavras de Elizabeth Muylaert Duque-Estrada (2009:27), “os abalos que essa
nova ordem de questões provocou sobre o espaço literário não deixou de afetar também a
escrita e a reflexão sobre a autobiografia”.
Com notável frequência, percebe-se a superposição entre uma forma de narrativa
ficcional e a utilização da estruturação textual, através de cartas/correspondências entre
personagens, a fim de explicitar e decodificar relações entre enredo e personagens e tempo e
espaço nas narrativas. Leia-se Mikhail Bakhtin:
[...] o romance biográfico, antes de defini-lo, o crítico russo faz uma advertência ao
leitor, lembrando-nos que na Antiguidade não foi criado um romance biográfico tal
como o conhecemos, mas desenvolveram-se nela formas biográficas e
autobiográficas que influenciaram não só a biografia e a autobiografia europeias
como também o romance europeu. [...] (BAKHTIN, 2006, p. 250).
Entende-se que estas cartas, na situação de estruturadoras do desenvolvimento das
narrativas, uma das possibilidades de interação ente as características de forma e conteúdo da
ficção contemporânea, sejam recursos ficcionais e que potencializem, surpreendam, sirvam
como pacto de veracidade, de testemunho.
Convém lembrar, aqui, o conceito de “testemunho”, apontado por Márcio SeligmannSilva, em Palavra e imagem: memória e escritura (2006, p.211): “o testemunho como ‘testis’,
verdade jurídica, não recobre o testemunho como ‘superstes’, sobrevivente que viu a morte de
34
perto”. Na obra antuniana de perspectiva autobiográfica, observa-se a presença do testemunho
como afirmação da identidade daqueles que foram mobilizados para a Guerra Colonial.
Acredita-se que, através de uma leitura crítica da escrita epistolar e (auto) biográfica
de Lobo Antunes, seja possível perceber e demonstrar a proximidade entre o ethos “real” da
experiência vivida pelo autor e projetar essa percepção nos desdobramentos temáticos
recorrentes em seus romances e, assim, proceder à associação com os elementos de sua
narrativa. Leia-se Andrée Rocha:
Entendemos, também, que a correspondência informal, pelo seu tom autobiográfico,
dá ao leitor a impressão de devassar a consciência íntima do signatário, desvendando
seus segredos. Uma escrita, dois movimentos: no leitor, a marca da curiosidade, o
voyeurismo; para o escritor, uma vez mortas as utopias, a escrita reflete “uma forma
de salvação individual num mundo que começa a descrer de sucessivos modelos
ideológicos de salvação coletiva” (ROCHA, 1992, p. 19).
Não se pretende comparar as correspondências ficcionais das narrativas portuguesas
na segunda metade do século XX, ou as obras que se apoiam nesse recurso que entendemos
como narrativo e proposital em virtude do desejo de se atingir uma maior verossimilhança em
relação ao enredo construído, com as cartas enviadas por António Lobo Antunes, durante sua
atuação como médico na Guerra Colonial em África, à sua esposa Maria José Xavier da
Fonseca e Costa Lobo Antunes.
Por epistolografia, entende-se o conjunto de cartas escritas e/ou enviadas e/ou textos
ficcionais produzidos a partir da estrutura de uma carta. O estudo desse gênero ou das
produções híbridas que dele se apropriem constitui cada vez mais um manancial de pesquisa
na literatura contemporânea, sobretudo quando os romances ou as cartas se aproximam de
temas que evocam a ficcionalização da história através da memória de autores (motivação da
produção das obras) e personagens e narradores.
Assim, busca-se estabelecer um pacto de veracidade através da construção de uma
escrita testemunhal e/ou autobiográfica. Leia-se uma citação de Octávio Paz, feita pela
35
doutora Claudia Atanazio Valentim, em sua tese O romance epistolar na literatura
portuguesa na segunda metade do século XX, defendida em 2006 na UFRJ:
Numa análise das cartas ditas reais, uma questão que se coloca é de que maneira o
sujeito se representa para o seu leitor. Sabendo que a carta, gênero em primeira
pessoa, é uma escrita de cunho autobiográfico, como o signatário se expõe e quais
partes de sua vida serão relatadas e retratadas para o outro? Este signatário, em seu
discurso, consciente ou não, efetua uma apresentação de si para o outro; a maneira
de ele dizer induz a construção de uma imagem, pois como já sublinhara Octavio
Paz em Os filhos do barro, “o sujeito é uma cristalização mais ou menos fortuita da
linguagem” (PAZ, 1984 apud. VALENTIM, 2006, p. 85).
A partir da obra O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet (2008), de Philippe
Lejeune e em confluência com a obra Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si
(2009), de Elizabeth Muylaert Duque-Estrada, pretende-se analisar algumas das cartas
enviadas por Lobo Antunes e estabelecer características e um possível protocolo de leitura. A
partir daí, com auxílio de autores que produziram pesquisas sobre a obra antuniana, em
especial, Maria Alzira Seixo, na obra Os romances de António Lobo Antunes, e nos próprios
textos críticos de Lobo Antunes, demonstrar ecos autobiográficos na obra ficcional produzida
pelo autor.
Em se tratando do objeto de pesquisa dessa dissertação, a obra D’este viver aqui neste
papel descripto: cartas da guerra (2005), obra organizada por Maria José e Joana Lobo
Antunes, filhas do escritor António Lobo Antunes, como já vimos, o próprio conjunto de
cartas já se propõe convidativo à investigação de seus elementos verificáveis como
verossímeis do ponto de vista da História e da Memória e de seus desdobramentos na
produção ficcional de Lobo Antunes. Na obra antuniana de perspectiva autobiográfica,
observa-se a presença do testemunho como afirmação da identidade daqueles que foram
mobilizados para a Guerra Colonial.
Percebe-se que se instaura um pacto, um jogo ficcional, que se pretende deflagrador da
representação de uma possível realidade, ou que evoque um passado histórico construído pela
36
memória descrita através de correspondências, se estabelece a partir de uma espécie de
“pacto” entre autor e/ou narrador e personagens, proposto pela estruturação narrativa através
de cartas, mas, ao mesmo tempo compõe, por encontrar ecos e por buscar veracidade em
elementos históricos verificáveis, uma escrita autobiográfica por destacar uma vivência ou um
testemunho de seu autor.
As cartas, os diários, as escritas do “eu”, de um modo geral, são estratégias narrativas
e álibis da inverossimilhança verificadas na literatura portuguesa, pelo menos, desde o século
XVIII. Pretende-se, nesta dissertação, afirmar que Lobo Antunes se utiliza desse tipo de
recurso em outro nível, a partir da leitura de suas cartas, e, identificar algumas características
da produção epistolar e autobiográfica desse autor que: a) dão a conhecer a sua estada no
exército colonial português durante a guerra em África; b) vêm a ser relatos epistolares e
autobiográficos; c) exemplificam essa experiência que será recorrente em algumas das obras
antunianas.
A fim de destacar algumas características verificáveis na escrita epistolar, buscamos,
portanto, elementos teóricos na obra A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo
de Rotterdam, Justo Lípsio, organizada por Emerson Tin (2005).
De acordo com Emerson Tin (2005, p.19-20), organizador da coletânea de ensaios,
Demétrio de Falero (354-283 a.C.), afirma que a carta se diferencia do diálogo que lida com a
reação do improviso pelo fato de ser escrita e ser enviada a alguém como um presente. Mas
que, ainda assim, deva primar por um estilo simples que deva aproximar-se de uma conversa
entre amigos.
Demétrio de Falero alerta, ainda, para o cuidado com a extensão e o estilo das cartas:
“Ela deve ser a expressão breve de um sentimento amistoso e a exposição de um tema simples
em termos simples […]”. Essa definição se encaixaria, por exemplo, nas características
verificadas nas correspondências de Lobo Antunes: afetividade, subjetividade, concisão
37
textual e um texto epistolar que busca comunicar e aproximá-lo, o quanto mais possível, da
sensibilidade do destinatário.
Na visão de Marco Túlio Cícero (106-43 a. C.), citado por Emerson Tin (2005, p.21),
a carta se configuraria como uma conversação através da escrita e como uma manifestação do
caráter de quem a escreve. Leia-se Andrée Rocha, na obra A epistolografia em Portugal:
[...] Três géneros de cartas missivas assinala o mesmo Túlio, aos quais alguns
costumam reduzir muitas espécies delas. O primeiro é o das cartas de negócio, e das
cousas que tocam à vida, fazenda e estado de cada um, que é o que para as cartas
primeiro foram inventadas; que, por tratarem de cousas familiares, se chamaram
assim. O segundo, de cartas dentre amigos uns aos outros, de novas e cumprimentos
de galantarias, que servem de recreação [...] O terceiro, de matérias mais graves e de
peso. [...] O primeiro gênero se divide em cartas domésticas, civis e mercantis. O
segundo em cartas de novas, de recomendação, de agradecimento, de queixumes, de
desculpas e de graça. O terceiro, que é mais grave [...] contém cartas públicas,
invectivas, consoláveis, laudativas, persuasórias e outras que se pegam a cada uma
delas que nomeei em todos os três géneros. [grifos da autora] (ROCHA, 1992, p.40).
Entende-se que há, nas cartas escritas por Lobo Antunes, uma combinação das
características observadas por Cícero em relação ao gênero epistolar. Leia-se um fragmento
da 4ª carta escrita por Lobo Antunes durante o período da Guerra Colonial:
17.1.7
Minha joia querida
Escrevo-te num domingo insuportável de calor, numa esplanada diante da baía,
enquanto os barcos de pesca dos negros passam lentamente para um e outro lado
num vagar tropical, [...] Que cidade horrível. É como passar um domingo
em Benfica [...] Uns negros aleijados, arrastam-se a pedir esmola, outros oferecem
objetos de madeira, objetos esculpidos, jornais, farrapos e miséria. Nunca pensei
vir encontrar tanta pobreza, tanta porcaria, tanto calor. [...] As saudades são imensas
e tu ocupas o primeiro lugar da minha cabeça à frente da minha indignação
por aqui estar e de tudo o resto: um sentimento de perda irreparável. [...]
Diz-me se tens recebido regularmente as minhas cartas, e passado quanto tempo, e
se puderes envia-me um maço de aerogramas – são aqui extremamente difíceis de
arranjar, e saem, claro, mais baratos. Aqueles que tenho usado são pedidos aqui e
acolá aos outros mas não posso prolongar esta situação por mais tempo. [...]
(ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES M.J.L. & J.L., 2005, p.22-23).
Entende-se que a comunicação entre Lobo Antunes e sua esposa, através das cartas,
conteria elementos que permitiriam não apenas distinguir características inerentes à
38
personalidade de Lobo Antunes como as informações dos fatos vivenciados durante a sua
trajetória como médico a serviço do exército português.
Emerson Tin, organizador da obra A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha,
Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio (2005, p. 27), assinala que, para Gregório de Nazianzeno
(329-390 a.C.), as cartas devem conter as seguintes características: “concisão”, para
determinar a extensão e os objetivos; “clareza”, para tornar bela e persuasiva a qualquer um
que a leia; e “graça”, para eliminar a aridez da distância que a linguagem procura suprir ou a
natureza do assunto abordado e produzir com parcimônia um texto que se distancie do rústico,
mas que não extrapole o texto de ornatos.
Para Caio Júlio Victor, no capítulo XXVII de sua Ars rethorica, citado por Emerson
Tin (2005, p.29), as cartas se dividem em dois grupos: familiares e de negócios. À primeira,
compete “brevidade” e “clareza”, uma vez que pontos obscuros da carta não poderão ser
esclarecidos pelo remetente, a não ser em outra carta. Às cartas de negócios, devem constituirse de seriedade no estilo e por uma escrita concisa.
No século XVIII, o alemão Johann Gottlieb Heinecke (1681-1741) publica um livro
sobre fundamentos da epistolografia, intitulado Fundamenta, no qual revisita e elabora
bibliografia sobre o tema desde a antiguidade clássica até os teóricos latinos.
A coletânea Prezado senhor, presada senhora: estudos sobre cartas (2000),
organizada por Walnice Nogueira Galvão e Nádia Batella Gotlib traz uma seleção de ensaios
sobre a epistolografia. Entre os que se destacam, está o ensaio intitulado “A arte de escrever
cartas: para a epistolografia portuguesa no século XVIII”, de Tiago C. P. dos Reis Miranda,
cujo fragmento é citado a seguir:
No tocante aos vários tipos de cartas, Heinecke procura mostrar que elas formam
dois grupos principais: de um lado, as de caráter erudito, subdivididas em
filosóficas, matemáticas, filológicas, críticas, teológicas, jurídicas e históricas; de
outro, as familiares e as “de cerimônia” (elaboratiores). Nesse caso, as primeiras
destinam-se a conversa de indivíduos momentaneamente separados (inter absentes
colloquium); já as segundas têm sua origem num propósito mais específico: de
39
acordo com ele, podem ser, por exemplo: congratulatórias, petitórias, comendatícias,
de pêsames, ou de agradecimentos [grifo do autor] (HEINECKE, apud. MIRANDA,
2000, p. 53).
A busca pela definição de especificidade da tipologia epistolográfica em Lobo
Antunes, não se configura, necessariamente, como a temática predominante nesta dissertação.
As cartas de Lobo Antunes, em geral, atendem a uma demanda de comunicação que se
estabelece na presentificação e na reconfiguração identitária, através da construção e
manutenção constante de um ethos discursivo (remetente) para um destinatário específico,
motivado pela afetividade e pela subjetividade.
Deve-se observar, no entanto, que os tipos e a estrutura dos elementos organizacionais
e narrativos presentes no estudo das cartas são evidências de um interesse latente em que essa
escrita da interação pessoal, à distância, seduza e motive para a investigação do
“entrelaçamento” secular da escrita epistolar e de suas possíveis relações com a História e a
ficção.
40
4 A ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA
“Porque nossa identidade reside na memória, no relato de
nossa biografia.”
Rosa Montero
Na década de 1970, o mundo passava por grandes transformações em todas as áreas do
conhecimento humano. É nesse contexto que o pesquisador e professor francês Philippe
Lejeune – que iniciara a divulgação de suas pesquisas com o lançamento da obra
L’autobiographie em France (1971), – lança a primeira versão do seu polêmico livro O Pacto
Autobiográfico (1975).
Nessa obra, o autor buscava demonstrar que os textos autobiográficos representariam e
caracterizariam um gênero literário – o gênero autobiográfico –, passível de estudo dentro da
área de Ciências Humanas e, sobretudo, nas cadeiras de Estudos Literários. Também
demonstrava que os seus suportes tradicionais (cartas e diários – àquela época), seriam
integrantes de uma tipologia textual que modalizaria a escrita autobiográfica. Afirmava ainda,
em sua pesquisa, que a autobiografia constituiria, tacitamente, uma linguagem repleta de
ficcionalidade e literariedade.
Não parece difícil imaginar a celeuma e os ataques pelos quais o autor tem passado
desde então. Os teóricos da Literatura o acusam, insistentemente, de um deslocamento da área
de pesquisa, que invalidaria a sustentabilidade de sua argumentação dentro da área de Estudos
Literários. Evidentemente, também não faltam estudiosos e pesquisadores que vejam em
O Pacto Autobiográfico uma importante e relevante pesquisa, cuja fundamentação teórica
e o corpus de análise conseguem preencher uma lacuna dentro da Literatura. Sobre o aspecto
das críticas negativas às suas pesquisas, o próprio Lejeune afirmaria, em entrevista concedida
em 2002:
41
Tornei-me historiador aprendendo a trabalhar com arquivos, e sociólogo,
aprendendo a fazer pesquisas... Frequentei mais antropólogos e psicólogos
que analistas de literatura. O resultado é que meus colegas de área
me olham hoje de cara feia e me perguntam onde, para mim, termina a literatura.
(LEJEUNE, 2008, p. 09).
Posteriormente, Philippe Lejeune revisaria e ampliaria a discussão de alguns conceitos
lançados e formulados em sua obra. É preciso salientar que a essência da obra aparece
formulada em 1971, e vai sendo construída, revista e ampliada através de ensaios e estudos
que dão conta dos avanços de suas pesquisas e discussões com teóricos de diversas áreas; bem
como da criação de uma associação para analisar os textos autobiográficos.
Essas
realizações
acabam
por
estruturar,
finalmente,
o
livro
O Pacto Autobiográfico: de Rousseau à Internet (2008), que apresenta a totalidade
dos ensaios reunidos em livro e os novos suportes tecnológicos, caracterizadores de
uma nova tipologia textual narrativo-discursiva (blogs, email, comunidades virtuais),
para as escritas autobiográficas. Leia-se Lejeune:
[...] A autobiografia se inscreve no campo do conhecimento histórico (desejo de
saber e compreender) e no campo da ação (promessa de oferecer essa verdade aos
outros), tanto quanto no campo do direito. Há mentirosos que são estigmatizados.
Há malvados e indiscretos que são temidos e punidos. Há verdades que ferem. [...]
(LEJEUNE, 2008, p. 104).
Na obra citada, a alusão ao nome do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (17121778) ocorre na medida em que ele, ao longo de toda a sua obra e, sobretudo, na obra
Confissões (1764), discute incessantemente a inserção do indivíduo – e a sua própria –, no
contexto social através da leitura (percepção) e da interação dos seus antepassados e, a de seus
contemporâneos, e da escritura do “eu”, do próprio indivíduo em contextos psicológicos,
sociais e políticos.
[...] O fato de a identidade individual, na escrita como na vida, passar pela narrativa
não significa de modo algum que ela seja uma ficção. Ao me colocar por escrito,
apenas prolongo aquele trabalho de criação de “identidade narrativa”, como diz Paul
Ricoeur, em que consiste qualquer vida. É claro que, ao tentar me ver melhor,
42
continuo me criando, passo a limpo os rascunhos de minha identidade, e esse
movimento vai provisoriamente estilizá-los ou simplificá-los. Mas não brinco de me
inventar. Ao seguir as vias da narrativa, ao contrário, sou fiel a minha verdade: todos
os homens que andam na rua são homens-narrativas, é por isso que conseguem parar
em pé. Se a identidade é um imaginário, a autobiografia que corresponde a esse
imaginário está ao lado da verdade. [...] (LEJEUNE, 2008, p. 104, §2º).
Uma vez apresentada a obra de Lejeune, necessita-se apresentar, de forma clara e
breve, a definição de autobiografia: “Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz
de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de
sua personalidade.” (LEJEUNE, 2008, p. 14). Assim, pretende-se demonstrar, nesta
dissertação, que há na obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005),
de António Lobo Antunes, uma construção autobiográfica constituída através das cartas que
este enviava, quase com a frequência de quem produzisse um diário, à sua esposa Maria José
Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes. Leia-se Maria de Lourdes Soares:
O livro põe-nos diante das fronteiras do literário: (Auto)biografia? Romance
epistolar? Memórias do Ultramar? Contribui para o seu caráter híbrido o material
nele incluído: algumas fotografias referidas nas cartas (registros do “viver aqui neste
papel descripto” do remetente, em flagrantes de campanha, e também da
destinatária, mantendo-se sempre esplendorosamente bela durante a gravidez e após
o parto) e reproduções da cartilha de alfabetização do MPLA [aerograma de 1.3. 71]
(ANTUNES, 2005: 70-71), que agregam à dimensão estética outras dimensões,
notadamente as de cunho histórico e sociocultural. (SOARES, 2006, p.44).
Observa-se que essas cartas, que relatam acontecimentos vividos e/ou testemunhados
pelo autor, irão, ao longo de toda a obra de Lobo Antunes, se desdobrar em elementos
narrativos, enredos literários, frases pontuais de seus personagens e de seus narradores. Além
de, em casos específicos, passarem a integrar até a memória recriada da própria vida do autor.
Philippe Lejeune, assim, amplia a definição de autobiografia:
Nessa definição [a definição de autobiografia], entram em jogo elementos
pertencentes a quatro categorias diferentes: 1. Forma da linguagem: a) narrativa; b)
em prosa. 2. Assunto tratado: vida individual, história de uma personalidade. 3.
Situação do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e do
narrador. 4. Posição do narrador: a) identidade do narrador e do personagem
principal; b) perspectiva retrospectiva da narrativa. (LEJEUNE, 2008, p.14).
43
Não se deseja apresentar, como cristalizados e inalterados, alguns dos elementos
estruturantes do conceito de gênero autobiográfico. Muito menos, associar arbitrariamente a
autobiografia ao gênero prosa – embora a incidência e a correlação entre prosa e autobiografia
sejam muito maiores e mais perceptíveis que a relação entre poesia e autobiografia.
Segundo afirma Lejeune (2008, p. 88), “A poesia não está em toda parte, a
autobiografia também não. Uma pode ser instrumento da outra. Não há mal nenhum em
reconhecer que são duas coisas diferentes e, ao mesmo tempo, admitir-se a possibilidade de
que têm muitas interseções.”
Antes, pelo contrário, espera-se, através da demonstração da discussão de bases e
parâmetros teóricos, dentro da área de Letras Vernáculas, aproximar os mais recentes
resultados advindos de ensaios e discussões sobre o tema, da argumentação sobre
autobiografia que sustenta a presente pesquisa.
Segundo Eurídice Figueiredo, no ensaio “Régine Robin: autoficção, bioficção,
ciberficção”, publicado pela “Revista Ipotesi – Revista de Estudos Literários”, volume 11,
nº 2 em 2007:
Como apontava Philippe Lejeune em seu livro Le pacte autobiographique (1975), a
autobiografia se definia pela existência de um pacto autobiográfico, ou seja, quando
havia uma identificação entre o nome do autor tanto na capa/página de rosto quanto
no interior do livro, ou seja, autor, narrador e personagem seriam um só, a pessoa
que narra seria ao mesmo tempo o autobiográfo e autobiografado. Neste caso, o
leitor esperava encontrar a narração de acontecimentos “verdadeiros” – embora esta
questão da verdade tenha sido sempre muito problemática – ao contrário do
romance, gênero ficcional que supõe um outro tipo de pacto. No entanto, o próprio
Lejeune já demostrava que, mais importante que esta quase tautologia que ele
pressupunha, seria o pacto fantasmático, em que as coisas se mostravam muito mais
complexas e misturadas. [grifo da autora] (FIGUEIREDO, 2007, p. 21).
Ao se considerar a possibilidade da existência de um “pacto fantasmático” estruturado
pela mímesis (imitação/representação da realidade pela ficção) e pela verossimilhança
(elaboração verossímil/crível da narração/descrição da realidade), na qual o leitor parece
aceitar como possíveis os personagens e as situações elaboradas pela ficção; por que não
44
supor que em acontecimentos históricos, com situações e pessoas reais não se possa elaborar o
pacto autobiográfico?
O próprio Philippe Lejeune, na edição comemorativa de 25 anos do lançamento de sua
obra sobre a autobiografia, afirma que:
A autobiografia não pode ser simplesmente uma agradável narrativa de lembranças
contadas com talento: ela deve manifestar um sentido, obedecendo às exigências
frequentemente contraditórias de fidelidade e coerência. [...] Algo de essencial me
guiava nesse trabalho: a recorrência obstinada de um certo tipo de discurso dirigido
ao leitor, o que chamei de “pacto autobiográfico”. [...] Não tive, pois, de inventar o
pacto autobiográfico, uma vez que ele já existia, só tive de colecioná-lo, batizá-lo e
analisá-lo. (LEJEUNE, 2008, p.71-2).
O contexto, a cultura, o conhecimento da História e a identificação pela rememoração
de um fato podem servir como elementos que favoreceriam o estabelecimento de um pacto de
reconhecimento entre o texto e o que ele representa como narrativa e a consideração desses
elementos como constantes da memória e da biografia do autor. E sendo assim, considerandose que alguém escreva sobre o que viveu ou testemunhou, também poderia estar escrevendo
textos autobiográficos.
Na obra O que é uma obra?, o autor Michel Guérin (1995) chama a esse contato –
primeiro plano de estabelecimento do pacto – , de “contemplação militante”. Segundo Guérin:
É preciso concluir então: a cada um o seu universal [...] Se a obra torna alguns
lúcidos e outros cegos – conforme a ordem –, pelo menos pode requerer daqueles
aos quais é dirigida uma contemplação militante. Nada manifesta melhor a
universalidade ordinal da obra que o seu caráter originariamente mimético e
incoativo da contemplação. (GUÉRIN, 1995, p. 47).
É possível dizer que, muitas vezes, o público, o leitor, o ouvinte – aqueles que têm
contato com a obra – passam por um longo processo até que se estabeleça um pacto,
um código – ou uma maneira particular e individual de decodificar a narrativa –
e a materialidade que ela representa – livro, escultura, quadros, peças teatrais, espetáculos
45
coreográficos, etc. – e os significados (ou plurissignificados) do que ela evoca como arte,
como história ou como memória. Leia-se Lejeune:
Existem duas atitudes diametralmente opostas em relação à memória. Sabe-se que
ela é uma construção imaginária, ainda que seja pelas escolhas que faz, sem falar de
tudo o que inventa. Alguns optam por observar essa construção (fixar seus traços
com precisão, refletir sobre sua história, confrontá-la com outras fontes...). Outros
decidem continuá-la. Assim freiam, outros aceleram, e todos vislumbram como
resultado desse gesto o fantasma da verdade. E, consequentemente, ambos estão
convencidos de que outros estão enganados. (LEJEUNE, 2008, p. 106).
Mas, note-se que algumas obras são tão impactantes para determinados indivíduos,
sob determinados contextos, que o pacto – acordo de “contemplação militante”, o
entendimento, a percepção de significados ocorre quase de forma imediata e vai se
aprofundando, à medida que o contato se realiza e/ou intensifica.
Os textos pós-modernos podem ser híbridos, mistos, em sua estruturação e em sua
motivação. Os motivos para tal hibridismo podem residir não apenas em um possível
esgotamento da forma tradicional da organização do romance enquanto gênero, mas também
na motivação dos efeitos que o autor pretenda provocar nos leitores. Leia-se um fragmento de
Charaudeau & Maingueneau a respeito do hibridismo dos textos:
As atividades de fala efetivas nas quais são tomados os locutores são nomeadas mais
frequentemente gêneros de discurso, e menos frequentemente, gêneros de textos
(Rastier, 1989; Bronckart, 1996). Toda classificação rígida é impossível, pois “esses
gêneros se adaptam permanentemente à evolução dos relacionamentos
sociocomunicativos, e são portadores de múltiplas indexações sociais. Eles são
organizados em nebulosas, com fronteiras incertas e instáveis” (Bronckart, 1996:
110). De qualquer maneira, podemos analisá-los e classificá-los somente recorrendo
a critérios heterogêneos: estatuto dos participantes, meio, finalidade, lugar e
momento, organização textual, em particular. [grifo do autor] (CHARAUDEAU &
MAINGUENEAU, 2009, p. 470-471).
Percebe-se que, quando o autor parece falar de uma situação vivida (e ficcionalizada
subjetivamente) ou presenciada por ele, os leitores tendam a associar não a um recurso
literário e narrativo, mas a uma narrativa verídica, uma história verdadeira acontecida com
aquele autor – outro dos fundamentos estruturantes do conceito do gênero autobiográfico.
46
É bem verdade, que nem sempre é um pacto satisfatório para ambos, visto que ora um
não se sente compreendido, lido, prestigiado, e, ora outro, não compreende ou não aprecia a
maneira, a linguagem (e, implicitamente a combinação de suas funções) o tema, o gênero
narrativo-discursivo (mesmo que não se dê conta, assim como, das combinações das funções
de linguagem, da estruturação desse processo), escolhidas para contar/narrar a história a que
se propôs.
Segundo Antoine Compagnon (2010, p. 50), o personagem de ficção “[é] um ser de
papel, não uma ‘pessoa’, no sentido psicológico, mas o sujeito da enunciação que não
preexiste à sua enunciação, mas se produz com ela aqui e agora.” – criado pelo autor ou
narrador e os personagens que ele ficcionaliza para informar, narrar, contar a sua percepção, o
seu entendimento de um fato notório e relevante ou inusitado e, aparentemente, particular.
O fenômeno da diluição, do esmaecimento entre a fronteira da ficção e da realidade
pelo hibridismo do gênero literário, como expressão de um estilo ou de uma construção
semiótica, e, consequentemente, a sua cognição, seu entendimento e a sensibilização para a
história narrada é abordado na obra Estética da Criação Verbal. Mikhail Bakhtin, autor da
obra, afirma:
O homem, acostumado a sonhar concretamente consigo mesmo, quando procura
imaginar sua imagem externa, zela pela impressão externa que ela suscita [...] o
contexto de sua autoconsciência é confundido pelo contexto de sua consciência.
Essa minha vida recriada pela imaginação será rica de imagens acabadas e
indeléveis de outras pessoas em toda a sua plenitude externa visível, de rostos, de
pessoas íntimas, familiares, até mesmo de transeuntes eventuais, com quem cruzei
[na] vida, mas não haverá entre elas a imagem externa de mim mesmo. [...] irão
corresponder ao meu eu as lembranças – as vivências reconstruídas da felicidade
puramente interior, do sofrimento, do arrependimento, dos desejos, das aspirações
que penetram o mundo visível dos outros, isto é, irei relembrar minhas diretrizes
interiores em determinadas circunstâncias da vida e não da minha imagem exterior.
(BAKHTIN, 2006, p. 55).
Como se pode entender, a partir do fragmento da citação de Bakhtin, o autor do texto
construiu a sua narrativa através de uma visão subjetiva e particular de algo ocorrido que veio
a ser ficcionalizado ou não.
47
Ao aproximar a sua experiência pessoal das ações de seus narradores e personagens,
Lobo Antunes mostra-se e indica como vê o processo. Finge-se de personagem para espelharse como pessoa. Resolve como personagem, ou expurga a memória de conflitos e sentimentos
não resolvidos como indivíduo.
Além disso, sabemos que o processo associativo de ideias pode levar o leitor a ligar,
diretamente, autor e fato narrado no texto, considerando, parcialmente, aspectos semióticos do
hibridismo do gênero narrativo-discursivo que são inerentes à estruturação textual e referentes
às instâncias narrativas, a partir da mescla das funções de linguagem, o que permitiria a
legitimação da memória e da sua interioridade e dos aspectos autobiográficos e subjetivos
presentes ou percebidos como presentes na organização narrativa dos romances.
Ângela Beatriz de Carvalho Faria, em sua tese de doutorado, defendida na Faculdade
de Letras da UFRJ, em 1999 e intitulada Alice e Penélope na ficção portuguesa
contemporânea, ao analisar, em um dos capítulos, o romance Autópsia de um mar de ruínas
(1984), de João de Melo, aponta de que maneira o “contexto histórico da Guerra Colonial, ao
suscitar um maior enclausuramento do indivíduo, torna-se capaz de produzir uma ‘escrita de
si’, na acepção de Foucault, e uma invenção heróica de si mesmo.”. Diz ela:
Ao resgatar a efemeridade convertida em memória, o autor coloca-se a si mesmo
sob o olhar do outro, chamando-o como testemunha dos fatos e sentimentos. Essa
‘escrita de si’ objetiva ultrapassar a circunstância difícil do exílio e da absurda
guerra em África. E, segundo Foucault, em O que é um autor? (1992), essa “escrita
constitui uma prova é como que uma pedra de toque: ao trazer à luz os movimentos
do pensamento, dissipa a sombra interior onde se tecem as tramas do inimigo.”
(FOUCAULT, 1992, p.131). Parece-nos que em Autópsia de um mar em ruínas o
furriel enfermeiro (duplo do autor) e o soldado Renato procederam a essa “invenção
heróica de si mesmos”, através do espaço da escrita e da recorrência à hypomnimata
e à correspondência. Essa escrita, elemento de exercício de autoconhecimento, é um
veículo de subjetivação do discurso e, como bem nos ensina Foucault em O que é
um autor?, assemelha-se a um caderno pessoal que servia de agenda, aonde o
soldado Renato registrava ações de que tinha sido testemunha. Constituía um
material passível de ser lido, relido, meditado, visando a entreter o próprio sujeito e
os outros. O objetivo da hypomnimata é fazer a recolecção do logos fragmentário,
impedindo a dispersão do ocorrido e construindo um “passado”, ao qual se podia
sempre regressar e recolher-se. No entanto, os fragmentos dos discursos de guerra
do soldado Renato não pertenciam apenas a uma espécie de diário íntimo, nem
pretendiam revelar as arcana consciential de uma confissão purificada, mas
48
pressupunham a presença de um destinatário amoroso: “Ninguém melhor do que ti,
amor…” (AMR, 176). Embora o sujeito da escrita continuasse a exercitar-se a si
próprio, registrando de forma meticulosa e atenta o que se passava no corpo e na
alma, buscava o olhar do outro assinalando-o como testemunha da História: “E tu,
recordas?”; “E de lá vos mandei escrito de toda a memória que há sobre os dias
desta guerra” (AMR, 25); “Lembras-te?” (AMR, 25): […] Escrevo, amor.
Reconstruí-vos as senzalas moribundas de quantos se foram embora, para que
possamos regressar, viver. Pergunta-lhes por mim, amor. O que fazia. O que
inventava por vezes. O que escrevi aqui. (AMR, 238). (FARIA, 1999, passim).
A citação um tanto longa justifica-se porque ambos os autores – João de Melo
(também mobilizado para a Guerra Colonial em Angola) e Lobo Antunes – assumem o viver
“aqui neste papel descripto”.
Em ambos, observa-se o “sentido da permanência através do imaginário transformador
e da configuração da ‘escrita de si’, que propõe uma ética intelectual: o desprendimento de si
próprio como forma de auto-reconstituição incessante, uma arte de viver, uma estética da
existência.” (FARIA, 1999, p. 65). Em ambos os autores citados, portanto, memória e exílio
entrelaçam-se, como veremos a seguir. No entanto, instauram-se, à proporção que
escrevemos, uma dúvida: será que tal “escrita de si”, ao “trazer à luz os movimentos do
pensamento”, será capaz de “dissipar a sombra interior onde se tecem as tramas do inimigo”
ou acentua-as? Vejamos.
49
5 MEMÓRIA E EXÍLIO EM LOBO AUTUNES
O exílio nos compele estranhamente a pensar sobre ele,
mas é terrível de experienciar. Ele é uma fratura incurável
entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu
verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser
superada. E, embora seja verdade que a literatura e a
história contêm episódios heroicos, românticos, gloriosos
e até triunfais da vida de um exilado, eles não são mais do
que esforços para superar a dor mutiladora da separação.
As realizações do exílio são permanentemente minadas
pela perda de algo deixado para trás para sempre.
Edward Said
António Lobo Antunes estava recém-casado quando foi convocado para servir na
Guerra Colonial. Era o ano de 1970. O conflito, fruto da política de expansão ultramarítima
colonialista do regime salazarista português, começara no ano de 1961. Ao tornar-se um
médico a serviço do exército português e percorrer entre 1971 e 1973 as localidades de Gago
Coutinho, Chiúme, Luanda e Marimba, em Angola, Lobo Antunes tornou-se um exilado.
Leia-se um fragmento da dissertação de Gumercinda Nascimento Gonda:
[...] A experiência da Guerra Colonial lhe oferecerá uma outra leitura do real, cuja
origem se localiza no confronto entre uma visão de mundo sólido e estruturado,
herança familiar burguesa, e a sua visão particular, a partir de África, de uma
realidade complexa e inesperada [...] (GONDA, 1988, p.68).
Desterritorializado, social e culturalmente, por ação imposta pelo governo, e por força
de seu dever e juramento como médico, paulatina e inexoravelmente, o autor vê-se, numa
50
situação de estranhamento em relação a si mesmo e ao outro. O exílio é sentido. As colônias
são um espaço português, mas a visão do mundo modificada e o estranhamento experenciado
corroboram a sensação do exílio.
A incerteza do retorno à pátria ora faz com que o autor a vislumbre como o ideal a ser
reconquistado e pelo qual vale a pena a luta e a guerra, ora o leva a questionamentos cada vez
mais ácidos e contundentes. Coexistem, nas cartas e na ficção antuniana, o deslumbre pelas
novas paragens e o horror ao que esta nova experiência representa. Leia-se a décima carta
enviada por António Lobo Antunes à Maria José, sua esposa:
31.1.71
Minha joia querida
Começou a guerra a sério para nós. Uma das companhias, colocada em Ninda, foi
atacada por morteiros e metralhadoras e as consequências, embora relativamente
pouco importantes para nós [...] dão um bocado que pensar. Os dois aviõezitos da
força aérea passaram a tossir por cima de nós e foram bombardear presumíveis
acampamentos inimigos. Entretanto, encontraram-se, por aqui, papelada vária
anunciando ataques para os dias 3,4 e 5, em que se comemora o aniversário do
MPLA. Para mim o problema maior é o das viagens de avião que farei terça ou
quarta, pois além de tudo o mais, têm caído aqui chuvadas gigantescas: em cinco
minutos fica tudo alagado de charcos e poças imensas, como se chovesse durante
horas e horas. E as trovoadas, fantásticas de intensidade, desabam em cima de nós
numa cadência de Apocalipse. E ainda passaram. E ainda só passaram 15 dias, o que
me faz começar a pensar que estou a pagar um preço muito caro pela possibilidade
de voltar a viver aí um dia – que me parece cada vez mais distante. [...] Que vontade
eu tenho de me ir embora daqui! [...] Curiosamente, nasceu-me ontem uma poesia,
mas consegui afogá-la, sem a escrever, dentro da minha cabeça, e, hoje, já me
esqueci dela. (Estou, de resto, vagamente arrependido). Desculpa-me a carta
desanimada e desanimadora, mas o cinzento do tempo não me ajuda [...] começo eu
a compreender: não voltarei a ser a pessoa que fui, nunca mais. Milhões e milhões
de beijos.
António.
(ANTUNES, A. L. In: ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 35-37).
A sua “área de conforto” começa a distanciar-se. A noção de pertencimento persiste,
mas, aparentemente, dilui-se, ante o medo do outro, o medo de transformar-se, de mudar
demais, de não reconhecer-se mais. A memória de um tempo anterior à guerra serve como
apoio e a ela o autor se agarra. No entanto, mesmo esta, parece modificar-se e, assim, os
valores, avaliados à distância (tempo e espaço), poderiam ser relativizados.
51
O conhecimento de um modelo de sociedade (não necessariamente uma sociedade
ideal, – a portuguesa sob a repressão salazarista –, mas cujas regras e premissas são
previamente temidas e reconhecidas), e o confronto entre o estigma do outro e a incerteza da
guerra o forçam a reavaliar o conhecimento de si mesmo e o seu papel no mundo.
Inicia-se, assim, a “dolorosa aprendizagem da agonia”, como ele mesmo, anos mais
tarde iria descrever a experiência do exílio, aproximando a sua biografia da trajetória de um
de seus narradores-personagens, ficcionalizada no romance Os Cus de Judas (1979).
Em relação à teorização sobre a ideia de exílio construída por Said (2003:89),
apresentada na epígrafe deste capítulo, sobressaem as ideias de “fratura”, “estranhamento”,
“mutilação”. Expressões duras, que remetem ao fato – a transformação forçada pelo exílio –
como um fato, consumado, já ocorrido. O exilado nem sequer é nômade, pois não muda por
vontade própria ou em virtude de um acontecimento natural.
Parece haver uma relação entre as expressões de Edward Said e o termo “tensão”
atribuído por Gumercinda Nascimento Gonda (1988), ao analisar a experiência do exílio in
continuum, ou seja, no momento de seu acontecimento e como algo que se repete e ecoa como
sentimento/sensação através da ação da memória e como discurso, através da escrita. Leia-se
um fragmento da 44ª escrita por Lobo Antunes:
20.3.71
Minha joia querida
Mais uns dias sem escrever: passei-os sem dormir, e só agora, depois do almoço
deste sábado quentíssimo e enevoado, estou deitado na cama e penso, finalmente
dormir. Estive na picada de volta de vários feridos gravíssimos. Às 8 da noite de
anteontem recebemos um rádio pedindo um médico com urgência. E como as
máquinas voadoras não voam de noite, meti-me num rebenta-minas, com uma
escolta e lá fomos. A mata não era tão densa que nos batia na cara, e a tensão
constante. Um dos feridos não tinha uma perna já, e a única frase que ele dizia era o
meu pai quando souber mata-se, o meu pai quando souber mata-se. Outro estava
cego, e outro cheio de estilhaços, um negro, e rezava em voz alta. Nunca mais hei-de
esquecer disto. [...] (ANTUNES, A. L. In: ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 95).
52
Visualizar o horror e o sofrimento do exílio e da Guerra Colonial não como um fato
consumado, mas como uma experiência contínua, independente do fator tempo, em
distanciamento ou em duração, parece destacar, na vida e na literatura, a importância que se
estabelece entre a memória e a história. Na obra antuniana essa tríade – ficção, história e
memória –, permanece. E parece ganhar novos ecos a cada nova obra, a cada recorrência ou
alusão ao tema, à história particular do autor, a cada novo romance que traga ou toque na
questão deste período histórico tão dramático para os portugueses.
A fim de estruturar o presente estudo, na busca de dotá-lo de organização suficiente
para situar os leitores no âmbito do preciso recorte da pesquisa, pretende-se apresentar
definições ou perspectivas de abordagem teórica para os conceitos de “exílio” e
“autobiografia”. Leia-se um trecho da obra Os males da ausência: ou a literatura no exílio
(1998), de Maria José de Queiroz:
[...] o léxico do exílio e dos seus males está longe de elucidar o próprio exílio na sua
relação com o tempo, com o meio e com as ideias. Estereotipados em clichês –
psicopatológicos, sociopolíticos e literários – desgastado pelo uso, e mormente pelo
abuso, pois tem servido a todo e nenhum propósito, os seus vocábulos apenas
informam, de si por si, sobre a instabilidade das leis e do Direito, sobre a violência
política e sobre a ambiguidade dos sentimentos humanos. [...] Sofrido e padecido
por exilados, banidos, desterrados, degredados, proscritos, deportados, o mal do
exílio tanto se inclui num dos capítulos mais pungentes da história universal [...]
como da literatura [...] (QUEIROZ, 1998, p.20).
Ao considerar-se que escrever a distância não signifique, necessariamente, escrever no
exílio, pois que a palavra “exílio” pressupõe, além da distância, a ação de forças filosóficas,
políticas, ideológicas e culturais que fazem com que o (s) indivíduo (s) seja (m) forçado (s),
que opte (m) pela permanência em um espaço (exílio geográfico) ou em um estado emocional,
psicológico e ideológico (exílio cultural).
Leia-se Carlos Ascenso André em sua obra Mal de ausência: o canto do exílio na
lírica do humanismo português (1992):
53
Qualquer tentativa de definição conceptual de “exílio” tem por força de confrontarse com um problema essencial [...] longe de ser unívoca, essa palavra é caracterizada
por forte índice de polissemia; as realidades que abrange são múltiplas; a
ambiguidade é uma de suas marcas fundamentais. [...] De facto, ao longo dos
séculos tornou-se corrente envolver na mesma designação o êxodo colectivo e a
expatriação individual, a emigração, o refúgio, a deportação ou a proscrição e a
partida voluntária, a opção assumida ou a pena imposta. (ANDRÉ, 1992, p.29).
A distância é provocada pela partida. O exílio é fruto da permanência forçada ou
escolhida. Exilar-se é permanecer de fora. É estar ausente na presença do que incomoda,
agride, macula, machuca, faz sofrer, impede o exercício da vontade plena, ou configura uma
prática em oposição ideológica a uma força em exercício.
A essa experiência a elisão de antigos paradigmas, talvez nem sequer percebidos por
quem os possuísse, parece inevitável. Confrontado com a solidão do exílio, Lobo Antunes,
começa a construir um processo contínuo de escrita. Inicialmente, dando a conhecer de sua
rotina, de suas tarefas, pequenos acontecimentos, lugares pelos quais vai passando.
Leia-se um fragmento do poema enviado por Lobo Antunes na sua 258ª carta. Aqui o
autor, através do “eu-lírico”, dá a conhecer, poeticamente, sobre o que viu e vivenciou no
exílio:
12.3.72
20. (Relatório e contas)
Vi morrer muita gente: Albrecht Dürer o comerciante
notários escrivães senhoras idosas cochichando ainda
Vi os mortos amortalhados de brancura na goma dos lençóis
e os caixões que os levavam às costas pelas ruas de Ostende
Vi que se desmoronasse devagar, pedra a pedra, apesar do lenço
que lhe premia o queixo. Vi lábios de mármore de infanta
sorrindo nos seus túmulos. Vi a chuva cair sobre as lágrimas e os gestos
vi a escura muralha da noite erguendo-se em torno dos seus corpos.
Neste céu de bruma o sol é uma maçã
pálida como um rosto, um braço ainda suspenso.
Um rio sem margens um dique para o mar
que morre devagar no areal aguado.
Vi como os navios morrem, como morrem as casas,
como morre a memória, o passado e o futuro,
como o silêncio morre e como, lentamente,
vou morrendo com ele e com a minha vida ao ombro. [...]
(ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L, 2005, p. 374).
54
No poema, o “eu-lírico” enumera, através da construção em metáforas, passagens,
acontecimentos resgatados da experiência do exílio. Esta carta é escrita alguns meses antes do
seu retorno definitivo a Portugal, quando do término de sua convocação. O próprio título:
“(Relatório e contas)” remete à condição de recapitulação e evocação da memória sensorial,
visual, emocional daquilo que o autor / “eu-lírico” testemunhou: “vi”. Apontando para uma
identidade em reconstrução, para o ethos discursivo do sujeito por trás do poema.
É importante enfatizar que as “Cartas da Guerra” (2005) foram escritas no período do
“exílio” ou afastamento temporário da pátria. Há o registro pontual, no calor dos fatos, não só
das obrigações do médico português com os soldados, seus “colegas”, mas também com o
outro, o colonizado. No momento de sua produção, as cartas relatam apenas acontecimentos
recentes, vividos e experimentados.
Alguns anos mais tarde, quando Lobo Antunes torna-se um escritor de renome, e pela
recorrência temática específica desse período histórico e de sua própria trajetória pessoal é
que, da nossa perspectiva atual, com os avanços das pesquisas de gênero é que nos parece
adequado utilizar estas cartas como um apoio documental de um período distante, a fim de
tentar estabelecer ligações entre a vida real e a História através da memória pessoal do autor –
cujos indícios desse período podem ser buscados nas cartas –, e a ficcionalização desses
relatos.
5.1 FICÇÃO, MEMÓRIA E HISTÓRIA
“A invocação da verdade é um sinal de mentira.”
Tzvetan Todorov
Entende-se a proximidade entre a História e a Literatura, suas interações e a distinção
entre o objeto desta e daquela. Percebe-se, porém, que a tênue linha que as une e as separa,
55
confunde não apenas os leitores, mas, não raro, pesquisadores que tomam esta por aquela e
vice-versa. Segundo observou Erich Auerbach:
O modo de observar a vida do ser humano e da sociedade humana é
fundamentalmente o mesmo, quer se trate de assuntos do passado ou do presente;
uma modificação do modo de observar a história, necessariamente, se transfere, sem
demora, à observação dos assuntos presentes. Quando se reconhece que as épocas e
sociedades não devem ser julgadas segundo uma concepção modelar daquilo que é
absolutamente digno de esforço, mas segundo as suas próprias pressuposições;
quando se contam entre essas pressuposições não somente as naturais, como o clima
e o solo, mas também as espirituais e históricas, da incomparabilidade dos
fenômenos históricos e sua mobilidade; [...] mas também na arte, na economia, na
cultura material e espiritual, nas profundezas do dia-a-dia e do povo, porque só lá
pode ser apreendido o verdadeiramente peculiar, o que é intimamente móvel, o que
tem validade universal, tanto num sentido mais concreto, quanto num sentido mais
profundo; [...] (AUERBACH, 2009, p. 395).
Se a História, a escrita factual, individual, coletiva e ficcional, decorrente da
observação das trajetórias das sociedades, está em constante transformação, vê-se na
Literatura, escrita subjetiva, resgate de fragmentos históricos, divulgação de sensações e
impressões do espírito humano, a forma de contar com arte, a criatividade e a inventividade
do espírito humano e a manipulação consciente das linguagens possíveis aos indivíduos.
Na obra Guerra colonial: fotobiografia (1998), de Renato Monteiro e Luís Farinha, os
autores afirmam:
[...] excluído o curto período de 1961 a 1963, a reportagem de guerra não foi
cultivada na imprensa escrita ou na televisão portuguesas, uma e outra constrangidas
pelas normas censórias do regime, que impunha uma estratégia ideológica
fundamentalmente apostada na minimização do esforço e na ocultação, quase
sistemática, da guerra perante a opinião pública. (MONTEIRO & FARINHA, 1998,
p. 12).
A História portuguesa do período da Guerra Colonial em África é marcada pela
censura aos meios de comunicação. Após o 25 de abril o país e o mundo precisaram contar
com a investigação de documentos, com as obras literárias escritas por aqueles que foram
tocados por este período e, sobretudo, com a memória e com o testemunho em depoimentos e
em obras de ficção daqueles que estiveram no campo de batalha.
56
Sobre as relações da Literatura portuguesa contemporânea e as suas relações com a
História, leia-se um trecho da introdução da obra José Saramago: entre a história e a ficção
(1989), da professora e pesquisadora Teresa Cristina Cerdeira da Silva:
[...] Sabemos que a história se constitui como uma indagação sobre a verdade, mas
que o seu resultado é sempre parcial, comprometido com o sujeito do enunciado,
com o tempo do discurso e, por isso mesmo, plural. [...] As fronteiras começam,
pois, a apagar-se. Se a literatura caminha pelas sendas ficcionais em busca da
verdade, a história só existe enquanto discurso sobre a verdade, aproximando-se,
assim, como diz Georges Duby, da arte, de uma arte essencialmente literária.
(SILVA, 1989, p. 23-24).
Pretende-se demonstrar o hibridismo das formas e funções da escrita epistolar e
autobiográfica e como elas são potencializadas por uma situação contextual específica,
causada pela distância, pelo exílio e pela situação de exceção da guerra presentes na obra de
Lobo Antunes. Agente, autor, narrador, testemunha e personagem entretecem-se na narração,
ficcionalizada e na ordenação cronológica e espacial referente a um período histórico e a uma
trajetória pessoal. Observa-se, assim, um homem no meio do turbilhão da História, um
médico e seu desejo de tornar-se escritor. Segundo Teresa Cristina Cerdeira da Silva:
[...] Se a História tende assim para o literário, não é menos evidente que a ficção, de
modo geral, sonhe penetrar nos domínios seguros da verdade histórica. É na medida
em que consegue criar a ilusão da verdade que o discurso ficcional cria a armadilha
à qual o leitor não escapa, já que acrescenta ao fascínio do discurso do belo o terreno
firme do “verdadeiro”, que ilusoriamente é capaz de criar. A essa estratégia
poderíamos chamar de “pacto de veracidade” [termo de LEPECKI, Maria Lúcia. in:
O romance português contemporâneo na busca da história e da historicidade,
(1984)] do qual o romancista não se pretende alienar se desejar criar com o leitor o
fingimento da verdade. (SILVA, 1989, p. 26 [grifo nosso]).
Não se pretende equiparar, de forma reducionista, a escrita epistolar (escrita de
cartas) ao mesmo processo de confecção de um romance, por exemplo. Mas entende-se que o
“pacto autobiográfico” parece conter em seu cerne o “pacto de veracidade” que nos permite
atribuir e associar um ato, um sentimento, um acontecimento, uma história, à trajetória
pessoal e particular daquele que a conta, a escreve e/ou dela participa, diz participar, ou a
apresenta (no caso de “Cartas da Guerra”, de Lobo Antunes, apresentam por ele), através de
57
textos, documentos, cartas, papéis e fotos que o ligam diretamente ao processo. Leia-se
Verônica Prudente Costa, que em um trecho de sua dissertação de mestrado, comenta que:
O título escolhido e o subtítulo “Cartas da Guerra” resumem a vivência
autobiográfica do autor: um homem isolado de tudo e de todos durante dois anos de
Guerra Colonial em Angola que escreve à mulher amada sucessivos aerogramas.
Vale a pena observar, principalmente, a par da temática erótico-amorosa, a solidão,
o desespero, a desesperança, a tentativa de colocar ordem no caos, através do
subterfúgio da escrita (Lobo Antunes iniciava-se em sua carreira de escritor e
enviava trechos de um romance que desejava publicar para serem lidos e criticados
pela mulher Maria José). Em meio a isso, há alusões a operações de guerra, ao
contato com o outro, o africano, ao processo de autoconhecimento, [...] Assim, a
“identificação em curso” do sujeito manifesta-se através da escrita.
[grifo nosso] (COSTA, 2006, p.17-18).
Mas, ao se analisar a escrita de um indivíduo – Lobo Antunes – como partícipe de um
processo histórico, traumatizante como o de uma guerra, numa situação-limite de vida e
morte, em face de que tudo o que estava sendo escrito leva-se em conta um destinatário
diferente do próprio autor (a escrita diarística tem como destinatário primário o próprio autor
do diário que escreve de si para si, e ainda assim, pode se inventar, reinventar-se), no caso,
sua esposa, Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes de quem viria a se separar
em 1976 e que faleceria em 1999. Leia-se Lejeune:
[...] A carta tem três aspectos: [a] a partir do momento em que é postada, torna-se
fisicamente propriedade do destinatário e quando este morre, de seus herdeiros; mas
o exercício de seu direito de propriedade é limitado estritamente pelos dois aspectos
seguintes: [b] mesmo postada, a carta continua sendo, intelectual e moralmente,
propriedade de seu autor – e, depois de sua morte, a publicação (conforme a lei de
1957 sobre a propriedade intelectual); mas o exercício desse direito poderá ser
limitado, de facto, se o autor não estiver mais com a carta (salvo na caso de uma
cópia ter sido conservada) e, de jure, pelo terceiro aspecto: [c] na medida em que a
carta desvela a vida privada, toda pessoa envolvida (o autor, o destinatário ou
terceiros) pode se opor à divulgação e à publicação (código civil, artigo nove).
(LEJEUNE, 2008, p. 253).
Acredita-se que essas cartas possam dar conta de uma determinada forma de escrita
epistolar e autobiográfica, e que sirvam ao propósito de conter informações sobre a trajetória
do autor em sua passagem pelo exército, durante a Guerra Colonial em África,
especificamente no Leste de Angola.
58
Ao considerar a importância da Literatura portuguesa que aborda a questão da guerra,
o escritor João de Melo – que, assim como Lobo Antunes, serviu ao exército português –,
afirmou no prefácio da segunda edição da obra Os anos da guerra (1961-1975):os
portugueses em África. Crônica, ficção e história (1998):
É talvez o único domínio da sociedade portuguesa a desaceitar o tabu de um passado
que forjou e modificou para a vida uma nova geração de homens. Actualmente, ela
é, com efeito, um dos únicos meios de expressão que não faz silêncio nem tábua rasa
sobre o enorme logro do nosso passado colonial. Daí que ela seja – essa literatura –
muito discriminada entre nós. (MELO, 1998, p.30).
O próprio João Melo, que parece querer confrontar a sociedade portuguesa com a
necessidade de reconhecer o trauma da Guerra Colonial, afirma na introdução da obra Guerra
Colonial: fotobiografia (2003), “Uma imagem vale por milhões de palavras”, de Renato
Monteiro e Luís Farinha:
De uma forma ou de outra, e por muito que alguns queiram recusá-lo, foram de
todos os portugueses os dias e os longos anos da Guerra Colonial – desde 1961 até
ao fim de um novo ciclo de nossa história recente: queda da ditadura, solução das
chamadas lutas de libertação nacional, descolonização dos territórios. À parte um
pequeno reduto da opinião que ainda hoje resiste à simples ideia dessas
independências, parece notório à inteligência portuguesa que um tal epílogo (tardio,
feito ao arrepio das grandes pressões endógenas e exógenas) era há muito inevitável.
O caso é que à luz do espírito deste século, durante o qual o mundo foi mirando num
quase permanente desconcerto da condição humana, a conjugação do verbo
“descolonizar” entrara definitivamente na gramática dos tempos modernos. Daí que
o colonialismo português persistisse para além da sua própria medida: anacrónico,
isolado na sua obstinação, submetido apenas à lógica falida da última ditadura
ocidental. Outro é já hoje o tempo, assim como a noção preciosa de que dele vamos
tendo nós. Outras também as opções políticas e institucionais deste pequeno país
europeu que tem agora o destino da Democracia, mas cuja cultura histórica tarda por
vezes a reencontrar o murmúrio, a raiz, a memória, e a sabedoria da própria História.
Tempo, pois, de uma espécie de movimento invisível que se processa entre a
consciência reprimida e a ignorância de duas gerações: a do vivido na África e
aquela que já hoje reclama sua justa e total “inocência” africana, opondo-a aos
valores que julga serem os rumos próximos e futuros da sociedade portuguesa. Entre
uma e outra dessas atitudes, sobra talvez a não pequena virtude de quantos se
dispõem a provar que África é ainda um assunto profundamente nosso. [...]
(MELO apud. MONTEIRO & FARINHA, 2003, p. 08).
João Melo indica que haja quase uma obrigatoriedade, a princípio percebida pela arte,
notadamente, pela literatura, de discutir os descaminhos colonialistas portugueses e os
massacres ocorridos em África.
59
O título da introdução da obra: “Uma imagem vale por milhões de palavras”, além de
subverter hiperbolicamente o dito popular “uma imagem vale mais do que mil palavras”, para
iniciar o diálogo literário e imagético com a fotobiografia de Renato Monteiro e Luís Farinha
(2003), naturalmente alude aos milhões de mortos da Guerra Colonial em África.
A sua capacidade de dialogar, como autor, com a ficcionalização de fatos históricos se
estrutura também pela memória de fatos históricos e esta será corroborada pela existência de
tais cartas. Leia-se Foucault:
O documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesma, e de
pleno direito, memória; a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar
status e elaboração à massa documental de que ela não se separa. Digamos, para
resumir, que a história, em sua forma tradicional, se dispunha a "memorizar" os
monumentos do passado, transformá-los em documentos e fazer falarem estes rastros
que, por si mesmos, raramente são verbais, ou que dizem em silêncio coisa diversa
do que dizem; em nossos dias, a história é o que transforma os documentos em
monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens,
onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de
elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, interrelacionados, organizados em conjuntos. (FOUCAULT, 2008, p. 08).
Como não supor, portanto, que haja deliberada intenção de tornar em Literatura algo
que tenha sido uma experiência individual real? Como não supor que a verdade e a realidade
se transformem em um devir, um pacto implícito formulado entre a figura do autor através de
seus personagens e narradores e os leitores se o autor esteve no cerne dos acontecimentos, fez
parte deste momento da História?
Nas “Cartas da Guerra”, Lobo Antunes, nitidamente, encontra-se no cenário que virá a
ser retratado em alguns de seus romances. Suas cartas, na perspectiva do tempo em que foram
escritas, são depoimentos, registro de atividades, declarações hiperbólicas de amor. Hoje, sob
nosso ponto de vista, podem ser lidas como documento. Memória escrita palpável de
elementos que permeiam a História de Portugal, da trajetória pessoal do autor e a tessitura
narrativa de alguns de seus romances.
60
Pode-se discutir, até mesmo, os elementos narrativos de representação ficcional do
autor pelos conteúdos que já, a esta altura, estão presentes nas cartas e que não são ficção.
Leia-se um trecho da 7ª carta enviada por Lobo Antunes:
27.1.1971
Minha namorada querida
Aqui cheguei finalmente a Gago Coutinho, depois de uma viagem apocalíptica,
como nunca pensei ter de fazer em qualquer época da minha vida. [...] Isto é o fim
do mundo: pântanos e areia. A pior zona de guerra de Angola: 126 baixas no
batalhão que rendemos, embora apenas com dois mortos, mas com amputações
várias. Minas por todo o lado. [...] (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L &
J.L., 2005, p. 27;29).
Ou ainda, a percepção do outro, do colonizado. A quebra do estigma através da real
percepção de como aquele que é tido como exótico (o que se vê apenas do ponto de vista
externo, exterior). Leia-se um fragmento da 106ª carta de Lobo Antunes à esposa:
2.6.71
Minha alma querida
Aqui estou, nervoso, à tua espera: é dia de cartas, de notícias, de ternas palavras de
amor. [...] E recomeço a passear na areia de mãos nos bolsos. [...] Tudo aqui parece
inalterável: nenhuma nuvem, e que um tempo desagradavelmente ventoso. Talvez
por estarmos num alto, numa espécie de pequeno morro. Ao longe vê-se a imensa
chana do Quango. Quango-Cubango. Pegado ao arame um quimbo de 70 habitantes.
O soba, que fala bastante bem português, é um nacionalista feroz. [...] Quase todos
os habitantes têm alcunhas postas pela tropa. (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES,
M.J.L & J.L., 2005, p. 183-184).
Enquanto espera pelas cartas da esposa, Lobo Antunes relata que a relação entre os
soldados e os habitantes dos lugarejos pelos quais a tropa vai passando em Angola se dá, ora
pelo confronto, mutilação e morte de rebeldes e soldados, ora pela convivência de
subserviência dos angolanos para com os portugueses.
O autor ainda revela na carta que os africanos são apelidados conforme suas
compleições físicas e pela maneira como suas características e personalidade são notadas
pelos soldados e oficiais da tropa. Ao escrever sobre isso, vale-se, inclusive, de palavras e
61
expressões na língua dos nativos, a fim de demonstrar, possivelmente, o “domínio” de
algumas dessas expressões e a sua percepção do exotismo das palavras e do povo angolano.
Se o equilíbrio entre a verossimilhança da realidade e a verdade já se tornara complexo
e fragilizado pela necessidade humana de contar e pela necessidade literária de narrar,
imagine-se o embate entre esses paradigmas quando o próprio autor sente necessidade ou
pretenda narrar algo que ele mesmo tenha vivenciado. Leia-se um fragmento da obra História
e Memória (1990), de Jacques Le Goff:
[...] Que relações tem a história com o tempo, com a duração, tanto com o tempo
"natural' e cíclico do clima e das estações quanto com o tempo vivido e naturalmente
registrado dos indivíduos e das sociedades? Por um lado, para domesticar o tempo
natural, as diversas sociedades e culturas inventaram um instrumento fundamental,
que é também um dado essencial da história: o calendário; por outro, hoje os
historiadores se interessam cada vez mais pelas relações entre história e memória.
[...] A dialética da história parece resumir-se numa oposição – ou num diálogo –
passado/presente (e/ou presente/passado). Em geral, esta oposição não é neutra mas
subentende, ou exprime, um sistema de atribuição de valores, como por exemplo nos
pares antigo/moderno, progresso/reação. Da Antiguidade ao século XVIII
desenvolveu-se, ao redor do conceito de decadência, uma visão pessimista da
história, que voltou a apresentar-se em algumas ideologias da história no século XX.
Já com o Iluminismo afirmou-se uma visão otimista da história a partir da ideia de
progresso, que agora conhece, na segunda metade do século XX, uma crise. Tem,
pois, a história um sentido? E existe um sentido da história? [...] A história é incapaz
de prever e de predizer o futuro. Então como se coloca ela em relação a uma nova
"ciência", a futurologia? Na realidade, a história deixa de ser científica quando se
trata do início e do fim da história do mundo e da humanidade. Quanto à origem, ela
tende ao mito: a idade de ouro, as épocas míticas ou, sob aparência científica, a
recente teoria do big bang. Quanto ao final, ela cede o lugar à religião e, em
particular, às religiões de salvação que construíram um "saber dos fins últimos" – a
escatologia –, ou às utopias do progresso, sendo a principal o marxismo, que
justapõe uma ideologia do sentido e do fim da história (o comunismo, a sociedade
sem classes, o internacionalismo). Todavia, no nível da práxis dos historiadores,
vem sendo desenvolvida uma crítica do conceito de origens e a noção de gênese
tende a substituir a ideia de origem. [...] Em contato com outras ciências sociais, o
historiador tende hoje a distinguir diferentes durações históricas. Existe um renascer
do interesse pelo evento, embora seduza mais a perspectiva da longa duração. Esta
conduziu alguns historiadores, tanto através do uso da noção de estrutura quanto
mediante o diálogo com a antropologia, a elaborar a hipótese da existência de uma
história "quase imóvel". Mas pode existir uma história imóvel? E que relações tem a
história com o estruturalismo (ou os estruturalismos)? E não existirá também um
movimento mais amplo de "recusa da história"? [...] A ideia da história como
história do homem foi substituída pela ideia da história como história dos homens
em sociedade. Mas será que existe, se é que pode existir, somente uma história do
homem? Já se desenvolveu uma história do clima – não se deveria escrever também
uma história da natureza? [...] (LE GOFF, 1990, p.07-09).
62
Como não supor que haja deliberada intenção de tornar em Literatura algo que tenha
sido uma experiência individual real, mas não completamente verdadeira? Como não supor
que a verdade e a realidade se transformem em um devir, um sentimento de transformação
concluído somente através da obra literária, de um pacto implícito formulado entre a figura do
autor através de seus personagens e narradores e os leitores?
Estes, os leitores, pela suposição de se encontrarem diante de um texto documental,
por tratar-se de uma situação verossímil do ponto de vista do autor, da história, da percepção e
da aceitação das faculdades de sua memória, mostram-se suscetíveis de entender as cartas
como elementos autobiográficos, oriundos de uma vivência real, particular do fato histórico.
Nas palavras de Norberto do Vale Cardoso (2004: 11), “[...] talvez aí resida o papel da
cultura, e, nela, da literatura: realizar uma autognose, ou seja, preservar a memória, contar a
guerra, contar o que é indizível.”. Assim, Lobo Antunes assume, à sua maneira, de forma
absolutamente individual, um status particular, na literatura, de contar (descontruindo a
narrativa convencional desde o fim do século XX e no limiar do século XXI), através do que
se reconhece ser em parte verdade e em parte ficção, mas tornado real pelo viés da Literatura.
A fim de analisar a postura intra e extratextual, verificada nos romances iniciais de
Lobo Antunes e associá-la à questão autobiográfica na correlação entre história e literatura,
verdade e ficção, cita-se aqui o texto de Michel Montaigne “A condição humana”, da obra
Ensaios de Montaigne (1930, cap. II), citado e apresentado, em sua estrutura discursiva, por
Erich Auerbach em sua obra Mimesis (2009):
1º) Descrevo uma vida baixa e sem brilho; mas isto não importa; também na mais
baixa das vidas está o todo da humanidade. 2º) Não descrevo, como os outros, uma
aptidão especializada ou uma aptidão especial que eu tenha adquirido [...]
3º) Quando me lançam ao rosto o fato de eu falar demasiado a respeito de mim
mesmo, respondo com a refutação: vós nem pensais em vós mesmos.
4º) Não é acintoso o querer tornar de um conhecimento público e geral um caso
individual tão limitado?[...] 5º) a) ninguém jamais foi tão perito no seu assunto como
eu no meu; b) ninguém jamais aprofundou tanto o seu assunto nem o perseguiu tanto
em todas as suas articulações e ramificações; ninguém jamais levou a cabo tão exata
e completamente a sua intenção. 6º) Para conseguir isto, nada preciso além da
sinceridade sem rebuços, e esta não me falta. As convenções tolhem-me um pouco;
63
bem que gostaria de ir um pouco além, mas desde que estou envelhecendo, permitome neste sentido alguma liberdade que é mais perdoável a um homem velho.
7º) A mim não pode acontecer o que acontece a mais de um especialista: que o
homem e a obra não estejam em concordância; que se admire a obra, mas que se
considere o autor, no trato, bastante medíocre, ou vice-versa. [...] Meu livro e eu
somos uma coisa em comum; quem falar de um, falará simultaneamente do outro.
(MONTAIGNE apud. AUERBACH, 2009, p.249-276).
Assim, de uma escrita epistolar direta que resume acontecimentos passados, Lobo
Antunes vai transitar para a exacerbação do amor e da saudade sentidos até a construção de
uma escrita que se aproxime de um projeto de possíveis e futuras obras. Um tipo de escrita
dolorosa para quem lê, um amor vivido à distância, concretizando, mas, parcialmente
interrompido pelas circunstâncias.
5.2 AS “CARTAS DA GUERRA”
[...] As palavras trazidas pelo autor são um conjunto um
tanto embaraçoso de evidências materiais que um leitor
não pode deixar passar em silêncio, nem em barulho. [...]
Interpretar um texto significa explicar por que essas
palavras podem fazer várias coisas (e não outras) através
do modo pelo qual são interpretadas. [...]
Umberto Eco
“Cada um vive quase somente para si próprio e para as
cartas
que
recebe,
preocupado
com
a
própria
sobrevivência e mais nada.”
António Lobo Antunes
64
A obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005) é a reunião de
cartas escritas por António Lobo Antunes quando este contava 28 anos. Foram escritas
durante dois anos, no início da década de 1970, com três breves interrupções. O título da obra
batizaria/nomearia o primeiro romance publicado por Lobo Antunes, porém, o título
inicialmente atribuído, Memória de Elefante, é recusado pela editora.
As “Cartas da Guerra” (2005), escritas por António Lobo Antunes, perfazem,
aproximadamente, 300 cartas; boa parte delas, aerogramas (correspondências próprias da
comunicação escrita entre militares e seus familiares, em situação de serviço, e que não
precisavam de selo para seu envio).
Muitas dessas correspondências portavam fotografias, descrições dos lugares pelos
quais o autor/médico/militar vai passando e situações narradas. Há o envio de alguns poemas
e documentos, mas quase todas, demonstram uma exacerbação do sentimento. Planos,
projetos, calendário e itinerário da tropa, aludidos nessas correspondências, remetem ao
contexto histórico.
As correspondências e as fotografias e impressos da guerra enviadas por Lobo
Antunes perfazem um total de 29 fotos assim organizadas: 13 fotos enviadas por Lobo
Antunes sendo assim distribuídas 02 (p. 62-63); 01 (p. 231); 01 (p.297); 03 (p.372-373); 01
(p.395); 05 (p.400-402).
Essas fotos, em geral, reproduzem o ambiente e os locais pelos quais o autor ia
passando em sua campanha militar, e, colegas e companheiros mais próximos em ações
militares cotidianas ou em momentos de descontração.
Das fotografias restantes, há três de Lobo Antunes e da esposa Maria José Xavier da
Fonseca e Costa. Duas são do casamento (capa da obra e p.165) e a da folha de rosto é uma
reprodução de um momento em sociedade do casal.
65
O teor das correspondências da esposa para Lobo Antunes não foi publicado, ou seja,
não se tem, como objeto de pesquisa, ou de leitura, simplesmente, as respostas dela ao marido
militar, no entanto, as fotos enviadas por ela perfazem um total de 13 fotografias e servem
para informar sobre o nascimento da filha e da vida, em compasso de espera, da esposa
recém-casada.
Em uma sequência de cartas, Lobo Antunes reclama, através de cartas com saudações
formais, ao invés das hiperbólicas, metafóricas e apaixonadas habituais, a ausência de
resposta às suas missivas. As cartas trazem, em lugar da frequente saudação “minha joia
querida” (e suas variações), a expressão “Dona Maria José”. Há também duas cartas dirigidas
à filha, recém-nascida, Maria José.
As fotos enviadas a Lobo Antunes estão assim distribuídas: 02 (p.59-60); 01 (p.89); 02
(p.229 – o nascimento da filha Maria José); 02 (p.279); 02 (p.285), 02 (p.339); 01 (p.419 –
essa foi tirada pelo próprio Lobo Antunes e lhe fora enviada, quando de seu último regresso
ao campo de guerra).
Há, também, a reprodução fac-similar de cartas e documentos. A saber: 02 do MPLA
(Movimento pela Libertação de Angola – força revolucionária em oposição ao exército
português – p.70-71). E dos aerogramas: 02 (p.33-34); 01 (p.81); 01 (p.87); 01 (p.133); 02
(p.200-201); 02 (p. 376-377); 01 (p. 396); 01 (p.405). E duas cartas são reproduzidas: 01
(p.63) e 01 (p.166).
O autor também dá conhecimento à esposa de um início de produção literária, através
do envio de poemas, da “produção de um romance”, do relato de algumas obras lidas ou
lembradas. Entende-se que Lobo Antunes, em diversas cartas, optasse por omitir de sua
esposa a descrição de passagens trágicas por ele testemunhadas. Naturalmente para que a
esposa não se preocupasse ainda mais com sua segurança e por que ele estava consciente da
66
censura imposta pelo regime oficial e que este veiculava uma mensagem falsa dos conflitos
ocorridos, minimizando-os.
Os poemas são assim distribuídos: 01 (p. 214); 01 (p. 243-244 – em francês); (01 (p.
305); 01 (p.349); 01 (355-356); 01 (p.364-365); 01 (p. 374-375; 378). Sobre a produção do
romance, o autor escreve, dispersamente, ao longo de dezenas de cartas, informações sobre a
motivação, as características que o romance terá, instruções para destruição dos originais,
número de páginas e possíveis títulos. Observa-se, no entanto, que o autor não chega a
publicar o romance com o título ou com as características que descreve nas cartas.
Não se trata, especificamente, de estabelecer um escore quantitativo do conteúdo das
“Cartas da Guerra” (2005), mas, em se tratando da proposta dessa dissertação, de abordar a
epistolografia e a autobiografia na obra antuniana.
Essa análise do material epistolar foi possibilitada, em grande parte, pelo trabalho
cuidadoso e, acredita-se, devotado, das organizadoras, filhas do casal, ao selecionar as cartas e
os documentos que compõem a antologia de textos. Leia-se um trecho da apresentação da
coletânea de cartas escrito por Maria José e Joana Lobo Antunes:
As cartas que aqui se leem são transcrições integrais dos originais, apenas com a
correção de gralhas e actualização ortográfica. Decidimos eliminar alguns nomes,
usando letras que não as iniciais, para não ferir susceptibilidades das pessoas
referidas e de suas famílias. [...] Julgamos que o interesse destas cartas vai muito
além da identificação de todas as citações, poemas, livros e autores de que nelas se
fala, e damos espaço ao leitor para as descobrir se assim entender. [...] Este é o livro
de amor dos nossos pais, de onde nascemos e do qual nos orgulhamos. Nascemos de
duas pessoas invulgares em tudo, que em parte vos damos a conhecer nestas cartas.
O resto é nosso. [...]
Maria José Lobo Antunes
Joana Lobo Antunes
Lisboa, Março de 2005
(ANTUNES, M. J. L. & Joana L., 2005, p. 12-13)
Observa-se que até mesmo a organização e a seleção editorial para a publicação das
“Cartas da Guerra”, ao longo das 431 páginas da obra, produz um espaço propício para o
67
pacto de que o que não apenas o teor textual autobiográfico das cartas, – “este é o livro de
amor de nossos pais” –, mas o material (fotos e documentos) que vai compor e ilustrar sua
leitura, além, naturalmente, das claras informações sobre as datas de cada carta (quase um
“diário de guerra”, em alguns períodos) e a indicação geográfica presente nas cartas
contribuirá para atestar a sua veracidade.
A seguir, será reproduzida uma carta bastante particular em estrutura e conteúdo.
Em consideração à observação de teor profundamente sentimental das filhas de Lobo Antunes
e Maria José de que as “Cartas da Guerra” compõem um “Livro de Amor”, e por considerar
igualmente importante para as considerações críticas sobre a escrita epistolar e autobiográfica
antuniana. Leia-se a 70ª carta:
17.4.71
Meu amor querido
Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miosótis minha estrela
aldebaran minha amante minha Via Láctea minha filha minha mãe minha esposa
minha margarida meu gerânio minha princesa aristocrática minha preta minha
branca minha chinezinha minha Paulina Bonaparte minha história de fadas minha
Ariana minha heroína de Racine minha ternura meu gosto de luar meu Paris minha
fita de cor meu vício secreto minha torre de andorinhas três horas manhã minha
melancolia minha polpa de fruto meu diamante meu sol meu copo de água minhas
Escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha ferida aberta minha
extensão polar minha floresta meu fogo minha única alegria minha América e meu
Brasil minha vela acesa minha candeia minha casa meu lugar habitável minha mesa
posta minha toalha de linho minha cobra minha figura de andor meu anjo de
Boticelli meu mar meu feriado meu domingo de Ramos meu setembro de vindimas
meu moinho no monte meu vento norte meu sábado à noite meu diário minha
história de quadradinhos meu recife de Manuel Bandeira minha Passargada meu
templo grego minha colina meu verso de Hölderlin meu gerânio meus olhos grandes
de noite minha linda boca macia dupla como uma concha fechada meus seios suaves
e carnudos meu enxuto ventre liso minhas pernas nervosas minhas unhas polidas
meu longo pescoço vivo e ágil minhas palavras segredadas meu vaso etrusco minha
sala de castelo espelhada meu jardim minha excitação de risos minha doce forquilha
de coxas minha eterna adolescente minha pedra brunida meu pássaro no mais alto
ramo da tarde meu voo de asas minha ânfora meu pão de ló minha estrada minha
praia de Agosto minha luz caiada meu muro meu soluço de fonte meu lago minha
Penélope meu jovem rio selvagem meu crepúsculo minha aurora entre ruínas minha
Grécia minha maré cheia minha muralha contra as ondas meu véu de noiva minha
cintura meu pequenino queixo zangado minha transparência de tules minha taça de
oiro minha Ofélia meu lírio meu perfume de terra meu corpo gémeo meu navio de
partir minha cidade meus dentes ferozmente brancos minhas mãos sombrias minha
torre de Belém meu Nilo meu Ganges meu templo hindu minha areia entre os dedos
minha aurora minha arpa meu arbusto de sons meu país minha ilha minha porta para
o mar meu mangerico ,eu cravo de papel minha Mandragoa minha morte de amor
minha Ana Karénine minha lâmpada de aladino minha mulher (ANTUNES, A.L.
apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 131-132).
68
Nesta carta, composta por 406 palavras escritas sem um único ponto ou vírgula, reside
a ideia de possuir e de ser possuído não apenas pelo amor, mas de possuir o ser que sente
amor. É uma carta estruturada através de metáforas que dimensionam, (hiperbolicamente), do
mais íntimo e cotidiano da vida do casal, até a comparação com imagens, locais, personagens,
plantas, animais, minerais, sentimentos formas e sensações, passado e presente. Tende a
apresentar a ideia de completude. Como se na ausência do ser amado, o amor completasse
aquele que o sente e atingisse o ápice de seus significados possíveis.
Em correspondência enviada a 27.2.71 – a 27ª carta – Lobo Antunes escreve: “Li
numa revista [...] que a Editora Inova [...] publicou as poesias completas de Ângelo de Lima
que muito gostaria de ter e ler por se tratar de uma das minhas preferências desde sempre.”.
Segundo as organizadoras da obra, Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes, o
título da obra D’este viver aqui neste papel descripto: [...] é a citação de uma carta escrita
pelo poeta Ângelo de Lima (1872- 1921) ao Prof. Miguel Bombarda. Esta referência
encontra-se na página 237 na 143ª carta escrita por Lobo Antunes:
12.7.71
Minha querida joia
Mais uma longa e triste segunda-feira, “deste viver aqui neste papel descripto”,
como o Ângelo de Lima diz numa carta ao dr. Miguel Bombarda. Deste viver aqui
neste papel descripto. [...] Entretanto a história parece definitivamente empanada.
Raios a partam – mas que posso eu fazer? Que bonito é “deste viver aqui neste papel
descripto”! (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 237).
O poeta Ângelo Lima, que passou vários anos de sua vida internado em hospitais
psiquiátricos, deu origem a um estudo clínico efetuado por Lobo Antunes. O estudo sobre o
poeta deu origem à obra escrita em parceria com Maria Inês Dias (Ângelo de Lima: Loucura e
criação artística: Ângelo de Lima, poeta de Orpheu) em 1974. A publicação ganhou o Prêmio
Sandoz de Psiquiatria neste mesmo ano.
69
Curiosamente, o nome do Prof. Miguel Bombarda daria nome ao Hospital no qual
Lobo Antunes viria a trabalhar em 1973. Leia-se Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo
Antunes no prefácio da obra:
As cartas deste livro foram escritas por um homem de 28 anos na privacidade de sua
relação com a mulher, isolado de tudo e de todos durante dois anos de Guerra
Colonial em Angola, sem pensar que algum dia viriam a ser lidas por mais alguém.
Não vamos aqui descrever o que são estas cartas: cada pessoa irá lê-las de forma
diferente, seguramente distinta da nossa. Mas qualquer que seja a abordagem,
literária, biográfica, documento de guerra ou história de amor, sabemos que é
extraordinária em todos os aspectos. [...] A escolha de as publicar não é nossa: é a
vontade expressa de nossa Mãe, destinatária e conservadora deste espólio até há
pouco tempo. Sempre nos disse que as poderíamos ler e publicar depois de sua
morte, e esse momento chegou agora. (ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.12).
As cartas escritas iniciam a correspondência entre o autor e sua esposa em 07.01.1971
e encerram-se em 30.01.1973. Seu conteúdo relata a saudade de António Lobo Antunes, seu
remetente, suas leituras (romances e poemas), algumas influências culturais, o nascimento da
filha (Maria José), e os lugares pelos quais vai passando, na geografia do exílio: Ilha da
Madeira, Luanda, Gago Coutinho, Chiúme, Ninda (as Terras do fim do mundo) e Marimba,
estes últimos em Angola.
Há, também, espaço para o registro de alguns poemas esparsos (poemas
autobiográficos de exacerbação amorosa e crítica da condição de solidão de exilado) e o
esboço da escrita do que seria um “romance”. Inicialmente, vão sendo enviadas páginas que
vão compondo a primeira dezena de páginas, num arremedo de capítulo, e com
recomendações expressas para destruição das páginas em caso de desistência do desejo de
uma possível publicação.
Sobre o possível “romance” que começa a produzir, já na 19ª carta (11.2.71) o autor
afirma: “A história cá se vai fazendo com o pouco tempo que para ela tenho, com facilidade e
sem muletas [...]” (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 50). Na 52ª
carta, enviada em 27.3.71, Lobo Antunes escreve:
70
A história cá vai andando rapidamente. Será este o 1º livro a sair. Tudo o resto deve
ser destruído. Eu próprio rasgarei o que trouxe para aqui quando acabar esta epopeia,
e as historietas miseráveis que por aí estão devem seguir imediatamente para o lixo.
Se eu as encontrar quando aí for, FICO MUITO MUITO MUITO ZANGADO.
Portanto, e desde já, PEÇO-TE QUE AS DESTRUAS O MAIS RAPIDAMENTE
POSSÍVEL. Só quero que guardes os dois sonetos que sabes quais são e que pode
ser deem alguma coisa se a poesia um dia me visitar outra vez. TUDO O RESTO,
PEÇO-TE QUE O DESTRUAS DESDE JÁ. É MUITO IMPORTANTE PARA
MIM QUE O FAÇAS!!!!! Esta história está de tal maneira boa que o resto deixou de
ter valor. Faz o que te peço, sim? É que ao lado deste romance ter essas merdas é
uma vergonha para mim. Dá-me a tua palavra de honra que o fizeste. [grifos do
autor] (ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.108).
O romance, de cunho autobiográfico, chega à página de número 60. É criada a partir
do medo de voar do autor, de uma cidade a outra, em aviões claudicantes ou do pouso em
condições, quase sempre, precárias seria intitulado, segundo a 57ª carta (3.4.71) como “O Voo
Nupcial de J. Carlos Gomes.” (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005,
p.115). A 25.6.71, na 127ª carta, o autor decide-se por um título para o que poderia ter sido o
seu primeiro romance publicado: “O Voo”, com o subtítulo de “Crónica da Morte
Portuguesa”. Nesta carta também são definidos os nomes da primeira filha, Maria José Lobo
Antunes, e a data do batizado, 08 de agosto, na cidade de Benfica. (ANTUNES, A.L. apud.
ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.210).
Ao que parece, a esposa cumpriu à risca as determinações do marido, pois não consta
em sua bibliografia nenhum romance com o título “O Voo: Crónica da Morte Portuguesa”,
Segundo o próprio autor, na 51ª carta, “uma coisa sarcasticamente trágica, um retrato natural
da nossa amarga condição de portugueses”. (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. &
J.L., 2005, p.106).
Na 116ª carta, numa clara referência à escrita epistolar (que vai registar impressões e
acontecimentos extraordinários e cotidianos), utilizada por nomes como Flaubert e
Baudelaire, entre outros, (14.6.71) afirma: “Estou a fazê-la em blocos de cartas como o Gide
(André), e não me tenho dado mal com o processo.” (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES,
M.J.L. & J.L., 2005, p.196).
71
Sobre o processo de criação de um possível romance e sobre suas prováveis
características, idealizado ainda nos campo de guerra, Lobo Antunes escreve na 91ª carta:
15.5.71
Meu querido amor
No fim deste mês ou nos primeiros dias do próximo espero dar-te, portanto, o
primeiro caderno da história, para que me digas a tua opinião severa – o mais severa
possível – a seu respeito. Eu queria que fosse uma espécie de História Natural dos
Portugueses, corrosiva, sarcástica, chamativa, caricatural, cruel e terrível, uma
crónica da morte lisboeta. Tenho 28 anos e não me posso dar ao luxo de continuar a
escrever porcarias [...]. [grifo nosso] (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. &
J.L., 2005, p. 161).
O autor ainda considera outra possibilidade para um romance, expressa na 138ª carta,
enviada em 7.7.71:
[...] o projecto era ambicioso: uma feroz e patética descrição de nós todos,
portugueses, [...] De Lisboa. E do envelhecimento, sobretudo do envelhecimento,
mecanismo que me horroriza e apaixona. Das relações de um velho casal consumido
pelo ódio recíproco. E da impossibilidade do amor. Da final inutilidade de tudo. De
um mundo morto. Da desesperada ternura. Durante algum tempo pensei em chamar
a isto Saída para o Mar. [...] [grifo nosso] (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES,
M.J.L. & J.L., 2005, p. 230).
Leia-se uma reflexão crítica às Cartas de Lobo Antunes feita por Maria de Lourdes
Soares, na Revista SOLETRAS da UERJ em 2006:
Os quase trezentos aerogramas do médico alferes à amada Maria José (dois dos
quais dedicados à filha recém-nascida, batizada, por decisão de Lobo Antunes, com
o nome da esposa) constituem “uma espécie de diário do amor ausente [aerograma
de 12.11.71]” (ANTUNES, 2005: 294), um amor suspenso, em pleno vigor da
juventude, adiado por contingências históricas, por uma guerra absurda e inútil
como soem ser todas as guerras. Ele parte deixando para trás um casamento recéminiciado, a esposa grávida, impedido de acompanhar a gestação, o nascimento e os
primeiros meses de vida da filha. “Porque não nos deixam ser felizes? Porque nos
tiram assim alguns dos melhores anos da nossa vida? [aerograma de 15.6.71]”
(ANTUNES, 2005: 198 apud. SOARES, 2006, p.42-43).
Algumas das cartas servem para o envio de documentos, fotos e poemas. As respostas
de sua esposa não foram publicadas, mas a sequência de cartas pode dar pistas da interlocução
epistolar do casal. O tratamento é sempre carinhoso, apaixonado e intenso. Há certo exagero
na escrita, coisa que se percebe pela repetição, aglutinação de adjetivos e do uso de
hipérboles. Sobretudo, em “até ao fim do mundo”, saudação final recorrente em inúmeras
72
cartas, que remete ao mito do amor entre D. Pedro e Inês de Castro. Leia-se mais um
fragmento do texto de Maria de Lourdes Soares:
A leitura deste livro provoca ao mesmo tempo comoção e reflexão. Comove e faz
refletir já a partir do contraste entre a emanação de felicidade da fotografia da capa –
um jovem casal de noivos - e os presságios de desgraça, evidenciados no subtítulo.
A comoção desta foto amplia-se na foto em página dupla, referente ao aerograma de
17.5.71 (ANTUNES, 2005: 164-165), ante a beleza e desprevenida alegria das faces
dos nubentes, vivendo a ilusão de um futuro que logo se quebrará. Punge pela
maravilhada inocência do que está no começo, pela promessa de felicidade, pura
potencialidade de ser – o casamento, a profissão, a literatura, os sonhos... [...] Tocanos porque essa é também a nossa história, de alguma forma contemporâneos e de
alguma maneira atingidos pelo monstro da guerra e pelo espectro da morte.
(SOARES, 2006, p.42).
O autor vai buscar elementos na leitura de poemas (Os de Ângelo de Lima, por
exemplo; estudo crítico de Jorge de Sena sobre os Lusíadas – p.100, 46ª carta; poemas de
Bocage – p.205, 121ª carta.), romances (Obras completas, de Almada Negreiros – p. 94, 43ª
carta; A barca dos sete lemes, de Alves Redol – p.206, 122ª carta; Diálogo em setembro, de
Fernando Namora – p.210, 126ª carta; A queda, de Camus e Aparição, de Vergílio Ferreira –
p. 331 – 221ª carta).
Lobo Antunes, ao longo de todas as cartas encontra, sistematicamente, espaço para
comentar e solicitar as leituras. Em grande parte das cartas, ao referir-se às obras, trabalha a
partir do nome de seus autores. E relembra leituras realizadas em momentos anteriores ao
exílio. Compara as obras de mesmo autor e compara o estilo dos escritores entre si.
Daí, identificar-se a leitura de (William) Faulkner, (Jorge Luís) Borges, (Júlio)
Cortázar (talvez a grande decepção do autor neste período, visto que Lobo Antunes passe
vários meses aguardando o envio da obra, e depois, revele-se decepcionado), (Mário Vargas)
Llosa, Graham Greene, Georges Bataille, Truman Capote, John Lé Carré, (Jack) Kerouac,
(John) Updike, mas não exatamente, explicitamente a qual das obras destes autores Lobo
Antunes se refere. Em muitas cartas, ao citar os autores, simplesmente refere-se somente ao
sobrenome. Os nomes assinalados entre parênteses não foram mencionados nas cartas.
73
O que pode revelar, entre outras coisas, o desejo de dar ritmo à escrita das cartas,
busca por aproveitamento do espaço destinado para a escrita das cartas, uma vez que os
aerogramas, embora abundantes, em geral eram insuficientes para o trânsito de informações
entre Lobo Antunes e sua esposa e intimidade com a leitura das obras e a prática da reflexão
crítica sobre as temáticas e o estilo dos autores. Além de comentar, tecer comparações,
expressar seu entusiasmo e a sua decepção em relação às obras lidas e de solicitar,
constantemente, o envio de livros a sua esposa.
Chega até a solicitar à esposa que não pense em gastar dinheiro com seus pedidos de
livros. As cartas contêm, não raro, a lembrança de músicas, filmes e programas de televisão
assistidos e obras lidas anteriormente. O alferes/médico/homem/autor, Lobo Antunes, em
experiência de exílio, vai se refugiar na arte e nos referentes culturais que propiciam a
intertextualidade.
Com a finalidade de ratificar o diálogo entre a História, a Literatura – fato que se
verifica desde a escolha de sua epígrafe deste capítulo, escrita por Umberto Eco (2005, p.28)
sobre “um conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que um leitor não pode
deixar passar em silêncio”, sobre os embaraços que o deslumbramento pela Literatura e o
desconhecimento da História podem produzir em relação à compreensão seja da obra literária,
seja do fato histórico, ou da relação entre ambos, leia-se um trecho da reflexão crítica presente
na obra O demônio da teoria: literatura e senso comum (2010), de Antoine (outro Antônio
notório) Compagnon:
A descrição da literatura como bem simbólico, à maneira de Bourdieu, ou o estudo
da cultura como produto do jogo do poder, no rastro de Foucault, sem romper com o
programa prescrito por Lanson [o francês Gustave Lanson – 1857-1934], Febvre [o
francês Lucien Paul Victor Febvre – 1878-1956] e Barthes [o francês Roland
Barthes – 1915-1980] para a história da instituição literária, reorientam essa história
num sentido francamente mais engajado, a partir do momento em que a objetividade
é considerada um engodo. Como a teoria e a história ocupam, para muitos, posições
geralmente opostas, esses novos estudos históricos são frequentemente considerados
antiteóricos, ou ainda, antiliterários [...] A coerência de toda crítica indeterminista
deriva dessa crença, que, aliás, lembra paradoxos mais antigos, como este, que
aparece no Journal dos Gongourt em 1862: “A história é um romance que foi; o
74
romance é a história que poderia ter sido.” [...] A partir de então, que será uma
história literária senão, muito mais modestamente que no tempo de Lanson ou
mesmo no de Jauss [o alemão Hans Robert Jauss – 1921-1997], uma justaposição,
uma colagem de textos e de discursos fragmentários ligados a cronologias
diferenciais, alguns mais históricos, outros mais literários [...] (COMPAGNON,
2010, p.219-220 [grifo nosso]).
É preciso perceber que os autores citados por Compagnon, no fragmento acima, foram
pensadores, articuladores da proposta e da elaboração das bases para os métodos para o
diálogo entre a História e a Literatura e de sua recepção por parte dos leitores.
Destaque-se que a obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra
(2005), de António Lobo Antunes não é a escrita autobiográfica de suas organizadoras, visto
que não fala diretamente da existência e da trajetória de Maria José Lobo Antunes e Joana
Lobo Antunes, filhas do autor das correspondências, mas que o conjunto de cartas escritas
por Lobo Antunes, objeto da publicação, por elas reunido, possui as características que
denotam a escrita epistolar e autobiográfica de seu conteúdo. Leia-se Käte Hamburguer:
Quanto ao gênero mimético-ficcional, está estabelecido em sua estrutura que os
conceitos de “assunto” e “material” pertencem a sua fenomenologia. Ele é
praticamente definido pelo fato de ser a realidade, por mais irreal que seja, o seu
assunto. A noção de assunto, não inteiramente inequívoca em seu uso, tanto pode
significar a realidade elaborada, fictícia (ação, personagens, etc.), como também
pode ser empregada no sentido de pretexto ainda situado fora da obra literária.
(HAMBURGUER, 1986, p. 250).
Ainda, explicitando a abordagem teórica dessa pesquisa, a representação da
“realidade” pela ficção, ou quando a ficção se vale do pacto de realidade, de dizer a “verdade”
que uma carta evoca, define-se gênero epistolar como a literatura ou textos produzidos ou
registrados em cartas.
Como carta, pode-se compreender um texto produzido em suporte físico por um
remetente e enviado (ou não) a um destinatário que não o próprio remetente. O conceito de
carta foi ampliado para correspondência virtual, em face do desenvolvimento dos novos
suportes tecnológicos.
75
No caso específico de Lobo Antunes, no contexto das “Cartas da Guerra”, a utilização
dos aerogramas postais militares, numa razão de 130 aerogramas/mês, cujas despesas de
postagem corriam por conta do governo, possibilitava e, paradoxalmente, limitava a
comunicação. Ou ainda, definia seu ritmo, pelo espaço fixo determinado para a escrita.
A relevância da leitura dessas cartas se dá por uma situação histórica contextual na
qual se vê um médico, escritor, no exílio, na guerra, escrevendo sobre si mesmo, sobre o que
testemunha e se reinventando por amor, pela saudade, para amenizar a tristeza e o sofrimento,
por esperança em dias melhores como homem e como cidadão para a mulher que está distante
e que o espera.
Antes de se estabelecer, talvez uma espécie de protocolo de leitura das cartas de Lobo
Antunes, pretende-se destacar que essas cartas podem ser lidas quase como se tecidas como
um diário das experiências de Lobo Antunes: Leia-se Lejeune:
[...] O diário é, muitas vezes, uma atividade de crise: a descontinuidade lhe é
habitual e se inscreve, aliás, no âmago do seu ritmo. Há duas escolas: os que, por
questões de higiene mental ou método, escrevem todos os dias, sofrem quando
saltam um dia, “recuperam” os atrasos, preenchem omissões; e os que escrevem, de
maneira mais ou menos regular, quando têm necessidade. [...] Um diário [ou a
escrita sequencial de cartas a um destinatário] preenche várias funções ao mesmo
tempo. Trata-se da expressão, da reflexão, da memória e do prazer de escrever. [...]
[a] Exprimir-se: dividirei essa primeira função em duas desabafar e se comunicar.
[...] Desabafar: descarregar o peso das emoções e dos pensamentos no papel. Essa
pulsão pode estar associada à de conservar, mas tem afinidades ainda maiores com a
pulsão do destruir. Pôr no papel já é se separar, se purificar, se lavar; em uma
segunda etapa, pode-se levar a purificação a termo livrando-se do papel. [...] O eu
futuro está liberado do peso do passado pela destruição, depois que o eu presente foi
aliviado pela escrita. A função de expressão é dissociada da função de memória –
podemos dizer que está associada à função de esquecimento. [...] Comunicar-se:
esvaziamos o coração no papel porque estamos sós, por não poder esvaziá-lo em um
ouvido amigo. [...] Encontramos uma pessoa com quem podemos conversar ou a
quem podemos escrever [...] e a carta ou o diálogo quotidiano tomarão o seu lugar.
[...] [b] Refletir: duas faces também – analisar-se [e] deliberar. [Oferecer] um
espaço e um tempo subtraídos às pressões da vida. Refugiamo-nos [nas cartas]
tranquilamente, para “desenvolver” a imagem do que acabamos de viver e meditar.
E para analisar as escolhas que devemos fazer. [...] essa atividade de reflexão, em
diários de longa duração [e em um conjunto de cartas], está muitas vezes associada
às funções de expressão e de memória. [...] [c] [Memória] Fixar o tempo: construir
para si uma memória de papel, criar arquivos do vivido, acumular vestígios, conjurar
o esquecimento, dar à vida a consistência e a continuidade que lhe faltam... [...] Sua
lógica é a da coleção. A série [de cartas] colecionada ganhando uma unidade por dia.
[...] [d] Sentir prazer em escrever: pois escrevemos também porque é agradável. É
delicioso dar forma ao que se vive, progredir na escrita, criar um objeto no qual nos
reconhecemos. Mas diferentes formas de escrita podem satisfazer essa necessidade e
76
entrar em concorrência. Assim, abandonar o diário quando sua função principal não
é a da memória e quando ele não é a única forma de escrita não tem nada de
dramático. Frequentemente, ouvimos escritores (principalmente homens, aliás)
dizerem que o diário é um desperdício de tempo, bom para os períodos de
entressafra entre dois projetos de escrita. [...] [grifos nossos] (LEJEUNE, 2008, p.
275-277).
Tradicionalmente, as cartas possuem a identificação do destinatário, o corpo da
mensagem e as despedidas. Na obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra
(2005), as cartas poderiam ser divididas e/ou organizadas, como recurso de leitura e
estruturação individual de leitura, texto a texto, em linhas gerais, no contexto dessa pesquisa,
em estruturas específicas.
Poderiam ser consideradas como premissas protocolares de leitura recorrentes na
forma como Lobo Antunes vai escrevendo/produzindo a sequência (diarística) de suas
correspondências com a sua esposa: saudações, proposições emocionais, relatos de fatos
pontuais no contexto da guerra e despedidas.
As saudações e os relatos de fatos pontuais no contexto da guerra poderiam ser
lidos como pertencentes aos elementos historicizantes, que poderiam ser situados no espaço
geográfico e no tempo cronológico. Leia-se o trecho inicial da carta selecionada:
14.1. 71
Minha joia querida
Escrevo-te ainda de bordo do Vera Cruz, na véspera da chegada a Luanda, a fim de
colocar esta carta no correio mal chegue às Áfricas. As saudades são já
indescritíveis, e a solidão enorme, ao fim de 9 dias de barco, apesar do luxo em que
aqui se vive (os oficiais, claro), no aspecto dos camarotes, salas e comida. Ao jantar
e ao almoço, uma velha oxigenada, com duplo queixo e chinelos, toca piano com
uma dificuldade míope, e ao lanche (chá e bolos), servido por uma nuvem de
criados, a orquestra “Vera Cruz”, na qual deles com a melhor pinta de chulo
lisboeta, magrinhos, brilhantinados, de olhar maroto, esfolam música de cabaré de
putas. À noite há cinema no salão, do tipo dos filmes de Santa Margarida* (Um
quarto para dois, Garotas e recrutas, etc), e por vezes, no escuro tenho a sensação
horrível de que, se me levantar e sair, posso meter-me no caminho de casa e de ti.
Nunca te esqueças que te amo com todas as forças que tenho, e que estou contigo
sempre e em todos os momentos. É horrível ver a orquestra a tocar para uma sala
cheia de tipos fardados, afundados nas cadeiras numa melancolia sem remédio:
sinto-me tão arrependido de não termos ido dançar mais vezes, e apetece-me tanto
dançar contigo, sinto-me tão arrependido dos momentos em que discutimos, e
apetece-me tanto pedir-te desculpa, de lágrima nos olhos, juro e dizer-te que gosto
sempre e tudo de ti. Consegui ainda escrever 3 postais da ilha da Madeira, que é de
uma beleza extraordinária, sob um céu de chumbo e calor. [...] (ANTUNES, António
L. apud ANTUNES, Maria J. L. & ANTUNES Joana L., 2005, p. 18-20).
77
As saudações e os relatos de fatos pontuais no contexto da guerra, como elementos
historicizantes, possibilitam, uma vez identificados, a sua comprovação histórica, portanto,
empírica. A saber: com o destinatário, sempre a esposa – mesmo quando se trata de falar de
outras ou a outras pessoas, estabelece-se um pacto de interlocução direta; o registro das datas
– das quais, eventualmente, o autor parece ter dúvida ou que justapõe, dependendo do horário
em que escreva; as referências aos locais em que o sujeito está e as referências culturais –
livros, textos, cartazes, fotos; a previsão dos acontecimentos – movimentos de suas tropas, das
tropas inimigas, notícias e informações que circularam –, e de suas consequências.
Ainda, procedendo à leitura da carta, leia-se o que Lobo Antunes escreve:
O Funchal é uma cidade diferente de todas as que conhecemos, e com um aspecto
estranhamente inglês: se eu voltar havemos de ir lá em lua de mel, sem o nosso
filho, sozinhos os dois como no Algarve. Não te mando aí o SPM* [Serviço Postal
Militar; organizado pelas Forças Armadas, responsável pelo encaminhamento de
toda a correspondência oficial e particular] porque não o sei: a confusão é enorme.
Em princípio, ficaremos em Luanda (no Grafanil) seis ou sete dias, e depois faremos
uma horrível viagem de 2.000 km de camioneta até Nova Lisboa, de comboio até ao
Luso, já armados e escoltados, e de camioneta de novo, até Gago Coutinho: 6 dias
sempre em movimento, com as consequências inerentes e os perigos respectivos, de
modo a chegarmos a cerca do fim do mês, para uma estadia que deve demorar 14 ou
15 meses, antes do recuo para uma zona melhor. O comandante deve, talvez amanhã
ou depois, fazer a distribuição dos médicos pelas companhias. Um deve ficar em
Gago Coutinho, onde estacionarão 2 companhias e um pelotão de morteiros, outro a
90 km e outro a 120 km com as companhias destacadas. Claro que o melhor, em
teoria, seria ficar em G. Coutinho, que parece ter uma pequena pista de aviação e um
helicóptero, mas a distância para Luanda é gigantesca. A missão do batalhão será
policiar a fronteira com a Zâmbia, para não permitir a entrada dos elementos do
MPLA*[Movimento Popular de Libertação de Angola] que tentam aí estabelecer um
corredor até ao norte. O problema principal são as minas, mas eu vou fazer o
possível para ver onde ponho os pés. [grifo nosso a partir de glossário da obra]
(ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 18-20).
Observa-se que o sujeito autobiográfico da narrativa, autor do discurso contido nas
cartas, apresenta a visão do período histórico: o panorama do movimento de tropas, alusão às
organizações militares e aos códigos de procedimentos realizados, a relação entre os soldados
e seus superiores, a expectativa em relação aos combates e às armas a posterior descrição dos
locais das batalhas e dos acampamentos e a emissão de juízos sobre tais lugares e tais
78
situações. A esse registro objetivo alia-se a confissão da intimidade (o carinho com o outro –
sobretudo, a esposa –, o desabafo implícito, os medos e as incertezas). Leia-se Foucault:
Mas o que pertence propriamente a uma formação discursiva e o que permite
delimitar o grupo de conceitos, embora discordantes, que lhe são específicos, é a
maneira pela qual esses diferentes elementos estão relacionados uns aos outros: a
maneira, por exemplo, pela qual a disposição das descrições ou das narrações está
ligada às técnicas de reescrita; a maneira pela qual o campo de memória está ligado
às formas de hierarquia e de subordinação que regem os enunciados de um texto; a
maneira pela qual estão ligados os modos de aproximação e de desenvolvimento dos
enunciados e os modos de critica, de comentários, de interpretação de enunciados já
formulados etc. É esse feixe de relações que constitui um sistema de formação
conceitual. A descrição de semelhante sistema não poderia valer por uma descrição
direta e imediata dos próprios conceitos. Não se trata de fazer seu levantamento
exaustivo, de estabelecer os traços que podem ter em comum, de tentar classificálos, de medir-lhes a coerência interna ou testar sua compatibilidade mútua; não se
toma como objeto de análise a arquitetura conceitual de um texto isolado, de uma
obra individual ou de uma ciência em um dado momento. Colocamo-nos na
retaguarda em relação a esse jogo conceitual manifesto; e tentamos determinar
segundo que esquemas (de seriação, de grupamentos simultâneos, de modificação
linear ou recíproca) os enunciados podem estar ligados uns aos outros em um tipo de
discurso; tentamos estabelecer, assim, como os elementos recorrentes dos
enunciados podem reaparecer, se dissociar, se recompor, ganhar em extensão ou em
determinação, ser retomados no interior de novas estruturas lógicas, adquirir, em
compensação, novos conteúdos semânticos, constituir entre si organizações parciais.
Esses esquemas permitem descrever não as leis de construção interna dos conceitos,
não sua gênese progressiva e individual no espírito de um homem, mas sua
dispersão anônima através de textos, livros e obras; dispersão que caracteriza um
tipo de discurso e que define, entre os conceitos, formas de dedução, de derivação,
de coerência, e também de incompatibilidade, de entrecruzamento, de substituição,
de exclusão, de alteração recíproca, de deslocamento etc. Tal análise refere-se, pois,
em um nível de certa forma pré-conceitual, ao campo em que os conceitos podem
coexistir e às regras às quais esse campo está submetido. [...] [grifo do autor]
(FOUCAULT, 2008, p. 65-66).
Em suma, tem-se o indivíduo como partícipe de um processo coletivo, em que ele é
mais um num contexto de interesses políticos, sociais e ideológicos. Está a serviço da pátria.
O bem-estar social, a vitória, os ideais e objetivos norteiam suas ações. Não pode dar-se ao
luxo de esquivar-se de suas responsabilidades para com seu país.
Nas proposições emocionais e nas despedidas, vê-se o lado lúdico, a construção
identitária, por evocação da memória de fatos e emoções, potencializada pelo exílio
situação-limite, entrelugar de aniquilação, exclusão ou contenção ideológica, geográfica ou
emocional da vontade; o ethos de um discurso amoroso. Tais elementos estão em campos
específicos dentro da estrutura textual da carta, antes, permeiam-na.
79
Os valores culturais, os sentimentos, as lembranças de fatos passados ou a idealização
de encontros futuros estão presentes nas cartas. A escrita é intensa, subjetiva, intimista, por
vezes erotizada. O casamento e a futura paternidade ocupam boa parte do espaço dos
aerogramas. Os papéis sociais e familiares desempenhados pelo remetente e suas expectativas
em relação ao desempenho de sua parceira tornam-se evidentes e bem demarcados.
Leia-se outro trecho da carta selecionada:
Contra o que eu esperava não enjoei. O único problema é a orelha, que me não dá
descanso... O calor é enorme e grosso: dá-me a sensação de respirar a palha de um
colchão. [...] Meu amor eu adoro-te e penso em ti sempre, com muita saudade muita
ternura. Tenho muita pena de não poder assistir ao crescimento do nosso filho.
Como vai a barriga? Eu tirei, tiraram-me no barco uma fotografia que vou tentar
mandar embora não esteja grande coisa, para lembrares melhor de mim. O dia da
despedida, lembro-me dele como de uma coisa que tivesse passado durante uma
anestesia; o cansaço, o sono, a saudade, a agitação entravam e saíam de mim numa
leveza gasosa. Já nem me lembro bem da família que lá estava e não estava. Mas, do
barco, procurei-te sem te encontrar: uma tia Luísa minúscula disse-me, por gestos,
que te tinhas ido embora, e foi só então que eu tive a certeza de que me ia embora.
Fui para o camarote e sentei-me na cama e ouvia os gritos e os choros sem pensar
em nada, e não chorei porque homem não chora. E nada disto importa porque nos
temos um ao outro até ao fim do mundo. Ao barco chegavam constantemente
telegramas, recebi dois da tua família mas nenhum de ti. Ainda fui várias vezes ao
comissariado mas não havia lá mais nada para mim. [...] Amanhã chegaremos às 2
da tarde. Entretanto, já só faltam 103 semanas, todas curtas menos umas 10, de
férias. Não é assim tão mau como isso. [...] (ANTUNES, António L. apud.
ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 18-20).
O espaço das proposições emocionais é o espaço da explosão da sentimentalidade, da
fragilidade masculina, da reafirmação de um amor, da expiação de culpas, de pequenos
desentendimentos conjugais – estes apenas supostos – ou inferidos a partir de construções
semânticas; da valorização de detalhes da convivência.
É também o espaço das reminiscências. O que é escrito tanto pode evidenciar o que
de fato tenha ocorrido entre o casal – a vista da descrição das emoções experimentadas, como
podem ser projeções, depositadas, por resgate sinestésico, numa ação mnemônica, por fluxo
de consciência, ou outra estratégia narrativa, aleatoriamente, no corpo do texto.
No espaço das despedidas, ocorre a estruturação das hipérboles, do espaço da
confirmação emocional, da reafirmação masculina. É o espaço em que o lírico, o
80
autobiográfico, a memória e a identidade se encontram através da assinatura da carta, da
declaração hiperbólica, dos pós-escritos, da separação proposital de uma parte do texto, de seu
conteúdo imediatamente anterior – algo como dois espaços em relação ao parágrafo de cima.
É nesse momento que os votos matrimoniais são reafirmados, que o reencontro é
marcado e, as informações pessoais mais relevantes, presentes no corpo das cartas, são
reapresentadas, para que não se percam, para que sejam localizadas facilmente. Em várias
cartas, as despedidas tornam-se híbridas e trazem elementos que poderão ser retomados nas
saudações da correspondência posterior. Essa estrutura pode dar margem à presunção da
natureza do diálogo, das respostas da interlocutora, esposa do escritor, destinatário das cartas.
Leia-se o trecho final da carta de Lobo Antunes:
Agora vou me despedir:
Muitos beijos e muitas saudades e muitos beijos outra vez do António. [...] Gosta
sempre de mim. Imagino o frio que aí estará, a nossa casa de que me hei-de lembrar
sempre, apesar de nunca mais voltarmos para lá, o porteiro, a rua, os móveis, a
cozinha, a cama com o cobertor ao meio, as gravuras, e vejo como fui feliz aí
contigo, como tenho sido sempre feliz contigo, como gostaria de voltar, de voltar
depressa para poder ver-te, tocar-te, falar-te, meter a minha chave na fechadura do
teu corpo, a língua na tua boca, apertar-te o peito com as mãos, morder-te o pescoço,
voar, lembro-me de pormenores e absurdos, do sinal do peito do teu pé, do teu dente
de ouro, do canal da tua nuca, e gosto absurdamente de todos: minha senhora, eu
amo-a. Se eu não a conhecesse, persegui-la-ia pelas ruas com propostas sórdidas e
veementes. Recordo-me do primeiro dia em que a vi, do seu perfil de Boticelli,
recordo-me do ano seguinte na praia, do seu cabelo preso atrás e da sua risca ao
meio, do seu aspecto de retrato de Ingress, recordo-me do seu cabelo cortado e do
seu ar de midinette, e amo perdidamente todas as suas encarnações, sem poder
escolher entre elas. Amo a sua gravidez, os seus gestos, os seus sorrisos e as suas
fúrias. Amo as suas zangas e a solenidade calada e digníssima de seus amuos. Amo
as vossas recriminações e os seus beijos. E amo o seu filho, o filho de Vossa
Excelência, meu amor. (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.
18-20).
Esses elementos – saudações, proposições emocionais, relatos de fatos do contexto da
guerra e despedidas –, assim dispostos, estabelecem um “pacto de escrita” autobiográfica
viabilizado pela escrita epistolar e está presente em boa parte das “Cartas da Guerra”.
Segundo Carlos Ascenso André (1992, p.18), “O fenómeno literário, como fruto das
circunstâncias em que se produz, não poderia deixar de reflectir esta situação [...]”. O que,
81
considerando-se a leitura das cartas de Lobo Antunes enviadas à sua esposa, demonstra que
realmente há um pacto de escrita autobiográfica viabilizado pela escrita epistolar.
Leia-se Lobo Antunes em entrevista recente concedida a João do Céu e Silva para o
Diário de Notícias em 28.10.2010:
Cada vez mais me é claro que o que escrevo não são romances no sentido da
palavra. Não me interessa a intriga, a história ou as personagens! Há um tempo
atacaram-me dizendo que não tinha personagens. Esse é o maior elogio que me
fazem... Queria que fosse uma viagem ao coração. É como dizerem que o livro é
autobiográfico - seja lá o que isso queira dizer. O que interessava era fazer o melhor
que podia e desembaraçar-me dele, porque é um objecto independente de mim e que
não me pertence. Na vida, é muito difícil separar o que é invenção do que é
memória. [grifos nossos] (ANTUNES, in: Diário de Notícias, 28.10.10
<www.ala.com.t15.org>. Acessado em 17 de julho de 2011.).
Observa-se em D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005),
coletânea das cartas escritas por António Lobo Antunes entre 1971-1973, uma escrita que fala
da guerra no momento em que ela ocorre, do homem que testemunha, se desloca em um
espaço estranho em virtude do conflito e dele participa; o relato de um indivíduo comum que
busca, incessantemente, reafirmar sua identidade e resolver suas questões. Leia-se um trecho
da obra Memória e identidade (2011) de Joël Candeau:
A história pode vir a legitimar, mas a memória é fundadora. Ali onde a história se
esforça em colocar o passado a distância, a memória busca fundir-se nele.
Halbwachs distinguiu a “memória histórica”, que seria a memória emprestada,
aprendida, escrita, pragmática, longa, unificada, e a “memória coletiva”, que seria
então uma memória produzida, vivida, oral, normativa, curta, plural. Pierre Nora,
por sua vez, opõe radicalmente a memória e a história. A primeira é a vida, levada
pelos grupos vivos, em permanente evolução, múltipla e desmultiplicada, “aberta à
dialética da lembrança e da amnésia, inconsciente de suas sucessivas deformações,
vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível a longas latências e súbitas
revitalizações”. Afetiva e mágica, enraizada no concreto, no gesto, na imagem e no
objeto, a memória “se compõe dos detalhes que a confortam; nutre-se de lembranças
vagas, globais e flutuantes, particulares e simbólicas, sensíveis a todas as formas de
transmissão, censura ou projeções.” Ela pode, portanto, integrar-se nas estratégias
identitárias. A história, ao contrário, “vincula-se às continuidades temporais, às
evoluções e à relação entre as coisas.” Ela pertence a todos e a ninguém e tem
vocação ao universal. É uma operação intelectual e laicizante que leva à análise, ao
discurso crítico, à explicação de causas e consequências. A história é sempre
prosaica e, enquanto a “memória instala a lembrança no sagrado, a história busca se
distanciar do mesmo.” (CANDEAU, 2011, p. 132).
82
Ao se analisar as colocações acima, propostas por Candeau, sobre o posicionamento
de Maurice Halbwachs a respeito da ideia de “memória coletiva” e de Pierre Nora sobre
“memória e história”, entende-se que a construção das identidades, quer sejam individuais e
mnemônicas, quer sejam coletivas e históricas, podem compor a tessitura de documentos,
reportagens, cartas e diários, por exemplo; e, de igual maneira, integrar a narrativa de obras de
ficção (crônicas, contos e romances, por exemplo), através de processos intercambiáveis que
inter-relacionam a História e a ficção.
Julga-se apropriado proceder a algumas considerações, talvez até subjetivas; mas,
decorrentes da leitura e da reflexão sobre a História e a memória na construção da identidade
autobiográfica do sujeito que se pronuncia através das cartas.
Na sequência, será analisado um poema na busca por estabelecer um diálogo com do
teor das informações contidas nas “Cartas da Guerra”, sobretudo, com o contexto em que
tanto as cartas quanto os esparsos poemas que estas contêm, foi produzido.
Naturalmente, por se tratar de um poema, a polissemia da linguagem poética poderia
permitir outras leituras possíveis. A análise a seguir é apenas uma das inúmeras possibilidades
de interpretação que privilegia o contexto da guerra como motivação pessoal, lírica e
histórica. Leia-se o poema de Lobo Antunes:
28.2.72.
2 do velho
E poderás então compreender a chuva
não este abundante pólen torrencial diurno
frutificando nos telhados num trigo de tulipas
ardendo o seu petróleo nos ossos das janelas
girando nos ouvidos com a humanidade no sangue
esta rede de espelhos reflectindo os pássaros
quando à noite me deito de costas para o mar
e escuto nos móveis aquele velho silêncio
dos grandes bois de pedra do princípio do mundo
(ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.364, §1º e 2º).
83
Pressupõe-se que as duas primeiras estrofes sejam quase um pedido de desculpas à
esposa (interlocutor autobiográfico) e à nação portuguesa (interlocutor literário) pela condição
portuguesa de estar no campo de batalha há tanto tempo. Um tempo cronológico
(autobiográfico) e também literário (simbolizado pela memória e pela evocação do
conhecimento da História de Portugal).
Este poema evoca, provavelmente, o clima de pessimismo criado por Camões para o
Canto IV de seu poema épico. A figura do Velho do Restelo e a eterna dúvida sobre se terá
valido a pena ultrapassar os limites geográficos e existenciais, evocada no poema pessoano
surgem, agora, construídas não por alguém que não esteja a bordo da nau ou que se reconheça
no espaço atemporal de um “eu-lírico” que medita sobre um fato histórico, mas por alguém
que está vivendo, testemunhando, interagindo e sentindo para depois contar.
Supõe-se que o “eu-lírico” e o “eu-autobiográfico”, neste poema, pudessem se unir
para dizer: “há de chegar um dia em que...”. Para pedir perdão, propor questões e desconstruir
não só a certeza de uma possível vitória, ou o medo que emanasse da derrota, questiona-se até
mesmo as sensações causadas pela chuva, ou pelo raiar do sol, a noite e o silêncio e os seus
significados, quando da paz ou quando das batalhas, como se para bradar, ao menos
liricamente, que a guerra não é um fenômeno natural. Prosseguindo a leitura do poema de
Lobo Antunes:
mas apenas a água o feltro vertical
de mil dedos descendo de mil cisnes de cinza
esta tosse de peixe este azeite ferido
a onda que tritura as manhãs submergidas
por um inverno absoluto como o olhar de um cego
Não quero mais viver por dentro destas casas
ser a raiz da sombra no coração da luz
esquecer-me de voar quando os comboios partem
transportando consigo os crepes da aventura
(ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.364, §3º e 4º).
84
No espaço compreendido pelas duas estrofes intermediárias, o “eu-lírico” é
confrontado com o cenário real de sua trajetória. Pressupõe-se os dedos dos soldados no
gatilho dos rifles e das baionetas, os ferimentos, as mutilações do corpo e do espírito das
sensações passadas e a impossibilidade de novas sensações límpidas no futuro.
A marca que a guerra imprime no “eu-autobiográfico” se materializando na
necessidade de expulsar, nem que seja pela literatura, ao menos um pouco do horror e do
silêncio forçado pela dor e pelo medo.
As sombras são vistas pelos cegos, aqueles que cegam para as prioridades de uma
sociedade tradicional, católica, civilizada e progressista. E parece que não são percebidas
pelos líderes, pela sociedade portuguesa que os esquece, ou esta mesma sociedade, abafada
pelo regime salazarista, é incapaz de supor, ou supõe de uma forma que por mais que seja
realista, não se aproxima em idealização do que de fato seja o ambiente de sofrimento e horror
da guerra.
O atrito triturante e torturante revela um processo contínuo de ações descontínuas e
inesperadas que não dão cabo do sofrimento com uma espécie de golpe de misericórdia. Na
noite escura da guerra, o “eu-lírico” se vê oprimido, vencido, mesmo no intervalo das
batalhas, antes mesmo que elas ocorram, ante a aparente impossibilidade de salvação.
Supõe-se que não haja um momento em que se possa abstrair o espaço em que o
sujeito se encontra, seja escrevendo poemas ou traçando rotas táticas de ação, seja
combatendo ou tentando dormir.
Todos os momentos revelam uma grande angústia que emana do “eu-autobiográfico”,
do sujeito em plena interação com um fato histórico, com a figura da voz lírica, metafórica,
mas não menos contundente, porque telúrica, porque intensa, que se inscreve como “eulírico”, ao mesmo tempo em que se desenha como “eu-autobiográfico”, num momento
histórico real. Leia-se o trecho final do poema de Lobo Antunes:
85
Não quero que me esperem do outro lado do tempo
esses rostos de outrora que odeio e desejo
as bocas circunflexas escondidas nos retratos
o iodo que dissolve as figuras sentadas
Sou do jovem país onde o teu corpo respira
e pouso no teu ombro como a noite nas árvores
pertenço aos teus gestos e em cada um me solto
da tua boca fujo na espuma de um suspiro
sou o fungo que cresce no cheiro do vinagre
o leite da manhã que ferve na cozinha
as palavras sonâmbulas que sobem do teu sono
e o coração do sol batendo nas vidraças
FIM
E, é claro, adoro-te.
António.
(ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p.364-365).
Nas estrofes finais do poema, apesar da agudeza das metáforas, apesar da
contundência lírica dos versos, apesar da força telúrica das imagens, o “eu-autobiográfico”, o
personagem anônimo da batalha, potencializa a voz que poderia ser de muitos, que poderia ser
de todos os que testemunham ou intuem o que seja a barbárie de uma guerra, em um pedido
pelo seu término, não apenas de imediato, mas, a posteriori.
O “eu-lírico” não deixa de revelar o desejo pessoal de consumar, junto ao ser amado,
os eflúvios e arroubos passionais e afetivos que se espera, não esmoreçam, ante o trauma
ocasionado pela vivência da solidão, do exílio, da morte e da guerra.
Potencializa-se, também, a voz de um “sujeito” da história, idealizando para a
sociedade um tempo de paz e alento, de liberdade e proteção.
Um tempo em que aquele que partiu para a guerra, mesmo voltando diferente, seja
visto como igual e incorporado à sociedade. Em que cada homem que carregue na memória as
manchas de sangue de irmãos ou de inimigos mortos no campo de batalha, possua, aos olhos
de seus pares, a tez polida dos que sonharam ao longe o tempo da paz, em que os homens que
formam a nação e a nação que os abriga construam a História que desejaram escrever.
86
Mesmo que a História anterior traga em suas páginas as marcas do sangue dos que
viveram e morreram na guerra, mesmo que os que viveram tenham a alma embotada pelo
trauma, as novas gerações possam ter o brilho e a alegria da claridade, da independência, da
liberdade, brilhando intensamente, mesmo se vistas pela janela do tempo, pela experiência de
outros.
O foco da narração, o seu ethos discursivo na narrativa de ficção, pode ser considerado
e analisado sem que haja necessariamente uma relação entre o criado, o narrado, o texto
literário e a vida de seu autor. Observe-se, no entanto, que para o que esta dissertação discute
– a escrita epistolar e autobiográfica –, a “Escrita da Vida”, como definiu Roland Barthes na
obra A preparação do romance II (2005), algumas considerações são necessárias. Leia-se
Roland Barthes:
[...] Escrita de Vida = quanto mais a escrita e a vida fragmentam (não buscam
unificar-se abusivamente), mais cada fragmento é homogêneo. [...] Poderíamos [...]
esboçar uma tipologia dos papeis varridos pela escrita de vida, isto é, de fato, dos
eus que sucessivamente escrevem: a) Persona: a pessoa civil, cotidiana, privada,
que “vive” sem escrever. [...] b) Scriptor: o escritor como imagem social, aquele de
quem se fala, que se comenta, que se classifica numa escola, num gênero, aquele dos
manuais etc. [...] c) Auctor: o eu que se coloca como fiador daquilo que escreve; pai
da obra assumindo sua responsabilidade; o eu que se considera, social ou
misticamente escritor. [...] d) Scribens: o eu que está na prática da escrita, que está
escrevendo, que vive cotidianamente a escrita. [...] (BARTHES, 2005, p.173-174).
A escolha do poema, enviado na correspondência de 28.2.72, pretende demonstrar
que a sua estruturação lírica, o ritmo, as metáforas inéditas reincidem no conjunto das “Cartas
da Guerra”, em que observamos: a) uma recorrência estrutural que se vale de uma mescla
temporal: o tempo futuro surge idealizado, a partir da evocação de um passado e da
constatação de um presente de escolhas inadequadas ou erradas, passíveis de configurar a
metáfora de um país; b) a superposição entre as figuras enunciativas do “eu-lírico” – a voz
que se expressa no poema – e a do “eu-autobiográfico”, capaz de revelar o sujeito no contexto
da sua existência real e histórica; c) a mescla entre a memória individual e a memória
87
coletiva, verificada a partir da ficcionalização de acontecimentos históricos, vivenciados e/ou
testemunhados por Lobo Antunes.
Assim, espera-se demonstrar que, em relação à “Escrita da Vida”, verifica-se, ao longo
das cartas, e de alguns poemas esparsos que elas contêm, as variações do ethos antuniano.
Pode-se perceber o autor em transição de um discurso a outro, intercalando-os, sobrepondo-os
ou diluindo a “rigidez” das categorias propostas por Roland Barthes. Assim viria a ser:
“Persona” (marido/ alferes/ médico) que escreve; “Scriptor” (o missivista/ remetente das
cartas) situado num tempo futuro; “Auctor” (a testemunha da guerra que escreve sobre o que
vê e que se considera um escritor); a “Scribens” (o autor que sente e prenuncia sobre o que
pretenderá escrever a partir da experiência relatada nas cartas).
88
6 “DEVIRES AUTOBIOGRÁFICOS” NA OBRA DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Antes de tudo, há dois tipos de escritores: aqueles que
escrevem em função do assunto e os que escrevem por
escrever. Os primeiros tiveram pensamentos, ou fizeram
experiências,
que
lhes
parecem
dignos
de
ser
comunicados; os outros precisam de dinheiro e por isso
escrevem, só por dinheiro. [...]
Arthur Schopenhauer
Na literatura portuguesa contemporânea, a expressão “devir”, tomada por empréstimo
à filosofia, exemplifica e ajuda a perceber o cenário de permanente transformação dos
indivíduos (autores e personagens), e, destaca a percepção das transformações ocorridas no
país durante e, sobretudo, após 25 de abril de 1974.
O “devir” é a mudança, a transformação, a transcendência, a expectativa, o
espelhamento, no texto autobiográfico, entre o registrado e o verificado como real, ou a
possibilidade de percepção da força dos elementos responsáveis pela transformação ou
agentes de seu impedimento. Ou, nas palavras de Regina Schöpke (2004, p.26): “Essas
forças, advindas do corpo, das paixões ou qualquer interesse sensível, desviam o pensamento
de seu objeto específico, fazendo-o tomar o falso pelo verdadeiro”.
Como não supor, nas circunstâncias enfrentadas por Lobo Antunes, que as
experiências vividas, testemunhadas ou idealizadas por ele como sujeito da história individual
não possam se expressar através de uma projeção do sentimento coletivo, estreitados os
limites entre a emoção individual e a memória da percepção de um fato histórico?
89
Assim, entende-se que um devir autobiográfico pode ser amplificado se percebido em
cartas – como no caso das “Cartas da Guerra” (2005), de António Lobo Antunes, ou na
estrutura narrativa que ficcionaliza, pelo viés da memória individual, a história coletiva, e
permite
demonstrar
a
transformação,
a
evolução
narrada/testemunhada
por
um
indivíduo/personagem, como possível de identificar-se com o processo vivenciado por um
grupo. Leia-se Tzvetan Todorov:
Será preciso exigir, então, que cada um tome para si toda a infelicidade do mundo e
não durma tranquilo enquanto subsistir o menor traço de injustiça em algum lugar
do mundo? Que pensemos em todos e de nada nos esqueçamos? Certamente, não.
Uma tarefa como essa é sobre-humana e levaria à morte quem a assumisse, antes
que pudesse dar o primeiro passo. O esquecimento é grave; mas também é
necessário. Ninguém, salvo os santos, pode viver em estrita verdade, renunciando a
todo conforto e a todo consolo. Por isso mesmo, poderíamos nos dar um objetivo
mais modesto e mais acessível: em tempos de paz, dispensar cuidados a nossos
próximos; e, contudo, em tempos de infortúnio e desespero encontrar em nós
mesmos a força para estender esse grupo além dos limites habituais, reconhecendo
como próximos até mesmo aqueles cujos rostos nos são desconhecidos.
(TODOROV, 1995, p.171).
Ao escrever do epicentro do campo de batalha à sua amada esposa, com a qual
contraíra núpcias recentemente, Lobo Antunes lega à posteridade a sua escrita epistolar e
autobiográfica. Escreve cartas sobre si mesmo, sobre o que vê, o que sente e o que espera.
Naturalmente com as sensações exacerbadas pelo medo, pela saudade, pelo exílio, pelo que é
novo e diferente, seu testemunho, provavelmente será traído pela memória e a reconstituição
de uma verdade histórica será parcial e, em muitas situações, apenas subjetiva. Leia-se um
fragmento da obra Arqueologia do Saber (2008), de Michel Foucault:
Mas cada uma dessas questões e toda essa grande inquietude crítica apontavam para
um mesmo fim: reconstituir, a partir do que dizem estes documentos - às vezes com
meias-palavras -, o passado de onde emanam e que se dilui, agora, bem distante
deles; o documento sempre era tratado como a linguagem de uma voz agora
reduzida ao silêncio: seu rastro frágil mas, por sorte, decifrável. Ora, por uma
mutação que não data de hoje, mas que, sem dúvida, ainda não se concluiu, a
história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como sua tarefa
primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor
expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta,
distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente
do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações.
(FOUCAULT, 2008, p.8).
90
Não obstante, ao inserir no texto literário, as situações vivenciadas, o seu devir, a sua
alteridade (o que se é e o que se poderia/poderá vir a ser) o sujeito da enunciação propõe uma
articulação entre o tempo da memória, o espaço da história e o enredo de uma verdade
testemunhal/autobiográfica, para que sua experiência perdure e lance ecos sobre possíveis
bastidores dos fatos apresentados. A Literatura, se não muda a História, através dos devires
autobiográficos de autores como Lobo Antunes, por exemplo, muda a maneira de ver os seus
bastidores, possibilita entender os mecanismos de articulação e simulação de uma pseudo
“verdade” oficial, desmascara o regime político vigente.
A pesquisadora e ensaísta Elizabeth Muylaert Duque-Estrada, em sua obra
Devires autobiográficos: atualidades da escrita de si (2009:13), inicia sua explanação
apresentando a anedota sobre o poeta Lamartine que teria modificado a casa onde passara sua
infância porque esta em tudo diferia da criação literária proposta e evocada pela memória na
construção de seu poema.
Não se trata, nesta dissertação, de propor que Lobo Antunes tenha sido capaz de
enxergar a transformação da sociedade portuguesa a ponto de mimetizá-la e ficcionalizá-la em
sua obra e que esta reprodução corresponda ao ethos real dos portugueses; ou que suas cartas
ou seus romances sejam a cópia fiel, o documento fidedigno da memória da história do que se
passou no campo de batalha ou na história recente de Portugal.
É bastante possível, no entanto, supor que a cognição e a sensibilização do público
leitor sejam aguçadas, através da estratégia narrativa de Lobo Antunes de realizar a
superposição entre a História coletiva e a individual. E estabelece assim, o pacto de
veracidade com o leitor crítico, não alienado. Leia-se Elizabeth Muylaert Duque-Estrada:
[...] Não se narra o que se é, mas o que se poderá vir a ser. [...] Tais autobiografias,
ao deslocarem o centro vital de sua narrativa da dimensão do privado, do mundo
particular, para a esfera do mundo social, público, tornam-se locais privilegiados
para uma discussão que abrange não somente questões literárias, mas também temas
ligados à crítica cultural. Ou seja, tais narrativas se inscrevem como documentos de
consciência cultural e, neste sentido, podem ser pensadas, não como expressão da
91
capacidade do sujeito de dispor de si mesmo, mas sim de uma falta de poder de um
sujeito que encerraria, contudo, uma positividade. É que, nesta perspectiva, esta falta
de poder não diz respeito a um estado de impotência pura e simples, mas, antes, a
um movimento de transição de um estado de exclusão para afirmação de sua força
diferencial. [...] (DUQUE-ESTRADA, 2009, p.157).
Imagina-se que o relato, presente nas cartas da experiência in loco de Lobo Antunes,
se deu por um determinado período de tempo; que durante este tempo o autor teve uma
perspectiva diferenciada dos acontecimentos históricos e que a sua trajetória particular
poderia ser transmutada em narrativa ficcional (devir autobiográfico) para seus romances,
redimensionando uma história individual que poderia ser considerada a metáfora da história
da nação portuguesa no período da Guerra Colonial.
A partir da leitura das “Cartas da Guerra” (2005), pode-se destacar, através da
reconstituição narrativa e mnemônica do texto literário, nas obras produzidas por Lobo
Antunes, a confluência entre História e memória. Leia-se Maria Alzira Seixo:
Porque a questão autobiográfica só tem sentido se o traço que remete para a figura
do escritor, para a sua circunstância ou para a sua experiência, criar uma
interpelação do texto em relação àquele que o lê, e obrigar essa interpelação a seguir
um caminho de conjectura quanto aos labirintos da produção artística. (SEIXO,
2002, p. 476).
O autor não reconstrói a casa para que ela se encaixe na sua metáfora literária, ou se
enquadre aos moldes de sua narrativa. Ele questiona, através de seus narradores-personagens,
percebidos, em alguns casos, em função de coincidências de locais, situações e datas, como
autobiográficos, ou como construções provenientes de quem testemunhou os fatos e refletiu
sobre eles, a construção do ethos de História oficial do País que emergiu de um longo período
de fascista que, supostamente, precisasse de outros elementos – notadamente, a ficção – para
questionar a História.
92
6.1 LOBO ANTUNES: PERSONAGEM DE SI MESMO
[...] As artes, as interações, as relações de rivalidade ou de
conflito, ou mesmo os acasos felizes ou infelizes que
formam o curso das diferentes histórias de vida, não são
mais que umas tantas oportunidades de manifestar a
essência das personagens desdobrando-a no tempo sob a
forma de uma história. [...] cujos elementos, unidos por
uma combinatória quase sistemática, estão sujeitos ao
conjunto das forças de atração ou de repulsão que exerce
sobre eles o campo do poder, pode ser lida como uma
história, que a estrutura, que organiza a ficção, e que
fundamenta a ilusão de realidade que ela produz,
dissimula-se, como na realidade, sob as interações entre
pessoas, que ela estrutura. [...]
Pierre Bourdieu
Para se pensar “Lobo Antunes como personagem de si mesmo”, pode-se recuperar a
reflexão proposta pela professora Ângela Beatriz Faria, na resenha intitulada “A noite escura
da alma”, sobre a obra Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes, publicada no Jornal do
Brasil, em sua edição do dia 06 de setembro de 2003:
[...] [o narrador-personagem] Vítima de um sistema opressor, ‘ocupante involuntário
em um país estrangeiro’, torna-se testemunha da barbárie no período da Guerra
Colonial que antecede a Revolução dos Cravos e a libertação das colônias africanas,
nas décadas de 60 e 70. Sua memória estilhaçada, situada agora no período
pós-colonial, superpõe tempos e espaços diferenciados e seu ininterrupto fluxo
de consciência registra o ‘espectro da agonia’, ‘as madrugadas repletas de desespero,
amargura, angústia, remorso e rancor’ a indignação necessariamente
reprimida e a barbárie exterior perpetrada pelos africanos e portugueses.
(FARIA, JB, 06/09/ 2003, p.06).
Não obstante a definição e a delimitação do objeto pesquisado, procura-se demonstrar
que as experiências do autor, como médico no campo de batalha, não apenas marcam seus
93
romances iniciais como romances que apresentam vestígios autobiográficos como admitem,
ainda, a possibilidade de que haveria, ao longo do processo ficcional antuniano, a dispersão e
a transformação – o devir autobiográfico – das vivências e das memórias do autor transferidas
para os seus narradores e/ou personagens. A pesquisadora e ensaísta Maria Alzira Seixo
afirma:
A questão da autobiografia, quando não corresponde a um género literário
específico, coloca-se à perspectiva crítica de um modo problemático, por vezes
mesmo incómodo pelos efeitos da mimese imediata que pode sugerir, mas permite
alargar perspectivas esclarecedoras nos caminhos da leitura dos textos. Entende-se
quase consensualmente que é abusivo encadear formulações conceptuais, que
elaboradas a partir da materialidade da escrita, com dados projectados de situações
ou comportamentos empíricos, sobretudo quando assumidos (ou assumíveis) por
uma pessoa que coincide (de modos diversos, e nem sempre inequívocos) com a
entidade autoral; por isso, a autobiografia, enquanto forma genealógica, integrando
não o suporte existencial directo que, enquanto imagem ou comportamento, quase
sempre se faz com ela coincidir. (SEIXO, 2002, p. 473.).
É importante destacar que na obra D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da
guerra (2005), de António Lobo Antunes, a consciência de si próprio revela-se, apenas, para
uma pessoa especial – a mulher amada – e enreda-se aos acontecimentos históricos.
Outro aspecto que deve ser considerado, ao se lidar com a leitura e análise das cartas e
sua relação com o que viria se tornar a ficção antuniana, é pensar no padrão de intimidade ao
qual a correspondência está condicionada. Lobo Antunes as escreve somente tendo como
destinatário a esposa. Não havia, no momento da escritura das cartas, nenhuma intenção do
autor de torná-las públicas.
A fim de reforçar essa ideia, observa-se o fato de que, ao longo de, pelo menos uma
centena das cartas, o remetente dá a conhecer à sua amada sobre a escrita do que viria a ser
um romance crítico, ácido, sarcástico sobre a História recente dos portugueses e faz
considerações sobre os prováveis títulos que este romance teria.
Considera-se que ele não misture a escrita da narrativa de ficção com o processo da
produção da escrita epistolar. Note-se, porém, que a experiência pessoal do autor durante a
94
Guerra Colonial é determinante para pensar sua escrita, para pensar seu país e como sua
literatura poderia ser. Leia-se mais um fragmento da reflexão crítica produzida por Maria
Alzira Seixo:
É por esta via que chegaremos à questão da autobiografia na obra de António Lobo
Antunes, ou melhor, à questão de ponderar sobre os vários modos que nos aparecem
como mais correctos para falar da escrita autobiográfica em romances que, se por
um lado se apresentam como ficções, por outro (e a partir de depoimentos do autor
em entrevistas, crónicas ou outros ditos que, não vá sem ser dito, não têm o mesmo
selo de garantia dos textos publicados como romances) não enjeitam esse lado
vivido, a consagração de uma experiência e de uma carreira extraliterária que tem
sido a do escritor e é documentada pela sua existência civil. [...] Podemos, é certo,
encarar esta questão autobiográfica de ângulos muito diversos: a autobiografia como
género, a escrita do eu que compõe as suas remissões referenciais, a introdução de
factores biográficos no texto narrado na primeira pessoa (ou noutra pessoa
qualquer), a composição memorialística que proceda de um rememorar subjectivo
determinado, a própria relação do relato subjectivante com um eventual discurso da
História, etc. Seja como for o problema que a autobiografia antes de mais coloca é o
de que, em literatura, a subjectividade escrita acarreta, de forma mais ou menos
evidenciada ou mais ou menos subtil, a projeção de uma circunstância efectiva
directa, transformada, reelaborada ou contrastiva, que de algum modo aponta para o
autor que a escreve. (SEIXO, 2002, p. 475).
Seria possível, para um leitor crítico, perceber na obra antuniana o movimento de
inter-relação entre o resgate da memória da experiência vivida, corroborado por sua biografia
e atestado pelo conteúdo das cartas e a focalização narrativa de seus romances iniciais. Leiase um fragmento da obra Os Cus de Judas (2007), de Lobo Antunes:
Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do ringue de patinagem sob as
árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses
vagarosas sem mover um músculo sequer [...] Não sei se lhe parece idiota o que vou
dizer mas aos domingos de manhã, quando nós lá íamos com meu pai, os bichos
eram mais bichos [...] (ANTUNES, 2007, Cap. “A”, Os Cus de Judas, p.7).
Ao analisarmos um fragmento extraído da 183ª carta de Lobo Antunes, do dia 6.11.71,
lê-se:
Sábado 6.11.71
Chiúme
Meu querido amor
[...] Estão agora a tocar nos cassetes [...] o Lago dos Cisnes, que me faz lembrar o
ringue do Jardim Zoológico, onde ia patinar aos domingos de manhã. Entre os
remorsos que trago está o de lá não ter ido, quanto mais não fosse em homenagem à
minha própria infância. (ANTUNES, A.L., apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005,
p.289).
95
Observa-se uma experiência que se instaura, a princípio, num plano pessoal, relatada
em uma sequência de cartas, e, ficcionalizada, posteriormente, em suas criações literárias. Isso
naturalmente aponta para a tendência de, pelo menos, se investigar as motivações ou os ecos
de memórias dessas vivências fragmentadas, diluídas, sobrepostas ou dispersas ao longo das
obras, quer na enunciação discursiva de um “eu” identificado com o autor, quer na fala de um
fictício narrador-personagem.
É preciso, portanto, questionar até que ponto “a particularidade da imaginação
autobiográfica reside em uma capacidade de desdobramento narcísico que permite ao sujeito
inventar para si um duplo ideal ou não, e tornar possível uma forma de autoficcionalização.”.
(VILAIN, 2005, p.119 apud. FIGUEIREDO, 2007, p.23).
Analisar as “Cartas da Guerra”, provavelmente, redimensione o entendimento sobre a
focalização temática e justifique a recorrência semântica. E, quem sabe, possa servir como
justificativa a alguém que pretenda encontrar ou resgatar a trajetória pessoal, a figura
extratextual de Lobo Antunes e suas experiências em cada novo romance.
Leia-se um fragmento da 132ª carta, escrita em 1.7.71, em Chiúme:
1.7.71 Chiúme
Meu amor querido
[...] Tudo isto é obsoleto e triste. Ainda te lembrarás de mim? Às vezes nem eu
me lembro de mim próprio. Olho-me ao espelho e é um estranho que vejo. Mas
estou na mesma por fora, acho eu. Por dentro é que mudei. Surpreende-me o meu
próprio silêncio, e a minha voz. Falo pouco e tudo o que digo é num tom seco e
melancólico, que não era o meu. Eu tenho sempre uma ruga na testa e uma dobra
amarga na boca. As tuas cartas chegam cheias de amor. Leio-as como quem reza.
[...] (ANTUNES, A.L. apud. ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 221).
Não se trata de afirmar que Lobo Antunes escreva sempre sobre si mesmo, ou que sua
vida esteja refletida em todas as suas obras como autobiografia. Narciso, o mito, talvez difira
do Narciso, personagem autobiográfico ou autoficcionalizado que se perceba nas obras
antunianas. Aquele, mitológica figura, mirava-se para observar sua própria beleza; este, o
96
personagem, ao autoficcionalizar-se, se assim procede, o faz para expurgar seu trauma. Para
enxergar suas feridas e, quem sabe, reencontrar a voz do ethos perdido na solidão da guerra.
Julgamos que as ideias de Roland Barthes (2003:173-174) sobre Escrita de Vida e de
Maria Alzira Seixo (2002:475) sobre a autobiografia, podem ser correlacionadas. Considerese, no entanto, que há o entendimento dos objetos de análise. Barthes teoriza a partir de estudo
sobre a obra Em busca do tempo perdido (1983), de Proust, entre outras, e, Maria Alzira
Seixo, a partir da exegese das obras antunianas. Leia-se Roland Barthes:
Todos esses eus são tecidos, cintilações na escrita, tal como a lemos, segundo
diversas preponderâncias. Mas a escrita de vida implica, evidentemente, que certo
valor criativo é atribuído à persona; a escrita surge na parte não escrita da vida, ela
esbarra continuamente naquilo que está fora da escrita e mantém com essa parte não
escrita, uma relação de analogia deformada [...] Persona e Scribens podem juntar-se
diretamente: a “vida” se torna obra “imediatamente” (sem mediação) [...]
(BARTHES, 2003, p. 174).
Pode-se inferir, portanto, a partir deste espelhamento entre a teorização de Roland
Barthes e as considerações de Maria Alzira Seixo, que a autobiografia realiza-se como escrita
de uma vida, de um testemunho, de um diário; constitui-se de uma visão narcísica do próprio
autor, do relato de algo já passado ou que se vivencia no momento da escrita, como expiação,
aconselhamento ou remissão para o futuro.
Poderia constituir-se de imagens, depoimentos, entrevistas, pensamentos associados a
datas, lugares, acontecimentos e/ou pessoas. Estes elementos, naturalmente, são passíveis de
verificação, e ao mesmo tempo, de questionamentos.
Incluem-se aí, depoimentos e entrevistas do próprio autor. Veja-se “Receita para me
lerem”, de Lobo Antunes, publicado no Segundo livro de crónicas (2002):
Sempre que alguém afirma ter lido um livro meu fico decepcionado com o erro. É
que meus livros não são para ser lidos no sentido que usualmente se chama ler: a
única forma parece-me de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo
modo que se apanha uma doença. [...] Aquilo que por comodidade chamei de
romances, como poderia ter chamado poemas, visões, o que se quiser, apenas se
entenderão se os tomarem por outra coisa. [...] as palavras são apenas signos de
sentimentos íntimos, e as personagens, situações e intriga os pretextos de superfície
97
que utilizo para conduzir ai fundo avesso da alma. [...] Quem não entender isto
aperceber-se-á apenas dos aspectos mais parcelares e menos importantes dos livros:
o país, a relação homem-mulher, o problema da identidade e da procura dela, África
e a brutalidade da exploração colonial, etc., temas se calhar muito importantes do
ponto de vista político, ou social, ou antropológico, mas que nada têm a ver com
meu trabalho. [...] os mal entendidos em relação ao que faço, derivam do facto de
abordarem o que escrevo como nos ensinaram a abordar qualquer narrativa. E a
surpresa vem de não existir narrativa no sentido comum do termo, mas apenas largos
círculos concêntricos [...] Reparem como as figuras que povoam o que digo não são
descritas e quase não possuem relevo: é que se trata de vocês mesmos. Disse em
tempos que o livro ideal seria aquele em que todas as páginas fossem espelhos:
reflectem-me a mim e ao leitor [...] Porque os meus romances são muito mais
simples do que parecem: a experiência da antropofagia através da fome continuada
[...] (ANTUNES, 2002, p.109-111).
Lobo Antunes parece consciente (ou, ao menos, parece supor) que a memória
individual processa escolhas e que a ficção seleciona palavras e situações e reconstrói outras
para problematizá-las.
Segundo Duque-Estrada (2009, p.135), “A carta era, como se dizia na época, uma
“cópia da alma”, o lugar onde se podia estabelecer uma relação marcadamente subjetiva com
o outro e também consigo mesmo”. Assim, o escritor a utiliza para confessar-se, comunicar-se
e para atenuar ou exacerbar seus conflitos, suas renúncias ou escolhas. Leia-se Maria Alzira
Seixo:
[...] atentemos na questão autobiográfica, tal como ela nos parece enriquecer o
estudo dos romances de António Lobo Antunes, através sobretudo de quatro tipos de
abordagens: 1. a que organiza os arredores do eu na efabulação romanesca,
constituindo-se por assim dizer, o sociotexto; 2. a que diz respeito à experiência
específica do eu (na formação, na profissão, nas contingências do percurso
existencial e anímico), constituindo de algum modo o contexto em que se insere e
que ele próprio movimenta; 3. a que se centra na designação do nome próprio e dos
patrocínios, quer para o narrador, quer para as personagens, indiferenciando-se
assim a voz que vive da voz que escreve, dinamizando portanto a criação das várias
vozes da escrita, e criando manifestações singulares, através do nome, de uma
espécie de inconsciente do texto; e, finalmente, 4. a que, libertando a remissão da
escrita para a experiência e o nome do próprio (auto-bio-grafia), insiste na
configuração deíctica, sublinhando o significado do tempo e do espaço que lhe são
coextensivos na enunciação destes romances, [...] (SEIXO, 2002, p. 477).
Segundo pode-se entender da teorização proposta por Maria Alzira Seixo, António
Lobo Antunes possuiria, na condição de alferes-médico mobilizado para a guerra, como
psiquiatra, cidadão e escritor, todos os componentes para, minimamente, levar o leitor a
98
buscar elementos particulares e individuais, supostos ou contextualmente verificáveis em sua
trajetória pessoal.
Estes componentes poderiam ser deflagradores de registros em diários e cartas, e,
também, passíveis de transfiguração ou transposição para a ficção, através da configuração
enunciativa inerente a narradores e personagens criados pelo autor. Em suma, a vida de Lobo
Antunes o credencia a propor um pacto de escrita autobiográfica ou a levar o leitor a aceitar
esse “pacto” de veracidade dentro do universo da ficção.
As cerca de 300 cartas escritas por Lobo Antunes poderiam ser lidas e analisadas na
perspectiva de um registro autobiográfico e colocam ou enquadram D’este viver aqui neste
papel descripto: cartas da guerra, segundo pode-se depreender da análise desenvolvida pela
pesquisadora e ensaísta Maria Alzira Seixo (2002, p.477), da seguinte forma:
1) um texto autobiográfico e epistolar sobre acontecimentos históricos – sociotexto –,
que envolvem o sujeito (a Guerra Colonial, por exemplo, e suas consequências);
2) um texto que dá (de forma hiperbólica ou amenizada) a conhecer à esposa a sua
trajetória de cidadão e intelectual, inserido em um determinado contexto;
3) um texto que, ao inscrever o nome próprio do autor (António – a assinatura das
cartas), indiferencia a “voz que vive da voz que escreve”, o que influenciará o autor,
inconscientemente, a compor o substrato de sua produção ficcional (a polifonia dos ethos de
narradores e personagens);
4) um texto em que se abstrai o nome do autor e sua experiência singular, capaz de
apontar, em tese, o “significado do tempo e do espaço que lhe são coextensivos na enunciação
dos romances” que privilegiam o período de ocupação, manutenção e derrocada do Império
colonial em África e/ou que denunciam “a imagem da sociedade enclausurada e
orgulhosamente só”, oprimida por uma ideologia salazarista, desmotivada e apática.
99
Em D’este viver aqui neste papel descripto, por exemplo, é possível, através das
cartas, dar a conhecer de si ao outro e expurgar, lembrar, punir e proteger (se) de repetições
do que se considera trágico, inadequado e negativo. À maneira da epistolografia setecentista e
das cartas doutrinárias, Lobo Antunes, confessa e purifica-se da dor e do sofrimento, e, faz
projeções para o homem que espera ser no futuro, ao lembrar-se do homem que foi e que é.
No exercício da escrita, imprime as pistas para o autor que pretende se tornar.
Segundo Maria Alzira Seixo (2002, p. 477-478), em obras como Fado Alexandrino, O
Esplendor de Portugal e Memória de Elefante, além da obra Os Cus de Judas, Lobo Antunes
espelha a sua experiência nos personagens e narradores criados por ele. Esses, ao se
manifestarem em 1ª pessoa, no espaço textual, configurariam pseudo-autobiografias:
Leia-se Maria Alzira Seixo:
[...] Por outras palavras: os romances narrados numa primeira pessoa [Fado
Alexandrino, Memória de elefante e Os Cus de Judas] factualmente muito próxima
da personalidade do autor António Lobo Antunes não estão mais próximos da
autobiografia (nem menos) do que os que lhe seguem, e, numa segunda fase,
repartem essa primeira pessoa por várias sensibilidades também do mesmo modo
pseudo-autobiografadas, para numa fase mais recente, a partir de Tratado das
paixões da alma, e mais sensivelmente ainda depois de O manual dos inquisidores,
reatarem com uma primeira pessoa diferente. (SEIXO, 2002, p. 485-486).
Assim, o eu autobiográfico, presente no ethos da enunciação narrativa, se sobrepõe à
voz e à existência imaginada (ou recordada) do autor, tomada à História de sua vida, ou de seu
país na construção de sua obra literária. Rejeitar ou aceitar tal identificação não seria,
necessariamente, a questão primordial para o leitor, mas, sim, ingressar na viagem da leitura e
no reconhecimento de si próprio, a partir daquilo que lê, como alude António Lobo Antunes
em “Receita para me lerem”.
São verificados, na maioria dos romances que tematizam a Guerra Colonial ou os
resíduos da História, os traços de uma escrita autobiográfica e ficam evidentes, não apenas a
100
linguagem fragmentada, metafórica e poética, como também o fluxo contínuo, confuso e
intenso das memórias criadas ou resgatadas pelo autor através de seus personagens.
O enredo, por sua vez, que se apresenta nas obras antunianas, revela uma parte da
História – o que ela foi, o que teria sido e como não deveria ser. O tempo da narrativa, se não
se iguala e se equipara à infância, à juventude e à velhice das personagens, destaca a
atemporalidade do trauma e da experiência da guerra que se travou fora e dentro de Portugal.
O espaço da narrativa antuniana é múltiplo em conflitos internos e externos ao
homem, ao País e às ideologias políticas e culturais. Seus personagens e narradores espelham
a pátria portuguesa, seus medos, suas frustrações, paixões e desejos obscuros, sombras e
discursos inauditos e/ou repetidos à exaustão. Como se pudessem contabilizar derrotas,
celebrar vitórias e resgatar sonhos que talvez já não existam ou que não se possa esquecer.
6.2 A AGONIA DOS BÁRBAROS
[...] Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.
Sem bárbaros o que será de nós? [...]
Antes de 1911
Konstantinos Kaváfis
101
[...] De resto, vejo o sol nascer e se pôr, como e durmo e
estou contente. Quando morrer, espero merecer três linhas
em letra miúda na gazeta imperial. Não pedi nada mais
que uma vida tranquila em tempos tranquilos. [...] Mas no
ano passado começaram a nos chegar da capital histórias
de inquietação entre os bárbaros [...]
J.M. Coetzee
A leitura da ficção portuguesa contemporânea, estudada a partir das reflexões críticas
sobre a inter-relação das Escrituras da História e Memória, tem se revelado, cada vez mais,
como uma possibilidade de confrontação com elementos extraídos do solo fértil da
imaginação dos autores, sem que se possa deixar de considerar que se originaram, tantas
vezes, em acontecimentos oriundos da realidade, da vivência e do conhecimento de fatos
históricos.
Com destacada verve autobiográfica, Lobo Antunes compõe, no estágio inicial de sua
carreira literária, como vimos, uma trilogia – Memória de Elefante (1979), Os Cus de Judas
(1979) e Conhecimento do Inferno (1980) –, em que a figura do médico (profissão
efetivamente exercida por Lobo Antunes e que o levou a trabalhar na Guerra Colonial em
África), é a responsável por desencadear as narrativas.
É importante ratificar que António Lobo Antunes serviu ao exército português durante
o período da Guerra Colonial em África durante três anos no início da década de 70. Foi
representante involuntário da barbárie promovida pelos conflitos da guerra, foi vítima da
barbárie do governo ditatorial que sentenciou um médico recém-casado a uma experiência
traumatizante, através do testemunho, in loco, da morte e do sofrimento causados pela guerra
e do exílio forçado. Leia-se as considerações de Ângela Beatriz Faria, presentes na resenha
crítica citada anteriormente:
102
[...] O que interessa narrar, para que não se esqueça, é o avassalador “gigantesco
absurdo da guerra” que faz o sujeito sentir-se “na atmosfera irreal, flutuante e
insólita”, [...] é a falência da educação familiar e ideológica equivocada [...] No
imaginário do sujeito acumulam-se e superpõem-se fragmentos de referentes
culturais da sua cultura letrada e ocidental contraposta à dos nativos em África.
(FARIA, JB, Caderno Ideias, 06/09/2003, p.6).
A agonia dos bárbaros, nesta dissertação, remete a três posições/condições dos
narradores-personagens, que poderiam ser verificáveis nos romances antunianos que trazem a
Guerra Colonial como tema ou como pano de fundo espaço-temporal, ou a ela façam
referências como dado histórico, através da descrição dos acontecimentos resgatados pela
memória ou pela superposição deliberada da ficção e da História.
Referimo-nos, em especial, ao romance Os Cus de Judas, originalmente publicado em
1979, em Portugal. Nesta dissertação, considera-se a presença da agonia e a barbárie, segundo
elementos que poderiam ser verificados a partir de sua recorrência na obra antuniana. A
saber:
1) Os africanos seriam os bárbaros, os não civilizados, os exóticos; aqueles cujos
hábitos, costumes, tradições seriam observados apenas com curiosidade e estranhamento
pelos europeus; indivíduos cuja capacidade de articular e de se organizar social, política e
religiosamente os colocaria em uma posição de inferioridade em relação aos portugueses e sua
sociedade. A agonia, inerente a eles, seria proveniente do desespero de combater o exército,
as forças representantes de uma nação melhor organizada economicamente, evoluída e
preparada belicamente para dominar e impor sua cultura e seu idioma, motivada por interesses
políticos e econômicos.
2) Os portugueses seriam os bárbaros, por deterem um poderio econômico e bélico,
por sua organização social, por pertencerem a um continente historicamente formado por
nações acostumadas a dominar e a conquistar à custa da força. Ao não compactuar com a
política salazarista de dominação em África, sua agonia estaria em:
a) omitir-se forçadamente (medo das reações internas do poder estabelecido),
103
por conta de um governo opressor e assistir a seus cidadãos marcharem para o horror da
guerra, obrigados por uma ideologia perversa, cruel e reacionária;
b) aguardar, temendo e/ou constatando a morte dos seus cidadãos. Assistir ao
retorno de seus entes mutilados física e psicologicamente, traumatizados, desequilibrados e
modificados em conduta e espírito pelo que sofreram ou pelo que foram obrigados a praticar.
Sua agonia residiria no sofrimento da partida, no espaço da ausência, na incerteza do retorno e
na constatação da modificação indisfarçável daqueles que retornaram;
c) retornar, transformados, modificados, traumatizados, deslocados em relação
ao que viveram antes e durante a guerra e com incertezas em relação à sua nova vida;
3) Os escritores seriam considerados bárbaros ou civilizados? Sua agonia residiria na
reincidência da temática, na tentativa de expurgar o trauma, o horror, reavivando-o através da
evocação da memória pessoal ou do conhecimento de fatos extraídos das páginas de uma
história não oficial ou tomados por empréstimo à História oficial, a fim de ressignificá-los
pela ficção. Sua agonia é saber que a luta permanece e não deve ceder espaço a uma forma de
contemplação melancólica e que, para evitar a repetição da dor, a Literatura mantém, ao
menos, o latejar da ferida para que ela cicatrize, mas que não seja esquecida.
Segundo Margarida Calafate Ribeiro, na obra Uma história de regressos: império,
guerra colonial e pós-colonialismo, Lobo Antunes surge na ficção portuguesa
contemporânea:
[...] Tendo como fio de união o rasto autobiográfico do narrador [...] entre os
universos psiquiátricos e a memória da guerra, [...] propõe-nos [...] uma reflexão
sobre o poder e o exercício fascista do poder através da análise das posições e
percursos dos protagonistas de suas narrativas. [...] Em Conhecimento do Inferno o
narrador é um médico que como tal exerce uma forma de poder sobre os doentes de
um hospital psiquiátrico [...] Em Os Cus de Judas o narrador-personagem é também
um médico, mas médico-militar na Guerra Colonial, sobre o qual a instituição
militar exerce o seu poder exigindo-lhe a reconstituição dos corpos explodidos na
guerra. (RIBEIRO, 2004, p. 259-260).
Na Literatura portuguesa contemporânea, a Guerra Colonial em África é, com muita
frequência, retratada, discutida, revisitada, representada em diversas obras, por diversos
104
autores. Logo, elementos como a História, o Trauma, a Guerra, o Desejo, a Liberdade, o
Sonho, a Linguagem, o “Eu” e o “Outro” alinham-se, intercalam-se e se sobrepõem nas
narrativas que discutem ou se relacionam direta ou indiretamente ao tema. Leia-se Lobo
Antunes:
[...] De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de
tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida ao Governo que me
possibilitava, grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso no cais,
consentindo, num arroubo de fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidão
agitada e anónima semelhante à do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir,
impotente, à sua própria morte. [...] (ANTUNES, 2007, cap. “A” de Os Cus de
Judas, p. 14).
Assim, a Literatura Portuguesa e autores como António Lobo Antunes, Lídia Jorge (A
Costa dos Murmúrios) e João de Melo (A Memória de Ver Matar e Morrer e seu título
posterior Autópsia de um Mar de Ruínas) entre outros, retratam, abordam, ficcionalizam,
discutem o desenrolar da guerra, a memória e a história de seus horrores e de suas
consequências na sociedade e nos indivíduos.
Porque a guerra deforma, agride, aniquila e traumatiza, de acordo com Márcio
Seligmann-Silva (2001:48), “a linguagem tenta cercar e dar limites àquilo que não foi
submetido a uma forma no ato de sua recepção.”. Assim, considerando-se as premissas que
permitam uma interação entre a vida do autor e os desdobramentos de suas experiências na
confecção de sua obra ficcional, busca-se analisar a ficção e o discurso fragmentado da
memória inerente à personagem.
Entende-se que como o testemunho desenha um quadro narrativo-descritivo da
barbárie sofrida e/ou praticada (individual ou institucionalmente), tal procedimento não se
configura apenas pelo ato de dar a voz ao outro, mas pretende prestar reverência aos mortos e
seus ideais. Ao dar conta da própria trajetória, o sujeito que manipula a linguagem para
apontar os bastidores da História. A barbárie choca por encontrar eco na percepção de que a
ausência do conceito de “civilização” se traduz na agonia, ou como destaca Maria Alzira
105
Seixo (2002:37) na “dolorosa aprendizagem da agonia”, quer seja de um indivíduo, quer seja
de toda uma sociedade.
Ao analisar mais detidamente os significados associados à palavra “agonia”, a partir
da leitura da versão eletrônica, em CD-Room, do Dicionário Houaiss, observa-se que o termo
pode significar “desejo veemente”, “sofrimento agudo de origem física ou moral”, “declínio
institucional, moral, etc.”.
Entende-se, a partir do uso da palavra “agonia”, presente no título do capítulo escrito
por Maria Alzira Seixo (2002:37), sobre o romance Os Cus de Judas (2007), de António Lobo
Antunes, que as situações narrativas relacionadas a todos esses significados podem ser
encontradas na obra. Aqui, nesta dissertação, são discutidas em consonância com o conceito
de barbárie. Leia-se Lobo Antunes:
[...] o silêncio de cemitério dos refeitórios, casernas de zinco a apodrecer devagar,
descíamos para as Terras do Fim do Mundo, a dois mil quilómetros de Luanda,
Janeiro acabava, chovia e íamos morrer, íamos morrer e chovia, chovia, sentado na
cabina da camioneta, ao lado do condutor, de boné nos olhos, o vibrar de um cigarro
infinito na mão, iniciei a dolorosa aprendizagem da agonia. (ANTUNES, 2007, cap.
“D”, de Os Cus de Judas, p.36).
Em Os Cus de Judas (2007), o narrador-personagem narra o cumprimento de seu
bárbaro dever, na Guerra Colonial em África e também a sua nova situação emocional e
psicológica, após regressar ao seu país.
Em um romance no qual as letras do alfabeto, de “A” a “Z”, servem como título dos
capítulos, o narrador-personagem dirige-se a uma interlocutora com quem pretende
relacionar-se fisicamente e que não lhe retruca, pergunta ou responde diretamente.
Seus questionamentos são inferidos a partir da retomada do monólogo/diálogo, quando
o narrador-personagem parece emergir de um estado constante de rememoração, percebido
pelo fluxo de suas memórias que surgem fragmentadas, mas, paradoxalmente, sempre
106
organizadas, como se pretendessem mostrar a “dolorosa aprendizagem da agonia”, justificar
seus atos ou proporcionar o entendimento de sua relevância.
O narrador-personagem vomita seus conflitos, sangra suas feridas entreabertas, expele
o pus abjeto das escaras de sua alma. É a agonia da apoteose de uma memória confusa,
fragmentada, exacerbada pela barbárie sofrida/praticada e pelo trauma da vivência cruel e
desumana da qual foi agente e vítima. Leia-se um fragmento do romance Os Cus de Judas:
[...] soldados seminus cambaleavam no calor insuportável da caserna, que o relento
do suor e dos corpos por lavar entontecia como os hálitos nauseabundos dos
cadáveres, se nos inclinamos para eles à espera das tristes palavras apodrecidas que
os mortos legam aos vivos num borbulhar de sílabas informes. [...] vi a miséria e a
maldade da guerra, a inutilidade da guerra nos olhos de pássaros feridos dos
militares, no seu desencorajamento e no seu abandono, o alferes em calções
espojado pela mesa, cães vadios a lamberem restos na parada, a bandeira pendente
do seu mastro idêntica a um pénis sem força [...] (ANTUNES, 2007, cap. “T”, de Os
Cus de Judas, p.160).
Até a descrição de certos acontecimentos agride. É a revitalização do trauma, não a
sua expurgação. Por mais que a ingestão do álcool ou o medo da solidão incentivem-na.
Compare-se o trecho acima com o trecho de duas das cartas enviadas por Lobo Antunes:
22.3.71
[...] Ontem, novo alarme à noite no quartel, tiros, correrias, o pandemónio que já se
havia tornado quotidiano e habitual. O Capitão que embirrava comigo – agora
adora-me!?!?!? –, borrado de medo, gritava alucinado apaguem as luzes apaguem as
luzes, a encolher-se já para se meter debaixo da mesa de jantar. Nunca vi tanto pavor
num só homem, quer dizer, concentrado numa única cabeça, como nesse velho
malcriado. [...]
23 (suponho). 3.71
Minha querida joia
Pouca coisa aconteceu de ontem para hoje, exceptuando-se um alferes dos comandos
que ficou sem uma perna no Luma-Cassai aqui perto, o que realmente não tem
grande importância para o desenrolar da guerra. (ANTUNES, A.L. apud.
ANTUNES, M.J.L. & J.L., 2005, p. 100-101).
O ensaísta Renato Cordeiro Gomes, no ensaio, “Narrativa e paroxismo: será preciso
um pouco de sangue verdadeiro para manifestar a crueldade?” (2004:146-147), publicado na
obra Estéticas da Crueldade, afirma que: “A crueldade estaria relacionada ao registro do
107
implacável e do desespero [...] atrelando-se a uma possível prova de ‘verdade’ que ultrapassa
a linguagem a serviço da ilusão extratextual”. Leia-se um fragmento da obra de Lobo Antunes
passível de exemplificar a reflexão crítica citada:
[...] O rapaz chegou já morto, disse-lhe eu, e nenhum truque de ilusionismo médico
o safou fez-me uma impressão danada ver-lhe os cabelos loiros, parecia-se comigo
aos vinte anos, Os tipos emboscaram-se a dois metros da picada, disse o capitão,
havia sangue deles nos arbustos, marcas de arrastarem corpos de feridos [...]
(ANTUNES, 2007, cap. “H” de Os Cus de Judas, p. 63).
A violência, a morte imposta pela guerra, a repressão salazarista, a destruição de
prédios, templos e cidades; o exercício do preconceito, como paradigma de qualidade
comparativa entre indivíduos de qualquer natureza; a manipulação de ordem política,
econômica e social para extermínio, aniquilação e controle de grupos, entidades e/ou
indivíduos são formas de barbárie.
A barbárie coloca os que sofrem em estado de constante agonia, e denota a submissão
ou a imposição política, estrategicamente, explícita ou implícita, de um indivíduo, um grupo,
entidade ou país.
Leia-se um fragmento da obra Sete aulas sobre Linguagem, Memória e História
(1997), de Jeanne Marie Gagnebin:
[...] uma concepção da sociedade humana fundada no logos, isto é, no diálogo
argumentativo entre iguais que procuram juntos uma regra comum de ação; a este
paradigma racional e democrático se opõe uma concepção do social baseada no
poder e na vontade (para não dizer na vontade de poder!) do mais forte, na sua
transgressão das regras do convívio social e na sua expansão sem limites. Este
conflito, que perdura até hoje, preside a oposição-mestra das histórias, a oposição
entre gregos e bárbaros. (GAGNEBIN, 1997, p. 22).
Não é só na guerra que a barbárie ocorre. Em seu ensaio, introdutório à coletânea
Civilização e barbárie, intitulado “Crepúsculo de uma civilização”, Adauto Novaes (2004:18)
questiona: “Que outro nome dar à civilização tecnológica que conduz à clandestinidade as
artes, a política, a vida vivida, a experiência do outro em nós (germe da civilização universal),
senão o de barbárie?”. Tampouco seria possível afirmar que a barbárie seja exclusividade de
108
Portugal, do regime salazarista opressor, dos soldados ocidentais em África ou da sociedade
portuguesa, nesse período histórico.
Lobo Antunes consegue denunciar, pela natureza testemunhal, pela articulação da
linguagem, plena de hipérboles, metáforas e anamorfoses, a barbárie testemunhada na Guerra
Colonial em África (representá-la, resgatá-la, reconstruí-la e reconfigurá-la). No entanto, não
se limita a apenas isso, pois “põe o dedo na ferida” da organização social de um país
semiperiférico, dominado politicamente pelo regime salazarista. Leia-se um trecho da obra
Capelas Imperfeitas (2002), de Isabel Allegro de Magalhães:
Sobre esta Guerra, há hoje (2002) já um volume substancial de textos: romances,
contos, diários, poesia, obras dramáticas. Mesmo sem estar ainda feito um inventário
completo poder-se-á estimar a existência de algumas dezenas de obras de ficção
narrativa. [...] são homens e mulheres [autores e autoras]: Cristóvão de Aguiar,
Manuel Alegre, António Lobo Antunes, Maria de Carvalho, Carlos Coutinho, Carlos
Vale Ferraz, José Martins Garcia, Álvaro Guerra, Lídia Jorge, João de Melo, José
Manuel Mendes, Álamo Oliveira, Joana Ruas, Wanda Ramos. Todos esses escritores
estiveram lá como combatentes ou como seus acompanhantes, como é o caso das
mulheres-de-oficial. Não sendo embora da experiência que a literatura se faz, é
sempre da sua intensidade, ou da imaginação dela, que nascem as figurações
simbólicas. (Curiosamente, em relação às narrativas sobre a guerra, existe uma, cujo
autor nunca esteve na guerra). [...] (MAGALHÃES, 2002, p. 163).
O romance Os Cus de Judas (2007) não é apenas a descrição, pelo resgate de
elementos da memória do autor narrador-personagem, da crueldade, da barbárie e da agonia
de soldados africanos ou portugueses, como também o espelhamento da barbárie da
imposição da política, da traição dos princípios, da omissão de uma elite pedante e inapta. É o
testemunho da inauguração de um ciclo de dor e perda, longe da pátria, em nome da pátria,
por um projeto de nação construído, a partir de interesses econômicos e destrutivos, violentos
em métodos e meios, cuja finalidade não os justificaria jamais. Vejamos a representação
ficcional dessa questão:
[...] Trazíamos vinte e cinco meses de guerra nas tripas, vinte e cinco meses de
comer merda, e beber merda, e lutar por merda, e adoecer por merda, e cair por
merda, nas tripas, vinte e cinco intermináveis meses dolorosos e ridículos nas tripas,
de tal jeito ridículos que, por vezes [...] desatávamos de súbito a rir, na cara uns dos
outros, gargalhadas impossíveis de estancar [...] e a troça escorria-nos em lágrimas
109
de piedade, e de escárnio, e de raiva [...] e nos calávamos como as crianças se calam
em meio ao seu choro,[...] (ANTUNES, 2007, cap. “U”, de Os Cus de Judas, p.170).
A promessa de evolução e transformação que não se cumpre, o escambo desigual de
bens e serviços, a imposição de dogmas e rituais de natureza religiosa, o impedimento da
possibilidade argumentativa de grupos ou a desqualificação das entidades e/ou indivíduos
seriam indícios contrários à configuração de uma sociedade considerada como “Civilizada”.
Antes, são nuances de uma prática discutível e, por seu raio de alcance e destruição em
relação ao outro, bárbara.
Em um dos ensaios inseridos na obra Civilização e barbárie (2004), Francis Wolff
(2004: 19-47) apresenta a pergunta crucial: “Quem é bárbaro?”. Wolff destaca:
[...] “O que é ser bárbaro?” [...] a barbárie, a ideia simples e única de barbárie,
oposta à ideia única e simples de civilização, não existe. Há várias formas de
barbárie e, contrariando o preconceito evolucionista, elas não estão ligadas entre si.
Não existe um único eixo na humanidade que parta da selvageria primitiva e se
encaminhe para a mais alta civilização. [...] Ora, a verdadeira “barbárie” não é
exatamente essa? Não é o recurso ordinário ou sistemático a práticas ferozes,
desumanas, cruéis? – seja na escala familiar das mutilações rituais ou uma escala
política dos extermínios em massa? [...] Uma cultura civilizada é sempre
virtualmente mestiça. Em suma, uma civilização é enriquecida por uma pluralidade
de culturas, enquanto uma cultura é bárbara quando é apenas ela mesma, só pensa
nela mesma, só pode ser ela mesma, permanece centrada, e, portanto, fechada sobre
si mesma. (WOLFF, 2004 apud. NOVAES, 2004, p. 30; 42).
Theodor Adorno afirma, na obra Educação e emancipação (2002:158), que “a
barbárie existe em toda a parte em que há uma regressão à violência física primitiva”. Notese, no entanto, que os mesmos indivíduos que fazem parte do grupo que pretenda reafirmar
sua “superioridade”, em qualquer nível, parecem possuir a tendência à percepção de seus
métodos e meios não como bárbaros, mas como uma oportunidade de oferecer ao outro a
implantação da civilização.
A consciência da falta de experiências ou a superficialidade das experiências
existentes é o que motiva o testemunho em agonia dos bárbaros. Em contraposição, aqueles
que constatam o mal histórico, a tragédia e o trauma, lutam contra eles e escrevem sobre eles.
110
E porque não são capazes de parar, de abrir mão de continuar lutando, partilham experiências,
escrevendo.
Já, aqueles contra os quais pesam adjetivos pouco lisonjeiros, acusações; aqueles
contra os quais os que desejam libertar-se se rebelam, afirmam, com sua ideologia, sua
postura abjeta e desumana. Leia-se um fragmento do ensaio “Experiência e pobreza”, escrito
por Walter Benjamin em 1933 (2008):
A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima
guerra. A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno grupo de poderosos, que sabe
Deus não são muito mais humanos que os outros; na maioria bárbaros, mas não no
bom sentido. Porém os outros precisam instalar-se, de novo e com poucos meios.
São solidários dos homens que fizeram do novo uma coisa essencialmente sua, com
lucidez e capacidade de renúncia. Em seus edifícios, quadros e narrativas a
humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais
importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali um som bárbaro.
Perfeito. No meio tempo, possa o indivíduo dar um pouco de humanidade àquela
massa, que talvez um dia retribua com juros e com os juros dos juros. [...] 1933.
(BENJAMIN, 2008, p.119).
Este fragmento do ensaio de Walter Benjamin dialoga diretamente com os conceitos
de barbárie e cultura, além de suscitar os questionamentos acerca de uma postura humanitária
que deveria estar presente na literatura pós-moderna.
Pelo fato de a barbárie ser parte do processo de evolução das sociedades, o diálogo
proposto pelos estudiosos e/ou o espelhamento proposto pelos artistas faz com que a barbárie
possa impelir as novas sociedades a um processo de reflexão sobre meios e métodos escusos,
utilizados pela nação para manter sua hegemonia. Leia-se Lobo Antunes:
[...] Mas não podíamos urinar sobre a guerra, sobre a vileza e a corrupção da guerra:
era a guerra que urinava sobre nós os seus estilhaços e os seus tiros, nos confinava à
estreiteza da angústia e nos tornava em tristes bichos rancorosos, violando mulheres
contra o frio branco e luzidio dos azulejos, ou nos fazia masturbar à noite, na cama,
à espera do ataque, pesados de resignação e de uísque, encolhidos nos lençóis, à laia
de fetos espavoridos [...] (ANTUNES, 2007, cap. “V”, de Os Cus de Judas, p.179).
111
A coexistência entre civilização e barbárie, ou antes, o seu espelhamento, exacerbado
pela memória e pelo testemunho, na obra de Lobo Antunes, demonstra que não só os
angolanos sofreram com a barbárie, infligida pelos portugueses, mas também os que foram
mobilizados para manter as colônias ou possessões ultramarinas em África.
A obra Os Cus de Judas (2007) permite a nós conhecer homens, mutilados no corpo e
na alma, traumatizados pela guerra, desterritorializados em sua trajetória, desumanizados em
seus desejos, mutilados em seus sonhos. São soldados em agonia no campo de batalha. São
bárbaros civis sem civilidade ou sem humanidade, obrigados pela imposição política.
As duas epígrafes deste capítulo, intencionalmente, possuem o mesmo título e trazem
fragmentos do poema de Konstantinos Kaváfis e um trecho do romance J.M. Coetzee
(deliberadamente inspirado no poema de Kaváfis); buscam explicitar que não se trata apenas
de uma dicotomia entre bons e maus, certo ou errado, ideologia e progresso, dominados e
dominantes, invasores e invadidos, ditaduras e democracias, capitalismo e socialismo. Francis
Wolff (2004:43) afirma que “[...] existem, sim, bárbaros e civilizados, práticas ou culturas
bárbaras, práticas ou culturas civilizadas, mesmo que toda cultura, qualquer que seja, possa
ser exemplo de civilização ou mergulhar na barbárie”.
Dessa forma, deve-se observar a importância da função que a ética, a literatura e a arte
têm no processo de estabelecer o respeito à pluralidade cultural, à miscigenação, ao
reconhecimento de processos culturais e religiosos diferentes e coexistentes. A diferença entre
culturas e paradigmas não deve, barbaramente (no sentido negativo da barbárie), representar
antagonismos e se traduzir em guerras e em mortes.
Entende-se que aniquilar a barbárie não seria punir os “culpados” e proteger os
“inocentes”; mas, num sentido mais amplo, promover a coexistência e o respeito às diferenças
culturais, pois não se trata de eleger um modelo de civilização para fazer cessar a barbárie.
Trata-se, antes, de entender que as tradições e os processos culturais e/ou religiosos cumprem
112
caminhos diversos em sociedades distintas. Elegem dogmas, sacralizam ritos, cristalizam
filosofias e costumes e que estes evoluem e se modificam paulatinamente.
A transformação forçada pela revolução, pela violência, pela dominação de qualquer
natureza e pela imposição não se afirma como evolução; é, antes, um massacre, quer seja do
corpo das vítimas, quer seja da alma do algoz – espelhamento ao qual a Literatura e a Arte, de
quando em vez, dão voz, esperando, talvez utopicamente, que isso não se repita.
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alguns romances iniciais, da autoria de Lobo Antunes, apresentam situações vividas
por narradores-personagens, através de relatos pseudo-autobiográficos, que podem ser
correlacionados à vida do autor, durante o período histórico da Guerra Colonial. A barbárie, o
horror da morte, a crítica direta ou velada ao sistema e às instituições e o contato com o outro
e com o que este representa como indivíduo ou como inimigo portador de ideologia e cultura
diferentes estão presentes no espaço ficcional.
De modo geral, tais romances podem ser considerados um espelho que além do
desvendamento de uma subjetividade fraturada, retrata o estranhamento do sujeito
descentrado que emite, de forma contundente ou sutil as reflexões sobre os desmandos da
política expansionista portuguesa.
Nesta dissertação, o objeto de pesquisa foram as cartas escritas por Lobo Antunes
quando este serviu ao exército português na Guerra Colonial em África. Detivemo-nos nelas,
Por considerá-las documentos, objetos característicos de uma escrita autobiográfica e epistolar
que podem servir como uma espécie de pacto de veracidade na inter-relação entre a ficção e a
História de Portugal, durante este período.
A memória e a autobiografia do autor como elementos associados às características de
seus narradores-personagens das obras iniciais e, sobretudo, como elementos que justificam a
recorrência temática em seus romances também foram apontados por nós.
O corpus analisado durante esta dissertação, a obra D’este viver aqui neste papel
descripto: cartas da guerra (2005), organizada por Maria José e Joana Lobo Antunes, é a
reunião das cartas enviadas pelo pai das organizadoras da obra, o médico e escritor António
Lobo Antunes, à sua esposa Maria José Xavier da Fonseca e Costa Lobo Antunes, no início
da década de 70, quando este estava a serviço do exército português.
114
O problema discutido foi a possibilidade de que tais cartas, que se aproximariam de
um diário íntimo, escritas por Lobo Antunes, durante o seu período como médico a serviço do
exército português se configurarem como uma espécie de pacto autobiográfico entre ele –
autor intratextual e seus leitores.
Observou-se não só a recorrência temática, no que concerne à guerra e à solidão, como
também a construção narrativa fragmentada, em decorrência de memórias agudas e doloridas
de um passado recente, como se verifica, sobretudo, na estruturação narrativa de seus
romances iniciais.
Em suma, pretendeu-se observar se haveria uma sobreposição entre a figura
elocucionária do autor, que esteve no “campo de batalha” (fato verificável pela história
pessoal do autor e corroborado pela análise de suas cartas), e a elaboração ficcional de seus
narradores e personagens. E ainda: se haveria a possibilidade de se verificar traços ou resíduos
autobiográficos na escritura das “Cartas da Guerra” e na elaboração dos romances posteriores
de António Lobo Antunes.
A hipótese que norteou essa dissertação foi a de que seria possível, em face do estudo
da biografia e das cartas do autor, localizá-lo e às suas experiências e/ou vivências
apreendidas durante esse período, seja no âmbito da História, seja no âmbito do Espaço,
representado como ficção, e, recuperado através da Memória desses acontecimentos, passíveis
de fornecerem subsídios para o processo de representação utilizado em seus romances.
Considerou-se, portanto, que a escrita das cartas e o conteúdo autobiográfico que elas
possuem são um elo capaz de coadunar e potencializar a percepção da inter-relação entre a
Memória, a História e a ficção na obra de António Lobo Antunes.
Destacou-se que as cartas elencadas na obra D’este viver aqui neste papel descripto:
cartas da guerra (2005) são um conjunto de cartas reais, enviadas por um homem, um
médico, direto do campo de batalha para a sua amada – muito amada – esposa com a qual
115
recentemente se casara e de quem se despedira, a serviço do exército (durante a repressão
salazarista em Portugal), deixando-a grávida da primeira filha do casal.
Não se pretendeu, no entanto, argumentar sobre a configuração de uma possível
literatura epistolar recorrente na obra antuniana, ou ainda, apontar para a produção
contundente e direta de uma autobiografia, presente em obras posteriormente escritas.
Entende-se, igualmente, que há resíduos ou traços de experiências autobiográficas que
predispõem o leitor a superpor entre a figura do autor à de seus narradores-personagens, em
narrativas que tenham como tema a Guerra Colonial em África ou a ela se refiram.
As obras utilizadas como apoio teórico foram, principalmente, O pacto
autobiográfico: de Rousseau à internet (2008), de Philippe Lejeune e Devires
autobiográficos: a atualidade da escrita de si (2009), de Elizabeth Muylaert Duque-Estrada.
Em relação à ficção antuniana, o estudo crítico, Os romances de António Lobo
Antunes: análise, interpretação, resumos e guiões de leitura. (2002), de Maria Alzira Seixo,
bem como artigos, dissertações e ensaios produzidos acerca da obra do autor, serviriam como
suporte teórico para a nossa argumentação.
Esta dissertação se estruturou em seis capítulos bem específicos. No capítulo dois,
discutiu-se o enlevo amoroso e o desterro verificado nas cartas, foram apresentados os dados
biográficos gerais sobre Lobo Antunes e Maria José, sua esposa, e, buscou-se contextualizar o
período da Guerra Colonial, cenário deflagrador da produção das “Cartas da Guerra”.
Nos capítulos três e quatro, foram apresentados os pressupostos teóricos para a escrita
epistolar e para a escrita autobiográfica, a partir da teoria de Lejeune e da configuração
textual de uma carta. Buscou-se destacar a aproximação entre a carta como documento
e autobiografia, e, a motivação para essa modalidade de escrita e seus
comprometimentos com relação às figuras da enunciação nos discursos real e literário.
116
Aludiu-se, também, à “escrita de si”, na acepção de Foucault, teorizada em O que é um
autor?, reflexo “d’este viver aqui neste papel descripto”.
No capítulo cinco, desenvolveu-se um estudo sobre as interações entre a memória e o
exílio na obra de Lobo Antunes. Foram apresentadas as relações entre História, memória e
ficção na literatura portuguesa contemporânea e como as histórias particular e coletiva podem
se interseccionar na obra literária. Observou-se, inclusive, como a experiência do isolamento
levou o autor a desenvolver uma linguagem hiperbólica em que os sentimentos são
exacerbados pelo trauma e pela solidão.
Na sequência, ainda no capítulo cinco, buscou-se analisar as “Cartas da Guerra” de
Lobo Antunes. Pretendeu-se caracterizá-las, contextualizar seu processo de produção,
estabelecer-se um protocolo de leitura, contabilizar sua produção e destacar produções que
destoassem das demais cartas. Buscou-se demonstrar como a sequência de cartas produz uma
espécie de autobiografia e um diário que demonstra o avanço, os desdobramentos da estada do
autor no front de batalha.
Neste capítulo da dissertação, foi assinalado que o autor começa a produzir os
primeiros textos ficcionais e demonstra preocupar-se com os registros por escrito de sua
experiência não apenas para informar à esposa sobre sua trajetória, mas para que possa,
posteriormente, escrever sobre ela. Nesta etapa, surgem os primeiros poemas que o autor
começa a produzir como maneira de destacar as inquietações do seu “eu” pessoal e poético.
Apresentou-se, também, uma análise detalhada e alegórica de um de seus poemas, como
forma de demonstrar sua relação com a experiência vivida pelo autor das cartas e uma
estruturação literária que se desenvolverá com a escrita dos romances.
No capítulo seis, analisou-se a transfiguração entre a enunciação do autor e a de seus
narradores-personagens. Os devires literários e biográficos foram, mais uma vez, apresentados
como uma perspectiva para se analisar as inter-relações entre História, memória e ficção pela
117
trajetória autobiográfica de Lobo Antunes. As relações com a filosofia e a literatura, tão
tênues, foram consideradas como fator de potencialização do pacto autobiográfico.
Ainda no capítulo seis, aludiu-se à obra Os Cus de Judas (2007), de António Lobo
Antunes, tendo como base a questão da barbárie testemunhada pelo autor referenciada em
suas cartas, mas, agora, exacerbada pelo fluxo de memórias de um narrador-personagem
fragmentado, marcado pelo trauma da Guerra Colonial, pelo desencantamento do mundo e
pela incomunicabilidade plena com o outro.
A percepção de que este romance, que integra a trilogia inicial da obra antuniana ao
lado de Conhecimento do Inferno (1980) e Memória de Elefante (1979), tem uma grande
verve autobiográfica é apoiada pela análise desenvolvida pela obra crítica produzida pela
pesquisadora e ensaísta portuguesa Maria Alzira Seixo.
Assim, fecha-se um ciclo de análise que pretendeu demonstrar como a escrita
autobiográfica permeia a construção das cartas e a escrita embrionária dos poemas, através do
registro de um “eu-lírico” que reaparecerá nas obras iniciais de António Lobo Antunes.
A conclusão a que se chegou, após a estruturação crítica e argumentativa proposta por
esta dissertação, é a de que a autobiografia pode permear as inter-relações entre História e
Memória na ficção antuniana, o que nos levou, em especial, a nos deter no romance Os Cus
de Judas (2007), e a apontar a influência das experiências vivenciadas ou testemunhadas pelo
autor durante o seu serviço como médico na Guerra Colonial em África.
Como proposta de desdobramento de pesquisa, seria possível investigar ao longo das
demais obras antunianas, a recorrência e/ou a diluição das experiências do autor no ethos de
outros personagens e narradores ou na construção de situações narrativas que se percebam
apoiadas, estruturadas em reconstruções a partir do resgate de elementos da memória, seja ela
real ou inventada e as representações possíveis de tempo e espaço que ela promova.
118
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125
ANEXOS
126
Anexo 01
ANTUNES, António Lobo. D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra.
In: ANTUNES, Maria José Lobo & Joana Lobo (Orgs.). Lisboa: Dom Quixote, 2005.
CARTAS DE LOBO ANTUNES – MÊS A MÊS
1971 (DATAS/Nº)
JANEIRO
1972 (DATAS/Nº)
1973
(DATAS/Nº)
10 cartas MADEIRA
15 cartas
06 cartas
(7, 14, 16, [Luanda], 17, CHIÚME
MARIMBA
20,
21,
27
[Gago (02, 03, 04, 05, [15, 17, (16, 18, 20, 22,
Coutinho], 28, 29, 31)
18, 19, 20, 21, 24, 25, 27, 30)
p. 17-37.
26,
27/28,
29] p. 420-425.
MARIMBA)
Fim do serviço.
p. 330-345.
FEVEREIRO
18 cartas
18 cartas
NADA
(01, 02, 04, 05, 06, 07, MARIMBA
08/09, 10, 11, 13, 14, 15, (02, 03, 05, 06, 08, 10,
16, 24, 25, 26, 27, 28) 11, 12, 13, 15, 16, 18,
p.37-71.
20, 22, 23, 25, 26, 28,
29)
p. 346-366.
MARÇO
25 cartas
(01, 02, 03, 04, 05, 06, 07,
08, 09,10, 11, 12, 13, 17,
20,21, 22, 23, 24, 25, 26,
27, 28, 29, 30/31).
p. 72-112.
ABRIL
MAIO
20 cartas
NADA
MARIMBA
(03, 04, 06, 10, 11, 12
[um poema], 14, 15, 16,
18, 19, 20, 21, 22, 25,
26, 28, 29, 30, 31)
p. 366-392.
25 cartas
12 cartas
NADA
(01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, MARIMBA
08, 09, 11, 12, 13, 17, 19, (01, 02, 04, 05, 07, 08,
20, 21/22,
11, 12, 13, 14, 16, 17)
[25, 26, 27, 28, 29, 30,] p. 392-409
NINDA)
p. 112-145.
25 cartas
NADA
NADA
NINDA
(01, 04, 05, 06, 07, 08, 10,
11, 12, 13, 14, 15, 17, 18,
19, 20, 21, 22, 24, 25, 26,
27, 28, [30, 31] CHIÚME)
p. 146-182.
127
NADA
NADA
09 cartas
MARIMBA
(15, 16, 18, 20, 22, 24,
26, 28, 30)
p. 410-419.
NADA
NADA
NADA
NADA
NADA
Férias em Lisboa
NADA
OUTUBRO
NADA
NOVEMBRO 19 cartas
03 [GAGO COUTINHO],
CHIÚME: 04, 05, 06, 07,
09, 10,12, 13, 15, 16, 17,
19, 21, 22, 23, 24, 28, 30)
p. 286-308.
NADA
JUNHO
JULHO
AGOSTO
SETEMBRO
27 Cartas
CHIÚME
(01, 02, 03, 04, 05, 07, 08,
09, 10, 11, 12, 14, 15, 16,
17, 18, 19, 20, 21, 22, 23,
24, 25, 26, 27 [um poema],
28, 29)
p. 182-219.
24 cartas
CHIÚME
(01, 02, 03, 04, 05, 06, 07,
08, 09, 10, 11, 12, 13, 15,
16, 17, 19, 20, 21, 22/23,
25, 26, 27, 28)
p. 220-256.
15 cartas
GAGO COUTINHO
(01, 02, 03, 04, 05, 07, 08,
09, 10, 12, 13, 15, 16, 28,
31)
p. 256-273.
09 cartas
GAGO COUTINHO
(01, 02, 03, 05, 07, 09, 11,
13, 15) p. 274-284.
DEZEMBRO
21 cartas
CHIÚME
(01, 02, 04, 05, 06, 08, 09,
10, 12, 13, 15, 16, 17, 18,
19, 20, 22, 27, 28, 29, 30)
p.309-329.
NADA
NADA
TOTAL:
TOTAL
GERAL:
218 CARTAS
74 CARTAS
06 CARTAS
298 CARTAS
128
Anexo 02
ANTUNES, António Lobo. D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra.
In: ANTUNES, Maria José Lobo & Joana Lobo (Orgs.). Lisboa: Dom Quixote, 2005.
a) Fotografias de António Lobo Antunes e Maria José Xavier da Fonseca e Costa
Lobo Antunes – Reprodução gentilmente cedida por Maria José e Joana Lobo Antunes, filhas
do autor das cartas.
[01] “Casamento” – Fotografia de 01[08] de agosto de 1970 – Il. (2005, p. 164-165).
Reprodução 15X10 cm do original que ocupa as páginas centrais da obra.
129
[02] “Casamento – detalhe do rosto dos noivos” – Fotografia de 01 [08] de agosto de 1970
Il. (2005, reprodução da capa do livro).
130
[03] “Lobo Antunes e Maria José em um evento social” – Il. Color 10x15 cm
Reprodução de fotografia (2005, folha de rosto).
131
[04] “279ª carta” – 11.4.72 (MARIMBA) “A fotografia em que estou rodeado de negros foi tirada no mercado da
ginguba, nome que aqui tem o amendoim quando a população vem vender aos comerciantes [...]”.
Il. 15X10 cm – reprodução de fotografia (2005, p.401).
132
[05] “189ª carta” 15.11.71 (Chiúme) – “Lobo Antunes fardado”
Il. 15X10 cm – reprodução de fotografia (2005, p.297).
133
Anexo 02
ANTUNES, António Lobo. D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra.
In: ANTUNES, Maria José Lobo & Joana Lobo (Orgs.). Lisboa: Dom Quixote, 2005.
a) Reprodução dos aerogramas enviados por Lobo Antunes à esposa.
[01] Il. “Aerograma – visão externa” – Chiúme – 16.4.71 [Na realidade, 16.6.71] –
Reprodução do original. Medida 15x10 cm (2005, p. 201). Destaque para o nome e o endereço do destinatário,
escrito em caixa alta, para o desenho feito por Lobo Antunes e para a “técnica” de aproveitamento do espaço do
aerograma. (2005, p.200-201).
134
[02] Il. “Detalhe do aerograma” – A carta de 05.4.72 é a única não transcrita na obra.
Prevalece a reprodução das palavras do aerograma. 15x 10 cm – Reprodução do original.
(2005, p.396).
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a escrita epistolar e autobiográfica na obra d`este viver aqui neste