LIMITES, REGIÕES E RIOS DO PARANÁ O Estado do Paraná limita-se a leste com o Oceano Atlântico; ao norte e nordeste com o Estado de São Paulo, pelo rio Paranapanema, quase em toda sua extensão; a noroeste com o Estado de Mato Grosso do Sul e a oeste com a República do Paraguai, pelo rio Paraná; ao sudoeste com a República Argentina e ao sul com Santa Catarina. O território paranaense situa-se no planalto Meridional sul-brasileiro. As grandes regiões do relevo do Paraná são: Litoral, distingue-se por duas áreas: a planície litorânea, que é uma estreita faixa de terras rebaixadas, próximas ao mar, e a zona montanhosa que é a área mais alta marcada por morros e pelas encostas da Serra do Mar. O primeiro planalto constitui-se do altiplano de Curitiba com 950 metros acima do nível do mar, limitado a leste pela Serra do Mar e a oeste pela escarpa Devoniana. O segundo planalto ou de Ponta Grossa, limita-se a leste com a escarpa Devoniana e a oeste com a Serra da Esperança ou Serra Geral. O terceiro planalto ou de Guarapuava, localiza-se a oeste da Serra da Esperança, apresentando-se como um grande plano inclinado para o oeste, de topografia ondulada, cortado por vales e rios, ocupando dois terços do território paranaense. Na região da serra da Esperança, chega a atingir 1.250 metros, enquanto no vale do rio Paraná possui altitude de apenas 100 metros. Todos os planaltos, exceto a faixa litorânea, têm um declive para o oeste como degraus de um imenso anfiteatro e possuem diferentes climas. No litoral o clima é tropical. No primeiro, segundo e parte do terceiro planalto, o clima é subtropical. A Orografia paranaense divide-se em três sistemas: 1 Marítimo, constituído pela Serra do Mar. Central, constituído pela Serrinha, Serra de Paranapiacaba e Serra das Furnas. Serrinha prolonga-se ao norte com a ramificação denominada de Serra de Paranapiacaba e outra na direção da Serra de Apucarana. As diversas colinas são ramificações da Serra da Esperança, ligadas a Serra de Apucarana, dispostas em cordilheira de leste a oeste entre os rios Ivai, Tibagi e Paranapanema. Os quatro degraus não apresentam uma situação regular, mas formam cadeias de montanhas, permeadas de rios. Ocidental tem a Serra da Esperança como eixo do conjunto de serras, espigões e morros que o constituem, destacando-se o Cerro do Relógio, perto de Prudentópolis. No Paraná, há dois tipos de bacias hidrográficas. Os rios do litoral, de pequena extensão, correm do oeste para o leste e deságuam no oceano Atlântico. Os rios dos planaltos correm do leste para o oeste e a maioria deságua no rio Paraná. Os rios de planalto têm os seus trajetos marcados por saltos, cachoeiras, quedas e corredeiras. Os principais rios que banham o Estado do Paraná, são: o rio Paraná, que percorre nesse Estado 400km, desde a foz do Paranapanema até a foz do rio Iguaçu. Nesse trajeto, tem como afluentes, o Tietê, o Grande, Paranapanema, Ivai, Piquiri, Iguaçu e o rio Pardo. O rio Paraná é formado pela junção de duas majestosas correntes, o rio Grande que nasce na serra da Mantiqueira, e o rio Paranaíba, que desce da serra da Mata da Corda, ambos em Minas Gerais. Divide Mato Grosso do Sul do Estado de São Paulo e do Paraná, serve de divisa entre Brasil e a República do Paraguai, e entre esta República e a da Argentina, onde recebe os rios Paraguai e Uruguai, separa o Uruguai da Argentina. Deságua no Oceano Atlântico, com o nome de rio da Prata, sua extensão é de aproximadamente 4.390 quilômetros. 2 O rio Paranapanema nasce na Serra de Paranapiacaba, atravessa o Estado de São Paulo, separa este do Estado do Paraná e deságua no rio Paraná.Tem um curso de 950 quilômetros, recebe os afluentes Itararé, Cinzas, Tibagi, Pirapó e outros rios menores. O rio Ivai é formado pelo encontro dos rios São João e rio dos Patos, que nascem no município de Prudentópolis, seu percurso é de 685 quilômetros. O rio Piquiri nasce na serra da Esperança e tem um percurso de 485 quilômetros, seus afluentes principais são o Cantu e o Goioerê. O rio Tibagi nasce nos Campos Gerais, tem 550 quilômetros de extensão e deságua no rio Paranapanema. O rio Iguaçu é o mais importante do Paraná. Formase da junção das águas de diversas nascentes que surgem na encosta da Serra do Mar no município de Piraquara e ribeirões da região metropolitana de Curitiba; dos rios Piraquara, Irai, Palmital, Atuba, Barigüi e muitos outros no seu longo percurso. Corre do leste para o sul pelo planalto, em amplas curvas sobre o leito de pedras, contorna outeiros, foge dos morros, some nas grotas e surge em cachoeiras. Além das altas margens, estendem-se os áridos e infindos campos, cobertos por capim “barba de bode”. Por muitos quilômetros o rio serpenteia espremido entre rochedos, mas aos poucos as barrancas vão se modificando, vão se rebaixando por completo e começam a aparecer a mata e os extensos pântanos adiante, rio abaixo. Ao receber as águas do rio Negro, toma o rumo do oeste num voltear caprichoso. A região se modifica totalmente e surgem florestas de pinheiros, imbuías, cedros e canela, entremeados de arbustos de erva-mate. O rio Iguaçu cortava uma grande extensão do sertão, por onde estava sendo construída a Estrada de Ferro São 3 Paulo-Rio Grande. O Porto Amazonas é um porto fluvial e ao mesmo tempo estação da Estrada de Ferro, que se encontra a meio caminho entre Curitiba e Ponta Grossa. De Porto União em diante a navegação é prejudicada pelas muitas quedas, saltos e corredeiras que existem ao longo do rio. Em 1882, foi lançado às águas o vapor “Cruzeiro”, o primeiro a navegar no rio Iguaçu. Desenvolveu-se ali uma navegação regular pelo leito do rio, desde Porto Amazonas até Porto União. O Iguaçu aumenta as águas após receber o rio Negro na altura do Porto Pereira. Em União da Vitória atinge 300 metros de largura. Adiante para o sudoeste existem diversas quedas, que constituem hoje as represas de Foz do Areia, Salto Segredo, Salto Santiago, Salto Osório, Salto Caxias. Seus afluentes da margem direita são: o rio Vargem, Turvo, Putinga, Claro, Prata, Jordão, Cavernoso. Na margem esquerda são o rio Negro, o Chopim e outros rios menores. Antes de engrossar as águas do rio Paraná, o Iguaçu forma as “Cataratas do Iguaçu” com 62 metros de altura. Rolam às volumosas águas do rio, num precipício com uma faixa de 4km de extensão. É uma das mais belas cataratas do mundo. O Iguaçu tem um curso de 1.320 quilômetros. As Cataratas do Iguaçu, o maior referencial turístico de Foz do Iguaçu, foram descobertas e registradas por Dom Alvãr Nuñez Cabeza de Vaca, governador do Paraguai, no ano 1542, que denominou as majestosas quedas d´água Salto de Santa Maria. Nessa época o território paranaense pertencia à Espanha. *** 4 FLORESTAS DO SUL DO PARANÁ As magníficas florestas da Província do Paraná, que existiam no final do século XIX, eram povoadas de pinheiros (araucária), imbuías, cedros, canelas, gameleiras (figueiras bravas), ipês, marfim, cabriúva, canjerana, canafístula e pelos mais variados espécimes da rica flora subtropical, nos vastos e cerrados matagais das planícies e dos vales dos rios Negro, Iguaçu, Piquiri, Ivaí e Paraná. O clima temperado favoreceu a formação de florestas de araucárias que se encontravam na parte oeste da Serra do Mar, espalhando-se pelo primeiro e segundo planalto, centro e sul do terceiro planalto, nas altitudes de 500 metros e de clima frio. Além de araucárias, distinguia-se nessas matas a presença de erva-mate, cuja extração foi de grande importância para a economia da região. O pinheiro é nativo do Paraná, pertence à espécie Araucaria angustifolia. Ele tem o porte majestoso; de tronco reto e delgado. Atinge no tronco de um a dois metros e meio de diâmetro e pode atingir até trinta metros de altura sem ramificações, só a partir daí é que os ramos aparecem. No topo da árvore há um grupo de ramos cada um com folhas duras nas pontas em forma de escamas pontiagudas. Os ramos mais baixos são maiores, reduzindo o tamanho em direção ao ápice. O conjunto assume o aspecto de um grande guarda-sol. Seus frutos chamados de “pinhões”, guardados em grandes pinhas, parecem com castanhas alongadas; quando maduros, caem no chão e são alimento de animais silvestres. O fruto assado ou cozido é excelente alimento. Os indígenas e caboclos alimentavamse dele normalmente. As matas de araucária são, em geral, mais abertas e por isso menos úmidas, pois mais iluminadas e ventiladas quando em bosques nos campos, no entanto, algumas são 5 bastante úmidas quando compõem as florestas fechadas. Há pinheiros esparsos, cujas copas se colocam bem acima da floresta; mas a grande maioria das árvores, que são aproximadamente da mesma altura, forma um dossel contínuo e bastante uniforme. Em baixo, no chão úmido, vicejam urtigas de folhas enormes, tenras, cobertas de pêlos, cuja base tem um líquido irritante, que penetra na pele pelo mero contato das pontas e provoca dor picante. Concorrem palmitos-juçara (Euterpes edulis) e palmáceas diversas, caraguatás, pacovas, orquídeas e bromélias. Grupos de fetos arborescentes e aráceas epifíticas e um grande número de espécies e indivíduos, que se aglomeram num pequeno espaço limitado na mata, determinam um pronunciado agravamento da luta pelas principais condições de sobrevivência. A luz torna-se escassa para cada um individualmente. Além disso, inúmeros arbustos e cipós junto com raízes adventícias de suporte, com ramos e troncos caídos tornam difícil a penetração nessa mata. No seu interior ocorre um emaranhado de vegetais herbáceos, arbustos e árvores jovens. Plantas que trepam fixando-se por meio de raízes, lianas com caules retorcidos são freqüentes; vários tipos de bambus existiam na mata primitiva do sul do Brasil, destes brotam rebentos longos de até 10 metros de comprimento. Os mais diversos epífitos, barba-de-velho e musgos pendem dos galhos retorcidos e troncos seculares. Crescem entre as pedras, na grande camada pedregosa, solidamente aprisionadas pelas raízes, penetrando fundo lateralmente, em cada torrão de solo, sugando cada gota de umidade, samambaias diversas, balançando as folhas de múltiplos formatos, por todo correr dos tempos, por entre a névoa dos pântanos e rios do sul do Paraná. Em setembro, havia nessas terras do sul uma explosão de primavera. Todo o campo florescia, das trepadeiras 6 do chão às copas das árvores. É a época dos bandos de periquitos, araras, maritacas, uma infinidade de pássaros de todas as espécies e cores, que rodopiavam no ar aos bandos. Chamam a atenção, especialmente, inúmeras belas orquídeas e as flores de colorido vivo das bignoniáceas e marias-sem-vergonhas, na beira das trilhas, que atraem milhares de borboletas multicoloridas. Colibris minúsculos, graciosos, voando em volta dos cálices abertos das flores, a extrair o néctar com os bicos compridos. Aqui ou acolá havia árvores solitárias, cujos galhos ressequidos apontavam para o céu; somente as copas conservavam-se verdes. Estendidos de todo lado, ramos iguais a mãos peludas, cheias de musgos, pareciam vigilantes a espreitar. Noutro lugar havia troncos deitados das árvores arrancadas pela ventania, criando enormes crateras no solo. Quem conheceu o sertão do Sul do Paraná, do final do século XIX, como os imigrantes poloneses que aqui chegaram em 1889-1891, que viram um sertão inóspito, inacessível, mesmo para a luz do sol; de matas cerradas, intransponíveis, não permitindo dar um passo a dentro por densos taquarais, juncos espinhosos, lianas, urtigas; quem admirou essas belíssimas e gigantescas árvores e, mesmo assim, com dor no coração, precisou derrubar essa floresta. Quem não participou dessa odisséia, não pode avaliar quanto trabalho, quanta obstinação e sacrifício de si mesmo, quanta têmpera da alma precisava ter o imigrante desbravador, para que esse sertão fosse conquistado e dessa selva surgissem campos produtivos. Durante as derrubadas das matas, os mais insistentes inimigos dos imigrantes, que mais perturbavam, eram os mosquitinhos-pólvora, pernilongos, borrachudos, micuins e carrapatos. Esses insetos apareciam em verdadeiros enxames e atacavam sem piedade. Alguns eram hospedeiros e 7 transmissores de leishmaniose, malária, febre amarela, dengue e outras doenças endêmicas. Existe também uma espécie de formiga, a saúva, que é cortadeira e carregadeira, devasta as plantações de cereais, verduras, flores e parreirais. Ocasiona grandes prejuízos aos colonos. É uma praga agrícola. Prolifera também, nos campos e na mata, um tipo de formiga pequenina, de cor marrom, a “formiga-correição”. Faz grandes migrações, em que milhões delas percorrem vastas extensões de território por alguns dias. Quando seu exército organizado em filas invade uma moradia, a melhor coisa a fazer é abandoná-la por algumas horas. Essas formigas são benéficas, eliminam todos os insetos, baratas, percevejos, pulgas, mosquitos. Não causam nenhum dano na sua passagem. A única coisa desagradável e quando realizam essa marcha de noite, pois avançam sobre o leito, paredes, mesas, louça, alimento, telhado. Parecem um dilúvio de seres em marcha. Em baixo das folhas e dos galhos podres, na floresta, escondem-se as cobras venenosas, como a cascavel, urutu, coral e aranhas. O sertão era também habitado por macacos, tamanduás, preguiças, tatus, pacas, capivaras, graxains, antas, onças, veados, queixadas, raposas. Nas copas das árvores e pelo chão, abrigavam-se as aves; papagaios, araras, jacus, nambus, sabiás, gralhas, periquitos barulhentos, tucanos, gaviões, andorinhas e uma imensidão de insetos que vivem dentro da mata. Nas grutas escondiam-se legiões de morcegos. Nos ocos de árvores caídas havia enxames de abelhas e vespas. Durante o dia, as florestas desta região são silenciosas. Os animais escondem-se entre raízes e ramos no chão, ou próximo a ele. Os mamíferos parecem raros, mas isso é devido ao fato de serem noturnas quase todas as espécies. 8 Mas, quando chega a noite, a mata acorda e começa um contínuo coro de cigarras, grilos, sapos, gritos de macacos e piar das corujas. Vez ou outra ouve-se o rugido da onça pintada à procura de caça. Passa correndo, grunhindo, uma vara de queixadas, rumo ao córrego. Um veado, desconfiado, arrisco, espreita pelo meio dos arbustos. Cobras venenosas, sucuris, jibóias, cobras d‟água deslizam por entre os galhos ou arrastam-se pelo chão à procura de roedores, sapos ou filhotes de passarinho. A floresta vive, respira, luta e agita-se no afã da conservação da vida. O espírito da mata murmura com o vento fresco, balançando as folhas e galhos. Namora, brinca com os raios do luar que se infiltram pelo meio dos ramos e vai pousar no tapete de grama luxuriante. Da encosta do morro desliza um fio d‟água, que se dirige para o sul. Uma nascente de água límpida desce saltitando de cascata em cascata, esconde-se entre as pedras, surge, corre em ziguezague, enroscando-se como uma serpente, desenha sua trilha; adiante junta-se a um córrego maior, engrossando com os mananciais que recebe no seu curso e forma o rio Taquaral que deságua no rio Iguaçu. A vegetação luxuriante dessas paragens ostenta todo o seu encanto. Florestas virgens se estendem ao longo das margens do rio, que corre no meio das galerias de folhagens e dos capitéis formados pelos leques dos buritis. Plantas aquáticas debruçam-se em volta, espelhando-se nas águas cristalinas. De mansinho aparece a cabeça do tatu que veio beber água. Vez ou outra surgem manadas de antas, capivaras e bandos de macucos, mutuns-açus, saracuras e os mais variados habitantes desta imensa reserva verde para saciar a sede, nas águas límpidas do Iguaçu. Miríades de borboletas amarelas e azuis levantam vôo da margem barrenta, onde nesse momento o veado 9 galheiro inclinava-se para matar a sede, ao seu lado uma onça de pele luzidia, malhada em preto e ouro, bebericava tranqüila. O grande felino bebia ronronando mansinho, satisfeito com o repasto que caçara momentos antes. Seu ventre proeminente denunciava a prenhez avançada. Reinava a paz na natureza. A tarde ia caindo. O sol declinava no horizonte e debruçava-se sobre as grandes florestas de araucárias. A luz frouxa e suave do ocaso deslizava pelo verde tapete de folhagens. Os buritis (Maurítia vínifera), palmeira altaneira, dotada de folhas em forma de leque, butiás (Copernicia australis), jarivás e as mais variadas palmáceas, abriam as folhas mais novas, para receber no seu cálice o orvalho da noite. Animais procuravam a sua toca, enquanto os pássaros se empoleiravam nos galhos, entre as folhagens. A floresta despedia-se do dia. Um concerto de sons saudava o pôr-do-sol; juntava-se ao coro o murmúrio da cascata, que caia do alto das pedras. Como é profundo e solene, no coração das matas brasileiras, o momento místico do crepúsculo, em que a natureza toda dobra-se aos pés do Criador, a sussurrar a oração da noite... O vento suave, roçando as folhas, traz um débil murmúrio, que parece o último eco dos rumores do dia e o derradeiro suspiro da tarde que morre. Tudo respira uma poesia solene que enche a alma. Por fim, o sol esconde-se. O horizonte tinge-se de raios rubros e dourados que vão se desvanecendo devagarinho. Cai a noite. O que mais espantava os emigrantes eram os enxames de vagalumes, gênero de insetos coleópteros (Pyrophorus spp.) que voavam da floresta ao anoitecer; piscavam com luz fosforescente verde-azulada, que emitiam de órgãos luminosos situados de cada lado do tórax, com aspecto de olhos, e cujo brilho se avistava de grande distância. Era 10 um espetáculo maravilhoso, parecia que miríades de estrelas estavam caindo do céu. Eram as fêmeas dos insetos emitindo sinais para atrair os machos. No meio da campina, um gigantesco pinheiro crescia sozinho, firme, sobranceiro, era o rei da planície. Os seus galhos enormes não tremiam de medo do vento e o tronco não se dobrava. A copa igual coroa, alçava-se acima de toda floresta, olhava soberano para as grandes baixadas, para os picos das montanhas e vales. Pinheiro secular, lembrava ainda, quando na primavera da sua mocidade, havia ali uma floresta maciça de araucárias, nas planícies e baixadas, na região de São Mateus, Água Branca, Água Clara, Rio Baio, Cruz Machado, União da Vitória, desde rio Negro até Foz do Iguaçu, por todo sul e sudoeste do Paraná. Desapareceram todas as matas, durante sua vida, pelo machado do colono ou do madeireiro nas serrarias. Secaram os terrenos úmidos, barrentos, os brejos intransponíveis onde cresciam os samambaiaçus (xaxim) e capinzais sem fim. Tudo isto sumiu em nome do progresso, sob devastação sem regras. Agora só o vento sibila por entre os galhos secos. As derrubadas entraram floresta a dentro, como lagartas vorazes a corroer a cobertura da mata e, ano após ano, subiram mais alto, até as encostas das montanhas cobertas de pedras e só ali pararam. Às árvores cortadas depois de secas era ateado fogo, que consumia não só a madeira, mas também o húmus fertilizante que cobre a terra vermelha; ficaram somente as pedras expostas ao sol. Só as samambaias do campo, que brotam rápido, conseguem cobrir a sua nudez e as feridas. Cada vez menos, a onça pintada esfrega o seu dorso soberbo, no tronco enorme do velho pinheiro. Cada vez mais raro, vem sonhar na sombra dos seus galhos o veado 11 matreiro. Também sumiram, a porca-queixada com a fileira de leitões da última ninhada, grunhindo atrás dela, que vinham se alimentar dos pinhões nutritivos. Nem a gralha azul, que plantava as sementes do pinheiro, e é símbolo do Paraná, não se vê entre seus galhos, e só de tempos em tempos vem olhar de cima, com horror, o seu domínio devastado. . . O pinheiro é um componente importante, já por seu valor econômico, já por sua fisionomia característica. A madeira de pinho é excelente para construção, e a sua extensiva exploração ocasionou a devastação das imensas reservas existentes no Paraná, até o meado do século XX. Atualmente, os campos e vales dos três planaltos paranaenses, até nas encostas da Serra do Mar, da Ribeira e às margens fronteiriças dos rios Paranapanema, Paraná e Iguaçu, através da Serra da Esperança, aparecem grandes extensões de terra cultivados com milho, feijão, soja e outros cereais, cafezais, ou pastagens para o gado. Todo espaço onde vicejavam florestas luxuriantes que foram sacrificadas, foi remanejado, para melhor aproveitar a terra. Restaram algumas áreas de capoeiras com arbustos e pinheiros novos, tigüeras, ou extensos campos devastados, de terra estéril, pobre, coberta inteiramente por samambaias. Da mesma maneira feroz que se substituíram os povos autóctones por portugueses-brasileiros e imigrantes dos mais diversos países, em nome do progresso, foram destruídas as ricas florestas de araucária, no Sul, e as densas matas onde vicejavam as árvores centenárias de peroba-rosa e cedro na fértil terra-roxa do Norte do Paraná. CAMINHOS - DO PEABIRU, GRACIOSA E VIAMÃO 12 O Caminho do Peabiru era utilizado pelos Incas peruanos e pelos índios brasileiros. Era uma estrada feita de pedra, pré-colombiana. Começava no litoral paulista, em São Vicente na costa Atlântica, atravessava o território paranaense no sentido leste-oeste, atingindo o rio Paraná na Redução do Guayrá, passava por Paraguai, Bolívia, dali até os contrafortes andinos, rumo à costa do Pacífico, no Peru. Da rota principal, havia ramificações tanto para o norte quanto para o sul do país. O atual território dos municípios paranaenses de Campo Mourão e Peabiru foi amplamente percorrido a partir da segunda metade do século XVI, por expedições ibéricas, que objetivavam atingir Assunção no Paraguai, por via terrestre, vindos do litoral brasileiro e utilizando-se deste milenar caminho indígena. Antes da chegada do primeiro homem branco, o Paraná estava longe de ser área despovoada. Aqui era o império das nações indígenas, de grande e variado número de tribos, espalhados pelos campos e sertões paranaenses. O início do povoamento da Província do Paraná, pelo europeu, se deu no litoral de Paranaguá em 1549. Mas há milênios, neste litoral, habitou o “Homem do Sambaqui”, que pertencia a uma raça já extinta. Mais tarde foi ocupado pelos índios Carijó, da grande nação TupiGuarani, também extintos, que dominavam o território que ia do Superagüi até Laguna em Santa Catarina. Os bandeirantes, vindos do litoral paulista em busca de ouro e de índios Carijó, estabeleceram-se inicialmente na orla da baía, mais tarde fixaram-se no continente, de lá subindo para povoar os planaltos paranaenses, neles fundando núcleos populacionais, vilas e cidades como Curitiba, Ponta Grossa, Palmeira e muitas outras. Diogo de Unhate, participante de uma bandeira de preadores de índios, requereu, em 1614, e obteve uma ses13 maria de terras, do governo português, onde se instalou. Foi o primeiro proprietário em território paranaense. Em 1617, foi fundada uma povoação na ilha da Cotinga por Gabriel de Lara, componente de uma bandeira de faiscadores de ouro. Em 1640, Gabriel de Lara chegou a Paranaguá, e, a 29 de junho de 1648, foi nomeado, pelo Governador do Rio de Janeiro, capitão Fundador e Povoador de Paranaguá. Fez erguer o Pelourinho, símbolo máximo da justiça e poder lusitano. Em 1660, Paranaguá foi transformada em Capitania e Gabriel de Lara, procurador e representante do Marquês de Cascais, nomeado como governador. A Ouvidoria de Paranaguá abrangia todo o sul do Brasil até o Rio da Prata até 1832, quando as ouvidorias foram extintas. Em 5 de dezembro de 1765, o governador da Capitania de São Paulo determinou a formação de uma povoação na enseada de Guaratuba, pois os espanhóis rondavam a costa brasileira e, ante a tentativa de ocupação, houve por bem precaver-se na costa meridional. A vila de São Luís de Guaratuba foi fundada em 24 de abril de 1771, erigiu-se aí o pelourinho com a presença do Tenente Coronel Afonso Botelho Sampaio e Souza. É um dos mais antigos municípios do Estado, seus primeiros moradores se estabeleceram por aqui em 1656, por conta do capitão-mor Gabriel de Lara. No ano de 1726, colonos açorianos se estabeleceram na ilha de Santa Catarina, dando início à vila de Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis. *** O atual território paranaense foi ocupado pelos portugueses, em meados do século XVII. O ouro encontrado 14 nos riachos do litoral e na região de Curitiba foi que incentivou a colonização. Formaram-se diversos núcleos de garimpeiros, morando em palhoças de pau-a-pique cobertas de folhas de palmeira. Essa população esparsa de faiscadores, vindos do litoral de Cananéia, Iguape, Santos ou Paranaguá, embrenhava-se pelos sertões vasculhando o cascalho dos riachos e dos leitos dos rios à procura de pequenas pepitas de ouro. Alguns fixaram-se nas campinas de Curitiba, fundando pequena povoação de nome Vilinha, mais tarde Curitiba. Com o passar do tempo, várias outras famílias juntaram-se a este incipiente núcleo de população. Construiu-se uma capela sob a invocação de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, e logo havia diversas casas em torno da capela tosca. Em 4 de novembro de 1668, solicitaram a Gabriel de Lara, capitão-mor de Paranaguá, a elevação do Pelourinho, símbolo de posse por El-Rei D. Afonso VI. Gabriel de Lara indicou como seu representante no núcleo Vilinha, o cidadão Mateus Leme, a quem outorgou o título de Capitão Povoador. O povoado de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba foi elevada à categoria de vila, no dia 29 de março de 1693, trinta anos depois da chegada dos primeiros povoadores. A população da vila recém-instalada vivia em sítios próximos ao núcleo central, suas casas eram construídas de pau-a-pique preenchido com barro. Não tinham assoalho, sendo o chão de terra batida. Plantavam e criavam quase somente aquilo de que necessitavam para seu consumo. O pouco que sobrava, arroz, feijão, milho, ervamate e carne seca, era transportado pelos escravos, que iam a pé ao litoral, e ali era trocado por sal, farinha, algodão e ferragens. Curitiba era o ponto de trânsito entre Campos Gerais e o litoral. O transporte de cargas era feito no lombo de 15 mulas. Só mais tarde essa modalidade de remessa de mercadoria passou a ser feita em carros de boi. E só foi possível com a abertura do Caminho da Graciosa. O caminho da Graciosa fora antigamente uma picada pela qual os índios localizados no planalto, desciam ao litoral paranaense. Posteriormente os faiscadores de ouro, do litoral de Paranaguá, alargaram a trilha fechada pela vegetação ao subirem pela Escarpa do Mar, em direção ao planalto. Em 1721, o famoso tropeiro Manoel Teixeira de Carvalho determinou o seu melhoramento e fez por ela a primeira travessia de muares para o litoral. A abertura definitiva foi ordenada pelo Governador da Capitania de São Paulo, Antônio Franca e Horta, em 1808. Na nova Província do Paraná, é investido no cargo como 1° presidente o Conselheiro Zacarias de Góes e Vasconcelos. Depois de sua posse no cargo, ordenou aos engenheiros para que procedessem a uma análise das estradas que desciam para o litoral, que oferecessem condições de trânsito aos carros de boi. Após detalhados estudos, foi decidido que seria utilizado o antigo caminho da Graciosa, para a construção da nova estrada. A obra só foi concluída em 1873, isto é, 20 anos depois. Os caminhos do litoral e dos Campos Gerais eram percorridos diariamente por cavaleiros de malas nos tentos e por comitivas de tropeiros. A eles se devem as trilhas feitas pelos divisores de águas, as descobertas de vaus nos rios que depois foram aproveitadas para locação das estradas. Esses tropeiros de então desempenhavam por conta própria o trabalho do correio, num tempo em que o mesmo era praticamente inexistente no interior dos sertões; era o homem que trazia as notícias dos últimos acontecimentos aos vilarejos por onde passava; era também o portador de bilhetes, recados, encomendas e o intermediário de muitos 16 negócios. Serviam como elemento de ligação entre os núcleos, povoados, vilas e freguesias, no transporte de mercadorias, de uma região para outra, onde fosse necessária, e fosse viável comercializá-la. Inclusive, eram os tropeiros que se encarregavam de transportar e comercializar o sal adquirido no litoral, para o consumo da população, que era difícil e caro, pois o transporte era precário e a mercadoria deteriorável com o tempo úmido, nas demoradas marchas do litoral para os centros consumidores. As tropas que o traziam, as mais ligeiras, gastavam dois meses do litoral até as terras centrais. Os animais silvestres e a alimária viviam do cloreto de sódio da terra, o sal-gema. Sendo o sal necessário à vida, os animais cavavam o solo salobro com as patas e lambiam a terra à procura do sal. O tropeiro foi um personagem típico daquela época. Em geral ele adotava um traje específico. Vestia roupas de couro curtido, botas de cano longo e chapéu de palha. Trazia um facão comprido e largo, com bainha de couro na cinta, uma espingarda a tiracolo e pistolas no coldre. Levava mais, preso à sela e suspenso nas ancas do animal, o largo machado que lhes servia no caso de necessidade, para abrir a picada na mata virgem, ou improvisar uma ponte sobre o rio cheio; utensílio indispensável ao viajante naquele tempo, que muitas vezes era obrigado a utilizá-lo como arma de defesa. Adiante da tropa, e bem distante desta, ia o dono e a cavalgada dos viajantes que o acompanhava. Na frente da longa fila de cargueiros tocados por peões, a passo lento e monótono, ia a égua madrinha com um cincerro ao pescoço, e atrás dela caminhava a tropa de mulas, enfileirada, seguindo pelos caminhos por onde só podiam transitar tropas. Em 10 de outubro de 1730, a Coroa portuguesa autorizava a abertura da estrada do Viamão, ligando os cam17 pos do Rio Grande do Sul com Sorocaba e a cidade de São Paulo, através dos Campos Gerais paranaenses. Iniciam-se as obras da construção aproveitando os antigos caminhos, que transitavam por picadas já existentes há muito tempo, mas precários e perigosos em conseqüência dos atoleiros na mata fechada, e pela presença de índios hostis. O caminho que vinha do Viamão não tinha pontes, nem aterros, as tropas passavam no vau dos rios ou a nado. Era largo nos campos e estreito nas florestas. Os animais de carga, com fardos pesados, tinham que atravessar por desfiladeiros estreitos e ravinas de pedra, pulavam obstáculos, e muitas vezes encalhavam nos pântanos. Condições assim difíceis no comércio de gado perduraram por muito tempo. Foi encarregado da abertura do Caminho do Viamão, o sargento-mor Francisco de Souza e Faria. Já em 1731, desce de São Paulo a primeira tropa, que retornará meses depois trazendo cerca de duas mil cabeças de mulas, muitas carregadas de charque e fumo, tangidas por uma centena de tropeiros. Foi de grande importância a ligação entre as regiões sul do Brasil e São Paulo, o Caminho do Viamão, era a única alternativa para os tropeiros que conduziam gado bovino, cavalos e mulas dos pampas gaúchos, uruguaios e argentinos, para a feira de Sorocaba em São Paulo, grande centro abastecedor de carne bovina e de animais de carga. Levavam, também, bruacas cheias de charque, fumo e couros para o consumo dos povoados de Minas Gerais e para o Nordeste açucareiro. No caminho que ligava o Paraná ao Rio Grande do Sul, o trecho mais perigoso era entre o Registro de Rio Negro e Curitibanos em Santa Catarina. A estrada atravessava a região que era habitada pelos índios Xokleng, ou Botocudos. Estes indígenas freqüentemente atacavam as populações do litoral e as tropas que se dirigiam ao sul. 18 Era a mais antiga estrada de tropas do sul. Ligada por diversos caminhos aos campos rio-grandenses e platinos, a estrada partia de Viamão, subia pela região serrana de Vacaria, atravessava o planalto catarinense por Lages e Curitibanos até o Registro de Rio Negro. Passando por Lapa, por Campo Largo, subia a serra de São Luís do Purunã, alcançava Palmeira, Ponta Grossa, até Castro. Outra estrada de tropas vinha da região missioneira do Rio Grande do Sul, ligada à de Corrientes, na Argentina, atravessava o atual planalto catarinense em Chapecó, cortava o Campo Erê, atingia Palmas, donde seguia para o norte atravessando o Rio Iguaçu. Seguindo pelo vale do rio Jordão, chegava à Guarapuava e, daí em frente por Imbituva, alcançava Ponta Grossa e Castro onde se entrosava com a estrada principal, a do Viamão. Os tropeiros atravessavam a caravana de muares no vau do rio Iapó em Castro,. de onde, continuando para o norte e passando pelo rio Itararé, por Itapeva, Piratininga chegavam à feira de Sorocaba, daí seguiam à São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Os viajantes da vila de Curitiba, de Viamão e de Sorocaba, que transitavam pelo Caminho das Tropas, durante as enchentes do rio Iapó, em Castro, eram obrigados a pousar em sua margem. A “Paragem do Iapó” em Castro transformou-se em ponto de pouso estratégico para os tropeiros, pelo fato de ser entroncamento da Estrada de Viamão. O povoado que se formou à margem do rio transformou-se em freguesia em 1774, com o nome de Sant´Ana do Iapó. Erigida em vila com o nome de Vila Nova de Castro em 24 de janeiro de 1789, por Francisco Leandro de Toledo Rondon, Ouvidor Geral e Corregedor da Comarca de Paranaguá, por ordem da rainha D. Maria I (a Louca) de Portugal. Desmembrada da vila de Curitiba, a vila recém- 19 criada tinha um território vastíssimo, abrangendo todo o interior do Paraná e do atual Estado de Santa Catarina. A vila de Curitiba era centro comercial de uma zona criadora, não menos importante que estes, embora ainda um núcleo pequeno, jamais viu diminuir seu predomínio no primeiro e segundo planaltos. Primeiro centro administrativo criado acima da Serra do Mar, ela foi, naquele tempo, um ponto de difusão de povoadores. A colonização dos Campos Gerais de Curitiba teve impulso no início do século XVIII. Até 1704, as expedições dos bandeirantes paulistas tinham por objetivo a descoberta de minas de ouro, a preação dos índios e posse da terra. Os colonos portugueses com seus escravos africanos ocuparam os Campos Gerais de Ponta Grossa, Castro, Palmeira e Lapa, os Campos de Guarapuava e de Palmas, campos esses de pastos nativos próprios para criação de gado, que era comercializado em São Paulo e Minas Gerais. São chamados de Campos Gerais, os extensos faxinais de uma estreita e alongada faixa de terras no segundo planalto paranaense, formada de campos de pastagem, entremeados de pequenos bosques de matas e pinheiros, apropriados à exploração pastoril, como a criação de gado, que se estende de Jaguariaíva até a margem direita do Rio Negro, passando por Lapa. Eram habitados por povos indígenas da nação Kaingang, chamados de “Coroados”. O planalto adquiria, nessa época, a supremacia econômica e social sobre o litoral. Em 1812 a sede da Comarca foi transferida de Paranaguá para Curitiba. Embora esta se tenha mantido, até a criação da Província do Paraná, em 20 de agosto de 1853, pela lei Imperial n.° 704. O Paraná foi desmembrado do território de São Paulo, fazia parte da 5ª Comarca de São Paulo. A instalação da nova Província se deu em 19 de dezembro de 1853. 20 A vila de Curitiba foi elevada à categoria de cidade e capital da nova Província em 26 de julho de 1854. Havia a antiga vila de Paranaguá e mais sete vilarejos, Guaratuba, Antonina, Morretes, São José dos Pinhais, Lapa, Castro, Guarapuava e as freguesias, de Campo Largo, Palmeira, Ponta Grossa, Jaguariaíva, Tibagi e Rio Negro. Ao chegar em Curitiba os tropeiros invernavam o gado por alguns meses nos Campos Gerais, para recuperarem-se da longa jornada, sendo mais tarde vendido na grande feira anual de Sorocaba, para onde afluíam fazendeiros paulistas, fluminenses e mineiros. Com a instalação das primeiras pousadas para os tropeiros e currais para recolher o gado em trânsito, e as diversas atividades ligadas à pecuária e ao tropeirismo, foram criadas às margens do histórico Caminho do Viamão inúmeras cidades, povoados, vilas e núcleos agropastoris, dos quais muitos conservam a denominação dada pelos antigos tropeiros. Os próprios tropeiros que por ali circulavam procuraram estabelecer nesse local as suas fazendas, comprovando, assim, a boa qualidade do pasto para a criação e engorda do gado. Os lucros com a fazendas de invernada e com a criação de gado impeliram fazendeiros, portugueses de origem, a requererem grandes áreas de terras da Coroa e ocupar os Campos Gerais. Formaram-se imensos latifúndios constituídos por famílias importantes de paulistas, de grande poder político e riqueza. De 1710 em diante, as sesmarias iam sendo requeridas em número cada vez maior e os “currais” foram se formando ao longo do caminho das tropas. As concessões de terra beneficiavam pessoas chegadas ao poder político. Os antigos sesmeiros e seus descendentes viriam a formar a influente aristocracia campeira, da qual saiam os homens destinados aos postos elevados das classes arma21 das, do clero e do governo. As sesmarias constituíam um sistema de apropriação da terra correspondente à aplicação no Brasil do Código Português de 1375. As Cartas de Sesmaria eram doadas a quem tinha influência junto ao governo. Para se obter uma propriedade nos Campos Gerais, alegava-se posse, requeria-se a El-Rey a concessão da sesmaria. As propriedades concedidas possuíam entre 4 a 8 mil alqueires paulistas. Para se fazer a posse, o interessado escolhia uma paragem, fazia um rancho e soltava algumas cabeças de gado. Deixava um capataz tomando conta, e algum tempo mais tarde requeria-se a posse. Interessada em ampliar o domínio do território da Colônia, a Coroa portuguesa concedia e demarcava grandes áreas de terras aos requerentes de sesmarias, sob a exigência e obrigação de cultivar e povoar a terra. A sesmaria requerida tinha que estar localizada em áreas devolutas. (Sesmaria - lote de terra inculta, devoluta, que os reis de Portugal cediam a sesmeiros que se dispusessem a cultivá-la. A légua de sesmaria tem 6.600 metros. Posse área de terra correspondente a uma légua quadrada.) O ciclo do tropeirismo vai se extinguindo desde o início do século XX, com a construção das rodovias e ferrovias no Centro-Sul do país (São Paulo, Minas, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). CAFÉ – A PRECIOSA RUBIÁCEA. 22 O café cultivado no Brasil é originário da Abissínia (Etiópia), país localizado a leste do continente africano. Seguiu um longo e sinuoso caminho que o levaria, no decorrer dos séculos à Europa e dali às possessões francesas na Martinica e Guiana Francesa no início do século XVIII. Conta a história que o comerciante português Francisco de Mello Palheta, em 1727, numa expedição à Guiana, teria trazido algumas mudas de café para o Brasil. A cultura desta rubiácea (Coffea arabica) disseminou-se pelos estados, desde Maranhão até Minas Gerais, difundindo-se por todas as regiões tropicais e subtropicais, pelo vale do rio Paraíba na direção a São Paulo, sem, contudo, na época, representar atividade econômica expressiva, perdendo para a produção de açúcar, o comércio de couros, mineração de ouro e pedras preciosas. Mas é só a partir do início do século XIX que a cafeicultura ganha o interesse dos grandes proprietários. Obtém a primazia entre as monoculturas exportadoras e tornase rapidamente a principal atividade agrícola do país, responsável por mais da metade da renda obtida com exportação. A crescente importância econômica faz dos produtores de café de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais o centro da elite dirigente do Império e da República, até quase a metade do século XX. O trabalho nos garimpos, nas lavouras de cana-deaçúcar e de café requeria mão-de-obra abundante e barata O índio era rebelde e não se sujeitava ao trabalho, portanto os fazendeiros optaram pelo braço escravo africano. O comércio de escravos negros entre a África e o Brasil ocorre ao longo do período colonial e até a metade do século XIX. Dominado por portugueses, espanhóis, ingleses e holandeses o tráfico existe desde o século XV e cresce junto com a economia colonial no Brasil. Entre 1530 e 1850, chegam ao Brasil cerca de 3,5 milhões de escravos 23 trazidos do continente africano, especialmente da Guiné, Senegal, Costa do Marfim, Mali, Congo, Angola, Moçambique e Benin. Trazidos em navios superlotados, eles são vendidos em escala crescente por traficantes. No decorrer de 400 anos, eles são a grande massa trabalhadora da agricultura, da mineração e das atividades econômicas. Trouxeram consigo suas crenças, seus costumes e sua culinária. A partir de 1800, crescem as pressões contra o tráfico negreiro. No âmbito interno, germinavam os ideais de liberdade nascidos com a Revolução Francesa; pela oposição à Monarquia e como maior incentivo as injustiças e os maus tratos cometidos contra o negro escravizado, que era obrigado a trabalhar arduamente nas lavouras de cana-deaçúcar, algodão e no cultivo do café. Os escravos resistem à escravidão fugindo das fazendas para os quilombos nos sertões e rebelam-se nas cidades; são caçados como bichos pelos capitães do mato e açoitados nos pelourinhos, muitas vezes até a morte. Quando a escravidão é extinta, em 1888, permanece sua herança na sociedade brasileira em forma de discriminação racial, social e econômica dos negros e mulatos. A campanha abolicionista desenvolveu-se paralelamente à expansão da cultura do café no Brasil. Como a lavoura de cana-de-açúcar e café demandavam muitos braços para o trabalho, facilmente se configura a correlação entre o movimento abolicionista e a expansão destas lavouras. É evidente que produções de baixo custo, feitas no Brasil graças ao braço escravo, constituíam uma ameaça para o comércio europeu. E aos contrariados comerciantes ingleses de chá é que se deve atribuir o empenho da Inglaterra em deter o tráfico de escravos destinados a abastecer de mão-de-obra os produtores brasileiros de café. 24 Em 4 de setembro de 1850, é aprovada a Lei ” Euzébio de Queiroz”, severa contra o tráfico negreiro. Com as leis restritivas à entrada de escravos africanos no Brasil, principalmente após 1854, vem a conseqüente dificuldade em atender à crescente demanda de mão-de-obra agrária, sobretudo para as lavouras de cana-de-açúcar, algodão e de café, como também para a agricultura de subsistência. Para remediar esse grave problema, o governo imperial de D. Pedro II recorreu a uma alternativa onerosa, mas que se lhe afigurava como a única capaz de resolver os problemas dos fazendeiros. Então, o Imperador regulamenta e oficializa a emigração européia. Foi incentivada a importação de emigrantes para o trabalho braçal, como também para povoar os extensos espaços vazios, do imenso país, que no seu interior era escassamente habitado por caboclos e tribos errantes ou seminômades de índios. No século XIX, deu-se uma grande emigração européia, especialmente alemã e irlandesa, para os Estados Unidos. Italiana e espanhola para a Argentina, italiana, alemã e do leste europeu para o Brasil. No ano de 1847, chegaram os primeiros imigrantes, sendo 177 famílias alemãs e suíças, selecionados na Europa e para aqui trazidos sob contrato para trabalharem nas lavouras de café. Em 1869, no governo de Adolfo Lamenha Lins, governador do Paraná, vieram mais algumas centenas de famílias européias. Fundam-se as três primeiras colônias, bemsucedidas, em terras em redor de Curitiba, destinadas ao abastecimento da cidade. Por volta de 1875, o contingente imigratório italiano passa ser o mais numeroso nas continuas levas de estrangeiros aqui chegados. Os imigrantes passam a trabalhar como assalariados, surgem as primeiras colônias de casas nas 25 fazendas. E às vésperas da Abolição, é nítida a mudança que se processa no regime de trabalho nas fazendas de café. O movimento social, ocorrido entre 1870 e 1888, defendia o fim da escravidão no Brasil. Muitos liberais brasileiros do Império declaram-se contra a escravidão. Fazendeiros, políticos, jornalistas e intelectuais lançam no Rio de Janeiro o Manifesto Republicano. É o sinal do declínio da Monarquia. As idéias republicanas disseminam-se pela população. Enquanto isso, o Império titubeia na questão do trabalho escravo, incompatibilizando-se com a aristocracia escravista e levando os abolicionistas a se unirem aos republicanos. Mas é só a partir da Guerra do Paraguai (1865-1870) que o movimento abolicionista ganha impulso. Por ordem de D. Pedro II, os escravos que se alistassem como soldados seriam libertos. Não fosse essa providência benfazeja de Sua Majestade, milhares de ex-escravos que retornavam da guerra corriam o risco de voltar à escravidão. A Guerra do Paraguai teve importância decisiva no destino da nação brasileira; marcou o apogeu do Império, mas também trouxe as causas principais da sua queda. Agrava-se a crise política e o governo imperial rende-se às pressões. No dia 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assina a Lei Áurea, que extingue o regime escravagista, originário desde o início da colonização do Brasil. As fazendas abandonadas pelos escravos requeriam com urgência mão-de-obra para o trabalho. O problema social transforma-se em questão política para a elite dirigente brasileira. A abolição desagrada os fazendeiros, e, vendo-se privados de seus trabalhadores pouco dispendiosos, muitos atribuem seus prejuízos ao Imperador e exigem indenizações pela perda que consideram suas propriedades. 26 As oligarquias rompem com o regime, deixando de lhe dar sustentação. Os fazendeiros, abastados e politicamente poderosos, exercem sua influência para que o governo incentive e subvencione a imigração, fazendo propagando nos países europeus, financiando as passagens marítimas, alojando as famílias em hospedarias e distribuindo-as em fazendas. E que eles necessitam de trabalhadores em substituição ao braço escravo em suas lavouras. Entretanto, essas primeiras iniciativas no campo da imigração não lograram êxito esperado, por diversas razões. O fazendeiro estava habituado a lidar com escravos submissos, afeitos às rudes condições de moradia e alimentação vigentes nas senzalas, aos castigos corporais, acostumados a trabalhar sem nada receber. De repente, o dono da fazenda viu se obrigado a pagar pelo trabalho, ouvir reivindicações de melhores condições de vida, por parte do imigrante. O fim da escravatura não melhora a situação social e econômica do negro. Analfabetos e sem uma profissão definida, em nada muda a sua condição subalterna. Permanece sua herança servil na sociedade brasileira, na forma de discriminação social. Ao passar do tempo, os imigrantes europeus assalariados substituem os escravos no mercado de trabalho. O último abalo da monarquia é o fim da escravidão. O Império perde o apoio dos escravocratas, que aderem à República. Liderados pelos republicanos, civis e militares conspiram contra o Império. Um movimento políticomilitar acaba com o Brasil imperial. É proclamada a República do Brasil, em 15 de novembro de 1889, pelo marechal Manoel Deodoro da Fonseca, que assume a chefia do novo Governo Provisório e intima o deposto Imperador D. Pedro II e a família real para que deixem o Brasil e embarquem para Portugal no prazo de 24 horas. Dois dias depois D. Pedro deixa o Brasil. 27 IMIGRANTES EUROPEUS A colonização européia introduziu na América do Sul o elemento branco, portugueses no Brasil e espanhóis na maior parte do continente. Nos primeiros tempos do Brasil colonial, numerosos degredados, fugitivos, criminosos, ladrões, desertores e réus de diversos crimes, foram trazidos de Portugal e deixados na Bahia, Pernambuco e nas praias de S. Vicente. À sua chegada, esses homens de má índole não encontravam senão mulheres índias para esposas. Com esses pais de natureza criminosa, não podia haver descendência boa, muitos deles eram perversos. Os filhos que resultaram das relações entre homens brancos com mulheres índias foram chamados de mamelucos. Os portugueses, espanhóis, holandeses e franceses se misturaram com a raça indígena. Tendo contato diariamente com os índios, os trabalhadores agrícolas portugueses que vieram para colonizar o Brasil adotaram deles muitos usos e costumes. Trocaram os alimentos tradicionais de Portugal pelos desta terra. Fumavam folhas de tabaco, usavam redes de dormir e tomavam banhos diários nos rios. A formação étnica da região Sul do Brasil difere das demais áreas do território brasileiro. Enquanto o português, o africano e o índio constituem o tripé étnico da nacionalidade, no sul predominou a colonização efetuada a partir do século XIX, por italianos, alemães, poloneses, ucranianos e outros imigrantes de procedência européia. O clima subtropical, ameno, contribuiu para a fixação do emigrante europeu. No sul não existiam resquícios do sistema escravocrata de exploração da terra, que ainda vigorava em outras regiões do país. Os espanhóis foram expulsos do oeste paranaense pelos bandeirantes paulistas, mas a região permaneceu a28 bandonada, continuou pouco povoada. Havia grandes áreas de terras devolutas, ainda não apropriadas, das quais o Governo Imperial e o Governo do Paraná podiam dispor para colonização. As férteis regiões do norte e oeste do Paraná permaneceram isoladas e não foram ocupadas pelos colonizadores, pois eram cobertas por florestas difíceis de explorar e não havia estradas de acesso. A ocupação da Província tomou impulso após a emancipação política, em 1853. No entanto, o território paranaense ainda não estava definido, pois o Estado de Santa Catarina reclamava para si uma área de 48.000 quilômetros quadrados. Essa área ficou conhecida como “Contestado” e foi palco de confrontos armados entre latifundiários pecuaristas que disputam a posse dos campos de pastagens e ervais situados entre os rios Iguaçu e Uruguai. A questão só foi resolvida no ano de 1916, com uma intervenção militar, quando os dois Estados dividiram a área pela metade. Nas duas últimas décadas do século XIX, o governo Imperial de D. Pedro II continuou estimulando a imigração de colonos europeus para as lavouras cafeeiras. Começaram chegar imigrantes europeus: alemães, italianos, franceses e espanhóis. *** A Revolução Francesa em 1789 e a ação de Napoleão Bonaparte aceleraram a emancipação do campônio polonês das suas obrigações ainda feudais para com seus senhores, estrutura esta que ainda perdurava nos países do leste europeu. Os movimentos sociais na Europa e América do Norte despertaram maiores exigências do povo. No ano de 1871 vieram os primeiros imigrantes poloneses ao Paraná. Formavam um grupo de 32 famílias. Provinham do sul da Polônia, região ocupada pela Áustria, 29 foram assentadas na localidade de Pilarzinho. Com a vinda de centenas de famílias polonesas, surgiram outras colônias nas proximidades de Curitiba: Abranches, Tomás Coelho, Lamenha, Murici, Cristina, Taunay e dezenas de outras. Os colonos foram localizados nas áreas de matas. As regiões de campos já estavam ocupados por grandes fazendas de criação de gado. Nessa época, o maior problema existente na Polônia ocupada pelas três potências, Áustria, Prússia e Rússia, era o agrário; não havia terra suficiente para o lavrador. As promessas de reformas iam sendo adiadas indefinidamente. Após a emancipação dos servos em 1861, e com o decreto do czar Alexandre II, em 2 de março de 1864, foi concedido o direito à propriedade aos camponeses e distribuídas pequenas glebas de 2 a 5 hectares, por família. Esse parcelamento da terra foi uma das causas mais relevantes que levaram à emigração em massa, pois os aldeões não sobreviviam de tão pequeno quinhão de terra, teriam de voltar a trabalhar nas fazendas como assalariados, por um ordenado aviltante, que teve como conseqüência a grande miséria da população. Também, a superpopulação contribuiu ainda mais para a luta do povo por sua liberdade, por mais espaço e mais direitos. Seguiram-se a esse problema, a excessiva oferta de mão-de-obra nas aldeias; as difíceis condições de trabalho da população rural; o atrativo espalhado pelos povoados, muitas vezes falacioso, de um futuro melhor em outros países no além-mar, principalmente nas Américas, do Norte e do Sul, com preferência ao Brasil. Em 1886, foi fundada a Sociedade Promotora da Imigração, que tinha por objetivo enviar agentes a serviço do governo brasileiro, aos países da Europa onde havia excesso de população, falta de trabalho e grande pobreza. 30 Foram abertos inúmeros escritórios, principalmente na Europa Central, com a finalidade de recrutamento de trabalhadores. Para angariar maior número possível, o governo brasileiro oferecia transporte de navio gratuito, alimentação e facilidade na aquisição de terra. Nesse suscetível terreno foi semeada uma propaganda maciça e convincente. E no início de 1889, começou a dar resultados positivos, além dos esperados. Em 28 de junho de 1890, foi assinado o decreto n.º 528, pelo marechal Deodoro da Fonseca, que regulariza o serviço da introdução e localização de imigrantes no país. Entretanto, o governo não estava preparado para receber a avalanche humana que tais ofertas impulsionaram. Milhares de imigrantes desembarcavam nos portos brasileiros. As autoridades brasileiras viram-se então com dificuldade para alojar, alimentar e transportar tamanhos contingentes humanos, nas hospedarias, ou nas colônias nas quais iriam ser assentados. Para o bom andamento do projeto, tudo isso requeria planejamento e organização antecipados, mas, como pouco até ali havia sido programado, trabalhou-se com improvisação. Alfredo de Escragnolle, Visconde de Taunay, militar e político brasileiro, presidente da Província do Paraná, numa carta dirigida aos padres Francisco Gorowski e Ludwig Przytarski, em 1890, dizia entre outras coisas: “Os poloneses aqui radicados gozam de toda proteção da lei, segurança, liberdade individual e religiosa. Seria conveniente que, de imediato, escrevam cartas aos seus compatriotas na Polônia, informando-os que o nosso Império pode-se tornar para eles a “ Terra Prometida ”. Essa carta causou grande ressonância nos centros de emigração e foi usada pelos agentes dos navios, de colonização e seus engenhosos intermediários, aproveitando o 31 estado de emergência, da situação difícil dos camponeses e o constante chamamento da força de trabalho para o Brasil. Um dos agentes recrutadores para o Brasil, era Eugênio Bendaszewski, um comerciante, que residia no Paraná, transferindo-se para Hamburgo, onde os seus agentes em Hamburgo e Bremen orientavam os emigrantes poloneses para o território paranaense. Os imigrantes que aqui aportaram nos anos 1890-1891, segundo as listas oficiais da Comissão de Imigração, eram de 38.125 pessoas. Na Polônia, os agentes e seus representantes divulgaram manifestos, volantes, cartas e promessas fantásticas pelas aldeias e em todos os recantos; mas papel preponderante tiveram as promessas de terra, ajuda, transporte gratuito nos navios, alimentação e proteção; garantia de segurança pessoal e liberdade. Incentivados, o camponês, o operário e o pequeno agricultor se deslocavam através dos mares para este encantado Brasil. O resultado dessas manobras foi o surgimento da “1ª febre brasileira”, que se alastrou como epidemia pelos povoados e intensificou o deslocamento de massas humanas, sem paralelo na história. Foi a que colonizou os Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Igual à febre que sacode o organismo humano, assim a aldeia polonesa ficou profundamente abalada pela emigração de milhares de camponeses, mantidos no atraso e obscurantismo pelos governos de ocupação. O povo ignorante, confuso, crê cegamente na propaganda ampliada secretamente pelos elementos interessados, e vê no outro lado do oceano o sonho do paraíso terrestre, a possibilidade de se libertar do sofrimento que o afligia e a melhorar a sua condição social e econômica. Não acreditava nas advertências dadas por pessoas esclarecidas, que avisavam das dificuldades e dos perigos que os esperavam nas terras a serem desbravadas. 32 A psicose da emigração que tomou conta dos aldeões, e que estava fadada a despovoar as aldeias, inquietava o governo e também os proprietários de terras, diante do perigo de perderem a mão-de-obra barata. Com a emigração em massa dos camponeses e em conseqüência deste fato, foi iniciada a política de repressão pelo governo russo, dirigido pelo general Hurko, governador da província de Plock, e pelo burgomestre Tykocin. Toda a província foi percorrida pelo comandante da polícia militar do general Brokk, para sustar o movimento emigratório. O manifesto de nove de setembro de 1890 qualificava o abandono voluntário do país como contravenção, ferindo o artigo 325-326, do código disciplinar, sendo motivo para o exílio na Sibéria. O general suspendeu a emissão de matrículas e passaportes e bloqueou as passagens de fronteira. As autoridades policiais certificaram-se que o principal agenciador para a emigração, na província de Plock, era Piotr Konarzewski, que foi preso e condenado a dois anos de prisão. A grande incidência de emigração do território sob o domínio russo na Polônia, nos anos de 1889, 1890 e 1891 afetou, além das demais províncias, principalmente os powiat (distritos), localizados ao longo da fronteira da Prússia, como Rypin, Lipno, Mazowsze, Golub-Dobrzyn, Sierpc, Mlawa, Ciechanow, Plonsk, Dzialdowo e outras localidades da gubernia (província) de Plock. Essa região ficou praticamente despovoada. Os camponeses emigravam fugindo da fome, da miséria e perseguição racial, política e religiosa, praticada pelos ocupantes do país. Fugiam também do serviço militar russo, que era de cinco anos, prestado na Criméia, Cáucaso e nos confins da Rússia Imperial. A situação nas regiões de domínio russo era de exploração econômica e tentativa de 33 despolonizar as populações anexadas, com o agravante do grande índice de analfabetismo, que era de 60%. Emigrava todo tipo de elemento, até respeitáveis proprietários de terras, atraídos por uma vida com mais liberdade e facilidade na aquisição de terras. Veio também um número expressivo de intelectuais, jornalistas, cientistas, sacerdotes, militares, artistas, escritores, engenheiros, médicos e estudiosos, que muito colaboraram para o progresso material e intelectual do Brasil. Muitos deles, envolvidos com insurreições contra o governo de ocupação na sua pátria, fugiam das perseguições políticas. Entretanto, na sua maioria, os emigrantes eram camponeses pobres, ignorantes e analfabetos. Todos seguiam com destino ao sul do Brasil, principalmente à Província do Paraná, por causa do seu clima ameno. No final de 1890, da região de Mazowsze (Mazóvia), província de Plock, vieram a São Mateus 1.225 pessoas e a colônia Água Branca, 685. Muitos dos que fugiram através da fronteira, eram proprietários rurais que deixaram seus bens para trás e saíram sigilosamente. Os clandestinos atravessavam a fronteira verde a pé ou de carroça; levavam os pertences, roupas, calçados, tudo que podiam esconder em trouxas ou pacotes. Pagavam aos guardas corruptos, russos de um lado, e prussianos, do outro lado da fronteira, para que os deixassem passar. Pagavam também aos impostores, chantagistas e trapaceiros, que nesse trajeto estavam à espreita dos incautos transeuntes. Os emigrantes enfrentavam toda sorte de dificuldades nessa trajetória por um país estranho, neste caso, Alemanha. Podiam se perder; precisavam sobrepujar os obstáculos; transferir-se em Berlim do trem procedente de Torun para outro, que os levaria à Bremem e ao porto de Bremerhaven ou Antuérpia. 34 Outros, atravessando a fronteira se dirigiam à cidade de Grudziadz, onde embarcavam no trem que os levaria, via Berlim, ao porto de Hamburgo. Tinham de trocar dinheiro, procurar o agente da Companhia de Viagens Marítimas, encontrar o navio certo, não perder os pertences e os pacotes, enfim não perder nada e nem alguém da família. A cada passo, vigaristas os assediavam com propostas mirabolantes, como passagens de navio mais baratas, acomodações pela metade do preço, enfim, tudo o que é oferta miraculosa, com claro propósito de engodo, visto que os camponeses eram pessoas crédulas, ingênuas e de boa-fé. Os emigrantes que chegavam aos portos ficavam nos albergues, por conta das Companhias de Emigração, até o embarque nos navios. Os passageiros, cujo transporte era pago pelo governo brasileiro, viajavam na 3ª e 4ª classe dos transatlânticos superlotados da Companhia “Hamburg América Line” e outras, com até 3.000 mil pessoas a bordo. Chegando ao Brasil os imigrantes desembarcavam na Ilha das Flores, no Rio de Janeiro. Depois de uma quarentena na Ilha, eram transportados por navios do Lloyd brasileiro. Os que se dirigiam à Província do Paraná ficavam em Paranaguá, outros iam à Santa Catarina e desembarcavam no porto de São Francisco, ou em N.S. do Desterro (Florianópolis), outros iam à Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Foram instalados em terras colonizadas pelo governo Federal. No Paraná ocuparam áreas nos vales dos rios Iguaçu, Negro e nascentes do rio Ivai, fixando-se no sul. Nessa época vieram aproximadamente 68.000 mil pessoas para o sul do Brasil. Os imigrantes poloneses distinguiam-se pela laboriosidade, probidade e religiosidade. 35 JAKÓB GRYCZYNSKI Foram diversas as causas que levaram à singular epopéia que o emigrante polonês escreveu, com sangue, sacrifício e heroísmo, privado de qualquer orientação ou amparo, apesar das promessas feitas pelos agenciadores. Jakób Gryczynski era proprietário da herdade Gryczynszczyzna, na aldeia de Chumecin, próxima da cidadesinha de Mazowsze, na província de Plock, a pequena distância da fronteira da Prússia. Saiu de casa com a família e parentes, um grupo composto de 16 pessoas, no dia 14 de outubro de 1890, isto é, 10 dias antes do embarque no navio, foram de carroça, conduzidos pelos amigos e vizinhos. Ao passar a fronteira verde, eles tiveram que pagar 2 rublos por pessoa ao guarda russo e outro tanto em marcos ao guarda alemão, que revistou as bagagens. O fiscal quis confiscar um par de botas novas, de couro, do filho Alexandre, afirmando ser contrabando. - O senhor queria - respondeu-lhe o jovem dono das botas - que todos nós calçássemos botas furadas? O alemão enrugou a testa, pensou por um instante e fechou a bagagem intacta. Seguiram, então, em direção à cidade de Grudziadz onde embarcaram no trem que passava em Berlim, com destino ao porto de Hamburgo. Jakób trocou ali um pouco de dinheiro em marcos alemães, para custear as despesas; o câmbio era um rublo por um marco. Comprou na agência J. CH. Paulsen, quinze bilhetes de passagem de 3ª classe, com direito a cinco camarotes, com três beliches em cada um, no navio Darmstadt de passageiros, que ia atracar dentro de três dias. Precisava procurar um hotel para acomodar a família. A hospedagem custou cinco rublos por dia, por pessoa. Como o transporte da bagagem no navio era gratuita, levaram baús de madeira com roupas, pacotes com 36 sapatos, panelas, pratos e colheres, cobertores, acolchoados de pena de ganso (pierzyna), travesseiros, lençóis, ferramentas de carpinteiro, duas espingardas de cano duplo e munição, sementes de verduras, de trigo, de trigo sarraceno, centeio, cevada e ervilha. Comprou cestos grandes com tampas, colocou neles tudo o que coubesse e amarrou-os bem; escreveu o seu nome em letras grandes nos baús, pacotes e cestos com tinta preta. Numa cesta separada foram colocados os objetos e chás, de uso diário. Não deixou de levar o violino, o clarinete, o violoncelo e a ocarina. Jakób aventurou-se pela cidade de Hamburgo para comprar um bom relógio despertador e um quadro de Nossa Senhora de Czestochowa. Finalmente, no terceiro dia o navio atracou no porto. Foi uma correria tremenda na hora do embarque. Choro, gritos, pessoas que se perdiam umas das outras, crianças aos berros chamando as mães; foi um enorme alvoroço. No dia 24 de outubro de 1890, embarcaram 3.000 mil passageiros no navio Darmstadt, rápido transatlântico a vapor. A família Gryczynski compunha-se de 16 pessoas: Jakób Gryczynski - com 57 anos (nasc. 1833) Jozepha Drazkiewicz - com 55 anos (nasc. 1835) Ksawera Antônia– filha, com 26 anos (nasc. 1864) Aleksander Kowalski – genro, com 31 anos. Konstantim, neto, com 2 anos. Mariana, - neta, com 3 anos de idade. Stephania – filha, com 20 anos (nasc. 1870). Alexandre – filho, com 18 anos (nasc. 1872). Ladislau - filho, com 16 anos (nasc. 1874). Maria Jozepha- filha, com 23 anos (nasc.1867). Francisco Krenski – genro, com 26 anos. Juliana – neta, com 4 anos e Anna de dois meses. Vicente – neto, com 2 anos de idade. Anton Krenski e Mariana – pais de Francisco. 37 Jakób e a esposa Jozepha estavam enfrentando problemas com a filha Stephania, que não parava de chorar, revoltada, pois não se conformava com a idéia de emigrar contra vontade própria, precisando deixar na Polônia, a vida de conforto, seu trabalho e o noivo a quem amava muito. O navio, depois de sair de Hamburgo, porto situado no estuário do Rio Elba, no Mar do Norte, navegou por 24 horas, próximo à costa, chegou à Antuérpia, cidade portuária da Bélgica, onde ancorou e permaneceu por 48 horas. Foi abastecido de carvão, água e víveres frescos. Dois dias de navegação, com ventos firmes e uma corrente favorável, levaram o navio para o alto mar. O céu mostrava-se nublado, as ondas açoitadas pelo vento franjavam-se de uma escuma borbulhante. O aspecto severo do mar, que se estendia além da vista, assustava os viajantes. Em vez do burburinho da partida, um silêncio relativo e tristeza reinavam a bordo do Darmstadt. Sentados no chão, nos molhos de cordas enroladas, homens, mulheres e crianças, com o olhar fixo, as feições transtornadas, enxugavam continuamente as lágrimas que lhes escorriam pelas faces. Com o balanço do navio, o enjôo fizera suas vítimas que, deitadas, entregaram-se ao desânimo. O sol estava no zênite e o mar era como um vasto espelho ondulante, salvo onde as ondas se quebravam em volta do navio e subiam em torno do casco. O mar estava vazio, a não ser num ponto em que um bando de aves marinhas se agitava sobre um cardume de peixes acossado por um grupo de tubarões. Dois deles deixaram o cardume e começaram a circular perto do navio, chegando cada vez mais perto, até que podia-se ver-lhes o brilho azulado do dorso e, quando se viravam, a brancura das barrigas. Eram grandes e deviam ter seis metros de comprimento no mínimo. Estavam fartos 38 dos peixes do cardume e nadavam tranqüilamente. O oceano imenso, o seu mundo, estava resplandecente. Esse pequeno drama predatório interessou à Stephania por um momento. Mas logo se cansou dele e voltou a sentar no convés da frente e ali ficou sentada durante muitas horas, fechada num silêncio tangível como uma parede. As lágrimas lhe escorriam pela face pálida. No seu desespero, parecia que se despedia da vida. E num trágico momento subiu na amurada e, balançando os braços, tentou pular para o precipício das ondas revoltas. O marinheiro Karl que passava naquele momento viu o seu tresloucado gesto, correu e conseguiu pegá-la no arremesso final. - Deixe eu ir – gritava ela, debatendo-se. - Não seja louca, não tem esse direito. Só Deus, que nós deu a vida poderá tirá-la. Depois dessa tentativa de fuga, ela trancou-se na cabina, não comia e não atendia a ninguém. Em vão sua família tentava consolá-la, ela fechou-se para todos e para o mundo. Não tolerava que alguém se aproximasse dela. Naquela noite, quando estava deitada no beliche a escutar o bater das ondas no casco do navio, o sussurrar do vento pelo convés e os queixosos acordes do violino que chegavam do fundo do navio onde estava acomodada a multidão de emigrantes, o pai lhe procurou. - Filha, fale comigo, diga o que a desespera tanto, a ponto de tentar contra a própria vida? Ela escutou em silêncio, depois afastou-se um pouco dele, cruzou as mãos sobre o peito e ficou a olhar para o teto. Quando o pai tentou abraçá-la, ela o repeliu e gritou em desespero: - Você me arranca do lado do meu marido, do grande amor da minha vida, pai do filho que estou esperando, me leva a força numa viagem para um mundo desconheci39 do, numa mudança traumática na minha vida e ainda fica chocado quando quero acabar com esse sofrimento? - O que você disse? Eu te arranquei do lado do marido? Pelo que eu sei, o tenente Zbigniew Orlowski era seu noivo, não seu marido. Explique-se melhor, minha filha! - Pai, estou toda dilacerada internamente, sem vislumbrar o presente e nem o futuro. Estou presa totalmente ao passado. O que é que você pode fazer? – perguntou ela. - Dar-lhe-ei todo meu amor de pai, apoio e compreensão. Se assim preferir, autorizarei o teu retorno para a Polônia. Conte-me tudo. Stephania sentou-se na amurada do navio, perto do pai e, aos soluços, começou a desfiar o seu drama. - Quando o senhor exigiu que eu deixasse o emprego de dama de companhia, da condessa Maria Poniatowska, em Warszawa, porque você pretendia emigrar com toda a família para o Brasil, eu e Zbigniew ficamos desesperados. Pensamos numa solução, mesmo que fosse um procedimento radical. - Não podíamos casar oficialmente, era proibido, pois ele ainda tinha dois anos de serviço militar para cumprir no exército russo, que era de cinco anos. A punição por desobediência era o fuzilamento, ou a deportação para a Sibéria. Portanto, a solução ideal seria casarmos em segredo, numa cidade, fora da jurisdição russa. - Meu noivo pediu uma licença de quinze dias do exército, eu pedi o mesmo prazo à condessa Maria. No dia combinado encontramo-nos na estação. Embarcamos no trem da linha Bialystok - Warszawa -Torun, com destino a Torun, cidade fronteiriça, mas de domínio prussiano, onde morava a tia Helena, viúva, irmã da mãe de Zbigniew. Ela apoiava o nosso romance, juntos acharíamos uma solução. Esta apareceu na pessoa de Wilhelm, um grande amigo do falecido marido da tia Helena. 40 Como Torun, pertencia ao Império da Prússia não seria nada difícil, com um bom suborno, conseguir novos documentos para o casal, que, em verdade, não seriam tão falsos assim, pois Zbigniew era filho adotivo do casal Laurenti Orlowski, e no processo de adoção fora registrado com o novo nome de Zbigniew. Seu verdadeiro nome era Mathaei Kuczynski. Então era só fazer os novos documentos com seu nome verdadeiro. E assim foi feito. Os noivos, Stephania, filha de Jakób Gryczynski e Josepha Drazkiewicz, naturais de Chumecin, província de Plock, de domínio do Império Russo, e o jovem Mathaei Kuczynski,. filho de Boris e Marfa Kuczynska casaram-se no dia 10 de agosto de 1890. O casamento foi assistido somente pela tia e o amigo que os ajudou a realizar o sonho de felicidade. Passaram a lua-de-mel em Torun, na casa da bondosa tia. Após o vencimento das suas licenças, cada um voltou ao seu compromisso, mas não sem antes jurar o amor eterno, guardando segredo absoluto deste matrimônio proibido. Stephania enxugou as lágrimas que teimosamente lhe escorriam pela face e continuou: - Despedimo-nos na estação de Warszawa, com um prolongado beijo, Mathaei prometendo ir ao meu encontro no Brasil, assim que terminasse o seu período de engajamento militar e fosse liberado do exército russo, e eu jurei que ia esperá-lo. Mas o destino impiedoso ia pregar uma peça dolorosa em nossos sonhos. - Você meu pai, obrigou-me a deixar a minha vida para trás, acompanhando a família nessa tresloucada fuga, sem me perguntar se era esse o meu desejo. Você é autoritário e desumano, é ainda o patriarca medieval que controla a família com mão de ferro. Imagine o meu desespero quando soube que estava grávida, como iria justificar o meu 41 estado? - murmurou ela com a voz estrangulada por um soluço angustiado. O pai atônito ante a revelação do segredo da filha, perdeu o controle e esbofeteou-a, gritou insultos sobre insultos. Depois, condoído do seu sofrimento, colocou a sua cabeça no colo e, passando a mão suavemente sobre os seus cabelos, fez com que adormecesse profundamente. Questionava-se. Teria agido certo ao exigir o embarque de toda a sua família, nessa viagem arriscada, sem perspectiva e horizontes definidos? Sem outra alternativa, já arrependido, entregava tudo na mão de Deus, o seu futuro e o da sua família. Resolveu mandar Stephania de volta para Polônia, na primeira ocasião, junto com algum casal que estivesse retornando à pátria. Assim solucionaria o problema. Daí em diante deixou de pensar no assunto. Na superfície lisa do mar, acabava de aparecer a bombordo do Darmstadt uma massa escura que se assemelhava, de longe, com o casco de um navio, virado de borco, isto é, com o fundo para cima. Um cheiro insuportável de maresia empestava ao mesmo tempo o navio. Durante alguns minutos aquele vulto pareceu imóvel; depois a água agitou-se em torno dele e a extremidade de um maxilar gigantesco apareceu, com dois jatos de água salgada que subiam a uma altura de dois metros, caindo depois numa chuva fina. Ao mesmo tempo o dorso inteiro da baleia mostrouse por um instante acima da superfície, para mergulhar novamente. Mais cinco baleias foram vistas então ao longe, saltando sobre a água e nadando uma após outra, como se brincassem. À tarde navegaram entre bandos de golfinhos que, confiantes, colocavam-se ao lado do vapor, pareciam apostar que corriam mais do que ele. 42 A viagem transcorria tranqüila, quando ao cair da tarde, morna, sufocante, o mar começou a agitar-se e apareceram nuvens escuras no horizonte. Aproximava-se uma borrasca. O navio balançava violentamente ao embate das rajadas fortes do vento. Desabou o aguaceiro, semeando pedras de granizo do tamanho de pedras de gude. Acordaram cedo na manhã seguinte, com um céu carregado. Um mar lerdo e um silêncio sem vento que prenunciava um grande temporal. A tempestade era iminente, e quando desabou com toda a fúria, durou o dia inteiro e continuou pela noite. Foram vinte horas de ventos impetuosos, chuva torrencial e mar enfurecido. O navio balançava perigosamente. As pessoas se agruparam dentro dos porões. Alguns passavam mal com os fortes enjôos e vômitos. Enfraquecidos, febris, caiam ao chão, e ficavam pisoteados pelos demais. Mortos, eram jogados ao mar. Muito depois do cair da noite a tempestade ainda rugia, continuava o gemer do vento, e o incessante turbilhão agitado das águas do mar revolto. O convés foi tomado pelas águas. O pânico desordenado estabeleceu-se entre os passageiros. Gritavam e corriam de um lado para outro. Depois, pouco a pouco, tudo foi passando. O vento amainou, a chuva cessou, e a lua apareceu pálida e triste por entre uma cortina irregular de nuvens, acima das águas do oceano, agora já calmo. O crepúsculo passou rapidamente e a noite caiu toda estrelada sobre o mar vazio. Quem nunca esteve em alto mar durante uma tempestade, não é capaz de imaginar o horror e o perigo que a cada passo acumulam-se diante da tripulação e dos passageiros do navio. O enjôo ataca principalmente os mais fracos, mas estão sujeitos a ele também os mais fortes. 43 Stephania, como os outros, passou mal durante a tempestade, alguém na corrida impetuosa pelo convés derrubou-a ao chão, na queda bateu o ventre contra uma ponta de viga saliente; logo depois começou a sentir fortes dores, veio a hemorragia, e com ela o feto que mal tinha começado a se formar. Horas depois, abortou o fruto do seu infeliz amor. Sofreu e chorou desesperada, os soluços vinham-lhe do âmago do ser. Com o correr dos dias, pareceu que ela estava conformada e, como se tivesse voltado do túmulo, ela reapareceu no convés. Novamente olhava para o mar com o olhar perdido na imensidão das águas, desanimada e triste, e muitas vezes era encontrada perto da amurada, ou no canto mais remoto do convés a chorar convulsivamente. O pai atribuiu isso a uma depressão natural, depois da perda prematura do filho e do rompimento dos laços afetivos na terra natal. Procurou sem êxito arrancá-la desse estado mórbido ao qual Stephania se entregara. O navio começou a balançar novamente. De instante a instante empinava sobre a crista de uma enorme onda, para depois rolar para o abismo das águas revoltas. Havia outro temporal a caminho. O ar estava muito parado. Para os lados do leste, as nuvens se estavam amontoando numa compacta massa escura. O mar já estava se encapelando e as aves marinhas voavam alarmadas crocitando desenfreadamente. Houve a princípio escuridão, como se um manto negro tivesse caído sobre o mar. Do centro da escuridão surgiram os relâmpagos, longos clarões em zigue-zague que desciam do céu ao mar e, instantes depois, raios e trovões rugiam ensurdecedores enchendo o espaço. A chuva desabou em torrentes, açoitada pelo furacão que subia com espiral em torno do costado do navio. O uivo fantástico do vento, o estrondear das ondas e do fervilhar do mar, que subia até o tombadilho invadindo o 44 convés, rugia e espumejava, a fúria do vento redobrava, arrojava o navio no dorso dos vagalhões, que se abriam em desnivelamentos imensos. Parecia que iam engolir a grande embarcação. A luta tornava-se encarniçada. O mar queria vencer. O comandante e a tripulação faziam o possível para salvar o navio e os passageiros. Mas, de repente, como por encanto, tudo mudou, o vento amainou, o mar antes tão agitado foi se acalmando, a tempestade tinha se consumido. O navio estava salvo. De tempos em tempos chegavam vagalhões atrasados, trazendo à deriva madeiras e entulhos, talvez de barcos ou embarcações destroçados pela fúria das águas. Nos dias seguintes o mar continuava calmo. O Darmstad singrava serenamente as águas. A cadência da música tocada pelos emigrantes era como o ritmo da velha vida, lânguida, monótona, infinitamente triste, cheia de saudade. A viagem decorreu sem mais contratempos. O capitão, homem calmo e seguro da sua capacidade de comando, tranqüilizou os passageiros e os tripulantes. Gaivotas! Albatrozes! Aves marinhas que habitam as costas dos continentes, voam longe pelo mar à procura de alimento. Primeiro só se ouviram os gritos, porque era noite ainda, em seguida eram as próprias aves, voando em volta do navio. Os passageiros observavam o horizonte o dia todo. Nenhum indício de terra próxima. A lua cheia se levanta no momento em que o sol se deita. Essa lua tropical é tão brilhante que sua reverberação incomoda os olhos. Lá pela meia noite, percebe-se no horizonte, muito distante, iluminada pela luz forte da lua, uma linha negra. - É terra, com certeza – diz o marinheiro. - Estamos chegando – gritaram todos em uníssono. Madeiras e galhos verdes flutuando, indicavam terra próxima. As próprias aves, andorinhas do mar, fragatas, 45 atobás e maçaricos migratórios, apontavam o rumo da terra ainda distante. As ondas do mar se quebravam nos recifes. Do seu posto ao leme, o capitão olhou para o canto do convés, onde os passageiros cantavam baixinho ao som do violino tocado pelo emigrante Jakób Gryczynski, deu volta ao convés, falou com o operador, depois desceu para a casa das máquinas a fim de verificar o livro do maquinista. Tinha de fazer anotações no diário de bordo. Após uma dura odisséia, navegando 22 dias pelo Oceano, o transatlântico alemão Darmstad, cortando os vagalhões da costa brasileira, finalmente aportou na baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. A grande embarcação demandou o porto, onde fundeou. O capitão mandou lançar a âncora a cerca de um quilômetro de distância do cais. Ouviu-se o ranger dos ferros arremessados na água. .Dezenas de barcos manobravam nas águas, indo e vindo. A comissão sanitária subiu a bordo, com a finalidade de avaliar as condições de saúde dos passageiros. O desembarque só e permitido após o cumprimento de todas as formalidades alfandegárias. Um rebocador, puxando enormes lanchas, transportou os imigrantes para a Ilha das Flores, que se situa na Baía de Guanabara, diante da praia do Paiva, no município de São Gonçalo. Via-se o lado esquerdo da baía pontilhado por morros alcantilados. É o Pão de Açúcar, o morro do Botafogo, Corcovado e outros. A beleza do lugar é incontestável. O vento sopra forte, os barcos lançados para o mar enfrentam as ondas. O balanço é incômodo e perigoso. A viagem para a Ilha das Flores dura duas horas, os barcos ladeiam ilhas e contornam grandes navios. Do lado da praia reboava o mugido das vagas que rolavam e vinham jogar espumas no parapeito do cais. De qualquer maneira, chegaram todos vivos, a salvo das ondas. Desembarcaram em terra firme no dia 16 de novembro de 1890. 46 Funcionava ali a organização federal “Hospedaria dos Imigrantes”, que tinha por finalidade acolher e selecionar os imigrantes que chegavam. Ficavam alojados na Ilha a fim de passarem a quarentena, e ao mesmo tempo era feita a triagem pelas autoridades brasileiras. A Ilha das Flores é uma pequena extensão de terra, com morro de pedra, saliente e alongado. A residência do diretor da Estação é um palacete situado no centro da ilha. A casa para alojamento dos imigrantes estende-se ao longo do morro. É uma construção extensa, alta e coberta de zinco, que se perde no verde das árvores tropicais, seguem-se os depósitos abarrotados com os pertences dos viajantes. Em outras construções alongadas, todas as salas estão ocupadas por gente. As camas consistem de beliches, sobre o qual é posta uma esteira de capim, servindo como colchão. As pessoas repousam, passeiam pelas varandas, visitam a ilha, maravilhados com a profusão de flores que dá nome ao lugar, ou simplesmente vagueiam pela praia, a beira-mar. O porto situa-se ao lado da cidade. Na encosta do morro localizam-se o hospital, as cozinhas e os armazéns. No refeitório, uma sala enorme com mesas onde são servidas as refeições. Diariamente recebiam carne, pão, chá, café, feijão preto, arroz e farinha de mandioca. Numa ocasião, houve uma grande mortandade na Ilha, causada pela aglomeração e falta de higiene; grassaram a febre amarela e tifo. Morreram centenas de crianças e velhos. Era dado aos imigrantes o prazo de oito dias para escolherem o destino, para onde queriam ser encaminhados. Como maioria dos seus conterrâneos, Jakób Gryczynski optou por Colônia Água Branca, no sul da Província do Paraná, em fase de colonização, de acordo com o projeto do governo. Ali o clima subtropical úmido, mesotérmico, com verões brandos e geadas severas, era parecido com o da 47 sua pátria e a terra era fértil, barata e abundante. Todos desejam fixar-se em terras próprias como agricultores. Navios da Companhia Lloyd Brasileiro faziam o trajeto entre o Rio de Janeiro e Paranaguá. Após 10 dias de descanso na Ilha das Flores, Jakób Gryczynski com a família e outros imigrantes que optaram por Paraná, embarcaram no vapor “Pará”, que navegou por três dias pela costa, ladeou várias ilhas, o farol e finalmente adentrou a baía de Paranaguá numa manhã nebulosa do dia 29 de novembro de 1890. (Fato registrado no livro de entrada de imigrantes de 1888 –1890, página 140, Arquivo Público do Paraná.) A beleza da baía, cercada por morros, mal podia ser vista por causa das nuvens. Foi preciso embarcar em canoas, que os levou para a terra firme, no porto. Descansaram por um dia na Hospedaria dos Imigrantes em Paranaguá. Seguiram, então, para Curitiba, formando grupos de famílias, que, juntas, foram transportadas no lombo de mulas, ou carroções puxados por bois de canga; as mudanças em cestos de bambu dependurados no dorso dos animais. Subiram a Serra do Mar, pelo caminho da Graciosa, que ligava o porto de Paranaguá a Curitiba, capital da Província. Assustados, os imigrantes temiam sobremaneira as montanhas, pois na região deles elas não existem. As famílias ficaram em Curitiba, por diversas semanas, alojadas em hospedarias, as quais geralmente estavam superlotadas, ocasionando problemas de doenças e mortes. O acampamento estava montado onde hoje é a rua Sete de Setembro, próximo à estação da estrada de ferro. Desde a madrugada, passavam pela calçada de pedras, ruidosamente, os carros de boi, levando palha, lenha, carvão, verduras, frutas e mercadorias diversas. Mais tarde, com o pesado rumor das carroças, misturavam-se os sininhos dos bondes, depois, rápido e ameno o ruído das carruagens, e de tempos em tempos, nervosas 48 buzinas dos ainda muito raros automóveis. Pela calçada passavam pessoas apressadas, sempre querendo chegar rápido nalgum lugar, nervosas e impacientes. Em cada porta havia uma loja de alimentos, frutas, verduras, calçados, panelas, roupas; e na rua ao lado, estavam armadas, em duas filas, as barracas dos feirantes. De Curitiba, eram os imigrantes transportados com suas famílias e bagagens em grandes carroções puxados por quatro parelhas de bois. Viajaram na direção sul, passando por Campo Largo, subiram a Serra de São Luís do Purunã e, em direção à vila de Palmeira, onde se localizava um dos escritórios da Comissão Colonizadora. Até ali tinham percorrido 80 quilômetros, por caminhos de tropeiros, estreitos e esburacados, serpenteando em campos compostos por vegetação baixa e gramíneas, principalmente a chamada “barba de bode”, avistando-se aqui e acolá capões de pinheiros nas baixadas. Das colinas e plataformas de pedra surgiam nascentes de água que adiante formavam córregos velozes, precipitando-se em cavernas abertas entre as rochas no campo. De Palmeira seguia uma rota de tropeiros; era uma picada aberta no mato, que levava a São João do Triunfo, Rio dos Patos (hoje Palmira), Água Branca e São Mateus. A comitiva continuou a viagem rumo ao sul por esse caminho, que adentrava, do começo, por um mato ralo, povoado de erva-mate, depois cada vez mais denso, fechado por imensas árvores de araucárias e imbuías. Faziam-se 30 quilômetros por dia, acampando ao entardecer, para preparar a comida e descansar a tropa. A viagem transcorria tranqüila, os bois puxando a carroça, com seu passo cadenciado e com o tinir dos cincerros de latão, pendentes dos pescoços dos animais. Atravessando rios no vau ou por pontes improvisadas de troncos, dentro da floresta de pinheiros, os carroções 49 rodaram por picadas recém-abertas e, ao anoitecer do quinto dia, chegaram à localidade onde seria fundada a Colônia Água Branca; distante 20 quilômetros da vila de São Mateus, que se situava à margem direita do rio Iguaçu. No local viam-se na encosta do morro algumas casas de caboclos; mas a caravana de carros de boi só parou na proximidade do mato, à beira de uma lagoa. Antecipadamente, ali fora construído o acampamento composto de diversos ranchos e compridas barracas de madeira lascada. Os homens descarregaram os baús, pacotes e fardos, soltaram os bois para pastarem e descansarem depois desta longa viajem. As mulheres e crianças olhavam assustadas ao redor. Algumas choravam desesperançadas, debruçadas em tocos de árvores. A selva parecia não ter princípio nem fim. Atrai e amedronta ao mesmo tempo. Os pinheiros chegam a dois metros de diâmetro na base e até trinta metros de altura, as imbuías medem até três metros de grossura. Em toda parte vêem-se as altaneiras palmeiras jarivá, que alimentam os porcos selvagens, pássaros, insetos e os nativos, que ficam à espera dos frutos amarelos, doces, quando maduros, que se desprendem dos cachos. Além dos palmitos-juçara, as matas e os campos são ricos em árvores frutíferas silvestres, como as jabuticabeiras, cerejeiras, pitangueiras, guabirobeiras, ariticum, ingazeiros, tarumãzeiros e ameixeiras amarelas. As pessoas acenderam uma grande fogueira, aproveitando as grimpas e os galhos secos dos pinheiros, para espantar os animais da floresta que podiam oferecer perigo. Ao cair da tarde, na lagoa, entre o capinzal, começou o coro de sapos. Os pernilongos, borrachudos e os mosquitinhos-pólvora começaram o seu banquete de sangue. Era a amostra do que os imigrantes iam passar. 50 COLÔNIA ÁGUA BRANCA A Colônia Água Branca tomou o nome do rio, de águas límpidas, que serpenteia pelos vales da região. As enormes áreas de terras despovoadas, as chamadas terras devolutas, pertenciam às Províncias ou ao Governo Imperial ou ainda a particulares que as receberam, em sesmarias, do Imperador. Em 1889, após a proclamação da República, todas as províncias passaram a denominar-se “Estado”. O Governo Federal, com sede no Rio de Janeiro, ajuda os Estados para a fundação de povoados e colonização, mediante créditos e outras facilidades. Na Colônia Água Branca, fundada em 1890, a colonização estava sendo efetuada ordenadamente. Das primeiras levas que aqui chegaram foram assentadas 200 famílias nos lotes de terra demarcados. Vieram depois mais imigrantes poloneses, ucranianos e alemães, na sua maioria camponeses. As famílias ficaram em grandes barracas esperando a demarcação dos lotes rurais, que mediam 250 metros por 1.000 metros (25 hectares) de terra e custavam setenta e cinco mil réis, para pagamento em 12 anos, em prestações anuais. A demarcação dos lotes e o assentamento dos imigrantes ficaram a cargo do agrimensor polonês Edmundo Sebastião Wos Saporski, que inclusive foi nomeado como administrador-chefe da Colonização do Vale do Iguaçu. O governo fornecia quinhentos réis por pessoa para alimentação. Como a família de Jakób Gryczynski era de seis pessoas, recebiam três mil réis por dia, o valor era pago diariamente, isto era suficiente para comprar o açúcar mascavo, o sal, a carne de boi, feijão, farinha de trigo, uma melancia e banha de porco. Com o dinheiro recebido podiam 51 comprar o que faltava para completar a alimentação. As mulheres cozinhavam as refeições nas barracas da família. Os homens enquanto esperavam a demarcação do seu quinhão de terra, trabalhavam na construção das estradas de acesso aos lotes. O governo da Província pagava dois mil réis por dia, pelo trabalho. O governo custeou, também, a condução até o local da fixação, financiou: a construção da casa no lote demarcado e forneceu pregos, fechaduras e dobradiças, além das ferramentas, isto é, duas foices, duas enxadas, duas vangas, duas picaretas, facão, sabre e serra. Tudo isso custava duzentos mil réis, para pagamento em 12 anos. Deu mais, enquanto os colonos não colhiam a primeira safra, a administração da imigração garantia a alimentação. Os colonos ressarciam ao governo todos os gastos com assentamentos e abastecimento, em prestações anuais, em seis anos. No começo passaram por grandes dificuldades. A localidade, nessa época, foi assolada por uma epidemia de tifo, que se alastrou nas barracas. Muitos morreram, especialmente os recém-chegados do Rio de Janeiro, que tinham permanecido por algumas semanas na Ilha das Flores. A situação era grave, pois não havia médico na sede da colônia, apenas uma pequena farmácia e um farmacêutico que desempenhava a função de médico. Criaram-se Núcleos de Colonização Oficial. Ao colono, após a demarcação da área, é entregue um título de terra provisório, até que sejam saldadas todas as prestações, depois é entregue o título de propriedade, definitivo. Caso o colono quisesse vender, bastava ir ao delegado da colônia e este anotava a transação num livro apropriado. Como auxiliar, na demarcação dos lotes de terra na colônia Água Branca, foi designado o agrimensor Antenor Tavares. Era uma pessoa singular; alto, de talhe delgado, 52 tinha a pele bronzeada pelo sol, de bigodes finos, olhos negros vivos e cintilantes, simpático e sedutor, representava bem o verdadeiro tipo do homem brasileiro. De resto, ele conquistara praticamente toda a população; extrovertido, loquaz, fazia amigos com facilidade. Levou os imigrantes pela mata adentro, onde cada um escolheu o seu pedaço de terra. Todos queriam assentar-se logo no seu quinhão. Jakób Gryczynski ficou com um lote de 25 hectares, próximo ao acampamento, no caminho que levava à floresta. Demarcada a área, fincaram em cada canto, os marcos feitos do cerne de troncos de árvore. Deixaram as carroças na estrada e foram alargar as picadas da medição, para que a condução pudesse passar. Levaram os pertences e depositaram no chão, em baixo dos pinheiros seculares. A mãe e as irmãs não se conformavam. Tinham medo da escuridão, dos animais selvagens e das cobras. Só o pai, enfrentava tudo com a maior coragem. Tinha esperanças no dia de amanhã, acreditava no seu trabalho. Parou diante da floresta, olhou em volta e comentou: - Há tanta árvore e tanta vegetação aqui, como é que vamos domar esse imenso sertão, derrubar tudo e plantar? Em seguida ajoelhou-se no chão, fez o sinal da cruz e comentou: “ Uma viagem de mil léguas começa com o primeiro passo. Que Deus nos ajude. É para esse primeiro passo que se precisa de energia. Como é que vamos limpar isto? Cortaremos primeiro uma moita, depois outra, até que tenhamos o espaço para uma casa e para a horta. Coragem meus filhos, peguem os machados e vamos ao trabalho”. Jakób cuspiu na mão e pegou o machado. Começou a cortar o mato. A vegetação era densa e o chão se cobria de uma camada alta de folhas mortas, troncos apodrecidos, cipós e bambus gigantescos. 53 O ar estava pesado e cheio de insetos, a luz do sol escoava através de uma cobertura espessa de folhas, galhos e frondes de palmeiras. Ouviam cantos de pássaros e avistavam de relance asas irisadas de um beija-flor que batiam no ar, a colher o néctar das flores. Derrubaram um canto da mata virgem e retiraram os troncos grandes do espaço onde iam fazer o rancho. As mulheres puxaram os galhos carbonizados para o lado e limparam o lugar. Todos trabalhavam com afinco. E muito antes do pôr-do-sol a cabana estava acabada e todos a olhavam com uma sensação de triunfo. Mesmo que as armações de bambu estivessem tortas, que o teto de folhas de palmeira fora colocado muito grosseiramente, a casa estava ali. Teriam onde passar a noite. Pode-se imaginar que casa era essa, construída sem pregos e sem ferramentas certas. Tudo estava trançado e amarrado com cipós. Só depois de dois meses e que conseguiram ter uma moradia decente. Foi preciso procurar um lugar adequado para construir a casa definitiva, num lugar plano e perto dum córrego. Queriam ter novamente uma casa decente. Um lugar só deles. Estavam cansados da peregrinação, das carroças, dos acampamentos, da vida nômade sem teto. Os homens lascaram a madeira, com cunhas de ferro, dos pinheiros derrubados na floresta, fizeram vigas, tábuas, tabuinhas para o telhado, levantaram e cobriram a casa que era construída em dois pavimentos; em cima ficavam os quartos e embaixo a cozinha e a sala. Os móveis rústicos foram feitos, também, por eles. Mesa, cadeiras, bancos, camas e armários. Jakób fez o fogão de pedra com trempe de ferro e forno de barro para assar o pão. Agora, precisavam com urgência fazer a plantação de subsistência. Chegou a hora de derrubar a mata virgem e preparar a terra para o plantio. Nas mãos fortes do imi54 grante desde a manhã até a noite as foices e os machados cortavam as árvores menores, arbustos e taquaras. Esta nesga de mata derrubada, depois de seca, foi queimada. Seguindo o costume dos caboclos locais, plantaram as sementes, abrindo covas com vangas (vara comprida com lâmina de ferro na ponta) no solo coberto de cinza, da queimada, entre os tocos alguns ainda fumegantes, a cada dois passos, jogavam na cova três grãos de milho ou feijão, cobrindo-a de terra com o pé. Nessas queimadas, as ervas daninhas não proliferavam tão rapidamente, a terra estava mais livre das pragas. Não era preciso nem capinar, só passar o facão para cortar os brotos do taquaruçu, tipo de bambu grimpante (Bambusa tagoara), que cresce mais rápido, e esperar a colheita. É urgente e necessário afastar tudo que atrapalha o homem no seu desejo de vencer. Não há tempo de admirar a natureza. Ninguém olha para a bela orquídea de flores purpúreas, que cai junto com a árvore. Os cálices alongados, de cores fantásticas, brilham entre os entrelaçados galhos, cipós, folhas e bambus. Os cipós gigantes às vezes com 60 centímetros de espessura sobem e enrolam-se nos troncos altos, servem de caminho para os animais trepadores. Muitas plantas e grande variedade de orquídeas e caraguatás (bromélias) aumentam a exibição do colorido das flores silvestres. Derrubar a mata ! O quanto antes! Embrenhar-se depressa no maciço do sertão secular. Cortaram as árvores menores, deixando em pé as gigantes. Precisavam de uma passagem e fizeram um túnel com três metros de largura e cinco quilômetros de comprimento no meio da floresta indevassável, que não tinha sido ainda tocada por mãos humanas. Aparecera uma abóbada de galhos, cipós e lianas, entrelaçados, três metros acima do chão. Por dentro deste túnel Jakób fez a estrada, que levava até o final do seu lote. 55 Os filhos não diziam uma só palavra de reclamação. Era preciso levantar as quatro horas da manhã, calçar as botas de cano alto, levar as foices, machados, a serra e ir enfrentar o sertão. Caminharam, com o senhor Juca na frente, caboclo acostumado na lida, que os ajudava na derrubada, fumando cigarro de palha para espantar os pernilongos, conversando, mesmo contra a vontade. Estavam percorrendo uma trilha batida, pelo meio da plantação de milho, que carregado de espigas, já amarelando, prometia uma colheita farta. Curvados para a terra, os cachos floridos de centeio alcançavam até os ombros, e em cada um deles estavam suspensos grandes gotas de orvalho.Com prazer, Jakób passava a mão pelos cachos molhados e permitia que lhe batessem no rosto. Que perfume gostoso... Lembrava-lhe a sua terra natal. De vez em quando soprava uma brisa morna, vinda do rio Iguaçu, como um sopro úmido da terra escondida nas brumas. Não agita as paredes de centeio, mas balança-as em ondas, afaga, toca-as levemente como num longo beijo. Então as espigas, sonolentas oscilam, e silencioso murmúrio corre entre os trigais. Sacudidas, as gotas soltam-se da superfície dos cachos e caem aos pés das plantas, amarelados pelo pó, ficam suspensas aí até de madrugada. A pequena plantação de milho e centeio pertencia a um imigrante polonês que tinha chegado a Água Branca numa leva anterior, no meado do ano, e já conseguira domar um pedaço do seu quinhão. De longe, do centro da mata, na beira do rio, ouvese o canto do sabiá madrugador; corre pelo orvalho seu terno chamado para a companheira. De repente, o silêncio prolongado; até que surgem novos acordes extasiantes, apaixonados, um melodioso canto de amor... E este também silencia nos campos distantes... 56 Então, surpresos, os pinheirais ouvem a fragmentada e alegre explosão do canto da fêmea, cheio de ternura e saudade... Vem mesclados ao murmúrio das águas do Iguaçu e o farfalhar das folhas das plantas ribeirinhas e das esguias palmeiras que circundavam a margem do rio. *** A comunidade de Água Branca crescia e se estruturava.Organizavam-se festejos, leilões, comemorações, tudo, com a finalidade de angariar fundos dirigidos para a construção e sustento da escola e término da igreja. Precisavam também cercar a área de terreno destinada ao cemitério. O trabalho era voluntário, portanto, dependia de tempo e muita dedicação da população. Um mês depois de construída a escola, veio uma tempestade violenta e derrubou a casa. Levou mais três meses e uma nova escola estava em pé. Desta vez era uma construção sólida, agüentaria qualquer tormenta mais forte. Anexo fora construída a habitação para o professor. Uma pequena dependência, com um quarto de dormir, onde havia uma mesa, lamparina a querosene e uma cama grande feita de madeira bruta. Uma salinha com mesa e bancos de madeira. Cozinha, com fogão de pedra e chapa de ferro, em cima a chaleira, caneca de ágata e algumas panelas de ferro. No terreiro cercado, o poço com sarilho e balde. Providenciaram também lenha para queimar, colocaram-na embaixo da cerca da escola. Construíram no pátio duas casinhas, com fosso, para servir como sanitários. O professor Stanislaw Slonina veio de São Mateus e procurou por Jakób Gryczynski. Este levou-o até a escola. Abriu a porta; o interior da sala obscuro cheirava a mofo, abriu as janelas e a luz do sol clareou o ambiente. Na sala havia duas carreiras de bancos escolares, com assento para quatro alunos. Um grande quadro negro 57 dependurado na parede. Giz branco e apagador. No canto uma talha de barro para água. Jakób estava preocupado. Transmitiu a sua inquietude ao professor, informando-o: - Há muita criança para alfabetizar, mas não sei se todos vão mandá-las à escola. Custará três mil réis por mês por aluno, mas nem todos podem pagar. Fato inédito que, mesmo os colonos sendo na maioria analfabetos cuidavam para que seus filhos soubessem ao menos ler e escrever. Quando não havia professor, os colonos mais instruídos alfabetizavam as crianças. Desde a fundação das colônias, muitos professores e padres passaram por ali, alfabetizando, educando, aconselhando, dando assistência espiritual ao povo, que muitas vezes estava desesperado com a situação, sem ter a quem recorrer. Em 1897 na escola que funcionava em Água Branca lecionou o padre Ignacy Wróbel. Também é digno de nota o trabalho dedicado, dos professores Feliks Krzyzanowski, Jan Lech, Stanislaw Slonina, Konrad Jeziorowski, Eugeniusz Radlinski, Stanislaw Borecki, Stefan Radecki, dos padres Wladyslaw Smolucha, Ludwig Przytarski, Franciszek Zdzieblo, e outros heróis anônimos. Eles viajavam a cavalo, por picadas no meio da floresta, por falta de estradas. Os rios transbordavam na época das chuvas e eram obrigados atravessá-los a cavalo. Aumentavam ainda mais as dificuldades quando surgiam tormentas inesperadas, e o temporal derrubava árvores e galhos nas picadas recém-abertas e trancava o caminho. Era preciso desimpedir a passagem ou procurar uma trilha alternativa no meio da mata. As pessoas ficavam expostas à chuva o dia todo, chegavam molhados até o último fio, e nem sempre havia roupas para trocar. *** 58 Estavam sentados, à tarde, na varanda da casa nova, o colono Jakób Gryczynski, sua mulher e alguns vizinhos, tomando chimarrão. Conversavam... - É singular – disse Jakób - Minha Jozepha disse uma noite destas que a única coisa de que ela sente falta aqui é da igreja e da missa de domingo. Apesar de que algumas pessoas não tenham qualquer espécie de religião. Eu penso que cada homem vai para o seu Deus por sua própria estrada e que todos os deuses são imagens de um só Deus “O Criador do Universo”. Tenho veneração, tenho respeito pela religião. Uma oração dá segurança como um bordão, no caminho da vida. Há sempre um medo no coração do homem e é só a Deus que se podem confiar esses receios, pois as pessoas nunca deixam de ser crianças – completou. Com a colaboração dos colonos, sem demora, foi construída uma capela no alto da colina. Logo abaixo foi cercado o terreno para o cemitério. Em 1900, o governador do Paraná, Francisco Xavier da Silva, passou a posse definitiva para a Irmandade de São José de um terreno de 214.000 metros quadrados, lugar onde já tinham sido construídos a igreja, a escola, o cemitério e a casa paroquial. Em 4 de setembro de 1891, chegou o padre Ludovico Przytarski, que foi designado pelo bispo da diocese de Curitiba, para atender aos habitantes de Água Branca. Trouxe consigo a correspondência destinada à colônia. Entre estas havia diversas cartas para Stephania Gryczynska. Trêmula, ela pegou as cartas acumuladas por meses, em Curitiba, que eram do seu marido Mathaei Kuczynski (Zbigniew Orlowski). Uma carta distinguia-se entre as outras, encimada com o brasão do conde Poniatowski. Stephania, nervosa, prevendo algo terrível, abriu-a primeiro. O envelope continha um bilhete afetuoso da condessa Maria, sua madrinha, dizendo-se constrangida em dar-lhe esta triste notícia, mas 59 que sinceramente compartilhava da sua dor. Explicava ter recebido àquela carta dos Orlowski, pais do seu noivo Zbigniew e achou mais acertado enviá-la dentro do mesmo envelope. Stephania leu a carta que estava com tarja preta e emblema do governo russo. A missiva com o timbre oficial vinha, assim redigida: Bialistok, 28 de março de1891. Caros amigos, Laurenti Orlowski e esposa Delfina. O Comando Geral do Exército Russo de Bialistok, encarregou-me de transmitir-lhes a infausta notícia de falecimento do vosso filho. O tenente Zbigniew Orlowski morreu em combate, como herói, cumprindo o dever de um soldado devotado à pátria. Comandava um destacamento de bravos soldados cossacos, no extremo sul da Sibéria, defendendo nossas fronteiras invadidas por mongóis. Ao casal amigo, envio sinceras condolências. General Aleixo Nikolayewicz Kuropatkine. Stephania, ao inteirar-se do conteúdo da carta, olhou desvairada para o pai e com um gemido de dor, desmaiou. O destino não a deixava em paz, truncava mais uma vez o seu caminho, não lhe permitia ser feliz. Agora não tinha mais motivos para voltar à Polônia. A vida não tinha mais sentido para ela. Uma febre persistente manifestou-se e tomou conta do seu corpo enfraquecido, por longos dias. Stephania delirava, e na sua inconsciência chamava pelo marido e pelo filhinho que perdera para o mar. A família preocupava-se com sua saúde. Chamaram o boticário, único na colônia que poderia medicá-la. Depois veio o pajé dos índios Kaingang efetuar os rituais de cura. 60 Fez defumações com ervas, cantou e dançou em volta dela, batendo o tambor, gesticulou com as mãos para espantar os maus espíritos. Veio o padre para exorcizar, confessar e orar por ela. Recriminou o pai por ter recorrido à pajelança dos índios. Parece que alguma coisa adiantou, pois no outro dia ela acordou do seu desvario. Levantou da cama, lívida. Parecia mais um fantasma. A camisola branca ressaltava a palidez do rosto, o encovado dos olhos e o ricto de dor na boca. Não falava com ninguém, trêmula, sofria em silêncio. Mas, com o correr dos dias esta tristeza passou, e ela retomou a vida, ajudando a mãe nos afazeres da casa. O padre Ludovico Przytarski trabalhou na colônia até 1896. Foi substituído pelo padre Jakób Wróbel, que atendia também, as colônias de São Mateus e Rio dos Patos,. sendo substituído pelo padre Francisco Komander. O padre Jakób Wróbel visitava a família com freqüência, gostava de discutir com Gryczynski os assuntos da comunidade. Permaneceu em Água Branca desde 1891 até 1914, portanto, durante vinte e três anos, trabalhou junto à população de Água Branca, assistindo também as 1.600 famílias de fiéis da Colônia Rio Claro. Um dos maiores legados deixados pelos imigrantes poloneses que vieram entre os anos de 1890 e 1892 é a igreja da Colônia Água Branca. Esta igreja foi projetada em forma de cruz, concluída em 1900. Toda a madeira utilizada na construção foi serrada a mão pelos colonos. Além do altar central, nas laterais existem quatro altares, todos trabalhados com entalhes em madeira de imbuía. Os quadros da Via-sacra e dos Santos vieram da Polônia e da Bélgica. Em 1916 chegou a Água Branca o padre Estanislau Piasecki, que ficou até 1920, sendo substituído pelo padre João Wróbel. Em março de 1922 assumiu a paróquia o padre João Zygmunt, que ali ficaria por 30 anos. Pessoa 61 progressista, tratou de restaurar e pintar a igreja. Contratou o trabalho artístico do pintor Ewaldo Dukat, de Irati. A Igreja Polonesa de Água Branca é um dos importantes pontos turísticos da época da colonização, é admirada pela sua arquitetura em madeira e beleza da pintura interna dos seus cinco altares. Com a proibição do funcionamento das escolas em língua estrangeira, também foram proibidas as missas e os sermões em polonês, fato que causou danos irreparáveis à coletividade polonesa .O povo ficou descontente e deixou de freqüentar a igreja. Água Branca, antigamente, uma rica e renomada paróquia, hoje é uma colônia solitária e abandonada. No alto da colina situam-se a antiga igreja e o convento religioso, cercados de ervais e pinheiros novos. Adiante, espalhadas algumas casas, uma ferraria, uma bodega, um depósito de erva-mate fechado. A colônia decaiu com a queda dos preços da erva-mate. Depois de 110 anos, nem a escola paroquial, nem a igreja conseguiram manter-se. A uns cem metros da igreja, no declive da elevação fica, a beira da estrada que leva de São Mateus a São João do Triunfo, o velho Cemitério dos Imigrantes. Cercado de muro em ruínas, coberto de mato, em túmulos antigos e bastante danificados repousam os corpos das vítimas de epidemias de disenteria bacilar e tifo, doenças que se alastraram pelos acampamentos, ceifando a vida de crianças e velhos. Estão enterrados ali muitos pioneiros homens e mulheres que vieram em busca de dias melhores para suas famílias. A maioria dos túmulos está sem placas e não se sabe quem ali repousa O cemitério está dividido por uma rua; de um lado estão os túmulos dos imigrantes, de tijolos comuns, já quase destruídos pelo tempo, e do outro lado estão enterrados os nativos, em suas sepulturas singelas, pintadas de branco encimadas de cruzes de madeira e coroas de papel colorido. 62 ERVA-MATE Através dos planaltos, no sul e sudoeste paranaense, os ervais se estendem até a barranca do rio Paraná, penetrando na região sul de Mato Grosso do Sul, norte e oeste de Santa Catarina e ainda se distribui pela zona serrana do Rio Grande do Sul, região de clima temperado, de altitude acima de 400 metros. A árvore que produz a erva-mate é silvestre (Ilex paraguariensis) pertence à família das Aqüifoliáceas. A erveira adulta possui a aparência de uma laranjeira. Seu tronco, de casca lisa e esbranquiçada, tem cerca de 30 cm de espessura, possuindo folhas perenes, de cor verde escura. Sua estatura varia de 6 a 8 metros de altura, o tronco é reto com muitos ramos alternados. Cresce em associação com o pinheiro nos ambientes ecológicos determinados pelos rios: Paraná, Paraguai, Uruguai e seus afluentes. O uso da erva-mate é pré-colombiana. Por suas inúmeras propriedades, foi o alimento básico dos índios Guarani que mascavam a folha da erva. Quando os conquistadores aqui chegaram, já encontraram este costume difundido entre nossos silvícolas. Os imigrantes vindos muitos anos depois aprenderam a usá-lo também. Provavelmente a cafeína que se encontra na erva-mate habitua o organismo a consumi-la. O termo “MATE” é proveniente da língua quíchua (povo aborígine do Peru), “mati” que era a designação da cuia (feita de porongo), recipiente onde é feita a infusão das folhas moídas da erva-mate, com água quente (chimarrão) ou fria (tererê). Esta bebida é conhecida e usada pelos habitantes do Sul do Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. A produção de erva-mate era transportada, inicialmente, para o litoral, acondicionada em grandes sacos de 63 couro (surrões), no lombo de mulas, que seguiam em tropas, descendo pelos estreitos caminhos da Serra do Mar. Somente com a abertura, mesmo que precária, da Estrada da Graciosa, em 1808, o caminho passou a oferecer melhores condições para o transporte de mercadorias, ainda que no lombo de muares em volumes alçados às cangalhas, e eventualmente levados em carros de bois. A exploração da erva-mate teve maior incentivo em 1820. O Paraguai era então o maior produtor da América do Sul. Na segunda metade de século XIX, a grande procura pela erva-mate elevou o seu preço. A alta cotação do produto ficou estável durante vários anos. Foi responsável pelo produtivo ciclo econômico da história paranaense, que teve seu apogeu no século .XIX. Sobressaindo-se, a atividade ervateira chegou a representar 85 % da economia da nova Província do Paraná. Instalaram-se indústrias de beneficiamento da ervamate. Prosperaram cidades como Guaíra, colonizada pela Companhia Mate Laranjeira S.A, que obteve em 1882, por decreto Imperial, a concessão para exploração da erva-mate no sul do Mato Grosso, no sul e oeste paranaense. Foi na esteira desse ciclo que os transportes tiveram grande impulso e desenvolveu-se a navegação nos rios Paraná e Iguaçu. Construiu-se a Estrada da Graciosa. Entretanto, foi somente em 1873 que esta Estrada foi concluída definitivamente, e o transporte da erva-mate passou a ser feito em carroções eslavos, introduzidos no Paraná pelo imigrante polonês, muito mais eficientes, puxados por quatro parelhas de cavalos. Também era utilizado no transporte da erva-mate do interior até Curitiba. O feito de maior importância para a economia foi a construção da Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá, que é até hoje considerada uma obra notável de engenharia, construída em cinco anos, numa época (1880-1886) de precários 64 recursos técnicos, numa região extremamente acidentada, entre o litoral marítimo e o primeiro planalto, separados pelos contrafortes abruptos e íngremes da Serra do Mar. Entre os anos de 1825 e 1925, durante cem anos, a indústria e o comércio da erva-mate tiveram um ciclo de ouro, foram o sustentáculo da economia paranaense. Quando a Argentina ganhou a questão de limites, em 1910, e o território de Missões passou a pertencer-lhe, tratou de povoar aquela área, dividindo as terras, estimulando e financiando o plantio da erva-mate. Em 1932 a Argentina tornou-se auto-suficiente e o Brasil perdeu seu principal mercado consumidor, além de ganhar um forte concorrente nos mercados internacionais. Começou a crise no comércio do produto e os preços caíram sensivelmente. *** O curto dia de inverno já estava declinando, mas no erval do colono Jakób Gryczynski, ainda o trabalho continuava. Compridos facões brilhavam sem descanso, os galhos cobertos de folhas caiam no chão, podados, dos pés da erva-mate. As árvores sobressaiam contra o céu da tarde como esqueletos, com os troncos mutilados. Os galhos verdes apanhados por fortes braços dos colonos eram levados até a grande fogueira onde os homens pegavam ramo por ramo e passavam sobre a labareda forte, sapecando leve as folhas verde escuras. Em seguida, arrancavam as folhas dos ramos sapecados e os levavam, em grandes braçadas para o secadouro. As folhas eram espalhadas em cima do jirau de madeira, para secar com o ar quente da fogueira que fluía debaixo do estrado. Depois de seca era moída. Alguns produtores de erva-mate adotavam na sua fabricação o ”Barbaquá”, um sistema rudimentar, constituído de forno e carijo, onde eram depositados os feixes de 65 erva para a secagem, e a cancha perfurada, onde se processava a moagem das folhas de erva, em moinhos acionados por tração animal. O produto saia como “erva cancheada”. A erva era acondicionada em sacos de couro (surrões) e transportados no lombo de muares, para ser vendida, em São Mateus. Após ser beneficiada em moinhos adequados, o produto era exportado para os mercados platinos. A produção da erva-mate deu a muitos habitantes da região de São Mateus o apelido de nobreza verde. A família de Jakób Gryczynski era uma delas. Os imigrantes levaram a erva ao seu maior período áureo. As barcaças do rio Iguaçu rivalizavam em transportar a erva e a madeira para mercados consumidores. No início, a economia das colônias de imigrantes baseava-se na agricultura, na extração da madeira abundante na região e da erva-mate, nativa nos campos e florestas do Paraná. Sua importância econômica como principal produto paranaense ultrapassou o período colonial e, até a Primeira Guerra Mundial, foi o esteio da sua riqueza. Com o progresso econômico e social, o Paraná foi introduzido nos tempos modernos. Também a suinocultura desenvolveu-se nas colônias espalhadas pelo interior do Estado e sobretudo nas frentes de colonização, nas entradas dos sertões. Para os caboclos, a criação de porcos era uma atividade rotineira. Criavam-nos soltos nos campos. Quando iam fazer uma “safra” de porcos, derrubavam um grande trecho de mato, isolado, depois de seco ateavam fogo e, no meio de tocos e coivaras, plantavam o milho com vanga. Na época apropriada, quando o milho já estava maduro, soltavam os porcos magros no milharal. Lá eles cresciam e engordavam, depois eram vendidos aos safristas. Estes formavam varas de até 1.000 cabeças e levavam-nos tropeando, isto é, a pé, até os mercados compradores. 66 COLÔNIA SÃO MATEUS A povoação que deu origem à São Mateus surgiu como pouso de tropeiros. Por ser estrategicamente localizado, o governador da Capitania de São Paulo, Dom Luís Antônio de Souza Botelho Mourão (governou de 1765 a 1776), ordenou que se estabelecesse naquele lugar uma base que servisse como setor de apoio às bandeiras militares enviadas, com o objetivo da conquista de Guarapuava. O tenente Bruno da Costa Figueiras, chefe da Quarta Expedição, foi o primeiro homem branco a pisar as terras de São Mateus em 1769. A maior preocupação da Coroa era a perda do território, que hoje compreende o Oeste e Sudoeste paranaense, para os argentinos que avançavam em nossos ervais, tal como o cupim na madeira. O primeiro contingente humano que ali se estabeleceu foi constituído por caboclos (mestiços de índios e portugueses), em 1775. Ao longo dos anos, o lugarejo foi se consolidando. Em 1885 chegou uma pequena parcela de imigrantes alemães e espanhóis. Inicialmente o povoado recebeu o nome de Porto Santa Maria, mais tarde foi denominado de Maria Augusta, em homenagem à esposa do engenheiro-chefe, José Carvalho Sobrinho, um dos administradores da nova colônia. Finalmente recebeu o nome de São Mateus. A vila localiza-se numa pequena elevação, a 30 metros acima das águas do rio Iguaçu que mede 150 metros de largura, neste local. No início a sede da futura cidade foi estabelecida no Velho Porto. Entretanto, o rio em certas épocas do ano alagava todo o terreno das baixadas e criava problemas aos moradores. Conseqüentemente, o local para a futura vila foi transferido e a preferência recaiu sobre a parte mais alta do sítio. 67 A região escolhida situa-se entre três rios, assemelha-se a uma península, pois é banhada ao sul pelo rio Iguaçu, a oeste pelo rio Canoas e a leste pelo Taquaral, que deságuam no rio Iguaçu. Atualmente, com a instalação da usina, o rio Taquaral fornece água tratada à população. Os sertões em ambas as margens do Iguaçu eram esparsamente habitadas por caboclos e índios. Nas bordas das extensas florestas e campos, havia primitivas estradas para carretões de duas rodas altas puxados por bois, introduzidas pelos portugueses. Penetravam no interior da selva caminhos para passagem de burros de carga, que mais à frente transformavam-se em picadas abertas por caçadores, caboclos e índios. Um dos fatores que mais contribuiu para facilitar o trânsito e a comunicação entre a vila de São Mateus e a capital, foi a implantação da navegação no Rio Iguaçu, no trecho entre as cataratas de Caiacanga (Porto Amazonas) e Porto União, que teve início no dia 19 de abril de 1879. O coronel Amazonas de Araújo Marcondes recebeu a autorização de D. Pedro II, para explorar a navegação fluvial, mediante o decreto Imperial n° 7248. Os primeiros vapores a navegar no rio Iguaçu foram o “Cruzeiro” lançado às águas no dia 17 de dezembro de 1882, o “Iguaçu” e dezenas de outras barcaças, pertencentes à firmas particulares, trafegaram pelo rio. Com a chegada da navegação a vapor, São Mateus passou a ser um importante porto e centro comercial da região. Operando no tráfego de passageiros e cargas, proporcionou um grande impulso no seu desenvolvimento. Muita madeira e erva-mate foram transportadas por esta via fluvial. Durante 75 anos os vapores entravam pelo leito tortuoso do rio no interior da mata virgem. Transportavam imigrantes, caboclos, caçadores, lavradores, comerciantes, mascates, donos de serrarias, bandidos e arruaceiros. Dia e 68 noite as sirenes anunciavam a chegada ou partida destas fantásticas máquinas, através da bacia do Iguaçu. Em 1890, foram fundadas duas Comissões de Colonização, uma no vale do rio Iguaçu, abrangendo o município de Palmeira, outra no vale do Rio Negro. Na jurisdição de Palmeira, são criadas colônias polonesas de Santa Bárbara, Canta Galo, Rio dos Patos, São Mateus, Água Branca, Rio Claro, Rio Baio. Mais tarde houve a colonização da infausta Cruz Machado, de Paulo Frontim, Marechal Mallet, Antônio Olinto e São João do Triunfo. Foram ali assentados 8.200 imigrantes poloneses e ucranianos. A colonização desta região teve o seu ponto alto entre os anos de 1890 a 1892. Os imigrantes vinham atraídos pelos incentivos do governo brasileiro. Multidões de pessoas chegaram ao sul do Paraná, através do rio Iguaçu. Embarcavam no Porto Amazonas e após 13 horas de viajem, rio abaixo, atingiam o Porto de São Mateus, o ponto de largada para a conquista dos grandes sertões paranaenses. São Mateus era uma colônia de administração oficial. O governo não tinha funcionários preparados para receber e administrar essa avalanche humana. Por isso o descontrole. A decepção e o desencanto dos imigrantes foram enormes ao chegarem a Colônia São Mateus, pois nada correspondia a propaganda feita na Europa pelos agentes do governo brasileiro. Muitos se sentiram enganados e quiseram voltar para sua terra. Muitos debandaram. Em muitos núcleos, era assustador o estado de saúde das pessoas, por causa da epidemia de tifo e disenteria bacilar, que grassava nas barracas e acampamentos, doenças essas provocadas pelo acúmulo de pessoas e falta de higiene, e a desordem administrativa. Não havia médicos nem remédios. Morriam adultos e crianças diariamente. Isso tudo levava o imigrante ao desespero. 69 O clima e a comida a que não estavam acostumados, o calor e o mormaço na clareira encravada no denso matagal da floresta virgem, colaboraram para o mal-estar daquela gente e o desânimo era geral. Só os fortes de corpo e de espírito ficaram..Passaram por muitas dificuldades, tendo que esperar até seis meses em ranchos cobertos de capim e barracas coletivas, até demarcação dos seus lotes. As terras das margens do Iguaçu e afluentes foram povoadas quase exclusivamente por imigrantes poloneses. Para medição destas glebas foi designada a Comissão de Terras. Eram grandes extensões de terras devolutas, férteis, cobertas de florestas de araucárias, imbuías, cedros e ervamate, pertencentes ao governo do Império, aposseadas por particulares, que foram dali retirados. Nessa Comissão trabalhava o agrimensor polonês Edmund Sebastian Wos Saporski, nomeado pelo governo Administrador-chefe das colônias de São Mateus e Água Branca. Trouxe diversos benefícios aos colonos, como intérprete e intermediário nas petições entre eles e as autoridades brasileiras. A ele foi confiada a realização dos levantamentos das terras, da demarcação das estradas regionais, vicinais e lotes em São Mateus e Água Branca, bem como a definição do lugar para a sede das colônias. Pode-se incluir Saporski entre os fundadores de São Mateus. Ele elaborou o projeto e a localização do porto no rio Iguaçu. Na nova sede foram demarcados 78 lotes urbanos, as praças, as ruas, os lugares para as futuras casas comerciais, para a igreja e o cemitério. Fundou-se ali o povoado. No local havia alguns casebres de caboclos, outros em construção. Adiante viam-se algumas choupanas de pau-apique cobertas com folhas de palmeira. Havia apenas duas casas comerciais. Uma pertencia a Plínio Miro, o qual contratou com o governo o forneci70 mento de víveres, utensílios domésticos e ferramentas, para os imigrantes. Outra, aos primeiros intelectuais que afluíram a São Mateus, Antônio Bodziak e Onofre Flizikowski, os quais fundaram, em sociedade, uma casa comercial. Ao redor de São Mateus foram localizadas as quatro colônias. A Iguaçu com 70 lotes, a Taquaral com 77 lotes, a Cachoeira com 73 lotes, e a quarta com 25 lotes recebeu o nome de Canoas. Todas essas colônias foram instaladas junto aos rios do mesmo nome, e assim nomeadas pelo padre Ladislau Smolucha. Os lotes tinham 250 metros de frente por 1000 metros de fundo, o que perfazia 25 hectares de terra. Rasgaram-se caminhos no seio da mata onde antes só havia picadas. As estradas tinham o seu ponto de partida da vila de São Mateus, continuando por serras, colinas e baixadas, num serpentear infindo. Dos dois lados dos caminhos, construíram-se as casas dos colonos. A floresta nos terrenos demarcados foi derrubada, seca e queimada, apenas os tocos das árvores fumegavam e, durante as noites, com o soprar do vento lançavam faiscas como fogos fátuos. Muitas pessoas trabalhavam sozinhas nesta selva centenária, sem outros instrumentos além de um machado, um facão de mato e uma foice. Quando conseguiam desbravar uma área de 50 metros quadrados, empilhavam o mato rasteiro e os pequenos arbustos, e os queimavam juntando gravetos e palhas secas. Construíam um abrigo provisório de bambu coberto com folhas de palmeira, para passar a primeira noite. Em volta do rancho, depois de aberta a clareira, preparavam a terra para plantio. Por entre os tocos das árvores, era plantada a batatinha, o repolho, o milho, o feijão e o centeio. Não se arava nem virava a terra, isto era impossível por causa dos entulhos gigantes no chão. 71 Em abril colhe-se o milho. A roça, quebrada, fica reunida nos montes do milho já seco, esparsos por toda a lavoura. Enchem-se os cestos de taquara, que estão presos nas costas das mulas. Os animais carregados vão em fila pela trilha estreita despejar a carga à porta dos paióis. O feijão e o centeio são malhados com vara ou com cambau. Mais tarde surgiu a malhadeira movida manualmente, que não separava a semente da palha. Depois veio o ventilador que retirava a palha, também movido a braço do colono. Em maio e junho de 1891, choveu continuamente, sem cessar por muito dias. O rio Iguaçu transbordou de tal forma que o vale transformou-se num lago. A parte baixa da cidade foi totalmente inundada. As colônias ficaram isoladas da sede, e os moradores não podiam vir abastecer-se de mantimentos. Quando finalmente, em agosto, as águas baixaram, a região foi afetada por uma epidemia de tifo. Grande foi, então, a mortandade entre os imigrantes. A colônia não possuía médico. Existia apenas uma farmácia cujo proprietário desempenhava a função de enfermeiro. O imigrante era desconfiado em relação a qualquer auxílio. Essa desconfiança é uma herança psicológica trazida do seu país de origem, enraizada por cinco gerações consecutivas, como estigma da ocupação estrangeira. O colono tinha receio de ser enganado e explorado. Possuía uma profunda desconfiança por indivíduos urbanos, letrados. Era a falta de experiência de fazer parte de associações, pois na Polônia era proibido esse tipo de atividade. Os imigrantes que vieram ao Paraná com dinheiro e às suas custas, podiam dedicar-se ao comércio, instalar bodegas, açougues, hotéis, enfim, ocupar-se com qualquer atividade específica, podiam também escolher a quantidade de terra e o lugar onde queriam ficar; não seriam empurra72 dos para perto dos ferozes índios botocudos, que habitavam o interior da selva. Num sábado de outubro de 1890, correu a notícia que domingo haveria missa em São Mateus; seria oficiada pelo padre Peters que chegara à vila naquele dia. De todas as colônias afluiu gente; as pessoas vinham de carroças, a cavalo e a pé. Homens, mulheres, crianças e velhos acotovelavam-se próximo à tenda armada na praça da vila. A missa foi celebrada em uma barraca de lona, levantada no lugar onde hoje se ergue a igreja matriz. Quando o padre Peters começou a celebração da missa, pelos rostos cansados, queimados pelo sol, escorriam lágrimas de emoção, pois havia muito tempo que não assistiam ao ofício religioso. Do púlpito feito de caixotes de madeira, o padre fez um longo sermão, encorajando-os a resistir no trabalho duro, porque só assim poderiam soerguer-se da situação penosa em que se encontravam. Ele falou ao povo aglomerado em frente da barraca: “Nós todos abandonamos a pátria, porque estava superpovoada. Pessoas arrancavam o trabalho do outro porque havia mais trabalhadores do que empregadores. Aqui a situação está difícil, mas precisamos contentar-nos com isso que nos deram. A crise passa se trabalharmos firmes; desenvolveremos essa terra e conseguiremos o nosso pedaço de pão. Não esperemos que os outros nos o dêem. Sei que queriam que fosse diferente, mas tudo leva tempo, persistência e muito trabalho”. Terminada a missa, houve muitos casamentos e batizados, pois nenhum padre havia passado pelo povoado, recentemente. Em agosto de 1891, chegou à colônia o padre Ladislau Smolucha, que ocupou o cargo de pároco até 1916, durante mais de vinte e cinco anos de trabalho profícuo. Em 1896 foi fundada a Capelania de São Mateus, liga- 73 da à Diocese de Curitiba, por D. José de Camargo Barros, bispo de Curitiba. Depois das primeiras frustrações e desencantos, os colonos começaram a organizar-se. De início agruparam-se em torno da igreja e do padre. A construção da igreja polonesa em São Mateus foi uma das primeiras realizações da colônia. Seguiu-se a fundação da paróquia, em 1891, tendo o padre Franciszek Zdzieblo como pároco. Próximo à capela recém-construída foi edificada uma torre de madeira de dois pilares, onde se instalou o sino doado pelo comerciante Flizikowski. No Natal daquele ano, o repicar do sino seria ouvido pela primeira vez pelos sertões do vale Iguaçu. Em 1912, Ewaldo Dukat, pintor talentoso, vindo da Colônia Irati, foi encarregado de pintar a igreja por dentro e por fora. Com grande maestria executou na parede de madeira do altar o painel que representa a imagem de “Coração de Jesus”. A pintura existe até hoje na igreja, e é uma obra-prima, que merece ser admirada. Constituíram diversos centros culturais, escolas e cooperativas. Esses pequenos núcleos, mesmo dirigidos inabilmente, davam ao emigrante o senso de unidade do grupo, tornando-se centros de recreação; mantinham as escolas e os professores; desempenhavam papéis importantes na consolidação dos agrupamentos humanos, os quais já conseguiram sobrepujar as primeiras dificuldades. Em 1891, foi fundada em São Mateus a Sociedade Polonesa “Kazimierz Pulawski”, com 80 sócios e a escola média, onde lecionou o professor Feliks Krzyzanowski, um profissional inteligente e dedicado. Após a fracassada revolta de 1905, na zona russa da Polônia, vieram elementos intelectuais em maior número. Muitos deles tornaram-se professores, abraçando a causa da alfabetização dos filhos dos colonos. Na ausência de auxílio 74 governamental, foi o próprio imigrante que tomou a iniciativa da fundação de escolas. Os professores ministravam, sobretudo, ensino primário, procurando suprir a grande carência de escolas públicas brasileiras. Ensinavam meio período em língua polonesa e meio período em português. Em janeiro de 1938, essas escolas, surgidas da necessidade elementar de o colono alfabetizar a sua descendência, foram fechadas, por decreto do Presidente Getúlio Vargas. A ordem veio do Interventor Manoel Ribas, no Paraná, por ocasião da campanha de nacionalização, promovida durante o Estado Novo. Em 1900, por ocasião de uma festa religiosa, foi erigida uma cruz feita de lascas de cedro recém-cortado. A madeira fincada no chão brotou e virou uma árvore. Ainda encontra-se na altura do n.° 1.193, da rua Antônio Bisinelli, na colônia Iguaçu, no terreno que pertenceu a Valentim Janowski. Embaixo desta árvore faziam-se, à época, Viassacras, rezava-se o terço e realizavam-se reuniões da comunidade. Alexandre Zbsuawieski, de regresso da Polônia, trouxe a semente de carvalho ( Fagacea Quercus robur), nativa do continente europeu; plantou-a no dia 3 de maio, data nacional polonesa, no ano de 1915, onde é hoje a Praça Alvir Sérgio Licheski. Significa um marco da grande presença da comunidade polonesa em São Mateus. Esta árvore foi tombada pelo Patrimônio Histórico. Os imigrantes poloneses dotados de um profundo sentimento religioso, católicos por excelência, construíram igrejas, escolas e desbravaram sertões. Não demoraram a integrar-se na vida nacional, como agricultores, comerciantes e profissionais liberais, com seu trabalho colaborando no progresso do país. Os habitantes de São Mateus do Sul, na maioria descendentes de imigrantes poloneses distinguem-se pela 75 hospitalidade e atenção que dispensam à visitantes que chegam à sua cidade. Dispõe-se a informar com presteza aos interessados na história da colonização da região. Devo agradecimentos à José Carlos Janowski, da Braspol, à Cláudio e Clementino Janowski, que gentilmente me acompanharam nas buscas pelas raízes da minha família. Também agradeço à Evaldo José Drabeski, do Departamento de Turismo Municipal, pelo acesso ao material informativo sobre a cidade. Ao padre da igreja de Nossa Senhora de Czestochowa, que colocou a nossa disposição para consulta os antigos livros do Arquivo paroquial. Entre os costumes que são mantidos pela comunidade polonesa, estão a cerimônia do “oplatek” (distribuição da hóstia ) e da “swienconka” (alimento bento), na ceia do Natal e da Páscoa, além da tradicional comida como “pierogi”, “golombki”, “salceson”, “bigos”, ”kapusniak”, que é um cozido de repolho em conserva com carnes defumadas, “ogórki kwaszone” (pepino em conserva) e “barszcz”, sopa de beterraba com costela de porco e nata de leite. A influência da arquitetura polonesa trazida para São Mateus, podemos observar nas construções das casas, tanto residenciais como comerciais ou prédios públicos edificados na cidade, que apresentam contornos de rara beleza. A madeira artisticamente entalhada aparece nas janelas e portas de entrada, nos beirais dos telhados contornados com lambrequins rendados. A diversidade do colorido da pintura das paredes dá um ar festivo ao ambiente. As varandas completam a beleza com trepadeiras de flores por volta de suas colunas. Belos jardins em frente das casas e praças embelezam a cidade. Ainda na margem do rio Iguaçu em São Mateus, no Velho Porto em que outrora desembarcaram os primeiros imigrantes, encontra-se um vapor fantasma, o “ Pery”, a última testemunha da grande navegação no rio Iguaçu des76 de 1879 até 1953, quando o ciclo da navegação extinguiuse. Os barcos encalharam nos pátios vazios. Com a abertura da rodovia asfaltada e a construção da ponte sobre o rio Iguaçu, todo o transporte é realizado por caminhões, não mais em barcaças pelo rio Iguaçu, iniciando-se um período de estagnação econômica que atingiu todo o sul do Paraná. A retomada do crescimento de São Mateus ocorreu no final da década de 1960, quando a Petrobras iniciou a implantação de uma usina para o aproveitamento do xisto betuminoso no município. Com a exploração industrial deste minério, São Mateus recebeu um grande estímulo em seu crescimento. Atualmente a atividade econômica do município baseia-se numa agricultura moderna, na pecuária, na produção e industrialização da erva-mate e madeira, na cerâmica produzida pela “Incepa” e na industrialização do xisto, onde são gerados insumos energéticos, como gás de cozinha, óleo, nafta, enxofre e subprodutos de larga aplicação nos ramos químicos, da construção civil e de fertilizantes. O município de São João do Triunfo foi criado em 8 de janeiro de 1890, desmembrado do município de Palmeira. Até o ano de 1908, São Mateus dependia da sede administrativa de São João do Triunfo; foi desmembrado deste, no dia 21 de setembro de 1908, e no dia 1° de maio de 1912, foi criada a Comarca de São Mateus do Sul. O município de São Mateus do Sul localiza-se no sul do Estado do Paraná, dista da capital Curitiba 150 quilômetros, pela BR476. O clima dessa região é subtropical úmido, mas nas planícies rumo oeste passa para o tropical quente. A terra é vermelha, originária da decomposição de granito. 77 A ONÇA PINTADA Ainda era muito cedo, o dia estava apenas clareando. Jakób Gryczynski e seus filhos Alexandre e Ladislau, juntos com um punhado de homens, contando umas oito pessoas ao todo, costeavam a margem do rio Iguaçu. Estavam todos armados, trazendo na cinta revólveres, a espingarda passada a tiracolo pelo ombro esquerdo. Quando os cavaleiros, que seguiam a trote largo deixaram a margem do rio, que não oferecia mais caminho, tomaram uma estreita picada aberta na mata. O sol já resplandecia no céu, mas ainda o crepúsculo matutino reinava nas profundas e sombrias abobadas da vegetação; a luz espreitando entre a espessa folhagem se diluía completamente. Nem uma réstia de sol penetrava nesse templo da natureza, ao qual serviam de colunas os troncos seculares das araucárias. O silêncio, com os seus rumores vagos e os ecos amortecidos, dormia no seio dessa solidão e era apenas interrompido pelos passos das montarias, que faziam estalar as folhas secas. A pequena cavalgada continuou a marcha através da picada e aproximou-se de uma clareira. Nesse momento ouviu-se um rugido espantoso que fez estremecer a floresta. A onça pintada sentiu, trazidos pelo vento, estranhas vozes e um odor desconhecido. O instinto lhe dizia que estava sendo ameaçado o seu reinado neste sertão. O jaguar morava perto dali, numa gruta da encosta do morro, com a fêmea e os três filhotes recémnascidos. Sabiam disso, os queixadas, as antas e até as medrosas cotias e pacas. E mesmo os mais velhos papagaios se lembravam que este lugar servia de esconderijo aos ferozes donos da selva, desde os mais remotos tempos. Alguns morriam de velhos, outros na luta com as presas, ainda ou78 tros sucumbiam às doenças, mas sempre havia sucessores sanguinários nesta caverna. O grito de guerra do jaguar sobressaltou toda floresta. Pequenos sagüis, enormes bugios ruivos, e outros da sua espécie, quando sentiam próximo o odor forte do perigoso felino, tremiam como que atacados por malária e gritando aterrorizados subiam aos mais altos galhos das árvores. Uma vara de queixadas que fuçava por perto sumiu grunhindo apavorada. Até os papagaios interromperam a sua barulhenta assembléia e observavam em silêncio. O eco enviou o urro da onça para longe, até os confins do sertão. Os cavalos relincharam e encolheram as orelhas tremendo de medo. Os cavaleiros olharam um para o outro, engatilharam as espingardas e seguiram lentamente, lançando olhares cautelosos por entre os galhos. Ladislau ergueu a cabeça e fitou os olhos numa moita de ramos que se elevava a vinte passos de distância, e se agitava imperceptivelmente. Por entre a folhagem, distinguia-se um dorso amarelo-avermelhado, de manchas pretas, arredondadas, simétricas, espalhadas por todo o corpo. Na sombra viam-se brilhar dois olhos amarelos, fulgurando que nem raios de sol. Era a onça pintada, enorme, com 1.50m de comprimento, de garras apoiadas sobre um grosso galho de árvore e pés suspensos no ramo superior; encolhia o corpo, preparando o salto espetacular. Batia os flancos com a cauda longa e movia a cabeça esplêndida, como que procurando uma fresta entre a folhagem para arremessar o pulo. Contraia as fortes mandíbulas deixando à mostra as presas afiadas. As ventas dilatadas aspiravam fortemente. Era um magnífico exemplar da sua raça. Ao avistar os cavaleiros, o felino lançando um olhar ao redor, eriçou o pêlo e ficou imóvel no mesmo lugar, hesitando se devia arriscar o ataque. Não ia ceder, abandonando a sua presa, 79 pois já tinha como certo o seu banquete daquele dia. Em baixo do galho, onde estava empoleirado o gato selvagem, pastava tranqüilamente um veado macho, gordo, de pele luzidia e galhada enorme, sem perceber que era alvo de dois tipos de caçadores: o homem e o felino. Jakób e seus companheiros tinham saído a caça de antas e queixadas, não se arriscariam numa luta com a perigosa onça-pintada, portanto, era prudente seguirem o seu caminho com muita cautela. A um sinal seu, os cavaleiros prosseguiram a marcha, e embrenharam-se de novo na mata. Não poderiam disputar a caça com o rei da floresta; ele tinha o direito em primeiro lugar. A fera apenas viu os homens se distanciarem e sumirem na mata, soltou um rugido de alegria. Ouviu-se um rumor de galhos que se quebravam, e o vulto pintado da onça sibilou no ar; de um salto, caiu em cima do veado apoiado nas largas patas traseiras, com o corpo estendido, os dentes prontos para degolar a sua vítima cortando-lhe a jugular. O animal ainda debatia-se em contorções, quando a onça arrastou-o para o matagal e para a gruta, onde estavam escondidos os seus filhotes. Era meio-dia, o sol forte queimava a pele, o ar estava parado e a floresta emanava fragrâncias inebriantes. Os caçadores chegaram a uma clareira na mata e resolveram descansar na sombra. Deixaram os cavalos pastando amarrados pelas rédeas aos arbustos. Os cães soltos na mata latiam ao longe, acuando uma caça, possivelmente uma anta, do outro lado da lagoa. Os homens esperavam atentos. De repente contra o sol, no brilho da luz, aparece no limiar da mata o enorme corpo cinza do animal. A matilha de cães corre ao lado e atrás, ganindo, enchendo o mato de latidos. A anta pula na lagoa e nadando em voltas quer despistar os cães que correm ao lado. É uma luta de vida ou morte. 80 O caçador com a espingarda no ombro mirando o tiro certeiro, dispara, e acerta a anta, que submerge e logo volta à tona. Ressoa o segundo tiro, que o eco repete dezenas de vezes pelos vales e montanhas. A anta foi abatida. Esse exemplar seria suficiente para alimentar a família durante um mês. A anta é um animal pesado, forte, de pernas curtas, o nariz prolongado em tromba, o corpo coberto de pêlos curtos. É um mamífero, paquiderme, que vive na América do Sul. São noturnos e vivem em pequenos bandos; nutremse de raízes e de plantas tenras; a sua carne, comestível, é semelhante a do boi. Os caçadores, naquele dia, levaram apenas dois bons troféus e uma pequena cotia. Quando voltavam para casa, conversando tranqüilamente, trazendo os dois animais abatidos atravessados na garupa do cavalo, cruzou diante deles na clareira um enorme porco-queixada de pêlo negropardacento eriçado, batendo as mandíbulas de presas afiadas, seguido de grande número de animais adultos e leitões. Jakób estacou o cavalo, levantou a espingarda apontando para o macho e atirou. O queixada caiu, debatendose e roncando forte. Como se fosse ordenado, do meio do matagal que cercava a clareira despejou-se uma manada de porcos selvagens, contando mais ou menos duzentos cabeças. Esse espécime quando é acuado, bate forte os queixos, é valentíssimo e muito perigoso, é capaz de estraçalhar uma pessoa. - Subam na arvore, rápido! – gritou o caçador Juca. O pai pulou ligeiro em cima de um toco, com esforço agarrou o galho forte, retorcido, da árvore próxima. Ladislau e Alexandre, subiram atrás dele. Os outros homens também treparam em galhos altos, fugindo do perigo. Enquanto isso os queixadas chegando próximo, olhavam condoídos o companheiro ferido que grunhia dolorosamente. 81 Ladislau olhava de cima nessa cena comovente e seu coração confrangeu-se. Depois a manada cercou a árvore onde estavam empoleirados os caçadores e olhavam para cima com ódio nos olhinhos amarelos. Cada instante um membro do grupo ia perto do porco ferido, olhava-o curioso e voltava ao cerco. - Será que vão ficar por muito tempo aqui?- perguntou Ladislau ao caçador Juca. - Até se cansarem – respondeu este, filosofando. Mas os queixadas não desistiam. Passavam minutos e horas e a manada ficava firme no posto. - Não tenho a intenção de ficar aqui no galho como macaco o resto do dia – disse já irritado Jakób. Tirou o revólver da cintura e atirou no primeiro porco que estava ao seu alcance. Este caiu, levantou-se gritando, sangrando, correu para o mato. A manada após o tiro, atacou a árvore, mas ao ouvir os gritos do companheiro ferido, correu atrás dele, em galope extenso, fazendo um ruído ensurdecedor. Os caçadores desceram da árvore, retiraram as entranhas do queixada abatido, içaram-no junto à outra caça, e seguiram para casa. Dona Jozepha esperava-os com a cuia de chimarrão quente na mão. Destrincharam a caça, dividiram-na e salgaram a carne. Jakób, relembrando o local da caçada – comentou: - Ouviram o que disse o velho caboclo? O lugar onde vimos a manada de queixadas era, sem dúvida, a principal região tribal indígena. Era também o lugar onde havia a maior variedade de plantas comestíveis e animais para caça. Ali era antigamente um acampamento dos índios botocudos, como provam as ossadas de animais e humanos, espalhados pela clareira. O velho sertanejo estremeceu involuntariamente e lançou um olhar inquieto em torno. 82 - Vamos andando! Este lugar me dá arrepios, deve estar povoado de espíritos dos antepassados indígenas. Noutra ocasião organizaram a caça ao veado. Com sorte poderiam trazer também um queixada como prêmio. Jakób, seus filhos Ladislau e Alexandre, mais os caboclos Adolfo e José, vizinhos e amigos do Gryczynski, que conheciam as trilhas e bebedouros dos veados. Levavam oito cachorros veadeiros. De todas as caçadas, a do veado é a mais importante. Caça-se o veado, de espera e a batida de cães. O caçador deve descobrir o local onde vive o animal, pelo exame atento das pegadas. A matilha persegue a caça, que apesar de todas as manhas não tarda a ser cercado e abatido pelo caçador certeiro no tiro. Os cães foram soltos e correram mata dentro; o eco dos seus latidos diminuía cada vez mais, até sumir de todo no sertão. Parecia às vezes que o som inconstante do eco ainda ressoa pela floresta, não se sabe de que direção. Deixaram Ladislau na espera. Ficou um tempo enorme parado embaixo duma árvore na orla da campina. De repente, o jovem contraria as regras da caça, abandona o seu posto e, abaixado corre, alcança o topo do morro. Vê a entrada de uma gruta. Para por segundos defronte, e ainda indeciso olha para dentro da caverna. Dominado por surdo terror lembra-se das histórias correntes. Diziam que todas as noites as feiticeiras que fizeram pacto com o Tinhoso, saci-pererês, almas penadas e diabinhos sapecas, reúnem-se ali para dançar o ritmo infernal. O samba do inferno durava até o primeiro clarão do dia. De repente ele ouve galhos secos estalando, pedregulho rolando do morro, sons vindos de dentro da gruta. Apavora-se e sai correndo. Ladislau desceu rápido da rocha, pela trilha, curioso para ver de perto o tronco da imbuía antiga, de galhos pendentes como braços esticados que- 83 rendo agarrar alguém, que encobriam a entrada da gruta, jogando sombras no meio do penhasco. Descobriu ali, junto das raízes, pequenas e toscas cruzes, enegrecidas pelo tempo ou pelo fogo. Do lado do sol nascente, numa funda rachadura do tronco seco, havia uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida, feita de barro, figas de pau, feitiços de várias espécies, ramos secos de arruda e mentruz, ossos humanos, peles secas de cascavel, dentes de javali e asas de morcegos. Devia ser o lugar onde os feiticeiros faziam rezas e oferendas. Algumas velhas raízes da imbuía, ressurgindo à flor da terra, tinham sido carcomidas pelo caruncho, e formavam brocas profundas que se entranhavam pelo solo. A brisa trazia em lufadas sons da floresta, que o eco reboava por todo vale. Ladislau ouviu o som da buzina. Voltando à sua posição no lugar da espera, o jovem caçador apurou o ouvido. Quando o mandaram para espreitar a caça, parecia-lhe que o sertão escutava junto com ele. O silêncio era profundo, intenso, imensurável. Às vezes o sopro do vento se acalmava, então reinava o silêncio insondável e incompreensível à semelhança do azul do céu entre as nuvens. Em volta havia a floresta de araucárias, com os galhos estendidos como braços a atrair alguém. Seus troncos enormes, brilhavam na penumbra. Nesse instante, dos confins do sertão, surgiu uma brisa morna, soprando indolente, despertou do sono profundo, em sussurros. As copas das árvores inclinavam-se perante o vento brando, reverenciando-o pelo canto envolvente retirado do além; como choro silencioso, gemido sem esperança, esse canto corria pela solidão da mata, com sons inexplicáveis que sumiam no abismo. Os gritos dos macacos, pulando pelos cipós e galhos, de árvore em árvore, ou balançando-se enroscados pela cauda. Papagaios em bandos, palrando como gente; 84 pica-paus, macucos, mutums, tucanos de bicos enormes e penas coloridas, bem-te-vis, curiós e magníficas araras estavam surpresos, inquietos. Nunca tinham ouvido esses sons metálicos, de machados, foices, serras, vozes de homens derrubando a mata, destruindo os seus lares de tantos séculos. - O que será de nós?... Será que o Espírito da Floresta, que desde início dos tempos velava por eles, tinha- os abandonado?...Quem sabe no peito de pedra, o duro coração do Deus Tupã, que dorme na ravina desconhecida, coberto por musgos de milhares de verões e invernos, fica adormecido e não ouve o clamor das suas criaturas?... - Acorda Deus Tupã! Não vês que os teus filhos padecem? estão ameaçados de ficar sem lar! Serem extintos até o último espécime?... Quando se aproximava dele, esta voz do sertão parecia a Ladislau que atingia o seu corpo, descendo como raio pelos galhos e troncos das árvores, infiltrava-se dentro do seu coração. Esquecia então quem era, onde estava, o que acontecia com ele. Vinham-lhe à mente recordações esquecidas, sepultadas no recôndito da alma, querendo fluir para fora. E então entregou-se a devaneios... sonhava com a terra natal... Ao longe, um som potente de tiro tremeu pelo sertão. Um relâmpago perpassou o corpo de Ladislau... despertou do devaneio... estava sonhando?... Aqui e agora a realidade era outra. Um enxame de passarinhos de penugens coloridas esvoaçava chilreando entre as folhagens e no meio desse concerto harmonioso ouvia-se a nota sonora do sabiá. Os sapos coaxam na água clara da lagoa, coberta de folhas de aguapés. Ouvem-se sons incompreensíveis. Todo sertão respira e vive. O caçador agora já alerta, ergueu a cabeça e pregou os olhos na mata. Os cães perseguem a caça – pensou, o 85 latido chegava cada vez mais perto do caçador na tocaia. Já podia distinguir bem. Num certo momento, do alto do morro podia se ouvir o barulho, uniforme, rítmico da corrida. O coração do moço parou. Bem perto ouve-se o estalido dum galho. De dentro do matagal surge um veado. Um macho soberbo, de pele marrom, lustrosa; corria, com a bela cabeça erguida, guarnecida de enorme galhada. O caçador levantou a espingarda, colocou o dedo no gatilho e mirou o animal. Neste momento o veado parou. Levantou o pé esquerdo, virou a magnífica cabeça de lado, desconfiado, escutou atento, do seu corpo saia um vapor denso. O moço apontou a arma sobre a paleta direita do animal. De repente ouviu um ruído, uma enorme pinha desprendeu-se do pinheiro, em cuja sombra o jovem estava tocaiando a caça, caiu em cima da sua cabeça, raspou no braço e desviou o tiro da espingarda para longe da presa. Quando Ladislau passou a mão pelos olhos, só viu os pés do enorme macho, esticados como molas de aço, na fuga para o matagal. Só os maciços arbustos verdes ainda farfalharam por muito tempo, e as folhas caíram dos galhos quebrados, em silêncio. Vendo que de novo estava só, no lugar onde há poucos instantes desenrolara-se o drama da vida e morte, o caçador jogou com raiva a espingarda no meio da moita de vegetação e caiu por terra engolindo lágrimas, de frustração e arrependimento, por ter tentado contra a vida de tão admirável animal. Ele não tinha o direito de invadir o “habitat” do veado-galheiro, onde há milhares de anos ele era o dono e senhor. Alertou-o um tiro, depois outro como trovoada retumbou pela floresta; seu eco repetiu-se por muitas vezes. Depois, ouviu da clareira, alguém chamando-o: - Wladek, onde você está? Responda! 86 Os cães latiam ao longe acuando a caça. Outra voz, mais perto, chamou-o de novo. O caçador, inexperiente, por algum tempo ainda ficou deitado na grama, corroendo-se de remorsos. Depois levantou rápido, sacudiu a terra da roupa, procurou a espingarda no meio dos ramos. Esfregou os olhos com a palma da mão. Correu para baixo, pulando as moitas de vegetação como cabrito. Na distância de uns duzentos metros morro abaixo, estava um caçador, parado ao lado do corpo sem vida dum esplêndido animal, o veado macho de galhada enorme, que Ladislau, deixara fugir. - Então, você o matou! – disse Wladek, com voz cansada da corrida. - Pois é, apareceu de repente...eu não sei como foi isso, pensei que esse cabrito você abateria - desculpava-se. - Mas não veio para o meu lado - respondeu Ladislau, jamais admitiria que ficou com pena de matar o animal. - Vamos, que estão nos chamando - disse o outro. - O que vamos fazer com a caça? - É preciso levar nos ombros até o cavalo! O animal morto, com tiro certeiro no coração, jazia no chão. Com a bela cabeça jogada para o lado, imóvel, olhava para o moço com os olhos opacos, sem vida. Ladislau foi tomado por um incalculável senso de culpa pela morte do cervo. Arrastou-o para um para um lugar mais alto, alçou-o ao ombro, segurando pelos dois pés dianteiros, carregou-o até o acampamento. Ao ver o animal abatido, o pai ralhou com ele: - Você, ingrato, matou a minha caça!.. Não sabias, então, que eu estava na espera? Quando você vai lembrarse dessas coisas? Wladek, você vive sonhando! - Mas, pai ! Não fui eu que matei o veado. - Fui eu! - Ele veio para o meu lado – justificou-se o caçador Juca – agora vou tirar o couro, destrinchar e salgar a carne da caça. 87 Num certo domingo, os dois irmãos, Ladislau e Alexandre saíram a cavalo para conhecer a região. Aprofundaram-se pelos caminhos da floresta, rumo ao oeste. Seguiram uma trilha estreita e invadida pelo capim. Cavalgavam num trote ligeiro, quando o caminho terminou abruptamente. O vento forte afastou os ramos duma pequena clareira, e, em frente, viram no alto do morro, as ruínas desdentadas de uma construção. Hesitaram por um momento, tomados pelo antigo e arraigado medo do desconhecido. O sol da manhã iluminava as paredes destruídas e as janelas arrancadas. Eram as ruínas da igreja das antigas reduções jesuíticas. Uma estranha e inesperada inquietação apossou-se da alma de Ladislau. Então, tiveram curiosidade de conhecer de perto as ruínas antigas. - Vamos até lá.! - convidou o irmão. - Por quê, não? Vamos já!- topou Alexandre, e virou a montaria para o caminho que levava ao topo do morro. Surpresos com a visão que se lhes apresentou, os cavaleiros inquiriram-se com os olhos. Adiante deles, numa clareira, próximos à parede de pedra, estavam amontoados os esqueletos e crânios de homens, talvez guerreiros, inimigos, sacrificados pelos vencedores desta guerra de extermínio, tão impiedosa. Ao lado, uma mesa rústica de pedra, e em cima um almofariz com uma mão de pilão, de pedra polida, dentro um crânio amarelado como marfim velho, com um buraco no temporal. - Este era o vaso em que os pajés misturavam as plantas mágicas que curavam o corpo e o espírito. Esta pedra era para os sacrifícios rituais e essa era a clava com que matavam as vítimas - explicou Ladislau.- e os dois fizeram uma pausa para prestar reverência àqueles espíritos anônimos, cujos ossos aqui repousavam. 88 Antigamente, subia uma estrada até o morro, para cavalgaduras e carroças leves; mas a mata cresceu e cobriu a trilha. À beira deste caminho, alinhados, crescem pinheiros e cedros, plantados pelos jesuítas, mas o meio da estrada o capim alto já tomou conta. O mato fechou a chegada até as ruínas, invadiu o espaço que lhe pertencia antes. Ninguém vela pela igreja em escombros, somente a selva soberana. Não há janelas nem portas. Roseiras selvagens rastejam, enroscam-se pelas escarpas e pendem do alto das paredes em ruínas os espinhosos ramos cobertos de cachos de flores vermelhas. No lugar onde estava o altar, onde os olhos dos indígenas procuravam o sinal do Deus dos brancos, cresce agora um arbusto de amora preta. Incansável, pingando de gota em gota, a água corroeu o tijolo e a pedra. O pó espalhado pelo chão ficara coberto por plantas rasteiras. Por fora dos muros, só existe matagal que encobre totalmente o santuário. Qual segredo, ou incompreensível encanto, escondese nos escombros. Algo tenebroso, ameaçador e doloroso existe, deixado por homens, que aqui tombaram na defesa da vida, da sua cultura e da sua fé. Alguma coisa assombrosa nos ecos de cada passo dado nas destroços do santuário. O que existe nestes escombros? O que chora e clama do interior atrás do intruso que entra? Os olhos dos visitantes não se afastam e os pés não obedecem. As flores arrancadas caem das mãos e nos ouvidos ressoam os gemidos dos mártires indígenas que aqui foram sacrificados em nome de um sanguinário Deus dos brancos, espanhóis ou portugueses. Um Deus que não era deles, e nem o conheciam. *** 89 REVOLUÇÃO FEDERALISTA. Com o movimento político-militar de descontentes com o governo de D. Pedro II, o Brasil deixou de ser monarquia. No dia 15 de novembro de 1889, foi proclamada a República, pelo Marechal Deodoro da Fonseca, que foi nomeado como chefe do Governo Provisório. Atacado pela oposição, renuncia ao cargo de Presidente e passa o poder ao vice-presidente, Marechal Floriano Peixoto. Em 1891, foi designado para a presidência do Estado do Paraná o Dr. Generoso Marques dos Santos em substituição à junta governativa que dirigia o Estado, desde a proclamação da República. Em 1892, com a subida ao poder do Partido Republicano Federal, foram convocadas novas eleições, sendo eleito governador do Paraná, Dr. Francisco Xavier da Silva, e como vice o Dr. Vicente Machado, este, o mais prestigioso líder político paranaense da época. No início da República brasileira, surgiu um movimento revolucionário, envolvendo as principais facções políticas do Rio Grande do Sul. Dois partidos lutam pelo poder. De um lado, o Partido Federalista que reúne a velha elite do Partido Liberal do Império sob a chefia de Gaspar Silveira Martins. Do outro lado, o Partido Republicano RioGrandense que agrupa os republicanos comandados por Júlio de Castilhos, que saiu vitorioso nas eleições para governador do Estado do Rio Grande do Sul. Em 2 de fevereiro de 1893, os federalistas, chamados de “maragatos” iniciaram um sangrento conflito com os republicanos, apelidados de “pica-paus”. O Presidente da República, marechal Floriano Peixoto, que suspeitava das tendências políticas monarquistas e parlamentaristas de Silveira Martins, líder político gaúcho, apoia e ajuda materialmente os “pica-paus”. 90 Os federalistas, partidários de Silveira Martins, inconformados com a derrota, procederam à invasão do Estado. Teve início, então, a mais bárbara das revoluções brasileiras, ensangüentando pelo espaço de dois anos vários Estados do país. A revolução no país se expandia. Corria a informação de que toda a marinha brasileira havia se sublevado contra o governo de Floriano Peixoto, aderindo à revolução. Do Rio Grande do Sul, chegavam notícias da existência da rebelião armada naquele Estado. Os cidadãos brasileiros de São Mateus pertenciam em sua maioria ao partido da oposição, com exceção de Plínio Miro e os funcionários do governo. Os intelectuais poloneses, que eram poucos na colônia, como Antônio Bodziak, Flizikowski, padre Ladislau Smolucha e alguns professores, eram também do partido da oposição. Então formaram-se duas correntes. Bodziak, Ulisses de Faria e Maximiliano, como chefes, na oposição. Plínio Miro, a favor do governo, tendo como objetivo atrair o maior número possível de imigrantes para sua causa. São Mateus é por si uma colônia curiosa. O seu habitante, emigrante da região do remoto Principado de Mazowsze dos Piast da Polônia (na época da emigração estava sob o domínio russo), é um tipo singular. Idealista e sentimental, destemido, não foge das dificuldades, mas enfrentaas com bravura. Descendente de antigo clã de guerreiros eslavos, é de natureza belicosa, valente e arrojado, envolvese com facilidade nos problemas alheios. Tendo vivido durante séculos sob o domínio dos invasores russos, era da sua índole ser revoltado contra qualquer governo instituído. Foi instantâneo o seu raciocínio: “Se há governo neste país, então sou contra o governo”. E não iam perder essa oportunidade. Era a época da derrubada da mata e do preparo da terra para o plantio de milho e feijão. De repente chega a 91 notícia de que todos, de todas as colônias, da Cachoeira, Canoas, Taquaral, Iguaçu, Água Branca, Rio Baio, Rio dos Patos e outras, deviam apresentar-se na vila de São Mateus. Também foram Jakób Gryczynski e seus filhos Alexandre e Ladislau, para saber do acontecido. Quando chegaram próximo ao vilarejo, logo na encruzilhada, encontraram sentinela, que deixava entrar, mas não permitia a saída de ninguém, sem a permissão do comando. Foram direto à casa de Antonio Bodziak, lugar onde sempre se reuniam. Estava repleto de gente. A notícia era assustadora – estourou a revolução. Imediatamente, com seu inato idealismo, os bravos mateuenses, com exceção de alguns, tomaram parte nela ativamente. A colônia polonesa de São Mateus participou efetivamente na Revolução Federalista (1893-1895). Antônio Bodziak organizou o Batalhão Polonês com 400 homens, composto de 300 poloneses e 100 brasileiros. Seus comandantes eram Bodziak, Stencel, Joaquim Gomes dos Santos, Onofre Flizikowski, João Kosminski, Kazemiro Dombrowski, e Estanislau Kieraczynski. Este Batalhão acompanhou as forças de Gumercindo Saraiva pelos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Os homens que pertenciam ao partido do governo (pica-paus) foram presos pelos federalistas de São Mateus. Muitos colonos não se davam conta da gravidade da situação; não era brincadeira revoltar-se contra o governo, que os trouxe de uma terra distante, para produzir e contribuir para o progresso do país. Não para criar problemas. “ Não era do interesse do imigrante imiscuir-se na política local, eles vieram aqui para trabalhar e conseguir o seu próprio pedaço de pão” - assim raciocinava o imigrante Jakób Gryczynski. Ele, os filhos e os genros resolveram não se intrometer e cuidar do seu trabalho na lavoura. Não tinham ar92 mas, só foices, facões e fuzis antigos; contra modernas carabinas, canhões, munição abundante e um exército regular, do governo, treinado para luta. O governador do Estado do Paraná, Dr. Vicente Machado, logo que recebeu a notícia das ocorrências em São Mateus, de que os partidários dos federalistas procediam o recrutamento de soldados para as forças rebeldes, também entre os imigrantes, imediatamente mandou um destacamento de 60 soldados do 10° Corpo da Guarda Nacional, comandados pelo capitão Custódio Gonçalves Rollemberg, para que tomasse as providências necessárias, assegurando a ordem na região. Porém, chegaram tarde, pois os recrutados já haviam embarcado para Rio Negro. Veio a ordem do capitão para que os colonos se dispersassem e voltassem para suas casas. Então começou a vingar-se nos colonos e suas famílias. Recrutou para as suas fileiras todos os poloneses válidos; até os mais jovens estavam nas listas de recrutamento do governo. Os irmãos Ladislau e Alexandre Gryczynski, João Kowalski, João Repecki, Antônio Jakubowski, Tomaszewski e Pawloski, que eram amigos e parentes, jovens, que não tinham aderido aos federalistas porque nada tinham a ver com a revolução, foram recrutados e obrigados a seguir junto com as forças legais, para defender Lapa. Iriam combater contra os revolucionários, muitos deles seus patrícios e amigos de São Mateus. O capitão Rollemberg recebeu ordens para seguir até Lapa, pois esta praça estava na iminência de ser atacada pelos rebeldes. O vizinho Estado de Santa Catarina havia se rendido aos revolucionários, que tomaram a cidade de Rio Negro e estavam marchando para o interior do Paraná. Os federalistas eram comandados pelo general Gumercindo Saraiva, que tinha fama de um bom comandante; sob suas ordens estavam mais de dois mil soldados e recru93 tava mais homens, em todas localidades por onde passava. Os revolucionários tinham-se apossado de Rio Negro e dos vapores “Curitiba” e “Iguaçu”, que navegavam no rio Iguaçu e foram utilizados no transporte de soldados. Uma das barcaças era pilotada por Aleksander Kowalski, genro de Jakób Gryczynski, que foi recrutado pelos federalistas. No dia seguinte todas forças rebeldes rumaram para Lapa, passando por Campo do Tenente. A cavalaria e a artilharia atravessaram a ponte e acamparam nas proximidades da Lapa. Começou o tiroteio sobre a cidade, que respondeu com saraivada de tiros; o combate durou até meio- dia. À noite cercaram a cidade, dificultando assim a entrada de reforços vindos de Curitiba. O coronel Ernesto Gomes Carneiro contava com 1.400 homens na cidade da Lapa. Foram atacados a 14 de janeiro, pelas forças dos irmãos Gumercindo e Aparício Saraiva. Resistiram durante um mês, cercados e martelados pela artilharia inimiga. O coronel Carneiro pediu reforços à Divisão do Norte e a Curitiba, mas a ajuda não veio em tempo de socorrer a cidade. Chegou a notícia de que parte do exército federalista seguiu para Curitiba e a cidade tinha-se rendido. De manhã, Gumercindo Saraiva mandou proposta para rendição da Lapa, mas a resposta veio negativa. A cidade começou a ser bombardeada, desde as oito horas da manhã até as três da tarde, depois entraram a infantaria e a cavalaria. Começou uma batalha encarniçada. Os defensores da Lapa lutavam com bravura, esperando reforços do governo. Saraiva, vendo que com os ataques não conseguiria tomar a cidade, retirou a infantaria e continuou o bombardeio. Esse estado durou alguns dias, até a chegada da tropa auxiliar federalista do sul. Em seguida veio a ordem para avançar sobre a cidade; foram tomados a estação da estrada de ferro e o ce94 mitério. Os muros deste foram utilizados como trincheiras. No bombardeio dos dois lados, o cemitério virou ruína. Então Saraiva usou de estratégia. Mandou colocar uma cangalha no lombo de uma mula, dentro foi posto um recipiente com querosene e fogos de artificio, em seguida acenderam tudo. Tocaram a mula em direção da posição defensiva do inimigo. O animal corria enlouquecido. Os foguetes acesos trovejavam; os defensores pensaram que o inimigo havia entrado com todas as forças na cidade. A obstinação e a persistência do comandante e dos bravos soldados da praça sitiada exacerbavam o inimigo. Nada detinha a fúria dos “maragatos”. A fome da cidade cercada colaborou com os atacantes. Como não chegou nenhum auxílio de Curitiba, Lapa capitulou no dia 11 de fevereiro de 1894. O coronel Gomes Carneiro estava morto. Apareceu acima da cidade, tremulando, a bandeira branca. O cerco da cidade durou 28 dias. Os irmãos Ladislau e Alexandre Gryczynski e os cinco colegas de armas, recrutados em São Mateus como soldados legalistas, sabiam tocar diversos instrumentos musicais, possuíam uma banda de música na sua cidade. Com a rendição da cidade da Lapa, foram incorporados ao exército federalista. Para serem perdoados e poupados da morte certa, por ordem de Gumercindo Saraiva, foram anexados à banda de música do exército rebelde. Os oficiais e soldados legalistas presos foram todos fuzilados. Após a rendição da Lapa, alguns poloneses fugiram e retornaram a pé para São Mateus. Outros, de sangue jovem pulsando no peito, idealistas, sedentos de aventura, seguiram com o exército de Gumercindo Saraiva. As cidades de Antonina, Morretes e Curitiba foram ocupadas pelas forças de Gumercindo. A soldadesca cometeu muitos excessos nas cidades ocupadas. Foram fuzilados importantes cidadãos curitibanos. 95 O objetivo dos rebeldes, agora, era São Paulo. As tropas rebeldes aproximavam-se da fronteira paulista, quando lhes vieram de encontro as forças legalistas. Gumercindo, temeroso do encontro com exército superior em organização e armamento, recuou das posições. Voltava, pois suas forças estavam reduzidas pelas grandes perdas nos combates em Tijucas e Lapa. O valente e astuto revolucionário conseguiu escapar da perseguição legalista. Com suas tropas, retirou-se por São Mateus via Porto União rumo a Palmas, para somente depois dobrar para a esquerda, cruzou campos e rios, para juntar-se às forças de Aparício Saraiva em Campos Novos, em território catarinense. O Batalhão Polonês de Antônio Bodziak acompanhou Gumercindo na sua retirada rumo ao sul do pais. Em Porto União, alguns fugiram, aproveitando a facilidade de embarcar no vapor que subia o rio Iguaçu até Porto Amazonas (os que foram recrutados em Curitiba). À noite, nos acampamentos, havia muita animação entre todos, inclusive no grupo de poloneses. Os jovens soldados-músicos tocavam de improviso, valsas, mazurcas, sambas e marchas militares. Outros cantavam. Estavam contentes, porque os pica-paus iriam ver frustradas todas as suas expectativas. Não iam conseguir derrotá-los porque o seu comandante era Gumercindo Saraiva, o melhor e o mais audacioso chefe maragato do país. Chegados a Campos Novos, seguiram para Passo Fundo atravessando o rio Uruguai, em balsas improvisadas e canoas, com dificuldade, pois o rio naquele lugar media 150 metros de largura. Houve um violento combate com as forças legalistas na passagem do rio. As tropas de Gumercindo reagruparam-se e seguiram para Cruz Alta. Marchavam dia e noite, realizando apenas pequenos descansos, porque o inimigo estava no seu encalço. Houve 96 mais uma batalha sangrenta em Cruz Alta. Na sua retirada o comando revolucionário resolveu levar as tropas em direção ao Alto Uruguai, o propósito era atingir o território argentino. Na localidade de Carovy houve mais um confronto com o inimigo. O exército legalista (pica-paus) vencido, recuou temporariamente. Os revolucionários reorganizaram-se e seguiram rumo à fronteira da Argentina, marchando pela mata, atravessando rios, sem descanso, sempre perseguidos pelos legalistas. De súbito, um soldado a galope alcançou o exército rebelde. Trazia a notícia assustadora de que o general Gumercindo Saraiva havia sido ferido. Uma bala perdida atingira-o no peito. Era dia 10 de agosto de 1894, pelas 10 horas da noite veio a falecer, não sem antes passar o comando do exército federalista à seu irmão Aparicio Saraiva. Levando o corpo do general, seguiram para a localidade de Boqueirão, onde Aparicio autorizou a quem desejasse, podia ir embora, pois não queria ser responsável pelo destino de mais ninguém. Muitos deixaram as fileiras, iriam tentar voltar para casa. Apesar de maltrapilhos, extenuados e famintos, os voluntários do Batalhão Polonês de São Mateus não abandonaram a tropa, nem seu comandante coronel Antônio Bodziak. Consumiram o resto da carne seca. Comiam carne de cavalo e de caça, quando conseguiam abater algum animal selvagem. Caminharam por seis dias consecutivos, pelas trilhas no meio do mato, sempre alerta, pois o inimigo estava no seu encalço, até chegar ao caudaloso rio Uruguai, que fazia fronteira com a Argentina. O exército de Aparicio transpôs o rio em canoas, os cavalos atravessaram nadando. Os voluntários poloneses, remanescentes do batalhão do coronel Bodziak, passaram para o lado argentino. Enquanto olhavam o rio Uruguai, 97 avistaram do lado oposto o surgimento das tropas inimigas que os estavam perseguindo. Precisavam decidir o que iriam fazer daí em diante. Não podiam voltar pelo mesmo caminho. Estavam na Argentina entre os rios Uruguai e Paraná. As terras eram planas, férteis, cobertas de florestas e campos permeados por erva-mate, ideais para cultura. Muitos homens resolveram tentar a vida ali, ficaram na aldeia próxima, de São Pedro, que era habitada por brasileiros. Desde 1860, os brasileiros estavam penetrando no Território de Missiones. Outros seguiram em direção ao rio Paraná, onde embarcaram em navios, que se dirigiam à cidade de Foz do Iguaçu, de lá seguiram para Guarapuava de volta a São Mateus. Alexandre Gryczynski despediu-se do irmão Ladislau e dos amigos, que embarcaram no navio, com lágrimas nos olhos, estava certo que não os veria mais. Quando saíram de São Mateus, eram muitos e estavam juntos, agora iam dispersar-se como pássaros depois da tempestade. Muitos morreram em Passo Fundo, outros em Campos Novos e Cruz Alta. Outros os deixaram pelo caminho. Ele não via nenhuma perspectiva em relação ao seu futuro em São Mateus, temia represálias do governo, e mais que tudo, trazia uma ferida aberta no coração. Uma paixão proibida. O amor pela pessoa errada corroía-lhe a alma. Para não se prejudicar ainda mais ou ocasionar uma desgraça preferiu ficar na Argentina e ali tentar a sorte. Escreveu uma carta ao pai se justificando. A tarde do mesmo dia, chegou de canoa, um velho uruguaio de nome Argemiro Lopes. Trazia mantimento para vender. Lopes convidou Alexandre para trabalhar com ele, pois estava precisando de ajudante. Possuía um engenho de açúcar mascavo e de cachaça. Alexandre aceitou o emprego e acompanhou o velho comerciante. Permaneceu com Lopes por três meses. 98 Três quilômetros abaixo da casa de Lopes, havia um depósito de erva-mate e de outros produtos que eram embarcados em vapores para Posadas. Alexandre ofereceu-se para trabalhar como marinheiro no vapor que navegava no rio Paraná. Assim chegou até Posadas, onde conseguiu emprego de conferente, numa firma de exportação de ervamate. Fixou-se nesse emprego, pois o patrão confiava nele. Mais tarde conheceu Dolores, a filha do proprietário, casou com ela. Seus descendentes vivem até hoje nessa cidade. Com a morte de Gumercindo houve desânimo entre a tropa. Desde 24 de junho de 1895, não havia mais, no território gaúcho, nenhuma força rebelde. Milhares de revolucionários e seus chefes haviam fugido para o Uruguai e Argentina. O batalhão de São Mateus, que apoiou os federalistas, sofreu muito; parte dos voluntários morreu em combate, outros tantos foram fuzilados. A colônia pagou caro pelo seu idealismo, mas agüentou mais esse revés. O presidente Floriano Peixoto recusou o pedido dos maragatos para a intervenção federal no Rio Grande do Sul e favoreceu os pica-paus. Em 9 de julho de 1895, o novo presidente civil da República, republicano histórico, Prudente José de Morais e Barros, conseguiu um acordo de paz e anistiou os participantes do movimento. O governo decretou anistia a todos os cidadãos brasileiros que se encontravam na Argentina, oferecendo transporte gratuito até o Rio de Janeiro. Essa oferta foi aproveitada pelos poloneses, inclusive pelo coronel Antônio Bodziak, que se encontrava em Buenos Aires. Bodziak abandonou a política e dedicou-se ao comércio. Voltaram para São Mateus apenas seis homens daqueles todos que partiram para a revolução. Os que não morreram espalharam-se pela Argentina, Uruguai e Paraguai, embora alguns fossem casados e pais de filhos, não retornaram para suas casas. 99 ESTRADA DE FERRO S.P.R.G. A Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande foi planejada pelo Governo Imperial de D. Pedro II. O Decreto 10.432, de 9 de novembro de 1889, concede incentivos, privilégios e terras devolutas para sua construção. O projeto da ferrovia começou em 1889, quando o engenheiro João Teixeira Soares recebeu do Imperador D. Pedro II, a concessão para construí-la e explorá-la, obtendo a cessão gratuita das terras devolutas, numa zona máxima de até 30 quilômetros para cada lado da linha Itararé-Santa Maria, em toda sua extensão, a fim de colonizá-las. Em 1894 Teixeira Soares sub-rogou os direitos à Brazilian Railway Company e por conseguinte à sua subsidiária Companhia São Paulo-Rio Grande. Conforme o contrato de concessão de 1889, a ferrovia seria paga em terras. Pelo decreto n.° 1963, de 13 de fevereiro de 1895, teve aprovados os estudos definitivos e completos de todo trecho, para a realização desta obra, num total de 941.880 km. A ferrovia foi terminada e inaugurada em 29 de outubro de 1910. Até 1905 foi concluído o trecho até União da Vitória a margem do rio Iguaçu, e muitos imigrantes poloneses de Água Branca e da região trabalharam na construção. Anônimos e desconhecidos trabalhadores, executaram trabalhos penosos, e foi com o sacrifício deles, muitos dos quais ficaram sepultados sob os trilhos, que foi implantada a Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. Na construção da ferrovia trabalhavam, além dos imigrantes recrutados nas colônias do Paraná e Santa Catarina, centenas de presidiários, retirados das prisões brasileiras, para ali trabalharem em troca de sua futura liberdade. A Companhia São Paulo-Rio Grande recebeu autorização especial do Ministério de Viação e Obras Públicas para explorar a madeira existente na área de 30 quilômetros 100 para cada lado da linha tronco e seus ramais, além do que pudesse adquirir nas terras marginais. As conseqüências calamitosas desta autorização não foram previstas, pois permitiu-se à Companhia devastar dezenas de milhares de quilômetros quadrados de terras povoadas de pinheirais. Assim, no ano de 1909, em Miami (USA), o Sindicato de Percival Farqufar organizou a Southern Brazil Lumber and Colonization Company, subsidiária da Brazil Railway Company, para desenvolver os serviços de colonização das terras ao longo da ferrovia e explorar as florestas de pinheiros existentes nos vales dos rios Negro, Iguaçu, Timbó, do Peixe e Canoinhas. A Southern Brazil Lumber and Colonization Company construiu duas grandes serrarias, uma em Calmon, próxima ao Rio do Peixe, e outra em Três Barras, ambas em Santa Catarina, as maiores da América do Sul. A Companhia Lumber serrou e exportou a imensa reserva de madeira de pinho, do sul e oeste do Paraná e Santa Catarina. Naquela época, nos anos 1909 a 1914, as atividades irregulares da Lumber, norte-americana, e suas subsidiárias, contribuíram e foram a causa principal da Guerra do Contestado. A exploração dos sertanejos e posseiros em terras devolutas, prolongou-se por muito tempo. Os norteamericanos passaram a amedrontar e expulsar os caboclos das suas posses, ocupadas por eles há várias gerações. Desesperados, os nativos não tinham a quem recorrer e fugiam deixando todos seus bens para trás. Revoltava ainda, aos caboclos, o fato de o Governo Federal vender extensas áreas cortadas em lotes, a longo prazo, a imigrantes europeus que ali se fixavam, nada cabendo a eles próprios, posseiros e nativos da região. A tensão política e social aumentava o problema com os desmandos da polícia. Em tal estado de incerteza, surgiu um líder e guia espiritual na figura de um monge, 101 com o nome de José Maria de Agostinus. Aliciou ao seu redor os descontentes e injustiçados caboclos, os bandidos e facínoras perseguidos pela polícia, deu-lhes instrução militar, armando-os com fuzis, espadas, facões e garruchas. Os governos do Paraná e o Federal enviaram forças policiais e militares para subjugar os sertanejos “fanáticos” e o seu chefe. A expedição militar bem armada foi comandada pelo Coronel João Gualberto. Os soldados atacaram, e numa luta feroz corpo a corpo, quase foram aniquilados. Morreu no combate o comandante João Gualberto e próprio monge José Maria. Foram necessárias muitas expedições militares, do governo federal, para se conseguir desbaratar os “fanáticos”, perdendo-se milhares de vidas entre oficiais, soldados, colonos e sertanejos. Em 1918, o Paraná foi obrigado a titular aos norteamericanos da Brazilian Railway Company extensas glebas em pagamento da construção da ferrovia São Paulo-Rio Grande e do ramal Ponta Grossa-Guarapuava. Quase todo o sudoeste passou a ser propriedade desta multinacional. Em 1921, constitui-se a empresa Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco). A Companhia São Paulo-Rio Grande, mesmo com a transferência do seu patrimônio à Braviaco, assegurou para si a posse de extensas áreas no Sul e Oeste do Paraná, visando obter terras às margens do Iguaçu para exploração da madeira. Com a revolução de 1930, e a tomada do governo do país por Getúlio Vargas, as concessões de terras devolutas da Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco), sucessora da Brazilian Railway Company, que, por meio de suas subsidiárias Southern Brazil Lumber and Colonization Company e da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, exerciam a atividade madeireira, foram canceladas, pelo decreto n.º 300, assinado pelo Interventor Federal do Paraná, general Mário Alves Monteiro Tourinho. 102 ESTEPHANIA E TAVARES Aleksander Kowalski e Ksavera Antônia, sua mulher, e o filho Konstantin de 2 anos, chegaram em Paranaguá pelo vapor “Espirito Santo” no da 18 de dezembro de 1890. Seu tempo de permanência na Ilha das Flores, onde desembarcaram do navio Darmstadt, junto com a família de Jakób Gryczynski, foi prolongado por ter seu filho adoecido, atacado por disenteria bacilar. Maria Josepha, a filha mais velha de Jakób e Josepha, casada com Francisco Krenski, veio no mesmo navio acompanhada por dois filhos pequenos, o marido e os pais dele. Após a permanência necessária na Ilha das Flores, seguiram o itinerário dos outros imigrantes que optaram por assentar-se na Colônia São Mateus. As famílias de Aleksander Kowalski, Francisco Krenski e de seu pai Anton, foram encaminhados para a Colônia Canoas, fundada pelo governo Federal, distante 3 quilômetros de São Mateus. Receberam um lote de 10 alqueires de terras férteis e incentivos para construção da moradia. A família Krenski mudou-se mais tarde para a Colônia Vera Guarani, próxima à Estação Paulo Frontim, da Estrada de Ferro. Canoas, ficava distante da Colônia Água Branca, onde foi assentada a família de Jakób Gryczynski, aproximadamente 20 quilômetros. Stephania ficara sem a companhia da irmã Ksavera, sua amiga e confidente. Como eram muito unidas, ela sentiu profundamente a separação; vivia tristonha, saudosa da irmã, alheia, perambulando pela casa. Também, não tinha se conformado, nem esquecido a morte do seu amado marido Mathaei, na Sibéria, e do bebê, que perdera para o mar. A vida golpeara-a ferozmente. Ela acordava-se mais cedo do que os outros. Ouvia o primeiro cantar dos galos; não abria os olhos, mesmo 103 com janelas fechadas sabia quando o sol nascia. Reconhecia pelo sussurrar das folhas, pela mudança dos sons da natureza. Ouvia cada ruído, cada latido do cão, trinado do sabiá, cada sopro do vento. Tudo isso reboava nela tristemente, como numa lápide. Às vezes saía do seu peito um gemido – e só isso. Uma pedra comprimia-lhe o coração. Mas mesmo este atroz abraço não conseguia sufocar-lhe a dor na alma. Nas profundezas do silêncio noturno, quando o último ruído emudecia e desaparecia, ela ainda ouvia o som dos trôpegos passos, temerosos, medindo o vazio da sua vida, do tempo que passava. Ecos de vozes chamando alguém das sombras do passado. Então ela escutava atenta, com esperança, o grito da chamada, e olhava com olhos chorosos para a escuridão à procura do ser amado. Gemia durante horas, não para suavizar sua dor e frustração, pois, quanto mais doloroso era o seu lamento, tanto maior era sua dor. Depois, caia no torpor e ficava na tranqüilidade da sua fraqueza. Nos momentos da duração desta luta, tentava às vezes minorar a sua aversão pela vida. Olhava o colorido das flores, o encanto maravilhoso da luz do sol, mas tudo continuava estranho e indiferente a ela. Ficou só. Caminhava entre as ruínas da sua vida, do seu infeliz amor, da sua maternidade frustrada. Com o tremor no coração, sua alma vagava entre obstáculos intransponíveis. Estava na escuridão, sem luz, como uma vela apagada. Sua alma perturbada não conseguia encontrar a paz. Stephania precisava esquecer o passado para poder viver. Senão enlouqueceria. Teria que deixar os pensamentos se aquietarem como as pedras no fundo do rio. Resolveu encetar a grande luta para equilibrar a sua vida, e seguir em frente, já que era esse o seu destino. Não se conformava com a vida sem conforto que levava naquele recôndito lugarejo do sertão brasileiro. Ela, que já teve as 104 melhores condições de vida, como dama de companhia da condessa Maria. Negou-se a trabalhar na lavoura, sob o sol escaldante, plantando e capinando, ou em casa, realizando o trabalho doméstico. Procurou então um trabalho na escola local. Seria professora das crianças da colônia. Mas a sua beleza, inteligência e modos refinados, incomodavam as mulheres do povoado. Por causa da inveja e preconceito, não conseguiu o emprego que tanto almejava. Desde que chegara à Água Branca, havia mais de um ano, era um dos assuntos mais discutidos da vila. Os homens estavam fascinados por aquela mulher elegante, vistosa, de formas desenvolvidas, de nariz empinado e faces rosadas, bem feita de corpo, um lindo tipo eslavo. Ela era uma tentação para os olhos dos homens. Habitualmente era altiva e reservada; mas educada e amável, quando interpelada por alguém. As mulheres encaravam essas qualidades com uma certa reserva e inveja. Naqueles dias, voltou para a colônia o agrimensor Antenor Tavares, que tinha ido a Curitiba receber instruções acerca da demarcação dos lotes em Rio Baio. E como Água Branca, mesmo sendo um núcleo em início, oferecia mais conforto aos transeuntes do que Rio Baio, Tavares preferiu hospedar-se ali, na pousada do Chico. Diariamente deslocava-se até o trabalho na mata e voltava à tarde. Pelo caminho que levava à Colônia Água Branca, Tavares vinha galopando, montado num cavalo castanho, todo ajaezado, cuja fina pelagem brilhava aos reflexos do sol. Moço de seus trinta anos, quando muito, estava pensativo. Cobria-lhe a fronte larga um chapéu de palha de abas caídas. O rosto comprido, nariz aquilino, olhos negros, vivos e cintilantes, davam a sua fisionomia a expressão brusca e alerta das aves do sertão. Essa alma tinha o arrojo e a velocidade do vôo do gavião. 105 Nascido e criado na cidade de Curitiba, onde estudou e se formou como agrimensor, adquiriu, no seu trabalho e no contato diário com a mata, os hábitos do homem simples do interior. Trazia botas inteiriças, rugadas sobre o peito do pé e ornadas com fivelas prateadas. Trajava-se com extrema simplicidade, camisa xadrez e calça de brim escuro. Vinha distraído. O patear cadente do cavalo fazia um ruído cavo na terra empapada de chuva, quando, de repente, ouviu um chamado: - Senhor Tavares! O cavaleiro colheu prontamente as rédeas, fazendo estacar a montaria, e voltou-se para ver se com efeito o haviam chamado como lhe parecera. A rapidez do galope e a repercussão do solo tinham impedido que ouvisse distintamente a voz e a reconhecesse. - Que milagre ! Hoje o senhor madrugou! - Ah! é você, dona Stephania! Quer uma garupa? – replicou o moço, sorrindo. - Obrigado, não ficaria bem, o senhor sabe! - Então nós encontraremos numa ocasião mais propícia - sugeriu Antenor - deu rédeas ao animal e partiu a galope. Stephania acompanhou com os olhos o moço até este sumir na volta do caminho. Quando o vulto encobriu-se por detrás da folhagem de uma árvore que lhe interceptou a vista, a jovem, abafando um suspiro involuntário, continuou o seu caminho. Naqueles dias foi promovida uma festa na igreja local. Terminados os festejos religiosos, ao cair da noite organizaram-se no salão paroquial danças ao som de violino, violoncelo e sanfona, que fizeram a alegria dos jovens. Stephania e seus irmãos, Alexandre e Ladislau, participavam divertindo-se alegremente. 106 Num dado momento adentrou o salão o agrimensor Antenor Tavares. Aos primeiros acordes de uma valsa, ofereceu, numa reverência, o braço à jovem Stephania. Rodaram pelo salão, a princípio sozinhos e calados. Depois outros pares entraram. Tavares, elaborando os passos da dança, iniciou a arte de conquista que tão bem praticava. - Senhorita, você foi a maior surpresa que já tive nestas redondezas. - Por quê, senhor? - Porque você é a mulher mais bela destas paragens. Stephania ruborizou-se, incomodada. - Você é comprometida? - Não, senhor! Sou viúva. - Desculpe a minha curiosidade! Faz tempo é viúva? - Faz apenas um ano que meu marido faleceu. Mas não falemos disso, é uma história muito triste. - Desculpe mais uma vez a indelicadeza do comentário, mas parece incrível que não seja ainda noiva ou casada novamente, bela como é não tem competidora nesta redondeza. - O senhor e que é amável. - Verdade! Você é linda. Acredite-me. O agrimensor confidenciava: - Vim a serviço do Departamento de Terras e Colonização e jamais esperei encontrar uma jovem com seus predicados. Estou encantado! - Ora! Não sei o que lhe responder... nós polonesas somos desconfiadas. A música parou. Tavares agradeceu à sua dama, numa discreta mesura e retirou-se para junto de outros cavalheiros. Assim terminou o seu primeiro round. Certa vez, Tavares viu a bela Stephania voltando com compras da venda. Estava encantado com ela. Seus olhos se encontraram e uma corrente elétrica perpassou-lhe 107 o corpo. Não conseguiu desviar o olhar da silhueta altiva e a seguiu. Alcançando-a, perguntou cortesmente: - Posso acompanhá-la? - Ora, pode! Não tem nada demais. Seriam quase quatro horas da tarde, o sol se debruçando atrás das grandes árvores da mata, quando Stephania entrou em casa, acompanhada pelo agrimensor Tavares. Estavam ambos ainda na varanda, se desfazendo do barro vermelho que traziam nos sapatos enlameados, e já as mulheres que estavam de visita, na sala da sua casa, manifestavam na expressão fisionômica, em diferentes graus de intensidade, a sua estranheza ou desaprovação ante o fato escandaloso de uma viúva andar na rua na companhia de um homem moço e belo, que não era seu parente. Espalhou-se a notícia pela colônia. Mal sabia ela que era o único assunto do lugar. Seu nome andava na boca do povo como um pássaro, ainda vivo, na boca de um gato. O agrimensor, cujo trabalho tomava-lhe muito tempo, saía de madrugada e voltava à noite. Não via Stephania sem emoção, e cedia à atração que a moça exercia sobre ele; não a evitava, quando o acaso os aproximava. Ao contrário, nessas ocasiões ele se esquecia com ela em conversas interessantes; via nela uma pessoa culta e atraente. Simpatizava muito com ela. De seu lado a moça, se às vezes cedia ao enlevo dessas conversações, tratava-o com gentileza, mas com reserva. Às vezes, nessas ocasiões, o pensamento da jovem viajava de uma a outra flor, do ramo ao tronco, da folha à raiz, como se procurasse um ponto qualquer onde se fixasse, distraindo-se dos pensamentos e recordações do passado. Stephania corria atrás do destino que a atraiçoara roubando-lhe a felicidade. Outras vezes, o espírito solitário abstraía-se de tudo quanto a cercava, para envolver-se no âmago da alma, atur108 dida por completa alheação do espírito, que andava bem longe dali, através dos mares, na saudosa Polônia. Nesses momentos, o viço dessa alma se expandia no olhar triste dos grandes olhos castanhos com reflexos do verde da relva, e como esta, ficavam orvalhados pelas lágrimas. Decorreu mais de um mês, desde o primeiro encontro. Durante esse tempo, Antenor viu Stephania cavalgando, diversas vezes, assim como que por acaso. Tavares levantou-se tarde naquele domingo. Seu único pensamento ao chegar à janela do quarto foi Stephania. O sol já estava alto no céu. As laranjeiras do pomar, entre folhas escuras, mostravam frutas amarelando, e pássaros cantando, pousados nos galhos frondosos. Voltou a sentar-se na cama, acendeu um cigarro. Ficou a ver a fumaça subir, volteando e espalhando-se indecisa pelo ambiente. Stephania de novo apareceu na fumaça, sempre a figura esguia, sensual, na sua memória; era agora a sua sombra, que não o deixava. Atirou fora o cigarro. Arreou o cavalo e saiu a passeio, sem perceber, tomou o rumo da cascatinha, caminho que levava na direção da casa de Stephania. Um grupo de cavaleiros se aproximava; ele fez voltar o animal para dar-lhes passagem; este movimento colocou-o em frente da face de Stephania, que fazia parte da comitiva. Os olhos deles se encontraram. Reconhecendo-a, o moço envolveu-a com o olhar, um desses olhares ardentes e profundos. A moça que trazia nos lábios um sorriso gracioso, perturbou-se e desviou a vista. Sua face empalideceu e o olhar ficou triste. Era a quinta vez que Tavares, inesperadamente, por uma singular combinação do acaso, encontrava aquela jovem. A vila de Água Branca era bastante pequena, mas oferecia vários passeios e ocasião de diversão. 109 No meio das paixões, que se agitavam em torno dela, Stephania conservava, devido a sua educação e altivez natural, uma grande serenidade. Quando alguma vez uma palavra mais significativa ou uma alusão mais direta a vinha provocar, ela a afastava com a sua ironia. Assim permanecia estranha à luta de que era objeto. Sua alma planava livre como um astro sobre as vagas que a cobiça, a paixão ou o amor revolvia naqueles corações. A moça ressentida retraia-se; tornava-se cada vez mais reservada constrangendo sua jovialidade e franqueza. Antenor Tavares, o gentil agrimensor, apesar de hábil na arte da conquista, encontrava obstáculos por parte da moça; fato que o atiçava mais ainda; estava loucamente apaixonado, e isso bastava para tirar-lhe a calma necessária à realização do seu plano. Mas ele teria a paciência que o caso requeria. O acaso foi-lhe favorável. Num certo domingo, foi convidado para o jantar na casa da jovem. Era o dia do seu aniversário, ela completava 21 anos. Stephania recolheu-se a seu aposento, para arrumarse para a ceia. Sentada defronte do espelho, penteava os longos cabelos castanhos. A mulher bonita obedece a uma lei da natureza; revelando-se na plenitude de sua graça, enfeita-se, como a flor desabrocha em todo esplendor. Vestiu um vestido branco, leve, de extrema simplicidade, amarrou fitas azuis na cintura e nas tranças do cabelo; calçou sandálias pretas e colocou uma gargantilha de veludo azul com um camafeu de coral branco, presente da sua madrinha condessa Maria. Nunca o seu bom gosto combinou melhor o traje e nem este realçou-lhe tanto a beleza eslava, como naquela tarde. Mas o encanto desse vestuário não estava no delicado padrão do simples vestido longo e na forma elegante e original do penteado. O que a embelezava eram sobretudo o 110 brilho dos olhos castanho-esverdeados, a meiga auréola da fronte, o sorriso dos lábios carmim e a graça do gesto. Dentro em pouco devia chegar a sua casa o homem a quem ela encontrara por diversas vezes, simpatizara com ele. Resolvera aceitar a sua corte e mudar o rumo da sua vida. Com consentimento paterno, abriu as portas da sua residência para ele. O coração ardente de Antenor, na sua fantasia, podia notar a identificação da alma da moça com a sua, expressas nas idéias e gostos iguais. Era esta a centelha da paixão, a faísca do incêndio que ela ia atear sem querer. Ele chegou e estava conversando com o pai dela. Depois de um quarto de hora, Stephania entrou na sala. Tavares gentil, aproximou-se para cumprimentá-la. - Está linda, senhora - falou com emoção. - Agradeço a sua gentileza. Mas, o senhor ainda não viu a nossa chácara; o pomar do meu pai é muito bonito. Quer dar uma volta antes do jantar? – perguntou a moça. - Com muito prazer- respondeu Tavares. - Vamos, então! Pai, quer nos acompanhar?- pediu. - Vão vocês, eu fico ajudando a sua mãe. Querendo facilitar ao convidado a entrevista que ele desejava, e sentindo-se ao mesmo tempo insegura pelo fato de achar-se de todo a sós com ele, a jovem escolhera o passeio, que a deixava com toda liberdade de interromper a conversa a propósito. Antenor animou-se afinal e disse: - Lembra-se do que me falou, certa vez, há quase um mês, quando nos despedimos? Que seu romance na Polônia acabara triste? - É verdade- respondeu Stephania. Eu disse que... Ela conteve-se receando que lhe escapasse o segredo das lágrimas, que tinham assomado a seus olhos na ocasião. 111 Antenor esperou um instante, mas vendo que o silêncio continuava, disse : - Pois o meu acabou triste, muito triste. - Conte-me, por favor - pediu Stephania. - Não vale a pena. Uma afeição de infância, que lutou anos contra a adversidade, para acabar assim. Mas quem dá valor a uma desilusão na vida? - concluiu o moço em tom amargo. - Compreendo quanto deve doer a perda de um amor - observou a moça. - Não é a perda de uma ilusão, mas a ruína da minha vida inteira. Meu coração ainda sofre. Stephania dirigiu-lhe um olhar interrogativo. - Por quê ? Como foi? - Não me pergunte; pois sofro muito com as lembranças. Aceitei esse trabalho longe de casa, fugi para cá, enterrei-me no sertão para esquecer. - Não conheço os mistérios do coração. Mas penso que não pode haver um propósito mais gratificante do que reavivar um coração que está morrendo, apagar um passado triste e criar para aquele a quem se tem estima uma nova existência! - Quantos encontram no mundo um anjo que os console?- desabafou Antenor, com amargura. Stephania não respondeu. - Quando recebi a notícia, que deu o golpe na minha vida, não pude entender. Desesperei. Achava falta de um coração amigo, com quem desabafar. Conheci você. Talvez não devesse, mas acreditei que me havia de compreender. - Não se enganou - falou a moça. - E, não sei por quê, tinha um pressentimento de que isso me faria bem; e fez. Estas poucas palavras que trocamos restituíram-me a paz, e estou outra vez seguro de mim. Voltaram para casa em silêncio. 112 - Chamam-nos para o jantar! – disse o dono da casa, convidando com um gesto seu hóspede. Sentaram-se à mesa, Antenor, Stephania, Ladislau, Alexandre e o pai. Dona Jozepha acabara de trazer o caldo de galinha e o prato de peixe assado com batatas; serviu o convidado, os filhos e o marido. Sentou-se ao lado deles. - Doutor Tavares, cuide de si! – falou Jakób, logo depois de tomada a sopa.- Sirva-se mais, de peixe ou do cozido, o que preferir. - Já estou servido - respondeu o hóspede. No decorrer do jantar, conversando com dona Jozepha, Tavares sentiu um prazer íntimo. Era o aspecto sereno da senhora, a efusão de bondade que irradiava de toda sua pessoa e especialmente a maneira educada e fina com que o servia. Notara o modo atencioso com que Jakób o tratava e também a fineza de colocarem-no à direita de Stephania, que com gesto sério e meigo falava-lhe; ela, que com os outros era sempre desdenhosa. Percebia, nessas circunstâncias, um clima favorável para seu propósito. Ficaram calados por instantes; olhavam um para o outro. A explicação, começaram a lê-la nos olhos de ambos. Stephania abaixou os seus. O jantar havia terminado. Foram servidas frutas da época como sobremesa. - Vamos para a varanda - convidou ela - a tarde está bonita. A tempo estava realmente lindo. Tavares, entretanto, interessava-se menos pela tarde do que pela moça. Não queria perder a oportunidade de lhe dizer que a amava loucamente. Encostada ao parapeito da varanda que dava para o pomar, a jovem simulava contemplar a beleza do pôr-dosol. Antenor olhava para ela como para um ícone e não ousava romper o silêncio. 113 Quase a dizer a palavra decisiva, ainda indagava a si mesmo se esse gesto precipitado não iria pesar no seu destino, se daquele capricho do momento não resultaria um mal para toda vida. Mas a hesitação foi curta. Antenor ia lançar a sorte, quando a mãe apareceu na janela da varanda. Então surgiu outro momento de indecisão e Antenor falou com a voz quase sumida: - Não compreendeu ainda, quais são os transtornos da minha vida? Que eu procuro superar? - Compreendi, sim - murmurou ela – mas tenho receio de enganar-me. - Não se engana - insistiu Tavares com calor - amo-a desde o primeiro dia em que a vi. Não percebe isso há muito tempo? Não adivinhou já que a esperança do seu amor é para mim toda a felicidade do amanhã? Diga! Fale uma palavra só... definitiva. Stephania escutava-o atenta e a sua resposta foi eloqüente. Confirmativa. Estendeu-lhe a mão trêmula e fria. - Fale! Ama-me também? – perguntou Tavares depois de alguns minutos de contemplação. - Gosto de você, sim! Muito! Tanto quanto me é possível gostar - murmurou ela com hesitação - como se essas palavras fossem apenas um eco do seu pensamento; mas ele nem percebeu, tão enlevado estava. E ambos ali ficaram, ela silenciosa, ele enamorado, nesse êxtase doce, que é o melhor estado de alma humana. Antenor passou-lhe o braço à volta da cintura e puxou-a docemente para si; depois segurou a cabeça entre as mãos e depositou-lhe um beijo ardente nos lábios entreabertos, mas frios e insensíveis. Iniciando com arrebatamento esta aventura amorosa, era natural que Tavares saísse com a vaidade satisfeita. Não era ele amado? E por uma mulher que tinha todas as qualidades que podem seduzir um homem ? 114 - Fui longe demais - pensava ele. Não devia alimentar uma paixão que há de ser uma esperança; e uma esperança que não pode ser para mim outra coisa mais que um infortúnio. Que lhe posso dar em troca do seu afeto? O meu coração, o grande amor que sinto por ela, só isso... porque o meu nome não lhe poderei dar. Mas isto, por enquanto, ela não deve saber. Então, a fantasia começou a desenhar-lhe uma existência futura, romanesca, mas não legal, contudo, real e positiva. - E que outra coisa ela pode querer? – dizia a si mesmo. Seria, sem dúvida, melhor que houvesse mais sentimento naquela confirmação de amor que ela lhe fez. Queria que tivesse mais realidade nas palavras expressas por ela. Creio que ela sente da mesma maneira que eu. Não me anda ela a seduzir há muito tempo? Pensa que os seus atos, sentimentos e pessoa não são objetos de comentários de estranhos? Importam-me tão pouco essas críticas! Não vale a pena aborrecer-me com isto - raciocinava ele. - Que lhe disseram do agrimensor de fora, estranho? – perguntou a ela, certa ocasião. - Disseram-me muitas coisas que o desabonam, como, por exemplo: que o agrimensor Tavares é um aventureiro, namorador e mulherengo. - E você acreditou? - Não totalmente, mas fiquei triste e com dúvidas. Eu admirava-o. - Querida, conheça-me primeiro, então fará depois juízo correto de mim. Verá que não sou nada disso. Amiudaram-se ainda mais as visitas de Antenor à casa de Stephania. Dona Jozefa nutria simpatia pelo agrimensor. Já os irmãos dela o detestavam cordialmente; o pai aceitava a sua amizade com restrições. Ele era cortês, jovial e comunicativo. Antenor, entretanto, parecia indiferente aos sentimentos que inspirava à família. O que lhe interessava 115 era Stephania. Com ela era gentil e atencioso. Expressava sua ternura nas palavras a ela dirigidas. A jovem, porém, não dissimulava; deixava transparecer no rosto o que sentia no coração. Expansiva e discreta, enérgica e delicada, entusiasta e ponderada, ela possuía esses contrastes aparentes, que eram o reflexo do seu caráter. O amor de Antenor era de gosto amargo, cheio de dúvidas e suspeitas; tudo o magoava. Um sorriso, um olhar, um gesto, qualquer coisa lhe bastava para perturbar o seu espírito. Suspeitava até dos pensamentos da moça. Não bastava a força do amor para resistir à suspeita de todos os dias. Tinha um ciúme atroz. Stephania deixou de freqüentar os lugares onde ia habitualmente. Raras vezes ia às festas de igreja e reuniões no salão paroquial. De que lhe servia a máxima prudência nas suas relações com as demais pessoas, se tudo era pouco para obter a confiança de Tavares? – pensava a moça, que não se acostumou logo a ler na fisionomia de Antenor. Ele possuía a faculdade de esconder os seus sentimentos. Ao ciúme que o devorava, veio juntar-se o despeito. Antenor estava irritado consigo mesmo. Reconhecia seus erros; achava-se grosseiramente injusto com a moça. Não conseguia dormir à noite. A consciência acusava-o. Não tinha o direito de enganá-la. - O casamento me restituirá a confiança - justificava-se. Quando estivermos juntos, afastados da convivência e do contato de estranhos, a paz reinará no nosso lar; e só então seremos felizes. Resolveu fazer o pedido da mão de Stephania aos pais dela. Estava-se nos primeiros dias de outubro. O casamento fora marcado para final de dezembro, no dia do Natal. Marcado apenas entre os dois, porque Tavares conseguira da moça e dos pais dela a promessa de que a notícia seria dada pouco antes do acontecimento. 116 - Qual a razão deste segredo? – perguntou o pai. - É apenas um capricho, para não dar azar - respondeu Antenor. A razão verdadeira ele não quis revelar. - Se eu tivesse a tua natureza, desconfiaria desta exigência - disse ela. Acredito em você; mas duvido do destino. Receio do futuro em vista do passado. - Do passado? – perguntou Tavares, levantando-se de um salto, nervoso. Stephania suspirou pesadamente. - Que houve de mau no teu passado? - continuou o agrimensor - fitando nela um olhar perscrutador. - Tudo - respondeu ela comovida, com lágrimas assomando a seus olhos. - Serei indiscreto se perguntar o que houve? - Sossega! Não me pesa nada na consciência, mas no coração... - Amou muito alguém? - Amei com verdadeira devoção a Mathaei, o meu marido, que ficou na Polônia, retido pelo exército russo. Servia ao czar Alexandre III, foi enviado à Sibéria para guarnecer as fronteiras entre a Rússia e a Mongólia. Morreu em combate com os mongóis. Como ouviu, sou viúva há um ano. A essa resposta sincera de Stephania, seguiu-se longo silêncio. A lembrança do passado a que ela se referiu parecia doer-lhe muito, ainda, na alma. Palpitava-lhe o peito e as mãos estavam geladas; tremia... - Fale! Que acredita em mim e compreende o meu drama - gemeu ela. Talvez não me dê razão para esta tristeza! Mas há coisas que um homem dificilmente alcança e assimila. - Nem quando ama? – perguntou Antenor, e continuou - posso não compreender, mas acredito na tua sinceri117 dade e devo consolar-te nesta tristeza, que não é um remorso? É? - Como já te expliquei, fui casada na Polônia, secretamente é verdade, ninguém, nem os meus pais sabiam. Fui obrigada a deixar o meu marido, por imposição do meu pai, quando emigramos para o Brasil. Recebi a notícia da morte de Mathaei já no Brasil. E toda minha confidência se resume nisto. Tive uma paixão da juventude, quando o amor vem com a força dum furacão. Aquele afeto dominou-me toda; parecia um sentimento imortal. - E ele?- perguntou Tavares ansioso. - Amava-me, sim! Para nós o amor era um êxtase divino, uma espécie de sonho, uma transfusão absoluta da alma para alma. A separação foi dolorosa, triste e fatal. E aqui estou eu rememorando o passado. Às vezes penso que não vim ao mundo para ser feliz nem dar felicidade a ninguém. É o meu destino. Um sorriso forçado, de simpatia, apareceu nos lábios do Tavares. - Você naufragou à vista da praia - disse ele - mas do naufrágio sobraram-te as lembranças; mas sabe o que é naufragar em alto mar, solitário, e perder tudo, menos a vida? Comigo foi assim. Sim! Perdi muito mais, perdi a esperança, o vislumbre do futuro. Deixei-me ir assim, rio abaixo dos anos, gastando a energia da juventude, sem cálculo nem arrependimento, até que me bateu a hora da decepção. Meu coração ficou árido e seco! – continuou Tavares com voz embargada - é certo que, ao lhe encontrar ressuscitei, voltei a amar, e se o futuro me guarda ainda alguns dias de felicidade, só a você ficarei devendo esta ventura; só você poderá fazer este milagre... Antenor Tavares desconfiava dos sentimentos e das pessoas, mas isso não provinha só das decepções que encontrara, ele era mais do que tudo, inconstante, débil de 118 espírito e volúvel de coração. Falaram então dos seus projetos do futuro, do casamento, da viajem de núpcias que fariam depois. Antenor estava mais jovial e feliz que nunca. Perdera as maneiras friamente polidas. Tornara-se expansivo, loquaz, terno, como antes. Não era só a situação que explicava esta mudança; era a volubilidade do seu espírito. Passaram-se mais alguns dias. Aproximava-se a data do casamento. No dia 8 de agosto de 1891, veio o padre Ladislau Smolucha rezar missa na Colônia Água Branca. Neste dia houve muitos casamentos e batizados, pois o padre demorou muito para visitar a Colônia. Voltaria, especialmente, apenas em dezembro, para oficiar a Missa do Galo e realizar o casamento da filha de Jakób Gryczynski. Stephania, estava na cozinha, de avental branco à cintura. Era véspera de Natal e do seu casamento. Ela ajudava a mãe no preparo da ceia, pois teria convidados especiais. Além da sua família, jantaria com eles seu noivo, Antenor Tavares. Na casa, tudo estava em movimento e rebuliço. As pessoas da família se ocupavam com os preparativos para a noite de Natal, que esse ano prometia ser ainda mais alegre do que de costume. Em cima da mesa, no canto da sala, foi arrumado um grande presépio. Habilmente disposta estava a manjedoura com o menino Jesus deitado sobre um molho de palha de trigo. Ao seu lado estava a mãe Virgem Maria e São José, contemplando o filho recém-nascido; juntos, o jumento, o galo, a vaca, um grupo de ovelhas e os pastores, aos quais o anjo anunciava o nascimento de Jesus. No último plano o céu, onde brilhava a estrela de Belém e uma nuvem resplandecente com um grupo de anjinhos cantando louvores ao Senhor. Ladislau trouxe um pinheirinho verde do campo. Foi enfeitado de bolas de vidro coloridas, sininhos, cordões 119 cintilantes e coberto com flocos de algodão que representavam a neve. Velas pequeninas coloridas, chocolates e bolachas de mel completavam o arranjo. Toda esta arrumação dava um ar solene, de festa, ao ambiente. O costume de armar a árvore de Natal veio com os imigrantes europeus, seus descendentes continuaram a tradição. Precisavam também enfeitar a igreja. Na porta principal colocaram arcos de galhos de palmeira e bandeirinhas coloridas. O altar foi coberto com toalha branca de renda. Em cima os castiçais de prata, com altas velas de cera amarela e esparsos pela nave da igreja, guirlandas e buquês de flores coloridas colocados em vasos de barro. Stephania, tendo terminado os preparativos, pôs a mesa do jantar e foi se arrumar para esperar Antenor. “Ele está acostumado a ver moças elegantes e bem vestidas na cidade onde mora”- pensou e subiu correndo os degraus da escada. Tinha em seus movimentos aquela mesma gentileza e vivacidade de jovem impaciente e irrequieta. Aprontou-se rapidamente e momentos depois saiu do seu quarto com um vestido de étamine azul claro; os longos cabelos em tranças caíam lhe pelos ombros. Desceu a escada correndo. Sentada próximo à janela em um banquinho, esperava pelo noivo. Em sua frente, um perto do outro, sentavam José e João, amigos dos seus irmãos. Enfeitiçados pela beleza de Stephania, os olhares gulosos dos dois moços pareciam abelhas adejando em torno de um botão de rosa. - Era véspera de Natal, mais algumas horas e eles uniriam para sempre os seus destinos – refletia Tavares. Esse ato decisivo e grave da vida do homem, ele encarava com tranqüilidade, sem hesitar pela responsabilidade e nem recear as conseqüências que adviriam com o seu procedimento. Ao encontrar a noiva, num ímpeto fez a pergunta: - Jura-me mais uma vez que me ama! Jura que já esqueceu teu marido falecido – implorou ele. 120 - Pelo céu, por ti, juro que te amarei sempre! Por que não o amaria agora que vai ser meu marido? Ou não serás totalmente meu? – indagou Stephania. - Duvidas? - Eu não sei duvidar; recear sim. Já te disse por que razão. Mas hoje não temo, não; sinto que me amas de verdade. Só te peço que esqueças o meu passado, como eu procuro não lembrar. Esqueça também o teu. Domingo, dia de Natal, às oito horas, Antenor vestiu-se com esmero. Não demorou muito e parou um carro a sua porta. Entrou nele e mandou tocar para a igreja, onde Stephania o esperava. Vestida de branco, uma grinalda de flores do campo ornava sua cabeça. Estava linda, com um sorriso tranqüilo nos lábios. Casaram-se no dia 25 de dezembro de 1892, na igreja de Água Branca, com a benção do padre Ladislau Smolucha. A igreja estava cheia; pois houve mais casamentos e batizados naquele dia. Os seus padrinhos foram sua irmã Ksavera Antônia e Aleksander Kowalski e o irmão Ladislau, com a noiva Leonora Jakubowski. Os pais de Stephania ofereceram uma pequena recepção em sua residência. Os noivos viajaram para Paranaguá, onde o casal ia fixar residência. Ele pleiteava um cargo de superintendente no porto daquela cidade. Esperava consegui-lo em breve. Mas, o tempo foi passando e a nomeação não vinha. Aparentemente viviam felizes. Stephania envolvida com o trabalho do lar e o cuidado com os filhos que nasceram, um menino e uma menina. Tavares, aguardando o cargo em Paranaguá, continuou no trabalho de demarcação de terras em São Mateus e Água Branca, fato que o obrigava a constantes viagens. Muitas vezes levava junto a mulher e as duas crianças, que ficavam em casa dos pais dela, em São Mateus, vila onde Jakób tinha se mudado. 121 Tavares viajava muito, dizia ser por causa do seu trabalho. Das freqüentes viagens dele a Curitiba, Stephania começou desconfiar. Queria saber a razão. Insistiu. Exigiu. Naquele dia, depois do café da manhã, que tomou sozinho, o agrimensor desceu para o escritório. Quando todos tinham partido para o trabalho, ele deixou-se ficar, inquieto, a desejar que o tempo passasse depressa. O velho relógio cuco, da sala de jantar, bateu lentamente as horas. Ele ouvia as vagarosas pancadas reboando, tristes, por todo o casarão silencioso. Tavares mandou chamar Stephania. Ela atendeu, altiva, mas tranqüila. Ele começou a andar pela casa, evitando olhar para a mulher. Ia do escritório para a sala de visitas, olhava o retrato de casamento deles, entrava para a sala de jantar, postava-se na frente do relógio, seguia com os olhos por alguns instantes o movimento do pêndulo, lembrando-se de outras esperas angustiosas do passado. Resolveu falar. - Stephania, nossa vida não pode continuar assim. Você está ficando mal humorada, agressiva, fato que me entristece. Sabe que a amo, acima de tudo. Acredite, por favor, naquilo que eu disser. É difícil e doloroso, mas devo te falar, por mais que sofra. - Casei-me aos vinte anos de idade, com Mariana, um amor tranqüilo de infância. Durante um tempo fomos felizes. Eu desejava ter filhos, mas ela apresentou uma doença grave, necessitando de longo tratamento e cuidados específicos. Foi condenada à cadeira de rodas. Esta desgraça ocasionou a ruína das nossas vidas. - Eu era jovem, cheio de vigor, de alegria, não consegui renunciar a tudo isso; a minha juventude reclamava. Confesso-te que quando o médico falou, eu não compreendi de imediato, todo o horror da situação. Só via ela minha esposa querida, frágil, doente, inválida. Meu coração con122 frangeu-se. Senti imensa pena dela, de mim e da infelicidade do nosso lar. Minha querida, compreenderei a tua perplexidade, mas até que ponto ainda me amas para perdoarme?- implorava ele. Stephania, ainda calma, resolveu dizer o que mais de uma vez protelara: - Tavares, eu vou ser franca, eu não quero mais viver com você. Não quero! Você é casado com outra. Como conseguiu enganar-me de modo tão infame? Você è hipócrita, vil e covarde. Jurava que me amava; lembro a época em que vinha à minha casa, dizia estar apaixonado, e sei que, quanto mais viver contigo, maior será a minha desilusão. Não confio mais em você. - Então, quer me abandonar? Não faça isto! Você sempre foi, e sempre continuarás sendo para mim, uma deusa, a quem adoro. És a única mulher do meu coração, não me abandone. - Não e não! – gritou ela - não o perdoarei, mesmo que se ajoelhe a meus pés; primeiro terá de separar-se da tua esposa, se quiser que eu o aceite de volta. Escolha! Eu exijo! Ou ela ou eu! Caso contrário, vou embora e levo meus filhos comigo. Para vivermos brigando, não nos convém. Dou-lhe a liberdade; e você restabelece a minha. - Mas, por favor, tente compreender, eu não posso abandonar Mariana, incapaz e doente como se encontra. Seria uma crueldade, uma falta de humanidade, eu não me perdoaria nunca - suplicava Antenor. - Sim! - disse ela, finalmente - compreendo que tua situação é horrível. O culpado deve sofrer mais do que o inocente, quando assume a culpa de todo mal. Mas como hei de te perdoar e voltar a ser tua mulher depois de descobrir a duplicidade de tua vida, do embuste e da mentira? Que vida triste eu teria com você! Assim que se acalmou um pouco, continuou: 123 - Sim, a verdade é que ela é a esposa legítima, é casada legalmente, enquanto eu casei com você só na igreja. Agora eu compreendo, o porquê do segredo do nosso casamento, você temia que chegasse ao conhecimento da tua esposa e dos seus parentes. Portanto, tudo foi muito bem planejado por você para enganar-me e a meus pais. Não compreende, Antenor, que a minha vida foi prejudicada por você? Eu fui vítima da tua paixão doentia, da tua falta de caráter. Tudo sacrifiquei por você e seus filhos e você me enganou... Como poderei acreditar em você, agora? Nunca. - Não, agora tudo acabou, tudo, tudo o que constituía a justificativa para a minha dedicação, para o amor que lhe dei... Para que me esforcei? Para que trabalhei? É horrível que tudo se tenha transformado na minha alma; em vez de amor e ternura, já não tenha dentro de mim senão ódio e desprezo - com estas palavras Stephania extravasou toda a revolta que sentia. - Stephania querida, compreendo tudo perfeitamente, mas não se atormente tanto. Eu sei que estás ofendida e não és capaz de ver as coisas como elas são realmente. Fica comigo, vamos esquecer tudo, refazer a nossa vida. Ainda podemos ser felizes juntos, com nossos filhos, porque os amo muito. Se você for embora, eu não permitirei que os leve. Eles também são meus! Deixe-me as crianças! - Jamais! - gritou ela, enfurecida – eles vão comigo, para onde eu for. - E para onde você vai? - Para a casa dos meus pais, em São Mateus. - E se me casar com você, também no civil? - Casar comigo? Se você já é casado! Quer ser bígamo? Isto é crime, ou você não sabe? Não quero, não lhe convém. Desejo apenas que me deixe partir em paz. O golpe foi terrível e mais profundo do que nunca. Ela não receava uma rival triunfante, mas temia uma invá124 lida que requeria assistência continua, com dedicação. Agora, sentia desprezo pelo homem que a enganara. Arrumou devagar as canastras, colocou dentro os cobertores, as roupas de cama, mesa e banho A roupa dela e das crianças foram guardadas no baú. Encaixotou a louça e as panelas. Levou o papagaio. Os volumes foram colocados no carro de bois. Stephania e as crianças iriam no lombo de mulas. Partiu de madrugada. Ela mandara Tavares embora da sua vida, mal pode resistir a tanta humilhação. Uma lágrima - a última que verteria pelo pai dos seus filhos, - rolou da sua face. E esta foi a única expressão do seu imenso desespero. Stephania foi embora para São Mateus, levando as crianças, foi pedir proteção ao pai. Dias depois, Tavares, desesperado, foi buscar os seus dois filhos, os quais trouxe de volta, após muita discussão e violentos protestos de Stephania. Deixou-os aos cuidados de seus parentes, na Capital. Ela negou-se, decisivamente, a voltar com ele. Seu casamento tinha durado apenas cinco anos. Ela nunca perdoou a traição de Antenor Tavares. Após o desenlace catastrófico da sua união com Tavares, ela tratou de refazer a sua vida. Estando já com 28 anos, casou-se em 24 de janeiro de 1899 com Antônio Repecki, de 20 anos de idade, amigo dos seus irmãos. A cerimônia realizou-se na igreja de São Mateus, celebrada pelo padre Jakób Wrobel (registrado no livro de casamentos da paróquia de São Mateus). O casal residiu na colônia Canoas por um ano. Mudaram-se depois para cidade de Posadas na Argentina, onde morava seu irmão Alexandre. Stephania e Repecki tiveram uma filha. Após curta convivência, separou-se dele também. Efetivamente, não nasceu para o casamento. Ela não esquecera Mathaei, o seu primeiro amor, portanto, não conseguia ser feliz e proporcionar felicidade a alguém. Levan125 do a filha, foi trabalhar como governanta para uma família de aristocratas argentinos, em Buenos Aires. Viveu longe da família, na Argentina, por longos trinta anos, sem dar notícias aos pais, irmãos, ou ao casal de filhos que ficaram com os parentes do pai, na Capital. Casou a filha de Repecki com um cidadão checo, que residia em Buenos Aires. Durante esse tempo, em Paranaguá, faleceu Antenor Tavares acometido de malária. Sua esposa Mariana tinha morrido alguns anos antes em Florianópolis, onde vivia aos cuidados dos parentes, era pessoa inválida. Decorrido todo esse tempo, Stephania voltou para o Brasil, em 1920. Veio de navio de Buenos Aires, desembarcando em Paranaguá. Seguiu de trem até Porto União, lá embarcou no vapor que subia o Rio Iguaçu até São Mateus. Quis visitar seus pais, sem saber que Jakób e Jozepha tinham falecido recentemente, um após o outro, com diferença de poucos dias. Foram sepultados no cemitério de São Mateus, como imigrantes, sem placa indicativa no túmulo e sem certidão de óbito, como era costume da época. Stephania chorou muito, rezou no cemitério pela alma dos pais e pela última vez, dirigiu-se ao local onde existia a morada de paredes brancas. A surpresa foi chocante, pois lá só encontrou as ruínas da casa paterna, após o incêndio que ocorreu dias antes. Olhava sem compreender... O espetáculo que se apresentava feriu fundo a sua alma já tão sofrida. Mais uma vez o destino a golpeava. Andou pelos entulhos, procurando encontrar sinais onde antes localizavam-se a sala, os quartos, a cozinha. Removendo as cinzas encharcadas pela chuva com um pedaço de pau, enxergou algo brilhante. Abaixou-se e, surpresa, viu o anel misterioso, de poder fatídico, com a pedra de opala negra e hieróglifos egípcios, dado a ela pelo seu ma126 rido Mathaei, por ocasião da despedida. Ela havia esquecido o anel na gaveta da sua cômoda, ao partir de mudança para Argentina. Realmente, nunca pudera esquecer Mathaei, conforme ele profetizara, e a vida não lhe deu chance de ser feliz, foi madrasta para ela. Stephania veio para Irati, em 11 de setembro de 1920, para o casamento do seu afilhado João, filho do irmão Ladislau e Leonora, aos quais estimava muito. Retornou para Buenos Aires para reassumir o seu cargo de governanta, só voltando para Irati, em visita, em 10 de julho de 1930. Neste ínterim recebeu uma boa proposta de emprego em São Paulo, para trabalhar como governanta na residência da família do conde Matarazzo. Aceitou, e novamente foi embora para longe de sua família. Mantinha correspondência com seu irmão Ladislau. Numa carta de Leonora soube do grave estado de saúde de Ladislau. Voltou para Irati no Natal de 1933. Seu irmão faleceu no dia 20 de fevereiro de 1934. Stephania estava com 64 anos de idade. Sofria de asma brônquica, doença que adquirira após uma forte gripe, agravada pela depressão que a acometeu em seguida. Esse fato a incomodava no desempenho das suas funções como governanta. Já estava cansada de trabalhar e viver na casa de estranhos, mesmo tendo ocupado cargos e posição de confiança nos empregos. Ansiava por possuir um canto seu e tranqüilidade, mas não tinha economizado o suficiente para comprar uma casa. João, seu afilhado, homem generoso, de coração bondoso, condoeu-se da sua sorte, construiu-lhe uma pequena casa, no meio do grande pomar de sua propriedade. Ela teria ali paz, segurança e conforto. Comprometeu-se também a custear-lhe a alimentação e remédios, e tudo mais que fosse necessário. Stephania aceitou e veio morar na colônia Alto da Serra dos Nogueiras. 127 LADISLAU E LEONORA No domingo haveria festa na igreja de Água Branca. Os imigrantes aguardavam o acontecimento com grande expectativa. Chegaram colonos de outras comunidades. Era a ocasião em que podiam se encontrar e trocar as experiências. Os mais velhos para falar sobre a terra e as lavouras plantadas e da colheita. Os jovens, moças e rapazes, para desfilar em frente da igreja nos seus trajes domingueiros. Nessas ocasiões o flerte e o galanteio imperavam. Foi num domingo desses que o jovem Ladislau encontrou Leonora. Ela passou por ele, olhou-o nos olhos e sorriu. O moço encorajado pelo sorriso, perguntou-lhe, sem perda de tempo: - Posso acompanhá-la? - Não sei se deve... A moça respondeu com um gesto e deu alguns passos, a fim de ir embora. Ladislau deteve-a, colocando-se entre ela e a amiga que a acompanhava. - Não se vá embora ainda - pediu ele. - Por quê ?- perguntou a moça, ruborizando as faces. - Você não desconfia que gosto da sua companhia? Leonora baixou a cabeça e quis dar outra volta para poder esquivar-se dali; porém ele interceptou-lhe de novo o caminho. - Deixe-me passar - pediu ela mansamente. - Não antes de darmos uma volta e conversarmos um pouco, por favor - implorou Ladislau. Saíram a passear pelo pátio da igreja, conversando sobre nada, apenas para poder olhar-se nos olhos, encantados, apaixonados. Leonora era de uma beleza singela; de compleição delicada; rosto rosado, miúdo, parecida com uma boneca de porcelana; ressaltavam-lhe na face, os olhos tão azuis 128 como o céu límpido de verão. Cabelos castanhos, presos em tranças. Trajava vestido claro, esvoaçante, que dava maior graça ao talhe esbelto e gentil. Era alegre e brincalhona. Seus pais, Adalberto e Marcela Jakubowski, imigrantes poloneses, eram naturais de Debsk, distrito de Mlava, Província de Warszava (Varsóvia). Desembarcaram com os filhos, no Porto de Paranaguá, no dia 15 de março de 1891, vindos do Rio de Janeiro pelo vapor “Estrela”, após permanecerem de quarentena na Ilha das Flores. Juntamente com outras famílias de imigrantes, foram transportados em carretões puxados por bois, dirigindo-se para a colônia Canoas, próxima a São Mateus. Foram assentados em lotes já demarcados. Jakubowski, homem trabalhador, determinado, como um autêntico mazowiano, lutou com tenacidade no seu quinhão e já havia superado as primeiras dificuldades. Leonora e Ladislau encontraram-se diversas vezes em festas e matinês dançantes aos domingos, no clube da comunidade em Água Branca. Certa vez, já cansados de dançar, deixaram o salão e saíram para o pátio. Um ipê amarelo, coberto de flores, oferecia sua sombra refrescante aos exaustos dançarinos. Encostaram-se na árvore, rindo e conversando, achando graça em tudo, despreocupados e felizes. Ladislau passou os braços em volta do corpo de Leonora, aprisionando-a ao tronco da árvore. Era arriscado o que iria fazer. Mas perdera naquela ocasião toda a lucidez de espírito. O lugar estava deserto e teria tempo a seu dispor para lhe dizer tudo. Mas seus lábios ficaram mudos, enquanto os olhos falavam com a eloqüência da paixão mal contida, prestes a irromper. Cravando os olhos em Leonora, disse com voz trêmula: 129 - Não deixarei você sair daqui, sem que me diga se gosta de mim ! Fale por favor! Você me ama?- implorava o jovem apaixonado. Não obteve resposta, apenas um sorriso e o olhar brejeiro que falava: - Amo sim, ainda duvida disso? Impetuoso, puxou-lhe a cabeça para junto de si e antes que ela pudesse fugir, encheu-lhe a boca de beijos. Ela mal o enxergava. Teve um gesto ingênuo de defesa, o coração lhe batia como um pássaro desesperado. - Não! pare com isso! Agora não! - foi quase um grito. E ela desprendeu-se dos seus braços, e se foi, correndo sem olhar para trás. Terminados os festejos, Jakubowski reuniu a família e rumou de volta a Canoas. Era já noite fechada quando chegaram em casa. Leonora desceu rápido da carroça, abriu a porta, transpôs a soleira e entrou na sala, dançando... Sentia-se eufórica, feliz, mas um tanto ansiosa. Precisava falar com seus pais, sobre o momento maravilhoso que estava vivendo. Nunca sentira-se assim, parecia que estava planando nas nuvens. Encontrara o homem da sua vida. A emoção dela era sincera e forte e seus olhos pareciam transmiti-la a tudo que a rodeava, desde a lua cheia que brilhava lá fora, até o último grilo que cantava na relva: - Olhem! vejam a felicidade do meu coração, encontrei o homem amado. A minha alma está em festa! Dancem e cantem comigo! O pai desconfiou de tanta alegria. - Leonora, você viu o passarinho verde? - perguntou em tom de brincadeira. - Não foi nenhuma ave maravilhosa que encontrei, meu pai! mas o homem da minha vida. Conheci o moço 130 Ladislau Gryczynski, por quem meu coração bate emocionado. Peço permissão para que ele freqüente a nossa casa. - Se é do teu gosto, vou autorizar! também, para conhecê-lo melhor. No domingo seguinte Ladislau foi visitá-los. Vestia um terno escuro, camisa branca e barrete de pele de astracã na cabeça, o qual tinha trazido da Polônia. Cavalgava um cavalo negro, de pelagem lustrosa, ornado com jaezes. Era um esplêndido animal e o cavaleiro que o conduzia montava com garbo, no selim de couro, coberto com pelêgo vermelho de pele de carneiro; os pés suspensos em estribos. Segurava com firmeza as rédeas da montaria, como um cavalheiro nobre, que, em verdade, o era, mesmo que sua linhagem se perdesse nas brumas do tempo. Leonora mostrou-se tão expansiva naquele dia; verteu de tal modo a vida que nela palpitava, que a mãe compreendeu tudo o que se passava entre ela e o moço visitante. Simplesmente o amor despertou nos seus corações. E com a ingenuidade das almas simples, resolveram juntar os seus destinos. Não interrogaram o futuro. Entraram nele sem receios, seguindo a luz radiante da felicidade. Numa tarde de visita a casa de Leonora, Ladislau expôs a ela a necessidade de apressarem o casamento. - Quer a minha resposta hoje?- interrompeu a moça. - Poderia ser hoje?- insistiu ele. A mãe Marcela, que estava presente, apoiou a idéia do jovem pretendente. - Convém decidir o quanto antes - disse ela - não podem deixar passar muito tempo, pois que já é época de preparar a terra para o plantio da lavoura. Poderiam plantar na terreno de vocês. - Certamente, a senhora tem toda razão. Com o consentimento do pai Adalberto, combinaram a data e os pormenores do enlace matrimonial. Casa131 ram no dia 28 de dezembro de 1894, na capela da vila de São Mateus, sendo oficiante o padre Jakob Wrobel. Eram muito jovens ainda, Leonora com apenas 17 anos de idade e Ladislau com 21 anos, mas estavam apaixonados, e o amor tem pressa. Começaram a vida em comum com grandes esperanças no futuro, mas teriam que viver o presente, que só lhes ofereceu alegrias médias, sujeitas às condições limitadas e de sacrifício, de colonos emergentes. Ladislau, com as economias que possuía, somando a ajuda do sogro e do pai, conseguiu comprar um lote de terra de 25 hectares, na colônia Canoas, distante 3 quilômetros da sede de São Mateus. Construiu uma casa confortável, sólida, numa clareira aberta no sertão fechado. Coberta com tabuinhas lascadas de pinheiro, as paredes sarrafeadas, as janelas firmes, mesmo que sem vidros, as portas bem acabadas, com dobradiças e fechaduras. Dividida em quatro cômodos, com soalho e forro de madeira. A varanda, com balaustres de madeira artisticamente rendilhados. A casa caiada de branco, com portas e janelas em cor azul, destacava-se das outras construções. Era cercada de ripas lascadas de pinheiro, com jardim na frente e quintal para as hortaliças e um pomar. Atrás um puxado, onde ficava a cozinha com fogão de pedra e chapa de ferro. Um armário para louça e panelas, com cortina colorida que vedava o conteúdo do móvel. O poço coberto no meio do pátio, com sarilho e balde para tirar a água, preso a uma corda. O forno para assar o pão foi feito do lado de fora, perto da cozinha. No interior da casa, móveis modestos, mas havia camas com colchões de palha nos quartos; armários, mesas, cadeiras e bancos fixos nos cantos da sala. Retratos dos antepassados pendurados nas paredes. 132 As janelas da sala com cortinas brancas; nas camas lençóis e cobertas, às vezes até muito pesadas para o clima do Paraná. E não faltaram para o enxoval da noiva os insubstituíveis acolchoados e travesseiros de penas de ganso. Gansos, galinhas chocas com fileiras de pintinhos, patos, leitões e cabritos misturavam-se no terreiro, na hora do trato. Disputavam os grãos de milho com enorme alvoroço. Ladislau construiu na nova propriedade um celeiro e mangueiras para os animais. Depois de tudo pronto estava na hora de ir buscar a jovem esposa Leonora, que ficara em casa dos pais, arrumando a mudança. Para isso ele comprou uma carroça do tipo eslava, puxada por oito cavalos que era dotada de um toldo de couro para proteger as pessoas do sol e da chuva. Servia também de dormitório no caso de não poder chegar ao destino pretendido. Desta maneira viajavam adultos e crianças, ricos e pobres, quando se dirigiam ao interior onde não chegava o trem. Já instalada na sua nova casa, com o passar dos meses, Leonora admitiu, com espanto, que foi apenas um entusiasmo de jovem, uma paixão repentina, que a levou ao casamento. De início houve o delírio, o ardor expansivo, esse fogo dos primeiros tempos de casamento, cuja intensidade foi se extinguindo com o passar dos dias, até serenar por completo. O ciúme, que o marido sentia, ela não sentia e não compreendia. Ela aceitou o amor de Ladislau e correspondia com afeto e compreensão. Com abrandamento das relações domésticas reinava uma felicidade aparente, embora sob a monotonia de um horizonte sem sol. Havia sempre a iminência de uma tempestade, provocada pelo ciúme exagerado do marido. Pois bem, se alguma coisa podia trazer-lhe a alegria, eram os filhos, que vieram em seguida. 133 Feliksia Jozepha, a primeira filha, nasceu em 1° de janeiro de 1896. Foi batizada na igreja de São Mateus no dia 29 de janeiro. Sua madrinha foi Ksavera Antônia Kowalska e padrinho Stephano Miecznikowski, o padre oficiante Ludwig Przytarski (conforme consta no documento arquivado na paróquia da cidade de São Mateus). Em 26 de junho de 1897, nasceu João, prematuro, de apenas 7 meses de gestação; era uma criança franzina, delicada, mas sobreviveu graças aos intensos cuidados maternos. Em 29 de junho de 1899, nasceu Pedro, menino robusto e forte. Cresceu rijo como um pinheiro, jamais dobrou-se às mais violentas rajadas do vento da tempestade que o fustigou durante toda sua vida. Suzana nasceu em 1900, Leonora e Angelica em 1903, eram gêmeas, depois vieram Aldona, Thomás, Thadeu, Ladislau, Lúcia e Mieceslau. Doze filhos ao todo. Era um família grande para Leonora tomar conta e para Ladislau prover as suas necessidades. O cuidado com os filhos e o trabalho doméstico diário, sem trégua, não a deixavam refletir sobre a vida. Aceitava-a como se lhe apresentava. Não gozava muito e não sofria muito; vivia nesta rotina sem cor e sem mudanças. Ladislau Gryczynski (agora Grechinski) viveu na sua propriedade em Canoas, durante 10 anos. Plantava roça de milho no sistema caboclo; quando as espigas amadureciam ele não as colhia, mas soltava uma manada de porcos magros, para engordá-los na roça. Depois era só reunir a porcada gorda e levá-la para o açougue, que possuía na vila de São Mateus. Da carne fabricava lingüiças, presuntos e salchichas, do toucinho fazia banha ou salgava, vendia tudo que produzia para o consumo da cidade. 134 Ocasionalmente, trabalhava como piloto na barcaça “Curitiba” que navegava no rio Iguaçu, renda extra que ajudava nas despesas da casa. Assim foi amealhando economias e pode comprar terras povoadas de erva-mate. Passou a explorar esta fonte, modernizando o sistema de produção. Progrediu financeiramente. E daí em diante foi chamado de fazendeiro da erva-mate. Tendo completado o curso ginasial em Varsóvia, na Polônia, teve facilidade em aprender a ler, escrever e falar fluentemente em português. Tinha vencido o desafio de amalgamar-se à nova Pátria. Ele já se sentia um cidadão brasileiro. Seu pai, Jakób, morou na Colônia Água Branca, durante dois anos. Depois, deixou a casa e o lote de terra, aos cuidados do filho Alexandre e mudou-se para a vila de São Mateus. Junto com os filhos conseguiu superar as dificuldades iniciais e prosperou. Possuía uma residência confortável, com as paredes de madeira pintadas de branco; um bom pedaço de terra já destocada, na Colônia Canoas, onde semeavam o trigo, centeio e o feijão. As roças de milho plantavam em queimadas e, a exemplo dos caboclos, soltavam porcos magros nas plantações de espigas já maduras, para engorda. Também comprou alguns alqueires de terra com erva-mate e passou a explorá-la racionalmente. Nas horas vagas, ajudava Ladislau a tomar conta do açougue e ficava perto dos netos. *** 135 Numa tarde de verão de forte calor, enquanto bebericavam o chimarrão na varanda da casa em São Mateus, o colono Ladislau Gryczynski dirigiu-se ao pai Jacób: - Soube pai, pelas notícias que correm na vila, que lá pelas bandas do município de Imbituva, no caminho dos trilhos da Estrada de Ferro, vai ser inaugurada uma estação de nome Irati. As terras daquela região são muito férteis, há abundância de pinheiros e campos cobertos de erva-mate. Acho que vou dar uma olhada por lá. Se as notícias forem verídicas, compro uma área de terra e mudo-me para lá. - Deve ser verdade, pois fala-se muito sobre aquela região. Eu acho tua decisão correta, você deve ir até lá respondeu o pai decididamente. Dito isto, Ladislau não perdeu tempo, procurou um amigo para companhia, arreou um bom cavalo e foram cavalgando pelo picadão, no meio da mata, por 65 quilômetros de caminhos de tropeiros, tortuosos e lamacentos. No trajeto encontraram, em consideráveis distâncias uma da outra, grandes fazendas com habitações de caboclos, construídas em clareiras no meio do mato, ou mais freqüentemente no campo. Eram assentamentos de caráter instável, costume adquirido dos índios. Não faziam cercas em volta do rancho nem curral para os animais. Criavam tudo solto, à vontade. As vacas, cavalos, cabras, porcos e galinhas andavam soltos pelos pastos nativos. Criavam-se por si. Às vezes o caboclo dava-lhes um pouco de sal para não se alongarem na mata. Cresciam perto destes casebres, alguns pés de ameixas amarelas e goiabeiras. Galhos tortos de pessegueiros inclinavam-se nas janelas. Cães magros rondavam a casa ou deitavam-se à sombra. No chão de terra batida da casa de um só cômodo, no centro, ficava a fogueira de nó de pinho, em cuja volta as pessoas permaneciam o dia todo, conversando e tomando 136 chimarrão. Colocavam uma trempe de ferro em cima do fogão de pedra, onde fervia a panela com o feijão e charque para a refeição. A mistura era a raiz de mandioca, ou batata doce, abóbora e farinha de milho. Quando matavam um porco ou boi, a parentela toda vinha comer até se fartar; ficavam dias a fio. Dormiam em tarimbas forradas de capim, redes, ou esteiras estendidas no chão em volta do fogo. Cobriam-se com cobertores baratos, chamados de seca-poço, ou capas de montaria, como travesseiro usavam a sela do cavalo, a qual todo caboclo possuía. Havia uma mesa de tábua lascada e bancos de tocos de árvores. Mantimento e panelas ficavam em cima de caixas vazias de querosene, num canto do rancho. No verão tomavam banho no rio, como os índios, e no inverno, em gamelas de madeira. Faziam plantio de milho, feijão, abóbora, batata doce e mandioca, em pequenas roças, usando o sistema rudimentar de derrubada da mata, queimadas e plantio no toco. O caboclo, qualificado como nativo, é o descendente dos antigos imigrantes portugueses, principalmente de sangue misturado com índio e negro. São chamados de lusobrasileiros. Era esse o habitante (depois do índio), espalhado por todo este infindável interior brasileiro. Nem sempre eram pobres, mas na maioria das vezes ricos proprietários de alguns milhares de alqueires de terra, em campos cobertos de ervais e densas florestas. Ladislau e o amigo viajaram dois dias, pelas veredas pedregosas de tropeiros, pernoitavam na casa dos caboclos, que são muito hospitaleiros e afáveis. No terceiro dia pela manhã, avistaram as casas do povoado de Covalzinho, lugarejo onde seria construída a futura Estação da Estrada de Ferro. 137 A agitação do lugar era intensa. Operários trabalhavam na construção de casas; outros aplainavam o terreno para futuras ruas; carroções de oito cavalos encostavam para descarregar as vigas (dormentes) para lastro das linhas da Estrada de Ferro. O movimento no comércio era grande, pois chegavam imigrantes das colônias para abastecer-se de víveres e ferramentas. Covalzinho era o centro da rica região da futura vila de Irati. Ladislau gostou do que viu. Animado, procurou uma casa para alugar onde pudesse abrigar a família, que logo traria de mudança para Covalzinho. Encontrou uma habitação, na margem esquerda do rio das Antas. Era uma casa de madeira, grande e espaçosa, que nos dias claros de verão permitia ver pelas janelas, o azul do céu, o rio das Antas correndo silenciosamente no seu leito, e os pinheirais farfalhando os ramos ao soprar do vento. A construção era simples, com quatro janelas de frente, baixas, largas, quase quadradas. Do lado direito estava a porta principal, que dava para uma varanda e pátio cercado de ripas, cobertas por cipós de chuchu, que se espalhavam até o telhado da casa. No canto tinha um pequeno jardim de flores, onde espreitava a melindrosa maria-sem-vergonha, as dálias e papoulas de todas as cores. No pomar próximo, cresciam alguns pessegueiros, ameixas amarelas, pés de limão e laranja. No quintal podia-se plantar verduras e hortaliças. A casa era caiada de branco, com portas e janelas verdes. Ladislau agradou-se da moradia e alugou-a do dono, um imigrante alemão que ia se mudar para Curitiba. Algum tempo depois comprou a casa, onde residiu durante os 10 anos seguintes. Leonora enfeitou a residência nova com cortinas coloridas nas janelas, dependurou retratos nas paredes da sala. 138 Entre outros, destacavam-se os retratos dos pais dela e do marido. A um canto, pendia da parede um crucifixo, aos pés do qual bruxuleava uma lamparina acesa, noite e dia. Sobre uma cômoda, via-se um clarinete em metal dourado, uma ocarina feita de argila dura, um violino e violoncelo, instrumentos musicais que Ladislau trouxe consigo da Polônia, e que dominava com maestria. Ele amava a música. Fazia parte da banda de São Mateus. “A música é vida interior. Quem tem música e livros, jamais padecerá de solidão” - dizia ele. Havia espingardas belgas dependuradas na parede. Um pica-pau empalhado que parecia prestes a voar, postado em cima de uma prateleira. No quarto junto à janela, estava colocada uma cama de casal, coberta com colcha de retalhos coloridos, um crucifixo e um terço de contas na cabeceira da cama. Era uma casa tipicamente polonesa. Da janela da casa viam-se os campos povoados de erva-mate, parecia um imenso pomar repleto de árvores refletindo o verde-escuro das folhas. Eram explorados pelos pioneiros que vieram à procura desta riqueza verde, que foi a base do primeiro ciclo econômico do Paraná. *** 139 IRATI – MUNICÍPIO. Irati, município do centro-sul do Estado do Paraná, sub-região dos pinhais do segundo planalto. Possui a área de 976 quilômetros quadrados. Altitude 812m acima do nível do mar. Clima temperado, com ocorrência de geadas, ocasionalmente, fortes no inverno. Situa-se a 150 quilômetros de Curitiba, capital do Estado, do lado esquerdo da estrada BR277, asfaltada, que leva do porto de Paranaguá a Foz do Iguaçu. A criação do município de Irati foi decretada pela Lei nº. 716 de 2 de abril de 1907. Para sua fundação, foram desmembrados do município de Imbituva, os distritos de Irati, Bom Retiro e Imbituvinha, elevados a categoria de município, com sede no povoado de Irati. As divisas do novo município foram demarcadas seguindo o curso dos diversos rios. Começando na confluência do arroio dos Cochinhos com o rio das Antas e em linha reta através da Serra da Floresta até o rio Caratuva, segue até a barra do ribeirão do Pinho, prossegue buscando as nascentes do rio Caratuva, seguindo por este até o rio Ponte Alta e pelo rio dos Patos até as encostas da Serra da Esperança, segue o rio Cachoeira, o rio Quente, o rio Potinga, o rio dos Barreiros, rio Imbituvinha, rio Imbituva até encontrar o arroio dos Cochinhos no vale do rio das Antas, onde teve início. O rio das Antas serpenteia silencioso, através da cidade de Irati, mas muitas vezes se enfurece ocasionando grandes cheias, com danos à população. Os rios que cruzam a região de Irati se dirigem para as bacias dos rios Tibagi, Ivai e Iguaçu, todos da bacia do Paraná. Geologicamente a região de Irati pertence ao período permocarbonífero de 345 milhões de anos atrás, com topografia ondulada e acidentada. Os terrenos permianos do Paraná, de 140 formação mais recente da era paleozóica, são constituídos de argila contendo partículas de areia, cristais de quartzo, feldspatos e outros minerais. A região de ocorrência do permiano estende-se em faixa com largura média de 120 km, desde a margem do Iguaçu em São Mateus do Sul até São Jerônimo da Serra. Denomina-se, de Formação Irati a jazida de xisto piro-betuminoso, que se inicia em São Paulo e vai até Rio Grande do Sul. O pirobetume é resultante da decomposição de matérias animais, répteis, peixes, insetos e matérias vegetais como algas e sapropel. O xisto em Irati tem afloramentos característicos que fornecem abundância de fósseis animais, peixes e madeira silicificada. A geologia e paleontologia asseguram que a região de Irati durante o Período Triássico foi fundo de mar, há mais de 250 milhões de anos atrás. Encontra-se com freqüência em escavações, trilobites, ostras, estrelas do mar, fósseis de peixes e répteis, inclusive de grande porte como o mesosauro. Desde tempos remotos, nas florestas e campos de Irati, habitavam os índios da tribo dos Iratins, da nação Tupi. Localizavam-se também, na região, diversas aldeias de índios da família Kaingang, inclusive os Botocudos. Vestígios de suas habitações são encontrados pelos agricultores que, ao removerem a terra com arado, descobrem artefatos de pedra polida, como panelas, mão e vaso do pilão, pontas de flechas e facas, vasos de barro e outros utensílios. As matas eram povoadas por diversas espécies de animais selvagens como: tatetos, queixadas, grandes manadas de antas que pastavam pelos campos como gado, tatus, jaguatiricas, onças, veados, bugios e sagüis, esses macaquinhos barulhentos, e os mais diversos pássaros, que eram 141 caçados pelos silvícolas, servindo-lhes de alimento. Os rios eram abundantes em peixes. Os primeiros povoadores de Irati, Cipriano Francisco Ferraz e Pacífico de Souza Borges, chegaram em época desconhecida, procedentes da região de Teixeira Soares. Adentrando pelo sertão afora foram batizando rios e montanhas. A denominação de Irati, dado por eles ao lugarejo onde se fixaram, veio da grande incidência de abelhas mirins, cujo nome indígena era iratim (rio de mel), abelha que abriga seus enxames em oco de pau ou fendas na terra. Em 1839, o bandeirante paulista José Domingues da Trindade, procedente de Sorocaba, chegou à região de Irati e ali se instalou, foi o primeiro povoador de que se tem notícia. Requereu do governo Imperial a concessão de uma sesmaria. Foi lhe outorgada uma grande área de terra composta de florestas de araucária e campos povoados de ervamate. Essa gleba ficou pertencendo a seus herdeiros. Até o ano de 1860 todo esse território era ainda um sertão desconhecido, com matas fechadas de araucárias, imbuías, campos de erva-mate. e taquarais. Esparsas pelo sertão, havia apenas algumas fazendas de caboclos, que criavam gado e porcos soltos no campo. Por volta de 1865, procedente de Palmeira vieram José Veríssimo de Souza e algumas famílias das redondezas de Curitiba. Com a deflagração da Guerra do Paraguai em 1865, contra o ditador paraguaio Francisco Solano Lopes, iniciou-se na Província do Paraná o recrutamento de civis para a guerra. Temendo que alguém dos seus membros fosse recrutado, diversas famílias refugiaram-se no interior da Província, em pleno sertão, seguindo em direção às fraldas da Serra do Tigre. Esses desertores fixaram-se ali dando começo a um povoado, o qual veio a chamar-se de Covalzinho e posteriormente de Irati. O nome provém da existência de um 142 quintal com plantação de couves, ao lado do qual passava o caminho dos tropeiros. Para qualquer indicação de lugar, dizia-se “ próximo ao quintal de covalzinho”. Em 1888, o coronel Francisco de Paula Pires e Emilio Batista Gomes adquiriram do governo uma área de terras devolutas, nas adjacências de Covalznho, com o objetivo de fundar um povoado, ao qual deram o nome de Vila de São João, mais tarde chamado de Irati Velho. O projeto da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, começou em 1889, quando Teixeira Soares recebeu do Imperador D. Pedro II a concessão para construí-la e explorá-la, com o encargo de colonizar as terras devolutas, em torno da linha, em toda a sua extensão. Em 1894 Teixeira Soares sub-rogou os direitos à Brazilian Railway Company, companhia norte-americana. Em dezembro de 1899, quando em início dos trabalhos da construção da ferrovia, achavam-se as turmas de avançamento fazendo assentamento de trilhos, nas imediações do lugar conhecido por Covalzinho, a demarcação e o movimento de ocupação da sua área por intrusos obrigaram os índios Iratins a se retirarem, adentrando nos sertões ainda inexplorados. A estrada de ferro ao ser construída desviou Irati Velho, indo atingir outro povoado. Deu-se à Estação o nome de Irati. Ali existia apenas, além do acampamento dos trabalhadores da construção da Estrada de Ferro, uma casa rústica onde funcionava a bodega de propriedade do coronel Francisco de Paula Pires, chefe político, um dos primeiros moradores. Naquela época Covalzinho era subordinado à sede do quarteirão policial em Irati-Velho, distante três quilômetros deste, ao sul. O desenvolvimento começou a verificar-se nas proximidades da Estação e nas margens da ferrovia com a afluência de novos povoadores. A concorrência de muita 143 gente movimentou o lugarejo. Abriram-se lojas, padarias, botequins, marcenarias, carpintarias, ferrarias e bodegas à margem e no correr dos trilhos. Assim começou a formar-se o núcleo da futura vila de Irati. Foram destocadas e limpas as primeiras ruas; construíram-se a sede da Estação Ferroviária e Telegráfica de Irati, moradias para os funcionários, residências, casas comerciais. A vila recebeu forte fluxo migratório e, em pouco tempo, transformou-se no centro comercial da região. Chegavam tropas de muares carregadas de produtos agrícolas, erva-mate, charque, toucinho, farinha de milho e de mandioca. No começo eram utilizados cargueiros como principal meio de transporte, única maneira de vencer as serras e caminhos quase intransitáveis. Mais tarde os cargueiros foram substituídos por carroças eslavas com toldos de couro, puxadas por oito cavalos. Os migrantes que ali aportaram, adquiriram pequenos lotes de terra para construir as suas casas, de antigos moradores da Fazenda Floresta ou Cadea. Todas as terras desta região, inclusive as de Covalzinho, faziam parte da Fazenda Floresta., de propriedade da viúva D. Cândida Marcondes e seus filhos, que, em 1889, venderam-na ao engenheiro Dr. João Teixeira Soares, quando da sua passagem pela região, para determinar o traçado da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, a ser construída. Quando foi cancelada pelo governo a concessão dada à Brazilian Railway Company, a Fazenda Floresta foi devolvida, por mandado judicial à seus credores, Dr. João Teixeira Soares, João Damasco Vieira, Henrique Liberal, Pires Brandão e Francisco Valadares. Em 1902, o juiz Comissário de Terras de Imbituva, engenheiro Dr. Luiz de Castro Gonçalves e outros, adquiriram de Teixeira Soares a propriedade da Fazenda Floresta. 144 Todo o território do atual município de Irati fazia parte do município de Imbituva, até a data da sua emancipação política. Em 1900 foi criado o distrito policial e em 1902, o distrito judiciário. No ano de 1901, o agrimensor Sebastião Edmundo Wos Saporski, como comissário contratado, realizou o trabalho de medição das terras pertencentes à Fazenda Floresta, situada no município de Imbituva, distrito de Irati. Quando chegaram os primeiros imigrantes todas as áreas, do hoje Município de Irati, achavam-se ocupadas por alguns poucos moradores, quase todos caboclos e bugres. A região foi cortada pelos trilhos da Estrada de Ferro e grande número de comerciantes e profissionais liberais foi atraído pela facilidade de transporte ferroviário e comunicações. Também, graças às terras férteis, foi possível a fixação de imigrantes e um enorme fluxo de colonos veio à região. Começaram a fixar-se no núcleo urbano de Irati e ao redor. Nasceram vilas, povoados e cidades à margem e ao longo da Estrada de Ferro. Chegaram alemães e italianos de Campo Largo, poloneses e ucranianos das colônias próximas a Curitiba, sírios, libaneses e judeus. Em 1904, um grupo expressivo, porém independente, assentou-se em Irati, constituído por poloneses vindos das colônias de Campo Largo, Lapa e Assungui. A grande colônia de Tomás Coelho, localizada perto de Curitiba, foi a principal fornecedora de mão-de-obra agrária. Em Irati não houve colonização oficial, dirigida pelo governo. Os colonos vieram numa migração espontânea, por conta própria, e ali se assentaram. Assim nasceu a hoje grande colônia polonesa em Irati. No ano de 1905, a dois quilômetros da sede da vila de Irati, em direção à Prudentópolis, começou o povoamento da colônia Alto da Serra dos Nogueiras, em terras da 145 antiga Fazenda Floresta ou Cadea, já de início ocupada por 30 famílias polonesas. A proximidade de colônias, como a de São Mateus, que tinha a desvantagem de situar-se longe da Estrada de Ferro, também atraiu colonos poloneses que se estabeleceram na região. De início os métodos de trabalho usados na agricultura eram totalmente rudimentares, sem utilização de quaisquer tipo de máquinas; plantava-se no sistema caboclo. Derrubada a mata, depois de seca, ateava-se fogo e plantavam-se o milho e o feijão, na queimada entre os tocos, muitas vezes ainda fumegantes. Os pioneiros poloneses, colonizadores da Fazenda Floresta, sofreram graves problemas quanto à situação de legitimidade das terras por eles adquiridas. Os imigrantes recém-chegados não estavam cientes das leis e regulamentos que geriam o processo de aquisição de terra, vigentes no Brasil. Então caíam vítimas das fraudes na compra da terra. Enganados pelos pseudo-proprietários, vendedores inescrupulosos, que pretendiam aumentar seus lucros, aproveitando-se da ingenuidade, da falta de orientação e credulidade dos colonos. Vendiam-lhes algo que depois era reclamado pelos verdadeiros donos. Sucedia que, uma vez paga a quantia convencionada pela terra, ao vendedor, o colono exigia a escritura a que tinha direito. Era então informado pelo suposto proprietáriovendedor, que teria que pagar novamente a terra, em face do não cumprimento das exigências legais por ocasião da compra. O colono confiava apenas na boa-fé do vendedor, pelo qual foi vergonhosamente enganado. Tal procedimento vil gerou um clima de grande tensão e revolta na comunidade. Seguiram-se vários processos judiciais, pertinentes à titulação dessas terras. Muitos colonos por não poderem pagar novamente as terras que já eram suas, querendo paz, abandonavam 146 tudo, para fugir da vingança dos caboclos ou de ser despejados da propriedade por mal intencionados políticos locais. Porém, outros procuraram resolver judicialmente a questão. Vinte anos depois de ter adquirido as terras, havia dezenas de famílias em situação instável, podendo, a qualquer momento, ser expulsas das terras já pagas. Primeiro foram povoadas as terras que pertenciam à Fazenda Floresta. Depois os poloneses começaram a ocupar as terras próximas a Irati, como Rio Corrente, Pedra Preta, Rio Bonito, Mato Queimado, Riozinho, Cochinhos, e proximidades, mais tarde até São Miguel na direção de Prudentópolis, e se expandiram em todas as direções, onde encontraram outros assentamentos de imigrantes poloneses. Até o ano de 1920, fixaram-se na região de Irati, nas terras da antiga Fazenda Floresta ou Cadea, aproximadamente, 800 famílias de colonos poloneses, entre eles encontrava-se o típico fazendeiro da erva-mate de São Mateus, Ladislau Grechinski, cidadão dinâmico e laborioso. Muitos de seus amigos e conterrâneos seguiram seu exemplo e mudaram-se para as novas terras. Nesse mesmo tempo, do já bastante desenvolvido Prudentópolis chegaram diversas famílias de ucraníanos. Depois foi muito mais rápido. Chegavam cada vez mais novos colonos dos arredores de Curitiba. Manoel e Pedro Bomfím eram fazendeiros caboclos, posseiros desde tempos remotos em terras devolutas. Ocupavam uma área extensa de campos e florestas, distante 12 quilômetros de Covalzinho, quando surgiu o plano para fundação da Colônia Federal, nas terras daquela região. Os dois fazendeiros foram indenizados, com valor modesto, pela posse e pequenos investimentos que ali fizeram. Em 1908, teve início o projeto oficial dirigido pelo Governo Federal, de colonização da área de 6.240 hectares de terra, da Colônia Gonçalves Júnior. Joaquim F. Gonçal147 ves Júnior foi o Diretor Geral do Serviço de Colonização. Visitou o núcleo em 1909. A área foi demarcada pelos engenheiros Francisco Beltrão e Álvaro Cardoso. Os lotes eram de 10 alqueires. Nesses lotes estabeleceram-se 1.379 imigrantes, das mais diversas procedências: ucranianos, alemães, holandeses e poloneses. As condições primitivas do pioneirismo agrário que ali vigorava nas primeiras décadas da colônia e a dificuldade de sobrepujar o sertão bravio atrasaram muito o desenvolvimento do povoado. Para dificultar a situação já critica dos colonos, no início de 1909, floresceram os bambus e taquaras e houve a proliferação de ratos que devoraram todos os grãos plantados, fato que ocasionou grandes prejuízos aos imigrantes. No ano de 1919, a colônia polonesa de Irati organizou uma Comissão para fazer o projeto e iniciar a construção da Igreja de São Miguel. Foi solicitada ao bispo de Curitiba a nomeação de um pároco para atender à comunidade. Veio o padre Paulo Warkocz. A Sociedade “Wolnosc” de Irati foi fundada em 1921, por 37 sócios. A escola funcionava anexa ao estabelecimento. Stanislau Baranski foi o primeiro professor que ali lecionou, depois Leopold Sokolowski e outros que os sucederam. Em 1934 lecionou o professor Jerzy Gonet e Olga Pintalowa. Em 1938, Getúlio Vargas proibiu o ensino em língua estrangeira, e a escola polonesa foi fechada. No ano de 1922, havia no Estado do Paraná, 100.282 imigrantes poloneses. Aqui, esses pioneiros escreveram a história da sua existência, sua luta como desbravadores e o testemunho da sua capacidade de trabalho. O imigrante polonês, empurrado pela secular carência e insaciável desejo de possuir terra, chegou aqui, deslumbrou-se com a infinidade de terras, a imensidão das 148 florestas, não se acovardou diante das dificuldades, mas pegou no cabo do machado e tratou de domar o sertão. Em 1924, foi construído o Grupo Escolar de Irati, que mais tarde passou a chamar-se “Duque de Caxias”. D. Mercedes Braga assumiu a direção desta entidade educativa em 1930. Dirigiu o Grupo Escolar de Irati, com firmeza, dedicação e competência até 1942, auxiliada por um excelente corpo docente de 17 professoras normalistas e 13 provisórias. Entre elas, D. Cirene Saboia, Heredia Medeiros, Olimpia Amaral Gruber, Siroba Crissi, José Siqueira Rosas, Ednir Araújo Martins e outras. Com o começo da Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918), o comércio de madeira de pinho obteve grande impulso. As serrarias se multiplicaram ao longo da ferrovia São Paulo-Rio Grande. e em toda a região de Irati. Em 1930, com o aparecimento do caminhão, houve a penetração para o interior dos sertões. Foi então que a exploração do pinheiro ultrapassou a erva-mate como fonte de arrecadação do município. O ciclo da madeira veio concorrer para o desenvolvimento socioeconômico de toda Região Sul. Ressaltandose a contribuição da agricultura, na época das terras férteis, que constituiu fator importante na produção da riqueza e da prosperidade de Irati. Nos anos 1930 a 1945, seguiu-se o ciclo da batata, que foi marcado por grande euforia econômica. Durante 15 anos fez a prosperidade dos colonos. Até que as terras exauridas não produzissem mais, não compensando as despesas com a plantação. Era preciso corrigir e adubar o solo, aplicando a tecnologia moderna, mas para isso os agricultores precisavam de recursos que não possuíam. *** 149 ALTO DA SERRA DOS NOGUEIRAS O avô Ladislau Gryczynski residiu na Colônia Canoas, município de São Mateus, durante 10 anos. Seguindo o costume da época, Ladislau e Leonora contraíram núpcias só no religioso. Como o casamento civil era obrigatório (foi instituído em 1885 pelo então Ministro da Justiça Campos Salles), o casal antes de mudar-se para Irati, casou-se no Cartório de Registro Civil em São Mateus, no dia 29 de outubro de 1905. Ele estava com 31 anos, ela com 27, e já tinham seis filhos. (Por um lapso o Cartório mudou o seu sobrenome para Grechinski). O açougue que possuía na vila de São Mateus deixou-o com o pai. Começou um novo negócio de carnes, na vila de Irati. Adquiriu em Irati-Velho 10 alqueires de campo com erva-mate e pinhal, que explorou comercialmente. Nos campos criava cavalos comuns, resistentes para o trabalho de tração na lavoura. Criava também cavalos de raça, que competiam nas raias de corridas. Este esporte era a paixão dos poloneses e diversão de finais de semana. Vacas leiteiras e bezerros, cabras e ovelhas, andavam soltos nos campos abertos, ricos de pastos verdejantes. O avô Ladislau vendeu a propriedade em Canoas, para comprar 12 alqueires de terras de cultura da Fazenda Floresta ou Cadea, na colônia Alto da Serra dos Nogueiras. Só conseguiu legitimá-las em 8 de julho de 1927, isto é, vinte anos depois. A escritura foi lavrada em Irati, assinada por Mário Fialho Valadares e outros, e registrada na Comarca de Imbituva. Em 1914, resolveu desbravar as terras que tinha comprado na colônia Alto da Serra. Convocou os filhos para ajudá-lo na dura empreitada. Seguiram mata adentro munidos de foices, facões, machados, serras e armas de 150 caça, acompanhados por seis peões caboclos, carregando espingardas ao ombro, e a guaiaca cheia de cartuchos de munição. Levou mantimentos em sacos de estopa. Pôs numa mochila os seus instrumentos de orientação e os mapas das terras, e empreendeu a temerária aventura. No primeiro dia não encontraram nenhum obstáculo apreciável, apenas alguns tatus e veados que fugiram espantados ao ouvir os estalos dos galhos na passagem dos caminhantes. Penetraram na mata fechada, abrindo picadas com foice, por entre taquaruçus, fetos e vegetação rasteira. Avançaram durante três dias, não voltaram a ver o sol, apenas raios que se insinuavam por entre as folhas das árvores. A floresta fez-se cada vez mais traiçoeira, ouviamse apenas os gritos dos pássaros e a algazarra dos macacos. O céu da tarde iluminava-se por tênue reverberação dos pirilampos, insetos fosforescentes, abundantes naquelas paragens ao entardecer. Os homens ficavam pasmos com aquela beleza dos sertões paranaenses. No dia seguinte Ladislau verificou a boa qualidade do solo, a localização adequada, plana, e ordenou a seus homens para que derrubassem as árvores, fazendo uma clareira junto ao rio, no lugar mais apropriado da margem, e ali armaram o acampamento inicial. Mais tarde construiu a casa para a família, que ali habitou durante 20 anos. Mudou-se da vila de Irati para a colônia Alto da Serra dos Nogueiras no ano de 1914. Trouxeram mulas carregadas de mantimentos, carroças de bois com móveis e utensílios domésticos, baús com roupas, animais miúdos em gaiolas. Uma vaca com bezerro, cabras com crias e cavalos andando em tropa, tocados pelos peões. Instalou-se na nova propriedade, dando continuidade ao desbravamento das matas para o cultivo de cereais .Já existiam nas vizinhanças moradias de diversas famílias de imigrantes vindos de São Mateus, que eram seus conheci151 dos e amigos, portanto não foi difícil reatar a convivência e a amizade. O avô Ladislau era um homem culto e inteligente, falava quatro línguas fluentemente, o polonês, alemão, russo e português. Extremamente sociável, não faltava às reuniões da comunidade, particulares ou oficiais. Comunicativo, operoso, possuía aptidão natural para o comércio. Aprendeu com facilidade a falar, ler e escrever em português, fato que o ajudava muito no relacionamento com a comunidade local, tanto que o governo municipal nomeou-o como inspetor de quarteirão. Nas eleições gerais de 1916, foi eleito como prefeito municipal de Irati o cidadão João Braga dos Santos Ribas, e para a Câmara Municipal, Ladislau Grechinski, como um dos quatro camaristas. Participativo, interessava-se por acontecimentos no mundo. Fazia parte dos eventos, organizava as recepções para os representantes do governo brasileiro e polonês que vinham à região. No ano de 1920, visitou a colônia iratiense, inclusive Alto da Serra dos Nogueiras, o primeiro cônsul polonês em Curitiba, Sr. Kazimierz Gluchowski, ocasião na qual foi recepcionado pela comissão de colonos poloneses, tendo à frente Ladislau Grechinski. O avô Ladislau foi uma pessoa sempre atuante na sua comunidade. Em 17 de julho de 1918, com marcante espírito empreendedor, promoveu a instalação da Cooperativa de Consumo dos Agricultores do Alto da Serra dos Nogueiras Ltda. tendo por sede o galpão anexo à escola da Sociedade Cultural “Henryk Sienkewicz”. Foram eleitos como diretor-presidente Ladislau Grechinski, como secretário José Kwiatkowski, e tesoureiro Pedro Krzyzanowski. Programada para duração por prazo indefinido, funcionou satisfatoriamente durante três anos; infelizmente foi liquidada em 10 de maio de 1921. 152 O motivo do encerramento das atividades da Cooperativa foi a negação pela Câmara Municipal de Irati da prorrogação do alvará necessário para o seu funcionamento. Não reconheceu o grande beneficio social desempenhado pela Cooperativa; os camaristas foram pressionados pelos comerciantes da praça que viam seus negócios prejudicados, com a preferência dos agricultores em comprar da Cooperativa, onde eram sócios. Atribui-se o insucesso das cooperativas a falhas humanas. A ignorância é responsável pela maioria dos problemas. As crendices, a falta de espírito associativo, a desconfiança, mas também a falta de iniciativa, de vocação e a acomodação ante os problemas, fizeram ir por terra as incipientes cooperativas dos colonos. João Gryczynski, filho de Ladislau, comprou o saldo das mercadorias da Cooperativa, iniciando assim a sua caminhada no comércio, que durou quase meio século. Ladislau cultivava com grande dedicação um grande pomar. Havia pés de laranjeiras, pereiras, macieiras, ameixeiras, limoeiros, pessegueiros, vinhedos e plantação de morangos. Fazia enxertos experimentais em plantas de diversas espécies. Ele era lavrador, botânico, veterinário e cientista por experiência própria, um leigo curioso. Cultivava no seu pomar um canteiro experimental de soja, planta originária da China, consumida como alimento há séculos naquele país; ele recebeu as sementes do cônsul polonês. Tinha sede de conhecimento. De caráter curioso, desejoso em informar-se, lia muito, estudava a ciência das ervas, dos ungüentos, tornou-se perito nas febres, contusões e luxações, nas feridas e apostemas. Curava com rezas pessoas e animais; cavalos, vacas, cães e porcos. Aplicava a arte dos benzimentos e a cura pelas plantas medicinais. Foram contínuos os seus atendimentos à comunidade, numa 153 época em que havia escassez de remédios e falta de recursos médicos, nesta distante região do sertão brasileiro. O avô Ladislau era um místico e visionário. Jamais se descuidava do seu preparo intelectual. Aqueles sonhos e ânsias de conhecer as maravilhas do mundo levou-o a estudar com insistência a Cabala, aprofundava-se mais e mais neste místico conhecimento, particularmente na teoria e no simbolismo dos números. Parece que os genes dos seus antepassados judeus estimulavam-no a prosseguir no estudo da vida espiritual. Pertencia ao Centro Esotérico do Pensamento e da Doutrina Rosa Cruz, que é o sétimo grau do rito maçônico francês. Aprofundou-se nas interpretações de Nostradamus, e com obstinação se apegou aos livros de misticismo e à clarividência. Fazia experiências de levitação. Na tentativa de chamar os espíritos, às vezes se confundia, pois não conhecia bem a fórmula adequada. Ele criava galos garnisés. Tinha um espécime pequeno, de cor branca, que o acompanhava onde ele fosse. Quando em casa, o garnisé se empoleirava no espaldar da cadeira perto do avô. Fato intrigante é que quando o avô morreu, encontraram o garnisé morto no portão de entrada do pátio. Os netos se assombravam com seus feitos espantosos como adormecer a galinha com gestos e palavras. Também aquelas alucinantes sessões de levitação numa reunião espírita ficaram impressas na memória das crianças. Deslumbrados ouviam suas histórias fantásticas que haviam de se recordar pelo resto da vida. Como viram o avô naquela tarde, sentado contra a claridade reverberante da janela, enchendo com a sua voz clara e profunda os espaços mais recônditos da imaginação; e havia de transmitir aquela imagem como uma lembrança hereditária, a toda sua descendência. 154 “Todas as coisas têm vida própria, tudo é questão de despertar a sua alma”, dizia o avô com voz incisiva, e apresentava um imã, uma grande ferradura imantada, e todo mundo se espantou ao ver que metais como colheres, facas ou agulhas, eram atraídas pela ferradura. O avô, cuja fértil imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, pensou que era possível se servir daquela invenção para desentranhar o ouro da terra. Durante vários meses empenhou-se a explorar palmo a palmo a região, inclusive o fundo do rio que passava na sua propriedade, e os netos curiosos o acompanhavam nestas buscas. Não conseguiu descobrir nada. A avó Leonora perdeu a paciência e gritou enfurecida. “Se você pretende ficar louco, fique sozinho, não tente incutir nos outros as suas idéias malucas”. O avô não se conformou com o fracasso do seu imã e passou a ficar longas horas debruçado sobre a mesa na sala, estudando e fazendo cálculos das possibilidades estratégicas de um novo engenho, por ele inventado e cujo projeto desenvolvia. Tendo abandonado completamente as obrigações na lavoura, permanecia até altas horas da noite observando o movimento das estrelas no céu. Mas, apesar da sua imensa sabedoria e de sua aura misteriosa, tinha uma presença humana, uma condição terrestre que o mantinha preso aos problemas da vida cotidiana. Queixava-se de dores no fígado, sofria pela incompreensão dos seus familiares, pelos prejuízos financeiros. Enquanto a avó Leonora com os filhos cansavamse no trabalho da roça, nas plantações de milho e feijão, o avô era uma espécie de patriarca, que dava instruções para o plantio na época certa, das lavouras, conselhos sobre criação dos filhos e animais e colaborava com a comunidade. 155 A sua casa era a melhor da colônia. Pintada de branco, tinha uma sala ampla e bem iluminada onde se recebiam as visitas. Três quartos, a cozinha e a despensa. Uma ampla varanda na frente, com a glicínia em flor, em cachos lilás pendentes em guirlanda, subindo pela parede e pela grade de balaústres. Um frondoso pinheiro esparramava sua sombra sobre a casa. Nas adjacências do grande pomar a palmeira buriti abria as suas folhas em leque. A horta, o celeiro e o curral completavam a propriedade. A diligência de Leonora era incomum. Ativa, miúda, às vezes severa, aquela mulher meiga sabia ser carinhosa com os filhos e netos. Parecia estar em todas as partes desde o amanhecer, ordenhando as vacas, alimentando os porcos, gansos e galinhas. Ficava na lida o dia todo, até à noite bem avançada. Do leite da ordenha ela fazia queijo, manteiga e nata, produtos que vendia na cidade. Os rústicos móveis de madeira construídos pelo seu irmão, que tinha aptidões de marceneiro, estavam sempre limpos, e as velhas arcas onde se guardava a roupa limpa exalava um cheiro tênue de rosmaninho. Ainda está impressa na minha memória, a avó Leonora levando a trouxa de roupa suja para lavar no riacho do fundo do quintal. Os longos varais ficavam cheios de lençóis alvos, balançando ao vento. Quando secos, ela os dobrava com todo cuidado. Inclinada em cima da mesa, ela ficava muitas horas passando a roupa com ferro abastecido de carvão em brasa de nó de pinho, ou de sabugo de milho. Ladislau construiu o moinho, movido a roda d‟água, represando o rio que atravessava sua propriedade. A queda d´água movia a roda que girava a mó. Ali eram moídos o trigo e o centeio, do milho faziam-se fubá e quirera. No monjolo socavam o milho, transformando-o em farinha de biju. Era comum formar-se um grande movimento de carroças, com os colonos trazendo os cereais para 156 serem moídos. No caminho que levava ao moinho, plantou árvores ornamentais de acácias amarelas, que na primavera floriam em cachos dourados. Em 1914 foi construída a primeira escola na colônia Alto da Serra dos Nogueiras, erguida com a colaboração de todos colonos, sendo o terreno, de meio alqueire, doado por Ladislau Grechinski, que ajudou no trabalho da construção e foi o grande incentivador na organização da “Sociedade Cultural Henryk Sienkewicz”, que tinha 26 sócios. O primeiro professor em língua polonesa foi Eugeniusz Radlinski, imigrante, vindo da Polônia em 1911, junto com a família Wasilewski. A continuação do trabalho escolar foi realizada pela professora Maria Dluszynska; depois dela seguiram-se outros professores, inclusive Eugenia Kolconowna de quem fui aluna. Lecionavam em dois turnos, de manhã davam aula em língua polonesa e a tarde em português, interagindo positivamente na educação dos alunos. Em 1938 houve a nacionalização total do ensino particular estrangeiro no Brasil, levada a efeito pelos decretos-lei do governo federal de Getúlio Vargas. 157 A FAMÍLIA WASILEWSKI. Nos anos de 1908 – 1909 na província de Lublin, surgiu a 2ª fase da “febre brasileira” que tomou conta da região. O povo movimentou-se em massa. Primeiro emigrou a “inteligentsia” envolvida nos distúrbios em Lublin e Lodz, essencialmente acadêmicos. Assim, as causas principais da emigração de poloneses procedentes de Lublin tinham motivos políticos. Em seguida, emigrou o camponês, o desempregado. E não só o operário das fábricas, mas também os abastados proprietários. Uma vez, começaram a distribuir perto da igreja, em segredo, folhetos que eram mandados pelo padre Josef Anusz, pároco da igreja de Araucária no Paraná, para o distrito de Krasnystaw, que alvoroçaram as massas nessa região, na de Chelm, Siedlce e Lublin. Esses impressos informavam que, noutro lado do mar, tinha um país muito grande de nome Brasil. O governador da Província do Paraná, nesse país, vendia terra aos camponeses poloneses por um preço mínimo, a longo prazo de pagamento, e a quantia que quisessem. Dizia ainda que no Paraná há liberdade para o povo, que há escolas, sociedades, igrejas, o clima é ameno e que trabalhando consegue-se facilmente algum bem-estar. Então o povo lia aqueles folhetos, ansioso, comentava à noite com a família, conjeturava sobre como conseguir chegar a este mundo novo e promissor. As massas movimentaram-se uma vez mais para além-mar. Dirigiram-se para o sul do Paraná, fixando-se nas colônias novas, principalmente na de triste memória, Cruz Machado, situada entre Rio de Areia e Iguaçu. Em 19 de dezembro de 1910, por interesse nacional, foi criado o Núcleo Colonial Federal Cruz Machado, foi colonizado por imigrantes poloneses, alemães, ucranianos e 158 nacionais, para que se dedicassem à extração da erva-mate e à produção de cereais. A administração federal não estava preparada, os lotes não estavam demarcados, as barracas mal feitas, superlotadas, sem a mínima condição sanitária, a alimentação inadequada, tiveram como conseqüência doenças e mortes de adultos e crianças. Mas a doença que encheu os cemitérios foi a epidemia de tifo e febre amarela, que grassou nos acampamentos da Colônia Cruz Machado. Demorou muito para que as doenças fossem debeladas, pela morosidade do governo em tomar providências óbvias, de saneamento nas acomodações e isolamento dos doentes. Entre 1910 e 1911, começou a terceira fase da “febre brasileira”. O comandante do departamento da polícia do governo de Lublin alarmou as autoridades da Província, sobre o início, novamente, do movimento emigratório para o além-mar. O governador, preocupado com as notícias do abandono do serviço pelos trabalhadores rurais, nas grandes propriedades, seguidos pelos pequenos produtores; autorizou a barreira, pela patrulha local, para reter os emigrantes na rota que levava por Bilgoraj a Krakow. Recorre, em 2 de outubro de 1911, para a cúria do bispado, com pedido de ajuda da igreja, para que do púlpito falasse contra a emigração que tomou conta da região. O governo russo quis proibir a ação dos agentes brasileiros; alguns agitadores foram presos, mas a demanda continuou. Essa proibição não conseguiu abalar a idéia acerca da emigração para o Brasil. Só da comarca de Krasnystaw deixaram o país 1.843 pessoas em 1911, sendo 88 proprietários que deixaram suas terras sem vendê-las. Desse contingente, 1.430 159 pessoas fixaram-se nas novas colônias fundadas no município de Irati. Do distrito de Rudnik, saíram 352 pessoas. O agente Missler de Bremen forneceu os bilhetes de passagem gratuita no navio, passagens de trem, acomodação e alimentação, até o porto de Bremen e o embarque em Bremerhaven, com destino ao Rio de Janeiro. Durante quase meio século, os candidatos à emigração atravessavam a fronteira à noite, escondidos, para chegar ao porto e embarcar. Muitos vieram às próprias custas pagando todas as despesas até o destino. No ano de 1911 estava no governo o czar Nicolau II. Surgiram novamente rumores sobre insurreição que estava para explodir nas terras do Reino da Polônia. O cidadão Kazimir Andrejew Wasilewski estava inquieto, pois o sentimento de patriotismo arraigado no fundo da alma dos poloneses não sossegava, procuravam todos meios para libertar a pátria. Esperavam-se represálias e detenções a qualquer momento, tendo em vista que Kazimir e seu filho Francisco estavam envolvidos no movimento e participavam das reuniões secretas com os simpatizantes. Em longas conversas em voz baixa com os filhos confabulavam procurando soluções, decidiram que abandonariam o país às escondidas, para não serem presos e exilados para a Sibéria, o que seria morte certa. O caso da família Wasilewski estava difícil de solucionar, uns queriam ir embora outros não. Os dois filhos mais velhos tinham seus próprios negócios; André possuía um açougue e João era dono de uma bem aparelhada ferraria, onde seus filhos gêmeos Pedro e Paulo o ajudavam no trabalho. Eles discordavam da idéia de emigração. Na incerteza, e sem data definida para o embarque de toda a família Wasilewski, o terceiro filho de Kazimir, 160 Teóphilo, de 38 anos de idade (nasceu em 1873), resolveu antecipar a viagem levando consigo nove pessoas: a esposa Katarina, o filho dela Kazimiro Szczepanowski, os dois filhos de Teóphilo, Kazimira de 7 anos e Bogdan de 5 anos, mais a irmã Anastácia e o marido Karol Kubitski, seus dois filhos, João e Eduardo. Em 18 de maio de 1911, embarcaram no navio em Bremerhavem, na Alemanha, apinhado de emigrantes, que seguiam rumo ao Brasil, direcionados para o sul do Estado do Paraná. Teóphilo, informado sobre a fertilidade das terras da região de Irati, encaminhou-se para essa cidade. A vida de Kazimir Andrejew complicou-se ainda mais, com a chegada, no dia 30 de março de 1911, de uma notificação do governo russo, procedente da Gubernia (Província) de Lublin, informando-o de que fora multado em 100 rublos, pelo motivo de não ter mandado os netos à escola russa e ministrado a elas, às escondidas, aulas de religião em língua polonesa, que era proibida. Em sua defesa, em 30 de maio, ele escreveu uma carta dirigida ao governador de Lublinski, na qual se dispõe a ficar preso, pois não possui os 100 rublos, que era um valor muito alto, para as posses de um agricultor, e mais, ele achava-se doente em conseqüência das privações e sofrimentos que passou, quando participou da guerra da Criméia contra os turcos, em 1877 e 1878, durante o governo do czar Alexandre II. Era um ex-combatente, serviu na Companhia Turskinstansky, como auxiliar de Enfermaria. (Fato mencionado na cópia da carta original, achada dentro de um exemplar da Bíblia de sua propriedade, depois da sua morte.) Nessa emergência a melhor solução era emigrar. Iriam para os Estados Unidos ou Brasil? Estavam inclinados a ir para América do Norte, quando chegou uma carta do Teóphilo, que já se encontra161 va no Brasil, na vila de Irati. Incentivou-os a seguir o mesmo destino. Então iriam para o Brasil, terra da liberdade, principalmente pela promessa de liberdade. E com certeza, quem tem horror à servidão, este apreciava deveras a liberdade. Os imigrantes vinham à procura de terra, trabalho, igualdade, direito à propriedade, liberdade de religião, expressão e educação (tudo que não tinham na sua pátria). E, ficaram até altas horas da noite conferenciando a respeito da viagem, de manhã cedo o pai, já decidido, foi à Lublin com Nicolau, preparar os papéis. Tudo foi tratado com o máximo sigilo. Aqui também prevaleceu o suborno. Aconteceu tudo tão rápido. Arrumaram os baús com as roupas, malas e bagagens, tudo que fosse possível levar, e ao cair da noite de 4 de novembro de 1911, com lágrimas nos olhos, deixaram a aldeia Plonka no distrito de Rudnik. Viajaram de carroça, pela rota que levava por Bilgoraj, rumo à fronteira da Áustria, distante 115 quilômetros. Atravessaram a fronteira austríaca, de noite, sem problemas. Na localidade de Rzeszow embarcaram no trem da linha Lwow-Krakow. Chegaram de manhã na bela e histórica cidade de Krakow, que estava sob ocupação austríaca. A família Wasilewski emigrou deixando para trás, sem vender, as propriedades e bens, para não despertar a vigilância das autoridades russas. O dinheiro para as despesas com a viagem tinham sido trazidos, parte pelo Nicolau, em dólares, dos Estados Unidos, e outra parte em rublos, economizados pela família, durante muitos anos. No saguão da estação de Krakow permaneciam dezenas de famílias, vindas de Rudnik, Krasnystaw, Hrubieszow, Zamosc e de outras aldeias, da província de Lublin, esperando transporte de trem para Berlim e Bremen, porto da Alemanha. no Mar do Norte. Todos desejavam embarcar para o sul do Brasil, no Estado do Paraná. 162 Da aldeia de Plonka até o porto de Bremen, os Wasilewski levaram seis dias para chegar. A passagem de trem custou 6 rublos por pessoa, e a passagem de navio de 3ªclasse, com direito à cabina de quatro beliches, 45 rublos por pessoa. Esperaram mais oito dias pelo navio, acomodados em hospedaria em Bremen. Na lista de embarque da família Wasilewski constavam: Kazemir Andrejew, pai, 66 anos. Maria Zablotska, mãe, 63 anos Nicolau, filho de Kazemir, 36 anos Francisco, filho de Kazemir, 32 anos Anastácia, esposa de Nicolau 33 anos Jan, filho de Nicolau 13 anos Mariana, filha de Nicolau 7 anos Francisca, filha de Nicolau 3 anos Embarcaram no navio alemão, Erlangem, da companhia Norddenfldjen Lloyd Bremen, aproximadamente 3.000 pessoas. O navio zarpou do porto de Bremerhavem, no dia 18 de novembro de 1911. Navegou por dois dias e atracou em Antuérpia, na Bélgica, para abastecer de carvão, víveres e água. Ficou atracado no cais por três dias. Alguns passageiros, inclusive Kazimir, o neto Jan, Francisco e Nicolau, levando pela mão a menina Mariana, desceram e foram conhecer a cidade. Nicolau comprou duas espingardas belgas de cano duplo e munição. Adquiriram também sementes de hortaliças e algumas roupas. Foi uma viagem longa. Depois de ter aportado na Bélgica, o navio parou também em La Coruña, na Espanha; em Portugal, no porto de Lisboa; depois navegou pelo Oceano Atlântico até o Rio de Janeiro por 20 dias. Durante as borrascas os ventos sopravam fortes, o navio balançava desordenadamente. Crianças e velhos amedrontados choravam, gritavam e passavam mal, então os 163 marinheiros empurraram os emigrantes abaixo do convés, onde o aperto e falta de ventilação sufocavam-nos. Dormiam em compartimentos, nos beliches, em quatro fileiras, os mais prevenidos preferiam as camas do alto, para não serem vítimas daqueles que sofriam de enjôos. A comida compunha-se de batata cozida, repolho, peixe ou carne no almoço; de manhã serviam pão com café, e a noite pão com chá; a sede era intolerável, mas a água acondicionada em barris de madeira era salobra, de gosto desagradável. Apareceu doença a bordo; as pessoas que morriam eram jogadas ao mar, fato que abalou a todos e motivou grande indignação. Havia um homem entre eles que falava em alemão, ele levou as queixas dos passageiros até o capitão, que imediatamente deu ordens para melhorar a alimentação e as condições gerais. As oito pessoas da família Wasilewski desembarcaram no Rio de Janeiro no dia 20 de dezembro de 1911. Ficaram junto com os outros imigrantes por seis dias na Ilha das Flores. Feita a triagem, a família embarcou no navio costeiro do Lloyd brasileiro que aportou em Santos no Estado de São Paulo. A viajem demorou dois dias. Após o desembarque do navio, seguiram de trem, de passagem por Curitiba, até a cidade de Irati. Finalmente, na data de 31 de dezembro de 1911, a família Wasilewski fixava-se no solo brasileiro. A viagem desde Plonka até Irati durou 57 dias ao todo. Inicialmente estavam motivados a fixar-se na Colônia Federal de Cruz Machado, onde o governo brasileiro estava implantando um programa de colonização. Mas as notícias que chegavam, falavam de uma epidemia de tifo e disenteria, que estava grassando na região, ceifando vidas de crianças e adultos, ocupando os cemitérios. 164 Em vista disso, mudaram-se os planos dos Wasilewski, que optaram por assentar-se na vila de Irati, onde Teóphilo com a família, mais o cunhado Karol Kubitski e a esposa Anastácia já residiam há alguns meses. Diversos grupos de imigrantes que vieram no navio Erlangem desembarcaram do navio costeiro no Porto de Paranaguá. A viajem entre Paranaguá e Curitiba, de trem, é uma das mais belas do mundo. A estrada de ferro é uma obra-prima de construção. O projeto da ferrovia Paranaguá – Curitiba foi autorizado e aprovado pelo imperador D. Pedro II, em 1880, e o início das obras foi prestigiado pela sua presença. Foi inaugurada em 1885, pela princesa Isabel. Tem 10 túneis, inúmeras pontes incrustadas à Serra, como se fossem fitas a cingirem as montanhas. A estrada serpenteia como uma enorme cobra, em torno da Serra do Mar. Descortina-se o magnífico panorama sobre a baía de Paranaguá, sobre as montanhas circundantes, precipícios, cachoeiras e a exuberante mata tropical, com flores multicoloridas e elegantes pés de palmito. O pico Marumbi eleva-se a 1.450 metros acima do nível do mar. Quando os passageiros viram os precipícios e as elevações íngremes da Serra do Mar por onde o trem ia passar, ficaram apavorados. Os poloneses, habitantes de Lublin, nunca tinham visto montanhas tão altas. Na capital, ficaram alojados em barracões para imigrantes descansando por três dias, continuando a viagem de trem até a Estação de Irati. No ano de 1911, fixaram-se na região 694 imigrantes poloneses. Teóphilo Wasilewski adquiriu um lote de terra de cinco alqueires, onde construiu o moinho, represando a água do rio que corria pelo seu terreno (local onde fica hoje o Clube da Serra). Junto ao moinho construiu a casa para abrigar a família. Ali criaram-se os filhos Kazemira e Bogdan, órfãos de sua primeira esposa Stanislawa e ali nasce165 ram Bronislava, Genoveva e Alexandra, as três filhas de Catarina, sua segunda mulher. Viveram ali durante dez anos. Teóphilo era artífice, perito em fabricação de peças e rodas, para moinhos de trigo, e montagem dos mesmos. Freqüentemente era chamado para executar este trabalho, em diversos lugares deste e de outros Estados. Nessas ocasiões, Kazimiro, seu enteado, o substituía no trabalho do moinho. Em 1930, Teóphilo vendeu o moinho da Serra, o primeiro construído por ele em Irati, com o terreno e a casa, para José Kwiatkowski e mudou-se para Cochinhos, perto de Irati. Ali construiu um moinho maior e mais moderno, no rio das Antas, comprou mais terras para lavoura e faxinal com pinhal e erva-mate. Cultivou a terra, formou um belíssimo pomar de frutas, criou abelhas e trabalhou no moinho durante 10 anos. No dia 4 de fevereiro de 1940, a morte ceifou-lhe a vida; faleceu acometido de “síncope cardíaca”, aos 67 anos de idade. Foi sepultado no Cemitério Municipal de Irati. Bogdan, filho de Teóphilo, conheceu a jovem Eugênia Boguszewska na festa de casamento da irmã. Eugênia, era filha de imigrantes poloneses que chegaram com a leva do ano de 1911 e localizaram-se em Irati. Ela era bonita e alegre. Possuía longos cabelos castanhos que usava em tranças e olhos azuis nas faces rosadas, olhos que fascinaram o moço, de imediato. Namoraram pouco tempo; apaixonados, casaram-se logo. Estabeleceram-se com uma panificadora, na colônia Gonçalves Júnior. Bogdan tinha a profissão de padeiro. Após alguns anos voltaram a morar em Irati, instalando uma bodega e panificadora na cidade. O casal teve quatro filhos: Thadeu, Eugênio, Zbigniew e Luciano. Bogdan faleceu aos 34 anos de idade. Foi sepultado em Irati. *** 166 Em Irati não havia plano de colonização oficial, e a família procurou adaptar-se à situação existente. As terras eram férteis e baratas. Kazimir Wasilewski, juntamente com os filhos, comprou alguns alqueires de terra com pinhal e erva-mate em Cochinhos. Inclusive, trocou com um caboclo, por uma espingarda belga, um lote de terra na encosta do “Morro da Santa”, próximo a cidade. Adquiriram o terreno e construíram a casa de madeira lascada de pinheiro, perto do armazém da Estrada de Ferro. Já existiam ali moradias de madeira, construídas a pequena distância umas das outras, ao longo das ruas recém-abertas. Funcionavam bodegas, açougues, casas de comércio, panificadora e correio. Era grande o movimento nas ruas. De início, os Wasilewski lavravam a terra, plantando cereais, milho e verduras para o consumo da casa. Kazimir não se contentava, queria progredir. Resolveu junto com os filhos estabelecer uma padaria para fabricar pão para aquela cidade embrionária. Juntando as economias da família, compraram a padaria de Domingos Sebastião, patrão do João, onde este já trabalhava havia dois anos. Anexo à padaria instalaram um botequim. O negócio deu certo e prosperou. Os imigrantes que chegaram em 1911 logo preocuparam-se em organizar uma escola, pois as crianças precisavam estudar; por enquanto as aulas eram ministradas em casa, por Kazimir, Francisco e Nicolau revezando-se, outras vezes pelo professor Eugeniusz Radlinski. Em 1914, início da Primeira Guerra Mundial, Francisco e seu amigo Radlinski resolveram voltar à pátria, lutar na guerra e participar da libertação da Polônia. Francisco, ao despedir-se, recomendou a Nicolau, seu irmão, para que cuidasse do pai e da mãe até o fim das suas vi- 167 das. Deixou a sua parte na padaria e as economias que possuía como colaboração. A renda não era muita, mas viviam bem, mesmo que com certa economia. Moravam numa casa grande; a família compunha-se do casal de avôs, Kazimir e Maria, Nicolau, a esposa Anastácia e seus filhos, João, Maria e Francisca, depois nasceram Ladislau, Joana, Helena e Henrique. O avô Kazimir mudou-se para a chácara em Cochinhos, que era próxima a Irati. Ali ele plantou um grande pomar e cuidava das abelhas. A avó Maria Zablotska faleceu em 1921, com 73 anos, o avô Kazimir Andrejew, em 1929, com 80 anos. Nicolau Wasilewski não era homem rico, era igual a outros imigrantes que aqui chegaram em busca de terra, igualdade de direitos e paz para trabalhar. Terminada a Primeira Guerra Mundial em 1918, a Polônia recuperou a sua Independência. Em 1922, Nicolau voltou à pátria para vender os bens que a família deixara ao emigrar. O país estava falido e nada tinha preço. O pequeno valor apurado com a venda do patrimônio, situado em Majdan Kobylanski, a seu cunhado José Bzówka, residente em Plonka, não cobria o preço da passagem de retorno ao Brasil; precisou pedir ao filho João, para que lhe mandasse a importância. Os colonos poloneses tinham sede de saber. Fundaram escolas, sociedades culturais e recreativas, onde promoviam festejos em datas comemorativas nacionais, brasileiras e polonesas. A Sociedade “Henryk Sienkewicz” da colônia Alto da Serra dos Nogueiras, era a mais antiga. Como ocorria todos os anos, preparava-se uma grande comemoração do dia 3 de maio, data de promulgação, em 1791, da Constituição da Polônia. Haveria hasteamento das bandeiras polo168 nesa e brasileira, hinos nacionais, discursos, apresentação de uma peça teatral pelos jovens do povoado, culminando os festejos com um grande baile no salão da sociedade. Esperava-se a participação maciça da colônia. Era grande a expectativa e animação entre os jovens da comunidade. Os preparativos para a festa empenharam todo o tempo das duas primas, Maria e Kazemira Wasilewski. Elas trataram de comprar os tecidos para vestidos, escolheram a costureira, discutiram os modelos, adornos para os cabelos e sapatos. Acompanharam com atenção a toda essa obra doméstica. Rendas, fitas, enfeites, tudo lhes passou pelas mãos, pela memória e pelos sonhos. Sim, a primeira valsa foi dançada em sonhos, com um belo cavaleiro vestido à moda típica polonesa. - Sabe Kazia, dancei no sonho esta noite com João, o filho de Ladislau Gryczynski. – comentou Maria. - Você ? Sonhou com João? - retorquiu-lhe a prima. - É! justamente eu! e você dançava com Pedro, o irmão dele. João me olhava com olhar de fogo, os olhos dele luziam como estrelas. Estranho este sonho, não é Kazia? Lastimo não ter sido real – confidenciou Maria. Os festejos prometiam muita agitação e as duas jovens esperavam ansiosas. Os vestidos ficaram prontos. Passados a ferro, foram estendidos em cima da cama. Chamava atenção um lindo colar de âmbar amarelo colocado em cima do vestido de Maria, seria o complemento do traje. Junto ao vestido de Kazemira estava uma gargantilha trançada, de coral vermelho, herdada de sua falecida mãe, Stanislawa. - Que lindo é este colar de âmbar amarelo e como combina bem com o tom do vestido - comentou Kazia. - Ganhei-o hoje da minha avó Maria, mãe do meu pai, especialmente para usá-lo nesta festa; é uma jóia de família há muitas gerações – explicou Maria. 169 Finalmente tinha chegado o dia tão esperado, o movimento de pessoas chegando era grande. O burburinho de vozes e o relincho de animais ouviam-se à distância. Durante o dia todo seguiram-se as comemorações da data festiva de 3 de maio. A comissão dos festejos providenciou para que tivesse comida para toda essa multidão. Mandaram fazer churrasco de dois bois, assar galinhas, marrecos e leitões. Havia grande quantidade de pão e roscas doces. A música de violino, rabecão e sanfona disputavam a audiência, acompanhados pelo entusiasmo dos jovens. Entre tanta gente vinda dos mais distantes recantos da colônia polonesa, notava-se a presença dos dois irmãos Wasilewski: Nicolau, com a esposa Anastácia e filhos João e Maria, e Teóphilo, com os filhos Bogdan e Kazemira. As duas primas, lindas jovens de 16 anos, eram a pura expressão da beleza eslava, logo despertaram a atenção dos irmãos João e Pedro Gryczynski. Os moços não tiravam os olhos de Maria e Kazemira, que passeavam pelo pátio entre o povo. Quando elas entraram no salão, os irmãos encorajados foram ao seu encontro. Elas conversavam e riam junto com outras jovens, num recanto do salão. Os moços aproximaram-se timidamente. - Podemos fazer-lhes companhia?- perguntou João. - Podem sim - respondeu Maria, a mais corajosa. Apresentaram-se e acompanharam as duas primas, durante o resto da tarde. O tempo passou rápido, entre risos e falas alegres. Iniciado o baile, João convidou Maria para dançar; Pedro numa mesura deu o braço à Kazemira. Estavam tão enlevados um com o outro que não viram a noite passar. A luz clara da manhã já estava iluminando o salão de baile quando se despediram. Antes pediram autorização aos pais das jovens para visitá-las em suas residências. 170 João Gryczynski, era um rapaz de 24 anos, amável e educado. Decorreram dois meses do dia em que o moço foi se apresentar em casa do pai da sua amada. Foi recebido com amabilidade pelo Nicolau, que era homem inteligente, viajado, reconheceu logo na pessoa do pretendente, um homem trabalhador e honesto, que daria à sua filha uma vida de conforto e segurança. Afeiçoou-se logo ao rapaz, e se este o consultasse não o recusaria como genro. Maria gostava de conversar com João, lançava-lhe olhares ternos e ouvia com atenção os gracejos, porque ele tinha bom humor. O rapaz gostava dela; melhor, amava-a. Cada dia que passava vinha fortalecer a paixão do moço, a ponto de lhe parecer ocasional o pedido de casamento. O jovem Gryczynski almejava o sucesso na vida; ainda adolescente, empregou-se como balconista na casa comercial dum libanês, na vila de Irati. Esforçava-se para adquirir prática no comércio, e a noite ia trabalhar como padeiro na padaria dos Wasilewski. Kazemira e Maria eram duas primas muito unidas, sempre estavam juntas, pois as residências de ambas distavam menos de um quilômetro. Maria morava na vila e Kazemira residia no início da colônia Alto da Serra, perto do moinho (onde hoje fica o Clube da Serra). Nesse dia, à tarde, Maria estava em casa da prima. Um tropel de cavalos ressoou na entrada do portão. Tirou as duas moças da confabulação, sentadas que estavam num canto da sala. Ambas, impelidas pela curiosidade, debruçaram-se à janela e foram tomadas de surpresa pelo que viram. Dois cavaleiros acabaram de parar no pátio. Bogdan, o irmão de Kazemira, saíra para recebê-los. - Olhe Maria, aquele mais alto é o teu namorado. João, que nesse momento avistou as moças, fez com o chapéu uma profunda saudação. 171 - Que virão eles fazer aqui, hoje? - indagou ingenuamente Maria. - Não adivinha?- perguntou Kazia, sorrindo. - Eu não, prima - falou Maria, sem muita convicção. Entretanto, Bogdan, convidava os dois irmãos a entrarem. Eles deparando-se com as primas, cumprimentaram-nas, cerimoniosamente, de chapéu na mão. - Vamos sentar todos em volta da mesa - sugeriu Kazemira, puxando as cadeiras. Sentaram-se, ficando Maria em frente de João, que lhe sorria disfarçadamente, olhando-a nos olhos. Kazemira, em frente de Pedro, estava com as faces rubras, envergonhada, não sabia o que falar. Bogdan vendo que estava sobrando, pediu desculpas e retirou-se, dizendo que ia trazer café para a visita, mas na realidade foi avisar o pai da presença dos rapazes. Um dia João reuniu todas as forças e resolveu ir a casa do pai da sua amada. Vestiu nesse dia um terno de casimira de risca de giz, azul marinho, camisa branca e gravata combinando; chapéu de feltro, sapatos de verniz. Passou no barbeiro, cortou o cabelo e aparou o princípio de um bigode. Foi, Maria recebeu-o na porta, admirou-se da elegância do rapaz. Ele sem rodeios declarou-se, formalmente. - Amo você Maria, vim pedir a sua mão e combinar a data do nosso casamento - esclareceu João, em tom confidencial. - Então, entre e fale primeiro com o pai – disse ela ruborizada até os fios dos cabelos. Nicolau estava sentado no sofá lendo um jornal. Ao deparar-se com o moço, levantou para cumprimentá-lo. João não esperou muito para falar, estava nervoso. Rodava o chapéu nas mãos, inseguro, arrancava com ímpeto as palavras: 172 - Senhor Nicolau, vim pedir a mão de sua filha Maria em casamento. Nicolau olhou para a filha, que estava atenta à resposta que o pai daria. - O que acha do pedido, minha filha? Você gosta dele? - Eu o amo, sim! Mas é o pai que decide, faço o que o senhor mandar. Nicolau, gostava do rapaz, não achava razão para não o aceitar como genro. - Nesse caso, dou meu consentimento; casem-se, é do meu gosto esta união. Deus os abençoe – respondeu não fique tão nervoso rapaz, vamos nos dar muito bem. Maria estava feliz, já podia fazer planos para a festa. A sua prima Kazia estava na sala, brincando com o cãozinho Malhado. Maria virou-se para ela e sugeriu: - Poderíamos casar no mesmo dia, não é Kazia? Se o Pedro resolvesse te pedir agora. Mas não foi possível; Pedro não tinha decidido ainda, estava em dúvida quanto ao afeto de Kazemira por ele. Agora João e Maria podiam combinar a data do enlace. Para tratar do assunto, vieram Ladislau e Leonora, pais de João. Foi-lhes oferecido um jantar, ao qual compareceram, também, Pedro e Kazia. A mesa do jantar estava posta, cheia de petiscos, pães e doces, conforme convinha a um bom padeiro. Serviu-se também uma sopa de verduras como entrada, carnes assadas de galinha e pernil de porco, acompanhados de macarronada, salada de beterraba e raiz forte (chrzan). Coube a Maria o dever de servir o vinho aos seus convidados. João agradeceu gentilmente e, rendido à beleza da jovem,. acompanhava a moça com os olhos acesos, pois a paixão devorava-lhe a alma. 173 Maria vestia um longo e vaporoso vestido branco, caminhava com elegância, volvia os olhos cheia de graça. - Que olhos lindos ela tem!- comentou João. Até o fim do jantar os olhos de Maria e os de João se encontraram muitas vezes. Os dele, procurando. Os dela, sendo encontrados. Ele sorria-lhe, com amor. Chegada a sobremesa, foi ela quem lhes serviu os doces. Veio maneirosa e sorridente, dirigindo-se ao João: - Que doce prefere, meu noivo? Ele também sorrindo, com ternura: - O que a senhorita escolher! Ela, com gesto distinto, de educação: - Então vai provar dos dois. Ambos sorriram, um sorriso de felicidade. Depois do café, passaram a falar sobre o assunto principal que os trouxe até ai, o casamento. Acertaram a data de 11 de setembro, um sábado, para a realização das núpcias. O local da celebração seria a igreja de São Miguel. A magnífica recepção oferecida pelos pais da noiva foi assunto predileto da vila, por muitos dias. Dois meses era tempo de sobra para enraizar no coração de Pedro a planta do amor que havia germinado entre duas danças, no baile do Clube da Serra, na noite de 3 de maio. A planta cresceu, tomou o coração todo do rapaz, que não lembrava jamais de haver gostado tanto de uma moça como da jovem Kazemira. Inseguro, ele confidenciava a João, seu irmão, pedindo orientação. - E ela? – perguntou João. - Ela...não sei. - Não sabe? - Não creio que não goste de mim, isto é, trata-me muito bem, é alegre comigo, mas não sei se me ama. - Já lhe perguntou? - Não. 174 - Então por que não pergunta? - Tenho receio... Ela pode zangar-se e fico sem jeito para voltar a freqüentar-lhe a casa e Bogdan é meu amigo. - Mas o que quer que eu faça? - Não sei o quê! talvez perguntar a Maria, que é prima dela e são amigas inseparáveis... - Para saber se ela gosta de você? - Sim! - Pois então, vamos tentar... - Ela me trata bem, olha para mim e sorri... Aflito, Pedro resolveu vencer a sua grande timidez e fazer a confissão. Poucos dias depois apareceu a ocasião propícia. Era inoportuno dilatar por mais tempo a declaração dos seus sentimentos a Kazemira. Precisava saber se era correspondido ou não. Resolveu fazer uma visita ao seu amigo Bogdan. Não o encontrou em casa, junto com o pai tinha ido à vila de Irati, fazer compras. Kazia ficara em casa com a madrasta Catarina, que estava às voltas com as crianças. Pedro bateu na porta. A jovem veio abrir e convidou-o a entrar; estava pálida e encabulada. - Sente-se, por favor. - Será que não vou incomodar? Vim visitar Bogdan; ele está? - Não!.. não está, foi à vila com o pai. Kazia olhou para Pedro com ternura nos olhos e sorriu. Tocou-o levemente com a mão, no braço, e falou: - Não consigo esquecer o dia do baile, aquele de 3 de maio, lembra? - E como me lembro, dançamos juntos a noite toda! Pedro aproveitou o ensejo para o desabafo; ficaram comentando o sucesso da festa, enlevados pela paixão. Não precisaram falar dos seus sentimentos, a atitude e os olhos diziam tudo. Não viram o tempo passar. 175 Teóphilo e Bogdan chegaram da cidade. O pai preparou o chimarrão, cuja bebida ofereceu à visita. Após ter tomado algumas cuias do chimarrão, Pedro pediu ao pai da moça dez minutos de atenção. - Senhor Teóphilo! conceda-me a mão da sua filha Kazemira em casamento, eu a amo muito– Falou num repente, atropelando as palavras. - Minha filha? Kazia? – bradou ele - minha filha... pois não! Mas você já falou com ela? Teóphilo abriu os braços e apertou num abraço forte os jovens Pedro e a filha, que admirada da rapidez de decisão do candidato, chegou a perder a voz. - Mas então, namoram-se às escondidas? - Nós? oh, não!- respondeu Kazia, envergonhada. - Conhecemo-nos no dia da festa de 3 de maio, surgiu uma afinidade, uma afeição, uma atração mais forte; não estou enganado, Kazia ? - indagou Pedro apreensivo. - Está certo, eu gosto muito de você, Pedro! - O que diz então, minha filha? – perguntou o pai - Pai, se você consentir, eu me caso com Pedro. - Dou a minha aprovação e com alegria os abençôo. O casamento de Pedro e Kazemira foi marcado para o dia 7 de agosto de 1920. Ela estava com 16 e ele com 21 anos. Precisavam dar andamento nos papéis do casamento. Pedro foi à vila de São Mateus fazer o seu registro de nascimento, pois não o possuía. (Na época não era obrigatório esse documento.) A certidão é datada em 17 de janeiro de 1919, com o nº 1.174, da qual consta a data de nascimento de Pedro em 29 de junho de 1899, na Colônia Canoas em São Mateus, Estado do Paraná, no domicílio dos pais, Ladislau e Leonora Gryczynski, naturais da aldeia de Chumecin, Província de Plock, Polônia. Kazemira era filha de Teóphilo Wasilewski e Stanislawa, nasceu em 5 de maio de 1904, na aldeia de Plenin, 176 Província de Lublin, na Polônia. Órfã de mãe aos 4 anos, veio para o Brasil em 1911, com 7 anos de idade, com seu pai Teóphilo, a madrasta Catarina e o irmão Bogdan. Ela tinha como documento o passaporte de emigrante. Começaram os preparativos. Encomendaram o vestido da noiva e o terno do noivo. O casamento seria realizado de acordo com a antiga tradição polonesa. Uma semana antes da festa, já os parentes, vizinhos e amigos traziam ovos, manteiga, galinhas e leitões gordos. Revezavam-se no preparo dos alimentos. Assaram uma quantidade enorme de pães e roscas doces. Preparou-se cerveja caseira. Enfeitaram a casa com bandeirinhas coloridas. Colocaram-se mesas de tábuas de pinho em cavaletes, em toda extensão do salão e nos paióis esvaziados para a ocasião. Foi convidada a comunidade da colônia de Alto da Serra dos Nogueiras, pois casava-se o filho do inspetor Grechinski, homem importante do povoado, com a filha do moendeiro Wasilewski. Sábado, dia do casamento, logo de manhã, começaram a chegar os convidados. Chegou o noivo de carroça, puxada por uma parelha de cavalos, ajaezados com franja de guizos na testa e laços de fita de papel colorido, no arreamento. O noivo e a sua comitiva foram recebidos pelo padrinho casamenteiro, que trazia um galho verde enfeitado de flores e doces. Para saudar, os músicos tocavam violinos, acompanhados do som grave do violoncelo. Foram ao encontro da noiva que se despedia do pai; este retribuiu pronunciando um discurso comovente. O condutor do cortejo ia na carroça da frente com o noivo e as madrinhas. Seguia-o a condução que levava a noiva com os padrinhos. Atrás seguiam as carroças em fila, lotadas dos convivas. O casamento foi realizado na igreja polonesa de São Miguel em Irati. Durante a cerimônia, o padre proferiu um sermão, no 177 qual afirmava a obrigação dos nubentes a preservar a fidelidade, o respeito e o amor mútuo, até o fim das suas vidas. Ao retornar da igreja para a casa, o cortejo nupcial composto por dezenas de carroças enfeitadas de fitas coloridas e bandeirinhas, e ao espoucar de foguetes e ritmos de de canções alegres, chegavam à casa onde se realizava a festa. A noiva acompanhada do noivo, das madrinhas, paraninfos e músicos, recebia os convidados, tendo na mão uma bandeja com rosca doce e sal. Ela cortava o pão doce e distribuía em pedacinhos aos convidados com as boas-vindas. As mesas, cobertas com toalhas brancas, já estavam repletas dos mais diversos pratos de comida. Em primeiro lugar era servido um caldo de galinha gorda, com macarrão de produção caseira, seguia-se o pernil de porco e carne de boi assados, geleia de pé de porco, salada de beterraba avinagrada com raiz forte (chrzan), bolinhos de carne, chouriço assado, lingüiças, galinha recheada assada, macarronada, pão doce com farofa, roscas e bolos, doces e salgados. A comida era reposta continuamente pelas cozinheiras que ficavam atarefadas o dia todo e a noite, enquanto houvesse festa e convidados. À tarde, o casal de noivos começou as danças ao som de música de violino. Depois a noiva dançou com os convidados; seguiuse o momento solene, marcante, da colocação do toucado, que é o sinal que ela deixa de ser solteira para ingressar no círculo dos casados. Esse procedimento é acompanhado com canções antigas simbólicas. Terminada a festa os noivos foram para sua nova casa arranjada festivamente, para esperá-los. 178 A MINHA HISTÓRIA A casa foi construída em cima do morro, ao lado da estrada que levava de Irati para a colônia Alto da Serra dos Nogueiras e próxima ao moinho do pai de Kazemira. Era uma habitação pequena, de dois quartos, sala e cozinha. Feita de madeira bruta serrada, coberta de tabuínhas de pinho, com as paredes caiadas de branco. Kazia colocou cortinas coloridas nas janelas, fez um belo jardim na frente e atrás da casa, no terreno cercado de ripas lascadas de pinho, fez a horta para plantar verdura. Pedro e Kazemira, meus pais, habitaram na casa perto do moinho, durante quatro anos, tempo em que nasceram suas duas filhas, Antônia e Monika. Pouco antes do casamento, Pedro havia comprado do Dr. Mário Fialho Valadares e outros, proprietários da Fazenda Floresta, 6 alqueires de terra fértil, em mata e pinheiros, no interior da Colônia Alto da Serra dos Nogueiras, distante 5 quilômetros de Irati. Por causa da burocracia, foi somente em 8 de julho de 1927 que conseguiu lavrar a escritura Pública nas notas do 1° Tabelião Manoel de Vasconcelos de Souza. Registrada no Cartório de Registro de Imóveis de Irati, no Livro 1, fls.9, transcrição n° 41, datado em 13 de julho de 1927. Meu pai se deslocava diariamente para cultivar a terra adquirida. Era distante da sua residência, requeria a obrigação em sair de madrugada e voltar muito tarde da noite. Achou mais conveniente mudar-se para lá. Construiu uma nova casa de madeira serrada, coberta de tabuinhas lascadas de pinho, o assoalho era de tábuas alisadas. Possuía uma pequena sala de visitas e o quarto de casal. Num puxado ligado à casa fez um quarto grande onde dormiam as crianças. 179 A cozinha, de chão batido, funcionava numa construção separada, defronte à casa. Construiu o paiol, as mangueiras para os animais e chiqueiro; a horta e o pomar foram cercados de ripa. Mandou cavar um poço perto da cozinha, colocou o sarilho com a corda e o balde. Kazia, criativa, diligente e caprichosa, pintou as paredes da casa com argila ferruginosa, de cor rosa pálido. Portas e janelas pintou de amarelo claro. A argila existia, com grande incidência, nos barrancos da beira de estrada na região. Foi colhida, diluída em água e peneirada, forneceu uma excelente tinta para pintura de paredes. Kazia ocupava-se dos trabalhos caseiros e dos filhos que foram nascendo. Ajudava na lavoura e também não deixava de plantar flores e hortaliças na horta. Enfileiradas no quintal, ficavam as caixas com colmeias de abelhas. Ela cuidava das abelhas e tirava o mel, sem proteção, não tinha medo das picadas. Pedro dedicava-se ao cultivo de lavouras de trigo, centeio, feijão, milho e batata. Ocupava-se também do transporte, com carroção de 8 cavalos, de madeira serrada e erva-mate para a estação da Estrada de Ferro em Irati. Seus vizinhos Szubarczuk, Sznaider, Walaszek, Kirello, Paduch e Fatiliano ajudavam-no no trabalho da lavoura em dias de mutirão. Os dias passavam suaves no cotidiano, até a Kazia ficar grávida do 5º filho. Foi uma gravidez difícil, ainda mais complicada pelo fato de que, num dia chuvoso, ela escorregou de um barranco de cinco metros de altura, para uma grota funda, nascente de um córrego, lugar onde ela lavava a roupa da família. Saiu de lá se arrastando. Voltou para casa com passos trôpegos e caiu sem sentidos sobre o chão de terra da cozinha. As crianças assustadas foram chamar o pai, que trabalhava na roça. Kazia 180 estava no oitavo mês de gravidez .Logo em seguida começou a sangrar e apareceram as dores do parto. Pedro foi buscar a parteira, uma mulher prática, que havia assistido a dezenas de mulheres da Colônia. Avisou também a cunhada Maria, esposa de João, que rapidamente foi à casa da prima. De início as dores foram como picadas de mosca, depois cada vez mais vivas, até que surgiram as grandes dores, que provocaram o nascimento da criança. A parteira cortou o cordão umbilical com uma tesoura esterilizada, cobriu com cobertor o corpo debilitado da parturiente, levou a criança até a bacia com água morna para banhá-la. Enrolou-a em panos quentes e colocou no berço. Deitada na cama, Kazemira ainda sofria muito, o suor escorrendo-lhe pelo rosto, os longos cabelos castanhos esparramados pelo travesseiro branco. A parteira estava preocupada com o estado da paciente, cujo corpo agitava-se nas dores pós-parto. As pernas abertas, sob o lençol, desenhavam a sua figura fatigada. A assistente tentava recolher a placenta presa dentro do útero. - Vou massagear o teu ventre - disse ofegante de cansaço - ainda não acabou, já devia efetuar-se a expulsão da placenta, fato que não aconteceu. A parteira apertou e esfregou o corpo com ambas as mãos, para placenta soltar-se e ser expelida do ventre, mas apesar de a mulher empregar todos os meios, não obteve êxito. A parturiente sofria muito. Num último ato desesperado, para livrá-la da placenta, a mulher lavou as mãos e introduziu-as no ventre a procura da placenta que não descolava, puxou para fora com força, isto resultou no rompimento de um vaso importante e daí a hemorragia interna. O sangue escorria como de uma fonte. 181 Pedro extremamente aflito, pediu à Maria, para que ficasse junto a prima. Ele foi procurar um médico, mas não encontrou nenhum na vila de Irati. Um doutor atendia aos doentes da construção da Estrada de Ferro, distante 30 quilômetros. Seu irmão João, a seu pedido, foi até lá, mas quando chegaram com o socorro, o médico após examinar a paciente, meneando a cabeça deu a sua opinião: - É tarde demais, ela esta exaurida de sangue, não tem nada que eu possa fazer. A parteira fizera tudo que sabia, para estancar o sangue, mas não conseguira e ainda não havia transfusão. Kazemira ficou sofrendo durante uma semana. - Ela está morrendo – gaguejou Pedro, desesperado ela está morrendo...está se esvaindo... o que eu posso fazer! meu Deus! tenha piedade, meu Deus! No auge da agonia, minha mãe Kazemira chamou a prima Maria para junto de si e, com voz fraca, suplicou: - Maria você sabe que madrinha substitui a mãe na falta desta. Sei que vou morrer! Leve a Monika com você e a crie como se fosse tua filha. Prometa-me Maria! Maria vendo o sofrimento da prima, condoeu-se, e mesmo vendo o estado terminal dela, confortou-a: - Você não vai morrer, vai ficar boa e criar teus filhos. Mas se o pior acontecer eu te prometo, vou levar e criar Monika e ajudar a olhar teus outros filhos. As mulheres, em volta da agonizante, rezavam em voz alta pelo descanso desse corpo sofrido. Com a morte da mãe, as crianças ficaram profundamente abaladas. Não sabiam como isto tinha acontecido. Não entendiam a morte. Só viam a mãe deitada dentro do caixão forrado de cetim azul, colocado em cima da mesa da sala. Vestida com camisolão azul claro, xale branco na cabeça, as feições gélidas marcavam o último ricto de dor. 182 - Mãe! estou com fome! Não durma, levante, venha me dar pão! - reclamou o pequeno Augusto, puxando a mãe pela mão inerte. Uma vizinha vendo o triste quadro, pegou o menino no colo, levando-o para dar-lhe pão e distraí-lo. Elizabeth chorava na sua caminha ao lado do berço da recém-nascida Klementina, chamando pela mãe. Com um soluço profundo adormeceu. Sofria muito, pois seu coração infantil não entendia o que se passava com a mãe. Antônia, assustada, refugiou-se na cozinha, ficou escondida atrás do fogão de pedra. Choramingava. O cachorro Pitoco lambia-lhe o rosto como a consolá-la. Enquanto isso, eu Monika, de apenas 5 anos, curiosa, sem nada compreender, olhava a mãe de longe, do canto da sala. Eu não entendia por que a mãe, sempre tão atenciosa com eles, agora não atendia os seus filhos. - Mãe! Será que eu desobedeci a senhora? Peço perdão! Mas mãe! levante e saia de cima da mesa, você pode cair e se machucar. Venha mãe! quero abraçá-la. É a tua Patinha que está chamando. Cheguei rapidamente para junto da mãe, debruceime por cima dela e beijei-a na face lívida. Assustada, desatei a chorar, reclamando entre lágrimas: - Mãe! Teu rosto está gelado! Você não se mexe! Não atende o meu chamado! Está de olhos fechados, não olha para mim! O que está acontecendo? Você vai nos deixar? Não gosta mais de nós! Corri para o jardim, entre os canteiros colhi um ramalhete de violetas perfumadas e coloquei-as nas mãos entrelaçadas da minha mãe. - Mãe, trouxe violetas para você, sei que você gosta muito dessas flores! Perdoa-me, mãe! Levante desta mesa! O pai vendo o desespero das crianças, sem ter como suavizar o seu sofrimento, pediu às vizinhas, Jozepha e An183 tônia Szubarczuk para que levassem as crianças para sua casa. Cuidassem delas, até que a mãe fosse sepultada e ele resolvesse o que iria fazer dali em diante. Ficamos sobre os cuidados das irmãs, pelos dois dias seguintes. Kazemira Wasilewska, minha mãe, morreu jovem, com apenas 24 anos de idade, no dia 27 de outubro de 1928. Foi sepultada no Cemitério Municipal de Irati. Deixou cinco órfãos, Antônia a mais velha, de 7 anos, Monika, Augusto, Elisabeth e Klementina recém-nascida. Meu pai estava desnorteado. Ainda aturdido pelo rude golpe que sofrera com a morte da esposa, ele precisava trabalhar, pois tinha cinco filhos para sustentar. Foi aconselhar-se com a avó Leonora, sua mãe. Após longas considerações ficou resolvido que ele e a mãe iriam à casa da tia Ksavera, irmã de seu pai e viúva de Aleksander Kowalski, que havia morrido recentemente picado por uma jararaca. Foram convidá-la para que assumisse a casa de Pedro e cuidasse dos órfãos, até que se encontrasse uma solução mais adequada. A tia Ksavera, já bastante envelhecida, com 64 anos, aceitou a incumbência movida pela compaixão pelo sobrinho e seus filhos. Tomou conta da casa por três meses. Cuidar da casa, de quatro crianças pequenas, não é tarefa para pessoa da idade dela. Fez o que podia. No dia 6 de fevereiro de 1929, meu pai, Pedro, após uma viuvez de três meses, casou-se novamente, na igreja, com uma viúva de 22 anos, de nome Jozepha, filha de Romão e Maria Chikorski. Casaram no civil em 5 de agosto de 1930. Ela tinha um filho de 2 anos, do primeiro marido que morreu assassinado. Jozepha exigiu que Pedro desfizesse a casa onde vivera com Kazemira e mudasse para a casa dela, na locali- 184 dade de Caratuva, próximo da ferraria de Vitório Bidim, e João Teledzinski seu cunhado. Pedro aceitou temporariamente, despediu tia Ksavera e foi arrumar a mudança. Mudou-se para Caratuva, levando com ele os cinco filhos órfãos de Kazemira. A caçulinha Klementina estava sendo criada pela tia Feliksia, que tinha uma penca de seus filhos para cuidar. Feliksia, vendo o irmão recém-casado com uma mulher jovem, resolveu entregar a criança ao pai, pois estava difícil para ela cuidar de dois bebês, ao mesmo tempo. Pedro casou-se logo, com o propósito de arrumar uma mãe para seus filhos. Não queria separar as crianças. Mas enganou-se redondamente, Jozepha, a nova esposa, ao ver as cinco crianças chegando ficou profundamente consternada. Seu filho pequeno requeria sua total atenção. Teria que cuidar de seis crianças, sozinha, pois Pedro passava os dias fora, trabalhava no transporte de madeira e erva-mate para a Estação da Estrada de Ferro de Irati. Esta era uma empreitada além das suas forças. Apresentou dificuldades como ter saúde frágil e não poder sobrecarregar-se de trabalho. Cozinhar, lavar, passar, dar banho, vestir, alimentar todos, era muito para ela. Além de assar o pão, ordenhar as vacas, alimentar os porcos e cuidar dos cavalos. Por algum tempo Jozepha executou todo serviço, mas depois foi cansando e relaxando. Deixou de se preocupar com os pequenos, dar banho, cuidar das suas roupas e dos seus cabelos. Elisabeth gatinhava pelo terreiro, os joelhos machucados, pés cheios de bicho-de-pé, com os dedos inflamados, cabelos infestados de piolhos. Era esta a miserável situação das crianças órfãs, entregues aos cuidados de madrasta. Jozepha pediu ao marido que tomasse providências. Para não desagradar a jovem esposa, Pedro, meu pai, com dor no coração, pensou como solucionar o problema das crianças. 185 Começou entregando a caçula Klementina, de um ano, ao tio Bogdan, irmão de Kazemira. Certa tarde, parou em frente do portão da propriedade uma aranha (charrete). Era um veículo leve, de duas rodas altas, puxado por um cavalo. O meu avô Ladislau dirigia a aranha, sentado no assento forrado com pelego vermelho, vinha junto com tia Maria visitar Pedro e ver como estavam os filhos de Kazemira. Desceram do veículo, e Jozepha veio ao seu encontro logo informando da ausência de Pedro. O avô pediu para ver as crianças. Ao vê-las ficaram horrorizados com a aparência dos menores. Indignado, o avô comunicou a Jozepha que iria levar com ele a Elisabeth, que se encontrava em pior situação, e a tia Maria levaria eu, Monika. Ela não se opôs. Diria a Pedro que assim era melhor para elas. - Não tenho mais força e nem paciência para cuidar de tanta criança.- disse sem rodeios. Tia Maria, ao chegar em casa com as duas crianças, resolveu que a primeira providência a ser tomada era cortar o cabelo a zero e dar banho. Arrumou água morna numa banheira feita da metade de um barril de madeira, pingou umas gotas de creolina, que era desinfetante, colocou-me dentro e começou a esfregar o corpo todo, por fim lavou a cabeça. Vestiu-me com roupas limpas, da sua filha. Depois do banho deitaram-me em cima da mesa da cozinha, de bruços, a tia Maria segurando meus pés e mãos firmemente, enquanto o tio João com o fio da navalha, cortava, abrindo e espremendo o pus dos abscessos (mijacão) da sola dos meus pés (mijacão, tumor atribuído ao contato com urina de cavalo). Tiraram os bichos-de-pé dos dedos inflamados. Depois de bem desinfetados com água oxigenada, foram os meus pés enrolados com panos. Decorreram muitos dias até que sarassem. 186 A tia cortou meu cabelo a zero, fiquei com muita vergonha de estar com a cabeça raspada; escondia-me da vista das outras crianças, que riam de mim. Ganhei roupas e vestidos usados, que não serviam mais para minha prima Olga. Mancando por causa da dor nos pés, mesmo assim estava feliz, recebia atenção e carinho dos meus tios, coisas que não existiam para mim havia muito tempo. A Elisabeth foi tratada igualmente, com desvelo, e como ainda não caminhava, a tia Maria fez massagens nas suas perninhas com azeite e álcool, aqueceu-a e colocou para dormir. Diariamente eram exercitadas suas pernas e o tio João ensinava-a caminhar. Quando se recuperou da fraqueza por falta de alimentação adequada, e começou a caminhar sozinha, foi entregue aos cuidados da avó Leonora. Pedro, Jozepha e os filhos, residiram na casa em Caratuva por pouco tempo. Pedro era um homem orgulhoso, não ficaria morando na casa que não era dele. Em 15 de março de 1929, ele comprou uma propriedade de faxinal, composta de campos de pastagem, povoada de pinheiros e mato, em São Miguel, distante 20 quilômetros de Irati. No lugar havia uma casa grande de madeira. Mudaram-se para lá, em seguida. Ele construiu paióis, mangueiras e cercados. Era difícil para ele, sozinho, administrar a propriedade no Alto da Serra dos Nogueiras, onde viveu com Kazemira. Em 2 de janeiro de 1931, vendeu os seis alqueires de terra e a casa, para seu irmão João Gryczynski. Jozepha Chikorski teve duas filhas com Pedro. Lídia nasceu dia 8 de fevereiro de 1930 e Rosa em 10 de fevereiro de 1931. Engravidou novamente e perdeu a criança. Morreu de complicações pós-aborto, em agosto de 1932. Deixou órfãs Lidia de 2 anos e seis meses e Rosa de 1 ano e seis meses. O filho do primeiro casamento de 6 anos, após sua morte, foi acolhido por seus avós paternos. 187 Que triste destino é o de Pedro, sempre às voltas com a morte e órfãos para criar. Ficou viúvo novamente, após três anos e meio de casamento. Pesavam sobre seus ombros, a obrigação com o trabalho, as dívidas para pagar e quatro pequenos órfãos, sobre seus cuidados. Não podia ficar sozinho, precisava urgentemente de alguém que partilhasse com ele essa responsabilidade. Procurou uma companheira ideal. Talvez agora tivesse sorte. Encontrou ótimos predicados na pessoa de Maria Kuc, de 22 anos de idade, da colônia local. Moça simples, honrada, trabalhadeira, de bom caráter, seria a companheira e esposa dedicada. Casaram-se em maio de 1933, na igreja N.S. da Luz em Irati, e foram para casa em São Miguel, onde as crianças os esperavam. Ela assumiu o papel de mãe, dos órfãos, que o destino lhe mandava. Pedro residiu nas terras de faxinal em São Miguel por 10 anos, de 5 de março de 1929 até 1939, quando as vendeu para comprar, no sopé da Serra do Chupador, de início, 3 alqueires de terra de cultura, depois adquiriu uma área maior, perfazendo um lote de 12 alqueires. Construiu ali a a residência para a família, paióis, e estrebarias para os cavalos. Trabalhava com afinco, envolvido com as plantações, sem contar as horas, madrugava e anoitecia no trabalho. Era um homem laborioso, duro e persistente. Mudaram-se para a propriedade na Serra do Chupador em 1939. Levaram consigo as filhas de Josefa, as meninas Lidia e Rosa, e os de Kazemira, o Augusto e Antônia. O casal teve nove filhos, Floriano, Francisca, Alexandre, Teresa, Lúcia, Polônia, Margarida, Napoleão e Helena morreram ainda pequenos. Viveram juntos durante 30 anos, dividindo o trabalho árduo de lavradores, os contratempos, as alegrias e as tristezas de uma família numerosa. Ela faleceu em 1962, aos 52 anos de idade, acometida de um câncer de estômago. 188 Pedro ficou viúvo pela terceira vez. Em 1966, foi viver com Alexandre seu filho com Maria, na cidade de Irati. Morreu aos 73 anos, em 14 de março de 1972. Foi sepultado no cemitério de Chupador (Alvorada), ao lado da sua terceira esposa Maria. Meu pai, era um homem trabalhador,forte, honrado, de fibra inabalável, mesmo vergastado pelo vendaval do infortúnio durante toda vida, não se dobrou, agüentou firme as rajadas do destino. Nunca o vi chorar. Sempre lutou com dificuldade financeira apesar do labor contínuo, sem trégua. Alexandre Griczynski (Aleixo) foi o filho que herdou do pai Pedro, em plenitude, a energia e a coragem de enfrentar a vida e o trabalho. Criou-se ajudando o pai na roça. Aos 25 anos quis mudar de vida. Inteligente, com idéias de progresso, almejava conhecer outros lugares e outra gente. Saiu de casa e foi viajar. Na volta, com pequeno capital que possuía, estabeleceu-se com um bar perto da ponte, na entrada da cidade de Irati. Foi o começo de uma grande caminhada no comércio. Casou-se dia 4 de fevereiro de 1967, com Maria Boiano. Jovem dinâmica e inteligente que veio completar os anseios de prosperidade de Alexandre. Juntos, na labuta diária, superaram as dificuldades iniciais.Conseguiram firmar-se no comércio, instalando e administrando com capacidade ímpar um renomado supermercado, o “Santo Antônio”, em Irati, com diversas filiais na cidade. O casal teve quatro filhos. Educaram-nos com firme determinação, incutindo-lhes a obrigação de um trabalho solidário com os pais e irmãos. Desde pequenos ajudavam os pais no armazém. Depois de casados, as esposas vieram aumentar o quadro de colaboradores deste próspero comércio. Pode-se colocar o Alexandre no pódio dos vencedores. *** 189 Minha irmã caçula, Klementina, órfã de mãe desde o nascimento, a desventurada criatura, a partir daquele infausto momento, passou de casa em casa, de mãos em mãos. Muitos anos transcorreram, quando, certa ocasião, soube do falecimento de seu marido Francisco. Fui fazerlhe uma visita em Rebouças, onde morava. Numa altura da conversa, ela triste e pensativa, interrogou: - Por que o meu destino é padecer sempre, pela vida afora? É uma sucessão de fatos que me atingem com muito sofrimento. Culpo-me pela morte de minha mãe, que morreu ao me dar a luz. Recém-nascida, fui entregue aos cuidados da tia Feliksia que cuidou de mim como uma mãe. Amamentou-me no seio, junto com a filha Emília, da mesma idade. Permaneci com ela por alguns meses, ela tinha muitos filhos para criar. Dizia-se que à noite, o espírito de minha mãe vinha embalar-me no berço, quando eu chorava. - Meu pai, tinha se casado de emergência com intuito de arrumar uma mulher que cuidasse dos seus filhos órfãos. Contraiu núpcias com Jozepha, uma mulher jovem, com plenas condições de tratar das crianças. Certo dia, tia Feliksia, junto com o marido Ladislau Paduch, indignada com a falta de iniciativa de Pedro em assumir-me, visto já ter alguém para ocupar-se dos órfãos, dirigiu-se à casa dele em Caratuva, levou-me junto e me devolveu a ele. - Morei com eles por pouco tempo, pois, meu pai, cedendo às reclamações de Jozefa, entregou-me ao tio Bogdan, irmão da nossa mãe. Era padeiro e passava as noites no trabalho. A tia Eugenia Boguszewski fazia o possível para cuidar de mim. Eles tinham quatro meninos, muito irrequietos, que não me deixavam em paz, batiam e me humilhavam constantemente. Residi com eles durante quatro anos. Foi um tempo de muito sofrimento. 190 - Aos cinco anos fui morar com o avô materno Teóphilo. Ele tinha três filhas moças, que podiam cuidar de mim. Mas não cuidaram e não perdiam ocasião de me espancar. Vivi com eles até os doze anos de idade, época em que freqüentei a escola local, durante dois anos. Apesar de eu ser ainda adolescente, as tias mandavam eu executar trabalhos acima das minha forças. Ai! se não fizesse... - Em 1941, casou nossa irmã Antônia, com Kazemiro Szczepanoski. Fui morar com eles. Ajudava o casal no trabalho doméstico e na lavoura. Nesse tempo conheci Francisco Nowicki amigo de Kazemiro, meu cunhado. Era um homem de 32 anos, apresentável, bem falante, comprador de cereais, que dizia ser de boas posses. Encantou-se comigo e propôs-me casamento. Eu tinha apenas 16 anos de idade, não o amava, mas resolvi aceitar para fugir do jugo de Antônia e ser dona do meu próprio destino. Monika providenciou o enxoval, Antônia e Kazemiro ofereceram a festa de casamento, que se realizou em maio de 1944. Klementina, pesarosa, continuava a sua história: - Mas foi vã a esperança de liberdade. O meu marido era um homem ciumento, autoritário e repressor. Eu estava novamente numa prisão. Ele não me deixava sair de casa, não me dava dinheiro de medo que eu fugisse. Moramos durante algum tempo em Monjolo, perto da casa de Antônia. Mudamo-nos depois para Rebouças, Francisco montou ali um moinho para moer fubá e quirera de milho, do qual eu e o meu filho tomávamos conta. Chico era indolente por natureza, sem iniciativa, não progrediu na vida. - Tivemos quatro filhos, que são meu consolo. Vivi com ele uma vida pobre, enfadonha, sem conforto, durante 55 anos. Ele morreu aos 85 anos, em 5 de abril de 1999. No fim da vida ficou cego, doente, mais ranzinza ainda. Fiquei viúva aos 71 anos, velha e sem forças para enfrentar a vida. Amparada pela religião, conformo-me com a minha sina. 191 Klementina desfiou, naquele dia, a sua atormentada trajetória pela vida. Chorou lágrimas amargas apoiada no meu ombro. Confortei-a, dizendo, para que tivesse fé em Deus, porque é Ele quem dirige o nosso destino. Elisabeth, minha irmã, ficou órfã de mãe aos 2 anos. Durante os três meses que ficou aos cuidados da tia Ksavera, ficava sentada o dia todo dentro de um caixote de madeira, entrevou e não conseguia caminhar.Foi necessária muita dedicação da tia Maria, para fortalecer suas perninhas e ensiná-la a andar sozinha. Foi entregue à avó Leonora, com três anos de idade e ainda estava aprendendo a andar. A avó preocupou-se em mandá-la à escola e ensinou-lhe os trabalhos domésticos. Morou com eles até os 15 anos. Nessa época casou o tio Mieceslau com a jovem Natalia Nedopytalski. Ele era o filho caçula da avó Leonora. Levaram Elisabeth para ajudar nos serviços caseiros. Mais tarde ela foi morar com tio Ladislau (Vadeco), também filho de Leonora, casado com Emília Mazurek. Residiam na Colônia Chupador (Alvorada). Ele era lavrador, plantava milho, feijão, trigo e batata. Para o trabalho na lavoura, Vadeco utilizava mão-de-obra cabocla, remunerada. Era uma família grande, o casal tinha muitos filhos que dependiam de cuidados, e o trabalho caseiro exigia mais pessoas como auxiliares. O pitoresco na vida caseira deles era, que o tio Vadeco tinha 20 cães de caça, que deviam ser alimentados e cuidados pela tia Emilia. Ela cozinhava tachos de 100 litros, cheios de quirera de milho, batata doce, feijão, pedaços de couro e ossos de porco, para alimentar os cachorros. Quando o tio ia à caça do veado, os cães ao ouvirem o som da buzina, saiam em disparada atrás dele e faziam um alarido infernal. Às tardes era visto voltando a cavalo com seus cães de caça correndo atrás dele, a espingarda de dois canos atravessada nas costas, um veado ou outro ani192 mal abatido, dependurado na anca do cavalo ou fieiras de codornas. Soltava a matilha no final da caçada. Elizabeth casou-se em 1943, aos 17 anos, com Miguel, filho de Elias Demitrow e Alexandra, naturais de Chawerlunga região de Bessarábia, Moldávia (hoje Moldova), na época pertencente à Turquia. Falavam o idioma turco. Professavam a religião católica ortodoxa, trazida do seu país de origem. Um fato curioso marcou a festa de casamento de Elizabeth, que veio comprovar a natureza belicosa dos Mazovianos (Mazóvia, região da Polônia). Povo de caráter explosivo, genioso, não levava desaforo para casa. A família Gryczynski procedente dessa região não fugia à regra. O pátio da casa de Elias Demitrow, pai do noivo, estava coberto com lona sobre estacas, e as mesas arranjadas de tábuas sobre cavaletes. Assavam o churrasco de boi, abatido na véspera. Os convivas saboreavam a carne, bebericando cerveja e pinga de alambique. Entre eles estavam os irmãos, João, Tomás, Tadeu, Ladislau e Mieceslau e o pai da noiva Pedro. De repente, os seis irmãos se desentenderam acerca de uma piada, assunto banal, e começaram a brigar, agredindo-se fisicamente. Os espetos de churrasco voavam, servindo de arma nas mãos dos brigões. Irmãos e primos envolvidos, sujos e desgrenhados, trocavam socos e pontapés, mulheres esgoelavam, com os vestidos rasgados e lenços pelo chão. Garrafas quebradas e o churrasco misturado com terra. Foi um verdadeiro circo, que só terminou com a intervenção da turma do “deixa disso”. O casal, Elizabeth e Miguel, tiveram cinco filhos. Até a época atual a família mora em Paranaguá. Miguel faleceu em 1984 aos 62 anos. Foi sepultado na cidade do seu domicílio. 193 Augusto, meu irmão, ficou órfão de mãe aos 4 anos. Como era filho homem, ficou morando com o pai, Pedro, até os 12 anos, quando, descontente por não poder estudar, com o trabalho difícil na roça e má convivência com a madrasta, fugiu, para viver na casa do tio João, onde já estavam Monika e Antônia, suas irmãs. Freqüentava a escola de manhã, e a tarde trabalhava com tio João no depósito de cereais. Durante os cinco anos que permaneceu no emprego, aprendeu e desenvolveu o seu tino comercial. Mais tarde aproveitou essa experiência no seu próprio negócio, ramo ao qual se dedicou com sucesso no decorrer da vida. Foi dono de supermercado e caminhões de transporte de carga. Aos vinte anos conheceu Verônica, irmã do seu cunhado Alberto. Apaixonaram-se e logo casaram. Viveram e foram felizes durante cinco anos, quando um inesperado fato veio mudar o rumo das suas vidas. Eles possuíam um armazém no lugar chamado Gato Preto. Verônica, de temperamento alegre, vivaz, atendia à clientela do balcão. Um homem singular era freqüentador assíduo desse estabelecimento. Jovem, de porte atlético, obsequiador e prestativo. Mulato boa-pinta, tipo conquistador, Olintho Fernandes tocava violão e cantava músicas românticas. Verônica, assediada com insistência pelo rapaz, apaixonou-se e foi embora com o violeiro, numa tarde do dia 16 de outubro de 1948, em que o marido viajou a serviço. Augusto sofreu muito, pois amava a esposa. Desiludido com as mulheres, ficou por longo tempo sozinho. Casou mais tarde com Carolina Basilio, solteira, pessoa modesta, trabalhadeira; foi boa esposa para ele. Viveu em sua companhia por 45 anos. Tiveram uma filha, Terezinha. Moravam em Medianeira, no sudoeste do Paraná. Augusto faleceu dia 12 de junho de 1997 aos 73 anos, de ataque cardíaco. Foi sepultado no cemitério em Medianeira. 194 Antônia, minha irmã, era a mais velha dos cinco filhos, tinha 7 anos quando a nossa mãe morreu. Depois do casamento do pai com Jozefa, ficou com eles, pois servia para ajudar no trabalho caseiro. Viveu na companhia deles até os 15 anos. Em 1936, não agüentando a vida de desconforto na roça e a incompatibilidade com a madrasta, foi embora para a casa do tio João. Ficou morando e trabalhando com eles. Casou-se aos 20 anos com Kazemiro Szczepanowski, de 30 anos, enteado do avô Teóphilo Wasilewski.. Viveram juntos durante 42 anos. Tiveram quatro filhos. Moravam em Monjolo, sul do Paraná, onde Kazemiro construíra um moinho para moer farinha de trigo e fubá, atendendo à colônia local. Viviam com razoável conforto. Um fato doloroso veio afetar a saúde mental de Antônia, distúrbio que persistiu até o final de sua vida. Ela estava deitada, de resguardo, após o nascimento do seu segundo filho Antônio. O primogênito João, de 2 anos, brincava na cozinha, com o cachorro Tigre. A porta que dava para o pátio estava aberta. Era tempo de inverno. Chovia... Num momento, entrou correndo um cão raivoso e atacou o animal que brincava com o menino. Joãozinho foi defender o seu cachorro e acabou sendo mordido na cabeça pelo cão hidrófobo. Antônia, alarmada, levantou da cama, enxotou o cachorro louco com vassoura, pegou João no colo, e sob a chuva forte, correu para a casa da irmã Klementina a chamar por socorro. Atravessou o rio por dentro d‟água. Chegou em casa da irmã, descontrolada, não soube explicar o ocorrido. O choque emocional, violento, tinha lhe afetado o raciocínio. Apesar do tratamento médico, só se recuperou parcialmente. Faleceu em 20 de junho de 1987, aos 66 anos de idade. Seu marido Kazemiro faleceu aos 76 anos. Foram sepultados em Guamirim, PR. 195 JOÃO GRYCZYNSKI. João Gryczynski casou-se com Maria Wasilewska, no dia 11 de setembro de 1920, na igreja de São Miguel, em Irati. Terminada a festa do casamento, João levou a jovem esposa para sua nova morada. Situava-se na colônia Alto da Serra dos Nogueiras, próxima à casa do seu pai Ladislau. Era uma residência pequena, de madeira, com uma cozinha, quarto de casal e sala. Na frente, num salão com três portas para a rua, funcionava a bodega (um pequeno armazém de secos e molhados). Era o começo para um grande empreendimento. A habitação serviu de moradia para a família, por alguns poucos anos, sendo depois ampliada, anexando-se uma construção com cozinha grande e alpendre que se unia à residência existente. Do canto da sala partia a escada que levava ao sótão; este abrigava um cômodo grande, onde estavam dispostas diversas camas, dormitório das crianças e da empregada. Uma porta interna dava passagem da sala, que também servia como escritório, para o armazém. Foi construída perto de um curso d‟água, que mais tarde represado, formou um belo lago. O lugar onde se situava a residência era plano e aprazível. A sombra de uma velha árvore, atrás da cozinha, havia um olho d‟água, onde foi cavado um poço raso, circundado com paredes de tijolo; poço esse que, passados oitenta e quatro anos, ainda fornece água fresca e pura aos habitantes do lugar. A estrada que vinha da cidade de Irati, distante quatro quilômetros, passava ao lado da bodega. Levava ao interior das colônias Alto da Serra dos Nogueiras, Caratuva, Pinho, São Miguel, Apiába, Papanduvas e Prudentópolis. Era a passagem obrigatória dos carroções de oito cavalos, que transportavam erva-mate, madeira serrada e cereais produzidos nas colônias. A bodega atendia os colonos com 196 a mercadoria que eles necessitavam e aos carroceiros que faziam o transporte. O armazém vendia de tudo. O tio João prosperava, mas a custa de muito trabalho e dedicação. Foi necessário construir um depósito grande, para acomodar a mercadoria à venda e a que era comprada dos colonos. Instalou-se no pavimento superior do galpão, uma máquina picadeira movida por tração animal (kierat). Tinha duas grandes lâminas afiadas, para cortar palha de centeio seca, reduzindo-a em pequenos fragmentos. A palha picada descia até o chão, por um leito de tábuas em declive, de 5 metros de altura. O estreito corredor por onde descia a palha era um convite para diversão das crianças. Serviu para nós como escorregador,era muito disputado por todos, que adoravam deslizar pelo tobogã e cair no meio da palha picada. Era o máximo do divertimento para nós, mas não para Antônio Titenis, que era o encarregado de picar, ensacar e vender a palha aos carroceiros. Vendo a palha esparramada pelo paiol, ele ameaçava colocar pregos no nosso escorregador. Seria um desastre para nossas nádegas. A palha de centeio servia como mistura ao milho, na ração dos cavalos, um alimento essencial aos animais. A casa de tio João e Maria estava ficando pequena para acomodar tanta gente, entre crianças, empregados, irmãos e outros parentes que eventualmente se hospedavam por meses, na residência. Tio João resolveu construir uma casa maior, anexa à antiga. Arquitetou o projeto junto com o cunhado João Sloma, que era carpinteiro e marceneiro, seria mestre de obras, também construtor. Foi dado o início em 1932, demorou quatro anos até a conclusão da obra, em 1936. O casarão central, vasto e custoso edifício, voltado para o norte, apresentava uma bela perspectiva, contemplada de longe, com as águas da represa 197 refletindo a sua imagem. O estilo da construção mostrava a beleza da arquitetura polonesa. A casa foi construída toda em madeira trabalhada, de pinho, sobre o alicerce de pedras de um grande porão. Este pavimento foi dividido em duas partes, o maior seria utilizado como depósito do armazém; no outro, seria instalado o cômodo de banhos, com a banheira e o chuveiro, anexo o sanitário. Outro compartimento continha a despensa e a adega. Descia-se até lá por uma escada que saia do pequeno hall junto à cozinha da nova casa. Destacam-se na fachada principal, a escada de acesso, a varanda com gradil de balaustres recortadas artisticamente em madeira, uma guarnição de lambrequins ao longo do telhado, quatro janelões de vidro e a porta principal de madeira entalhada, que dá acesso à sala de visitas. Na fachada lateral, mais quatro janelões e a porta de entrada para o interior da casa. Do jardim sobem dois lances de escada, com laterais em balaustres recortados; um distribui-se pela varanda e outro adentra pelo corredor da habitação. A passagem leva ao dormitório do casal e para três quartos. Um prolongamento do corredor, à esquerda, comunica-se com o refeitório, a cozinha e dependências da nova casa. Também é passagem para o pátio interno. Um pequeno hall, junto à cozinha, abriga uma escada de madeira que sobe até o novo sótão, que. se divide em diversos dormitórios, onde se alojavam as domésticas, as professoras Joana Boese e Antonieta Bitencourt, que lecionavam na escola local, as meninas Úrsula, Laurita, minha irmã Antônia e eu, Monika. Na lateral desse pavimento superior, com vista para o nascente, projeta-se a sacada com cerca de balaustres recortados; ficava suspensa acima do belo jardim com roseiras em flor. Era o lugar ideal para as moças ouvirem serenatas dos namorados. 198 No outro lado do sótão, na parte antiga da casa, separados por uma parede, havia mais dois espaçosos quartos de dormir, onde se acomodavam os rapazes, filhos do tio João e o Augusto, meu irmão. O acesso era pela escada que partia da antiga sala de visitas. Internamente as paredes e o teto da nova casa são revestidos com forro paulista, de pinho. Pintados a tinta óleo; utilizou-se a combinação de diversas cores. As paredes decoradas, realizadas com pintura de rolo sobre chapa de papel recortado com motivos florais, em faixas perpendiculares. O mesmo estilo é aplicado em todos os cômodos da casa. No entanto, destaca-se sobre os demais o desenho floreado do teto, com acabamento em semicírculo. Foi o artista e pintor de paredes, Ewaldo Ducat, de Irati, quem realizou com maestria o trabalho de pintura. O piso da casa era de tábuas de imbuía, largas, de palmo, conforme o uso da época. Uma mesinha de centro ocupava o espaço na sala de visitas entre as poltronas de veludo carmesim. Nas janelas foram colocadas cortinas de voile branco, transparente, ornadas de graciosos babados. A sala de jantar compunha-se de uma mesa grande, doze cadeiras e o armário de louças. Uma “Santa Ceia” ocupava a parede lateral em frente da mesa. Cada vez mais, com a expansão dos negócios do tio João, foi necessário ampliar o espaço. Construiu-se um conjunto arquitetônico, horizontal, esparramado, que se compunha da residência sede e do armazém, dos dois depósitos grandes para cereais, paióis, açougue, chiqueiros, mangueiras para engorde de porcos, cavalariça, galinheiros, barracão para ordenha das vacas. Tudo organizado, dividido com cercas de ripas ou frexames lascados de pinho, superpostos um em cima do outro entre dois palanques, fixados com arame liso, galvanizado. 199 Ao longe, derramados pelo vale, viam-se os empreendimentos do avô Ladislau, os campos com gado pastando, o monjolo e o moinho, tocados pela queda d‟água do ribeiro, que abaixo serpenteava rumorejando entre as margens verdejantes. Doutro lado da estrada, onde se erguia o depósito, a colina declinando com suave depressão ia morrer na ponte, à margem da represa. Deste lado, encontrava-se o belo jardim que margeava as águas do açude. O rio que abastecia o tanque corria pelo leito de pedras, atravessando os potreiros onde pastavam tranqüilamente as vacas e cavalos. Nascia num banhado ao sul da propriedade. Represado em seu curso por diversos tanques, criadouros de peixes. Esses tanques eram esvaziados uma vez por ano para apanhar os peixes com o peso ideal para consumo. Eram vendidos na cidade. As represas formavam volumosas quedas d‟água nos locais de escoadouro, oferecendo deliciosos sítios de entretenimento e banhos às crianças, que tinham passado o dia em brincadeiras, na ânsia louca, de correr pelos pastos, subir em árvores, deliciar-se com as frutas suculentas de guabiroba, tarumã, ariticum, cereja, jarivá, esporão de galo, e outras frutas silvestres. Apanhar ninhos de passarinho, espantar os quero-queros, sem se preocupar com nada, levando a vida de quem tem todo o tempo pela frente. Todos nós temos em nossa alma um cantinho, que, apesar dos anos, da experiência e do trabalho, fica criança, e voltamos à primeira infância. Nesse cantinho dormem as ilusões ingênuas e as esperanças, os sonhos infindos, a fé robusta, e sobretudo certos laivos de loucura que tonificam a razão. É ai, justamente nesse santuário da infância, que a alma humana costuma se refugiar nos momentos de crise. *** 200 Aos oito anos fui estudar na escola “Henryk Sienkewicz”, no Alto da Serra dos Nogueiras, que ficava distante uns quinhentos metros da casa do tio João. Aprendia a ler em brasileiro no período da manhã, e à tarde em polonês. No início lecionou a professora Maria Dluszynska, depois D. Amélia, e diversas outras professoras deram aulas para nós, por fim foi Eugenia Kolconowna. Estudei ali durante quatro anos. Tornou-se nosso hábito de todos os dias, depois do jantar, sentarmo-nos para ler. O tio João, a Olga, Miguel e eu sentávamos em volta da mesa da cozinha, para ler os livros que o tio trazia da biblioteca de Escola Polonesa “Wolnosc”de Irati. Eram romances, contos, livros de história, revistas, as mais variadas leituras que eram o nosso entretenimento. Eu adorava ler, os livros davam-me a sensação de viajar, sonhar, conhecer o mundo. Quem ficava aborrecido com o nosso alheamento, fixados na leitura, era a tia Maria, pois não tinha com quem conversar. A casa dos tios João e Maria era cheia de gente. Além dos filhos do casal, que na época eram cinco, Olga, Miguel Luciano, Úrsula, Mariano e Laurita, depois nasceram João Paulo e Casemiro, eles acolheram e ampararam eu Monika, Antônia e Augusto, meus irmãos. Também as crianças Anastácia de 12 anos e Maria de 8 anos,. irmãs, órfãs de mãe, Ana Lyszymanski, que faleceu na França. Anastácia e Maria chegaram na casa comercial do tio João, em 1939 num dia chuvoso, com o pai Francisco Greskow, imigrante, natural de Niedwiedowce na Polônia, região que pertencera até 1918 à Ucrânia. Vinham da Colônia Gonçalves Junior, de ucranianos, onde Greskow residiu desde 20 de julho de 1936, data em que chegou ao Brasil, na companhia da sua segunda esposa Vitória, uma filha dela e as duas irmãs, Anastácia e Maria, suas filhas. 201 Fato adverso fez ele partir da Colônia Gonçalves Junior, deixando a esposa Vitória e as filhas dela, levando consigo apenas as duas filhas órfãs. Passou em Irati, onde chegou na panificadora dos Wasilewski para comprar pão para as meninas. Perguntou à proprietária dona Madalena, que o atendeu, onde poderia encontrar trabalho e acomodação. Não queria separar-se das filhas. A senhora encaminhou-o para a casa da tia Maria, na Serra dos Nogueiras. - Lá você consegue trabalho e as meninas terão bastante leite, pão e espaço para crescerem - disse ela. Greskow seguiu o caminho indicado, chegando à tarde no armazém do tio João. Mais uma vez falou forte a compaixão e bondade do coração da tia Maria, que ao ver as crianças, propôs: - Com a sua aquiescência, eu fico com as meninas e arrumo trabalho para o senhor, assim ficarão juntos. Levou as meninas para casa, alimentou-as, cortou as longas tranças, escovou o cabelo, deu um bom banho de água morna e sabão e vestiu-as com roupas das suas filhas. Elas vieram vestidas com trajes típicos ucranianos, de saias compridas e blusas bordadas. Somaram-se às pessoas que habitavam nesta casa acolhedora. As meninas Anastácia (Nascia) e Maria freqüentaram as aulas na escola local, onde na época, lecionou a professora Leoni. Anastácia completou o curso primário. Pouco tempo depois Maria foi embora com o pai Greskow para Curitiba, onde ele arrumou um trabalho como jardineiro. Residiam também na casa do tio João os avós Nicolau e Anastácia, pais da tia Maria, a irmã Joana e o marido João Sloma. Diversos empregados trabalhavam no depósito de cereais e na roça, plantando milho, feijão, batata e trigo. Dormiam no paiol e comiam na mesa comprida do refeitório, junto com a família. Não havia discriminação. Sempre havia comida na mesa para quem chegasse com 202 fome, roupa seca para quem se molhou na chuva e agasalho para quem estivesse com frio. Tia Maria praticava a caridade despretensiosa, era o seu coração generoso que conduzia seus atos. Trabalharam com tio João, por muito tempo, os empregados Marciano, Antônio Titenis, José Coelho, Francisco Greskow, Estanislau Velhão, Pedro Junak, João Kowalski, Venceslau Kubicki (Vacek). As domésticas Estefânia e Wanda Paduch, Anna Czorny e Paula, que serviram por muitos anos a família da tia Maria. Aparecia, às vezes, na bodega do tio um mendigo errante chamado Damásio, para pedir comida e um gole de pinga. O tio dava a pinga e a comida, mas depois mandava o Velhão levar Damásio para debaixo da ponte, onde despencava água em cascata, e lhe dar um bom banho com sabão de cinza. Dava-lhe roupas limpas. Cortava-lhe o cabelo e fazia a barba. Depois cantarolando, assobiando suas melodias, mandava soltar o homem. Esse gesto de bondade denota a grandeza do coração do tio João. Desde o ano de 1933, e durante os próximos cinco anos, tio João ficou doente, com forte depressão, devido à azáfama cotidiana e sobrecarga de trabalho. Apresentou-se um quadro grave de uremia, que é a retenção no sangue de proteínas, que o paciente não consegue eliminar por via urinária. Tratou-se com Dr. Juvencio Soares, médico conceituado em Irati, e também com especialistas em Curitiba. Fazia dietas rigorosas, desprezando o sal e as proteínas. Foi durante esse tempo que ele isolou-se de todos. Ia de madrugada para a pedreira, onde durante o dia todo quebrava pedras em paralelepípedos, para fazer o alicerce da casa em construção, as calçadas de frente e o revestimento do pátio interno. Assim, longe do tumulto diário e das pessoas, ele trabalhou por muitos meses. Cercou de ripas de madeira e 203 preparou dois alqueires de terra, próximos ao depósito de cereais. Plantou ali um pomar com numerosas árvores frutíferas, laranjeiras, pereiras, macieiras, ameixeiras, limoeiros e parreirais extensos. Trabalhou sozinho, plantando, podando, capinando, até que a depressão e a uremia foram cedendo, aos poucos. Durante a doença do tio João, não foram abandonadas as suas plantações de milho, feijão e trigo. Disto dependiam os animais domésticos da propriedade. O plantio passou a ser feito em sistema de mutirão. Nos dias apropriados, dezenas de colonos da redondeza reuniam-se na lavoura para limpar o terreno, plantar e na época certa colher as lavouras. Com esse belo gesto, os colonos demonstravam a grande amizade e solidariedade que os unia. Pelo espaço de mais de 30 anos a vida fluiu, mesclando a alegria e os reveses que povoaram essa morada. O amor que unia o casal era a mola mestra que impulsionava a vida ao redor. Quando a tia Maria ficava triste, nervosa ou contrariada, ela se retirava em segredo para longe, para os pastos, deitava na sombra de uma árvore e chorava. Curtia sua dor em silêncio, longe de todos. Ficava muitas horas ali, até se acalmar. Voltava para casa tranqüila. Eram tão unidos que ela nem precisava lhe falar ou explicar, bastava um olhar, um sorriso. Ele a compreendia, retribuía o olhar, sorria e saia assobiando as melodias costumeiras. De manhã cedinho tio João levantava para fazer o chimarrão. Levava para o quarto onde a tia dormia e oferecia-lhe a cuia, não sem antes dar-lhe um beijo de bom dia. Depois, tomavam o café da manhã juntos, ela sentada perto da mesa, ele servindo-lhe o café, o pão e a omelete de ovos e lingüiça, que ele tinha preparado. Tio João não sentava perto da mesa para se alimentar, ele comia rápido, de pé. 204 Ao lado do fogão, na cozinha, havia um espaço onde ficava a cadeira de balanço. Tia Maria sentava ali, pegava o caçula ou outro filho, no colo, e ficava embalando até a criança adormecer. Desta cadeira ela dava as ordens para o dia de trabalho dos empregados da casa. Quando estava grávida da filha Úrsula, sonhou com uma árvore que pedia para ser plantada no seu jardim. Comprou uma muda de carvalho europeu (Fagacea Quercus robur), e plantou-a no jardim, defronte à sala. O carvalho cresceu rápido, virou uma árvore grande, com os galhos espiando pelas janelas da casa, espalhando a sombra ao redor. Passarinhos faziam seus ninhos por entre a folhagem; as vespas zunindo com som voluptuoso voltejavam em redor das frutas maduras. Diariamente quando se abriam as janelas, a casa toda enchia se de perfume das rosas e camélias que floresciam no jardim. Nesse tempo o Casarão adquiriu algum temperamento, como se fosse um ser vivo, uma entidade, a parte de todos nós. Ou, talvez quem sabe, a alma dos antepassados, se houvesse fundido em uma única energia, que se enredara entre a madeira dos pisos, no forro das paredes e sob os degraus das escadas e fazia as vezes da alma desse recinto. Em 1947, tio João mandou construir um sobrado na cidade de Irati. O construtor Rodolfo Slumberguer concluiu a obra em 1949. Em junho daquele ano, tio João mudouse para o sobrado, ocupando o pavimento superior como residência da família e o térreo como escritório e depósito. Continuou com o comércio de cereais, associando-se à “Sociedade Cerealista Brasileira Ltda”. Ficaram morando na propriedade antiga, a filha recém-casada, Úrsula com o marido Caetano. Prosseguiram com o armazém e comércio de cereais. O negócio não deu certo e logo foram embora. O Casarão ficou abandonado. 205 Depois que o tio João e Maria, que eram os gênios benfazejos e o sol deste lugar, mudaram-se para a cidade, a casa grande, vazia, ficou estranha, parecia contrafeita, triste. Começou a envelhecer. As paredes do interior da casa pintadas a óleo, já de longa data tinham em si todos os sinais do tempo. Aqui o bolor, ali uma greta, acolá o rasgão produzido por um móvel; cada acidente do tempo ou de uso dava aquelas paredes um aspecto desolador. O Casarão abandonado parecia sofrer, estava ainda mais velho do que era, a tinta das paredes de madeira e das colunas da varanda ia caindo. Algumas ervas daninhas brotavam junto à paredes, cobrindo com folhas descoloridas o chão desigual e úmido do pátio. Com o passar do tempo, foi atacado e devorado pelos cupins e pelas goteiras de chuva. Está desabando. A poeira e os ratos tomaram conta do espaço, passeiam tranqüilamente pelo Casarão vazio. As construções, paióis e depósitos antigos, sem conservação, também foram afetados pela velhice. Os telhados cobriram-se de musgos e líquens. As ripas das cercas, apodrecidas, despregaram-se e caíram. Enferrujaram as dobradiças do portão do pátio que se arrasta pelo chão. Secou o grande pomar de laranjeiras, outrora tão abundante em frutas, perfumando o ar na época da eflorescência. As abelhas saíram em enxames, abandonando as colmeias. O jardim que cuidei com tanto carinho, foi abandonado e morreu sufocado pelo mato. Já não existe a casinha da tia Estephania, que foi construída no meio do pomar. O rio represado que formava o açude próximo da casa, povoado de peixes, que todo ano era esgotado na quaresma, foi assoreado pela terra trazida das lavouras pela chuva. O rio não mais existe, corre apenas um fio d‟água num leito estreito de margens arenosas, formando fundas poças de água barrenta. Assim também, os outros tanques de criação de peixes, foram secando, desaparecendo. 206 Tudo foi se acabando. Abandonadas há décadas, as construções agonizam. Como muitos outros testemunhos de nosso passado, como a glicínia centenária, que enfeitava com seus cachos azuis, a varanda da casa do avô Ladislau, já sucumbiram, ou estão ameaçados de desaparecimento. A vida que fervilhava em torno da propriedade, movida pelo trabalho, pela bondade, energia e força de caráter do tio João, foi embora com ele. O tio João e tia Maria viveram no sobrado, em Irati desde 1949, isto é, por quase 50 anos, benquistos por todos. Também aqui não deixaram de distribuir generosidade, amizade e respeito às pessoas. Ela filosofando, repetia sempre: “Eu fui feliz e não sabia”. Também opinava sobre as pessoas.” Nunca acredite que alguém seja tão bom quanto quer parecer, nem tão ruim quanto os outros dizem”. Passados muitos anos a tia Maria, já bastante idosa, pediu ao filho Casemiro para que cortasse o carvalho que ela plantou no jardim do Casarão da Serra, e mandasse fazer um caixão mortuário, ela. queria ser enterrada no ataúde feito daquela árvore. Faleceu em 7 de agosto de 1998, com 94 anos. Foi feita a sua vontade. Tio João faleceu em 21 de maio de 1986, com a idade de 90 anos. Foram sepultados no Cemitério Municipal de Irati. Acertada a questão do inventário, a filha Olga, herdeira, tratou de acudir o que restava da antiga propriedade. Desmanchou uma parte, reformou e pintou o resto da casa. A gente simples do lugar, supersticiosa, via fantasmas andando pelo Casarão. Ouvia vozes e gemidos. Às tardes vinham fazer orações, cultos, acender velas para apaziguar as almas que assombravam o lugar. Eu sinto-me vinculada sentimentalmente ao Casarão da Serra, onde as tábuas do piso e das paredes e os espaços estão impregnados de todos nós, das nossas vidas, das emoções de infância e juventude. Muitas vezes em sonhos, mi207 nha alma vagueia pelos corredores, vai ao sótão, caminha por entre os escombros do Casarão, das construções que havia, anda pelos pátios e pastos verdes que já não existem. No sótão, ouço os lamentos dos fantasmas do passado. Parece-me que o vulto da tia Maria espia-me de um canto da sala detrás da cortina rasgada. Deslizam sombras pelos corredores empoeirados. O vento que assobia por entre as frestas do telhado decomposto, tece melodias assombrosas. Eu as ouço e choro o tempo que passou. Pois há sempre fantasmas povoando nossas vidas. Na sua maioria, trata-se de velhos sonhos acalentados por nós, que duraram muito e não se realizaram, esperanças que não são esquecidas e ainda que soframos, as levamos conosco. Viagens e aventuras que gostaríamos ter vivido. A velha casa onde passei, outrora Os dias mais ditosos da existência, Jaz, solitária e tristemente, agora Num estado geral de decadência. Debaixo desse teto em pura ardência, Passei da vida a sorridente aurora; Sob ele, após, chegou-me a adolescência E os sonhos doces que minh´alma chora... Mais tarde a desprezei num louco anseio, Hoje – repleto o coração de assombros – Quando a revejo, de pesares cheios, Pondo em seu vulto os olhos meus tristonhos, Cuido de vê-la ruir, nos seus escombros, Sepultando os destroços dos meus sonhos! De autor desconhecido . 208 Terminado o curso primário na escola local, no ano de 1934 fui matriculada no 3° ano do Grupo Escolar Duque de Caxias em Irati. Todos os dias, acordávamos de madrugada, caminhávamos a pé, percorrendo quatro quilômetros até a escola, fizesse sol ou chuva, frio ou geada, íamos estudar. Voltávamos à tarde. Era uma turma de oito crianças da colônia. Assim foi durante um ano. Os filhos do tio João, os menores Miguel, Mariano, Úrsula e Laurita, também estudavam em Irati; portanto ele resolveu mandar construir uma pequena casa de madeira na cidade, para nos alojar. Em fevereiro de 1935 convidou a tia Estephania, irmã de seu pai, que habitava no pomar de laranjeiras, para morar conosco. Eu estava com doze anos na época. Passei a ajudar a tia no trabalho caseiro, lavava e passava a roupa, cuidava da cozinha e da louça e arrumava a casa. Aprendi com ela a cozinhar muitos pratos da cozinha argentina, que preparo até hoje. Nas tardes de folga, a tia Estephania, enquanto enrolava os cigarros de fumo de corda, em palha de milho, atendendo a encomenda, contava para nós a história dos nossos antepassados na Polônia, sobre o transcorrer da sua vida e das pessoas com as quais conviveu. Descreveu com detalhes o motivo e a viagem para o Brasil de toda sua família e as dificuldades encontradas na nova terra. Somou, à dor da separação do seu amado Mathaei, a morte dele, as frustrações dos seus casamentos, o exílio voluntário na Argentina e o trabalho árduo na cidade portenha, e concluiu que a vida não lhe fora feliz Eu estudava no período da manhã no Grupo Escolar de Irati, onde fiz o 3° e 4° ano. Recebi o Diploma do Curso Primário em 29 de novembro de 1936, assinado pela Diretora D. Mercedes Braga. Cursei também o 1°, 2° e 3° ano da Escola Complementar; lecionava nesses cursos a professora D. Heredia Lady Medeiros. À tarde ia á Escola Polo209 nesa “Wolnosc”, onde estudei por quatro anos, com o professor Jerzy Gonet. Os três filhos do tio João, Olga, Miguel e Úrsula foram estudar em Curitiba, portanto, a casa em Irati não teria mais utilidade. Foi fechada em 1940, depois da partida da tia Estephania para Curitiba, onde foi morar com seu filho. Ela faleceu em 1949, aos 80 anos de idade. No último ano em Irati, fui aprender o corte e costura, aprendizado que me valeu durante a minha vida. Moramos nesta casa durante cinco anos, até 1° de dezembro de 1939. Eu estava com 16 anos. Voltei a morar no Casarão da Serra. Fiquei feliz, pois eu amava este lugar. No correr dos dias eu ajudava nos trabalhos caseiros, costurava as roupas para as pessoas da família. A tia Maria comprava peças inteiras de tecido para fazer vestidos caseiros, aventais, calcinhas, calças, cuecas e camisas. Flanela para pijamas, blusas e agasalhos para o frio. Ela cortava as roupas e eu passava os dias costurando. Num gesto democrático e interessante, a tia comprava calçados iguais para todos, do mesmo modelo para as meninas, e outro igual para os meninos, para não haver disputa, nem exibições. Uma das minhas obrigações, na época do verão, era depenar os 30 gansos, que eram criados na propriedade. Para isso eu os fechava num cômodo pequeno, pegava um por um e arrancava as penas curtas de todo seu corpo. Estas, após selecionadas, serviam para encher os travesseiros e os cobertores, para os dias de frio (Pierzyna). Certa vez peguei um ganso para depenar, ele se debatia muito, dava bicadas ferindo-me, eu coloquei a sua cabeça debaixo do braço e apertei para imobilizá-lo. Quando terminei de depenar soltei-o, mas ele não se moveu, estava morto por asfixia. Fiquei apavorada com a reação da minha tia, que com razão repreendeu-me com severidade e 210 levou o ganso para cozinhá-lo para o almoço. Eu não pude engolir sequer um pedacinho da carne. Traquinagens e às vezes até malvadeza eram praticadas pelas crianças. No fogão de tijolos, da cozinha, dormia uma gata, que estava para parir. Certo dia amanheceu com seis gatinhos, miando. Eu era obrigada a fazer a limpeza da sujeira dos gatos. Meu estômago não agüentava o mau cheiro e eu vomitava. Revoltei-me com a perspectiva de precisar fazer novamente a faxina. Sugeri aos meninos que dessem sumiço nos gatos, enquanto a tia Maria estava ausente, na cidade. Foi a dica que esperavam para suas travessuras. Colocaram os gatinhos dentro de um saco de estopa e os levaram para longe de casa. Fizeram um buraco na terra e os enterraram vivos, socando, sapateando em cima. Na volta da tia, alguém buzinou o segredo no seu ouvido. Ela ficou furiosa, quis bater em todos, dizendo que os gatos não tinham morrido e ainda miavam. Assustados fomos ver; os meninos desenterraram o saco com os gatinhos, com certeza já mortos, colocaram uma pedra dentro e jogaram no rio. Naquela época não havia colchões de mola ou de espuma. Às tarde e à noite as pessoas reuniam-se no paiol de milho, uns descascavam as espigas e outros rasgavam a palha para fazer colchão. Enchia-se um saco feito de tecido forte, com dimensões apropriadas para a cama. Usava-se também forro de cama feito de palha de centeio. Mais tarde apareceu o colchão de crina de cavalo. Certa vez, a tia Maria resolveu esvaziar de palha todos os colchões para lavar o tecido. A palha foi despejada no chão, para secar e ventilar, num lugar onde batia o sol. O Mariano, menino arteiro, viu nisto uma ótima ocasião de pregar uma peça na mãe. Foi correndo buscar uma caixa de fósforos e pôs fogo na palha. Queimou tudo. 211 Quando a mãe chegou já não havia nada, só cinzas da palha. Aquela noite todos dormiram na tábua dura. Ninguém descobriu de quem foi a arte, só desconfiaram do Mariano. Aproximava-se o Natal e o Ano Novo. Começaram os preparativos para as festas. Lavar as cortinas, engomar as toalhas, lavar as paredes e os vidros das janelas, encerrar o assoalho. Com a chegada da semana do Natal, um dos rapazes foi buscar o pinheirinho verde no campo. Armado em cima da mesinha da sala de visitas, todos queriam colaborar, colocando os enfeites de vidro colorido, as bolachas de mel, os Papai Noel de chocolate, os cordões brilhantes e coloridos, o algodão imitando a neve. Velas pequeninas acesas, tremeluziam com luzinhas amarelas. Embaixo da mesa foram colocados os presentes. A tia Maria fazia questão de não esquecer de ninguém. Depois do jantar, todos os residentes na casa e também alguns vizinhos se reuniam em volta da árvore de Natal. Cantavam em polonês, hinos em louvor ao Senhor recém-nascido. O avô Nicolau tocava violino. Alguém tocava violão. Era a maior alegria para todos, a comemoração se estendia pela madrugada. Na véspera do Natal, a tia Maria arrumava na cesta de vime forrada com toalha branca, bordada, um pão branco, biscoitos, bolachas de mel, pernil de porco e galinha, assados, manteiga, um vidro de raiz forte (chrzan) e ovos cozidos e pintados com motivos florais (pisanki). Esses alimentos eram levados à igreja para serem benzidos pelo padre, na cerimônia especial para esta finalidade. O dia do Natal era uma festa. Ao café da manhã a família toda sentava ao redor da mesa. Na cabeceira ficava o tio João e ao seu lado a tia Maria. Eram distribuídos pedacinhos de hóstia, com votos de Feliz Natal. Em primeiro lugar eram servidos os alimentos da cesta, benzidos pelo padre. 212 A mesa forrada com toalha branca, finamente bordada, ficava repleta de pães doces e salgados, galinha assada, recheada, pernil de porco assado, lingüiças, bolinhos de carne, geléia e queijo de porco, leite, nata, requeijão, torta de maçã e diversas guloseimas doces e salgadas. Como acompanhamento para as carnes, a indispensável raiz forte ( chrzan), ovos cozidos, coloridos com extrato de casca de cebola, ou de erva-mate e desenhados com motivos florais (pisanki). O almoço era composto de carnes assadas, refogado de repolho em conserva, com lingüiça e costela de porco defumados, purê de batata cozida, macarronada com molho de tomate e bastante queijo. Tudo regado com cerveja caseira e suco de frutas do pomar. O Natal maravilhoso, festivo, que acontecia todo ano na casa de tio João e Maria. As crianças aguardavam a chegada das festas do Natal e da Páscoa com ansiedade. Esses tempos felizes marcaram a alma de todos nós. *** 213 Olga, a primeira filha de Maria e João Gryczynski, nasceu em Irati. Seu pai estava ausente, pois fora convocado para o exército. Veio conhecer a filha já com alguns meses de idade. Criou-se com os outros irmãos, na casa da Serra dos Nogueiras. Estudou na Escola local concluindo o curso primário. Depois interna, no Colégio N.S. Das Graças em Irati, estudou por dois anos, transferindo-se em seguida para Curitiba, onde freqüentou o Colégio “Henryk Sienkewicz”, completando o Curso Médio neste educandário. Em 1936, estudou na Academia Superior do Comércio do Paraná. Em Curitiba, morava no pensionato para moças “Bursa”, da Fundação mantida pelo governo polonês. Formou-se como professora de idioma polonês. Suas professoras foram Wanda Domanska, Madame Lukasiewicz e outras, que transferiram-lhe o respeito pelos valores morais, respeito à cultura, à natureza, à ética, à nobreza de sentimentos e à valorização do ser humano. Sua diretriz ordenava ” Viver assim, para que com seu procedimento possa despertar o respeito e o valor à mulher polonesa” (Zyj tak bys swoim postepowaniem mogla rozbudzic szacunek dla imienia polki).O lembrete consta das anotações da Olga, datado em 11 de março de 1936. Casou-se com José Cantidio Zeni. Tiveram três filhos. Residiram sempre em Irati. Ela é comerciante inata, administrou com competência a sua loja de modas “Casa Santa Maria”, durante muitos anos. Possui grande cultura intelectual, distinguiu-se como poetisa notável desta época, sendo premiada com Diploma e Medalha de Ouro pela Academia Internacional de Lutéce, Paris, França, em 1989. Escreveu belos livros de poesia, usando a metáfora e o simbolismo como formas de expressão, praticando uma linguagem de um encanto singular. 214 Miguel Luciano, o segundo filho, nasceu em Irati. Freqüentou a escola local e depois o Grupo Escolar Duque de Caxias em Irati. Estudou em Curitiba. Depois de formado foi morar e trabalhar em São Paulo, onde conheceu a bela jovem Estrella Altamirano, moça prendada, de qualidades morais e fina educação, descendente de espanhóis. Casaram-se em 1949. Miguel, como já era tradição da família, dedicou-se ao comércio de cereais, e à piscicultura. Adora belas mulheres, festas e viagens. É um bon vivant. Com o seu modo de ser parece-se muito com o avô Nicolau Wasilewski. O casal teve três filhos. Atualmente moram em Curitiba. Úrsula, a terceira filha, também nasceu em Irati. Como as demais crianças da colônia, estudou na escola local, onde fez o curso primário. Continuou seus estudos no Grupo Escolar Duque de Caxias, em Irati. Completou o Curso Complementar nesse educandário. Como possuía um notável talento para música, o pai mandou-a para Curitiba. Hospedada na casa da tia Helena Wasilewska Dybowicz, cursou as aulas de violino no Conservatório Musical do Paraná, por dois anos, não conseguindo se formar, pois o pai chamou-a de volta para casa. Precisava do seu trabalho no armazém. Conheceu o moço Caetano Zarpelon, enamoraramse e logo casaram . A festa do casamento foi realizada na casa da Serra. Ficaram morando ali pelo espaço de quatro anos, época em que tio João mudou-se para o sobrado em Irati. A avó Leonora, que já morava com o tio desde 1942, ficou na companhia de Úrsula, até sua mudança para Riozinho, em 1950. Anos depois Úrsula mudou- se para Irati e finalmente em 1960, para a cidade de Manoel Ribas, onde mora até a data atual. Tiveram cinco filhos. Caetano faleceu em 1998, naquela cidade. 215 Mariano, o quarto filho, nasceu em Irati. Eu fui a sua babá. Carregava este guri rechonchudo com dificuldade, pois eu tinha apenas oito anos. Certa vez, ao passar perto de uma balança de sacaria, enrosquei meu pé e caímos os dois. Foi aquele escarcéu, o menino berrava como se alguém estivesse o matando. Mas só foi o susto, ninguém se machucou gravemente. Tia Maria me repreendeu, porque não prestei atenção por onde andava, mas continuei cuidando do menino. Mariano foi uma criança solitária, mas muito arteira. Talvez para chamar a atenção. Vivia aprontando confusão; apanhava pelas artes que fazia e pelas que não fazia. Com oito anos foi para a escola local, depois freqüentou a Escolhinha da Dona Noca em Irati, para mais tarde se transferir para o Grupo Escolar Duque de Caxias. Fez o Ginásio e formou-se em Contabilidade no Colégio José Emílio Calderari de Irati. Iniciou a sua carreira no comércio trabalhando com o pai na compra e venda de cereais. Casou-se aos 24 anos com Isabel Pohl, de 20 anos. Tiveram cinco filhos. Residiu durante muitos anos em Laranjeiras do Sul. Administrava, nesse município, a Serraria da firma Sociedade Cerealista Brasileira Ltda, da qual era sócio, e a Fazenda Rio do Leão, de criação de gado. De temperamento enérgico, Mariano se parece muito, fisicamente, com o avô Ladislau Grechinski. Diligente e esforçado, com seu trabalho supriu o sustento e a educação dos filhos que estudavam na capital; formaram-se em cursos superiores. Cumpriu com responsabilidade a sua obrigação de pai. Atualmente está aposentado, fora acometido por um enfarte e a metade do seu coração ficou prejudicado. Reside em Curitiba na companhia da família, composta pela esposa Isabel, mulher culta, inteligente, trabalhadeira, de 216 caráter pacífico, por duas filhas e pelo filho. Vivem na casa antiga, confortável, espaçosa, as paredes e muros cobertos pela hera de um verde luxuriante. Laura (Laurita), quinta filha, nasceu em 25 de abril de 1932. Estudou no Colégio N.S. Das Graças em Irati. Casou-se com Waldomiro Sabat. Moravam em Irati onde possuíam uma casa comercial. Tiveram quatro filhos. Viveram juntos por 44 anos, quando a morte dele os separou em 1995. Em 1999, ela teve mais um golpe trágico com o acidente e morte do seu filho Waldomiro de 40 anos. Laura mora em Irati, próximo de seus filhos. João Paulo (Jango), o sexto filho, nasceu em Irati. Estudou no Colégio N.S. das Graças em Irati, interno, por quatro anos. Formou-se em Contabilidade no Colégio José Emílio Calderari, de Irati. Conheceu Ada Hessel, vizinha de sua casa. Apaixonados um pelo outro, casaram-se.logo.Foram morar em Curitiba. Em 1968 voltaram para Irati onde residem atualmente. Ele sempre trabalhou com compra e venda de cereais. Hoje dedica-se à piscicultura em grande escala, aprendizado adquirido do seu avô Nicolau Wasilewski, ao reflorestamento de pinus, a engorda de gado e a suinocultura. É um homem inteligente e trabalhador. Dotado de um tino extraordinário para o comércio dedica-se a ele com entusiasmo. Ativo ao extremo, fato que lhe prejudicou a saúde, pois em 1978 foi acometido por uma grave depressão, cujos efeitos sente até hoje. Casemiro (Kazio), o sétimo filho, é o caçula do casal João e Maria. Estudou no Colégio N.S. das Graças, interno. Terminado o primário, fez o Curso Científico e foi para São Paulo estudar no Instituto de Ciências e Letras Pucca. Tentou o vestibular para agronomia na Faculdade Luís de Queiroz e em outras. Não conseguiu aprovação. 217 Voltou para Irati, e matriculou-se na Escola do Comércio, onde se formou em Contabilidade. Ajudava o pai na atividade comercial de compra e venda de cereais. Nas viagens que fazia ao interior do Estado, certa ocasião, em São Miguel do Iguaçu, conheceu Terezinha Pizzolo. Jovem de 18 anos, de uma beleza invulgar. De silhueta esguia, andar elegante, olhos verdes, tez amorenada, o cabelo castanho preso num coque gracioso, era o tipo autêntico da beleza latina. Descende de italianos. Casemiro apaixonou-se, assim que a viu. Tiveram um breve namoro, e o moço precisou voltar para Irati, mas antes obteve de Terezinha a promessa de que o esperaria o tempo que fosse necessário. Ele jurou a ela que voltaria. Passaram-se três anos, sem que Casemiro retornasse ou desse notícias. Até que um belo dia ele voltou. Perguntou nas redondezas se a jovem Terezinha tinha-se casado. Informaram-no de que a moça esperava pelo namorado desconhecido, ao qual amava, que prometeu voltar. Casemiro exultou de alegria; foi procurá-la e falar com os pais. Contrataram o casamento, mas antes das núpcias, Terezinha foi conhecer os pais de Casemiro, que moravam em Irati. O casamento realizou-se em São Miguel do Iguaçu, em 1964. Durante um ano e meio, moraram com os pais dele, época em que Terezinha aprendeu com a sogra os segredos da culinária polonesa, da qual Kazio era adepto. Depois foram morar na sua casa, na rua Alfredo Bufrem, onde nasceram e se criaram seus quatro filhos, Davi, Daniel, Débora e Andréa. Todos se formaram em cursos superiores. Débora diplomou-se em Direito, depois em Parapsicologia pela Faculdade Espírita. Com consultório próprio, exerce a profissão de parapsicóloga e terapeuta de vidas passadas. Inteligente, sensível e afetuosa, é uma pessoa 218 especial. Dedico-lhe grande carinho e gratidão, pela sua colaboração, no início do meu trabalho de escritora. Casemiro dedica-se ao comércio e à agricultura. Cultiva feijão-preto, erva-mate e reflorestamento de pinus. Mas sua maior atenção é dedicada à piscicultura. Construiu grandes açudes para criação de peixes de diversas espécies: carpa chinesa Cabeça Grande, carpa Capim, carpa Prateada e carpa americana “Cat Fisch”, tilápias e peixes nativos. É um homem ativo e inteligente, culto, gosta de leitura, teatro, cinema e viagens internacionais de turismo. Em 1980, numa viagem de 40 dias, seguiu com a família para a Europa, onde visitou diversos países. Em 1986, com Terezinha e pessoas da família, foi conhecer Israel, Egito, Grécia, Itália, França e Marrocos. Na Espanha, assistiram às aulas e receberam o diploma do Curso de História da Espanha, em Sevilha. Em 1994, na companhia da esposa, visitou a China e o Japão. Kazio tem o espírito de construtor, sempre está a construir, e suas edificações são obras de arte, como a casa de campo que construiu na sua Fazenda Virá. Feita de troncos roliços de eucalipto, envernizados, dispostos em horizontal formando as paredes, tendo no centro, como sustentáculo do telhado, uma árvore de eucalipto. Projetou a construção em dois pavimentos, numa elaborada arquitetura polonesa montanhesa, própria dos Cárpatos. É uma bela casa, que merece ser vista pelos apreciadores das obras de arte. *** 219 O ACIDENTE. Era o ano de 1930, época das eleições para presidente da República. Ladislau Grechinski, estava num caminhão que conduzia eleitores e simpatizantes, para o grande comício do Partido Republicano Paulista (PRP), que se realizaria em Irati. Na grande euforia, a algazarra tomou conta dos passageiros que iam na carroçaria do caminhão, quando numa curva o veículo desgovernado tombou, jogando fora os passageiros que iam em cima, de encontro a uma árvore caída. Ladislau por um desses momentos de azar, caiu sobre uma ponta saliente do toco da árvore. O avô Ladislau era o homem mais diligente e empreendedor que se poderia ver na colônia. Seu espírito de iniciativa e colaboração social desapareceu em pouco tempo, após a queda da carroçaria do caminhão. O dia estava amanhecendo. Densa neblina cobria os campos e os vales. O pico da montanha coberta de névoa, apontava no horizonte, elevando-se acima da densa floresta de araucárias. Alhures ouviram-se os gritos do bando de quero-queros. Na casa à beira do rio ainda todos dormiam, apenas o avô acordou, um ricto de dor marcava-lhe a face pálida. No momento da queda, não parecia ser nada grave, mas com o passar dos dias o peito começou a doer terrivelmente, a moléstia agravou-se e o enfermo foi compelido a procurar um médico na cidade de Ponta Grossa. O clínico reconheceu que o caso era grave, pois o golpe tinha atingido o fígado, o qual estava se deteriorando. Não o disse à família, mas não escondeu a gravidade do João, filho mais velho, que acompanhava o pai na consulta. - Como está meu pai?- perguntou João. 220 - Está condenado à morte - disse o médico - a moléstia devora-o por dentro, lentamente, mas está piorando cada vez mais. Pode viver anos ou meses apenas. João ficou aterrorizado com a notícia. Os acontecimentos tomaram o rumo que ele temia. Pedia a Deus pela vida do pai. Leonora suspeitava da gravidade da doença, interrogou o filho e ouviu palavras de conforto e de confiança. - Não te peço esperanças ilusórias - disse ela - mas peço te que me diga a verdade, você estava junto na ocasião da consulta com o médico e conhece a situação verdadeira - A verdade é difícil de dizer – falou o filho, aflito. - Ele não tem cura? Vai morrer? - A doença dele é grave, o coração e o fígado estão comprometidos - disse João - Mas tudo está nas mãos de Deus, e só Dele depende a vida do nosso pai. Agora só nos resta cuidar bem dele e orar muito. Leonora quando se achou sozinha, deu livre curso às lágrimas e a angústia que a sufocava. Encarou a possível morte do marido e pensou nas conseqüências e na incerteza do futuro que a aguardava. Tinha em casa quatro filhos homens, o mais velho Tomás, com 19 anos, Tadeu com 17, Ladislau com 16 e Mieczko com 15 anos. Criava também uma neta orfã, Elisabeth, de 9 anos, filha do Pedro. Os outros filhos, já tinham casado. A pequena Ângela tinha morrido aos 6 anos de idade. Administrar a propriedade e cuidar da família seria um encargo muito pesado para suas mãos frágeis. A doença do marido prolongou-se por cinco anos. Às vezes acamado, outras quando se sentia melhor caminhava pelo pomar. Revia suas plantas com carinho. Recebia muitas visitas. Com o passar do tempo caiu em depressão, tornou se nervoso, irascível, brigava por qualquer motivo. Não se sujeitava à dieta alimentar prescrita pelo médico. 221 O enfermo piorava rapidamente. A doença entrou no último estágio. Lenta e intermitente nos primeiros tempos a enfermidade teve rápida e inflexível evolução no último período. No fim de poucos dias a morte foi declarada iminente. Leonora ficou desesperada. Durante todos estes anos não conheceu outro mundo, outro afeto, além daquele homem prepotente, dominador e ciumento, mas terno, cujos olhos a protegiam e iluminavam a sua vida. No primeiro instante não acreditou neste triste fato; mas a realidade apresentou-se a seus olhos, e foi então que a alma tentou romper todos os elos e voar, antes dele, e esperá-lo na imensa vastidão azul, para empreenderem juntos a última viagem. Não chorou nas primeiras horas; a dor trancara-lhe as lágrimas; mas estas vieram logo depois e ela as verteu em silêncio, sufocando os soluços, estorcendo-se na solidão do seu quarto. Antes de morrer, Ladislau chamou a mulher e os filhos para junto do seu leito e falou: - Filhos vocês já são moços e saberão defender-se na vida. Não abandonem a mãe, ajudem-na a levar avante a propriedade que deixo a vocês, não a deixem decair, porque este e o fruto do meu trabalho de uma vida inteira. Leonora vai ficar só; prometam-me que não vão desampará-la. Os filhos concordaram; principalmente João que tranqüilizou o pai e pediu-lhe que não falasse tanto. - Descanse pai, não diga mais nada...descanse... O enfermo estava perdendo as forças. Tinha se esforçado em excesso. Sussurrando, com um gesto, chamou Leonora para junto de si, estendeu as mãos quando ela alcançou-lhe as suas, e puxou-a para perto do seu peito num abraço desesperado, não a largou até o último suspiro, até a morte apoderar-se do seu corpo e afrouxar os seus braços. 222 Ao vê-lo morrer, Leonora soltou-se com cuidado deste amplexo final e saiu correndo para o pomar, onde poderia verter o pranto represado, em paz; onde ficou por longo tempo sentada no chão com a cabeça entre as mãos, sacudida pelos soluços, deixando afluir a dor do profundo da sua alma. O avô Ladislau Grechinski, nasceu no dia 6 de março de 1874, faleceu dia 20 de fevereiro 1934, com a idade de 60 anos. Foi sepultado numa tarde ensolarada e agradável no cemitério Municipal de Irati. Grande multidão da comunidade do Alto da Serra dos Nogueiras, triste e constrangida, acompanhou o enterro. Tinham perdido um líder. Um grande homem do povo. Para prestar-lhe a justa homenagem, a Câmara Municipal de Irati designou a principal via de acesso à cidade de Avenida Ladislau Gryczynski. Leonora viveu na companhia dos filhos solteiros durante oito anos. Época em que Tadeu casou-se com Josefa Szubarczuk e o caçula Mieceslau, com Natalia Nedopytalski. Os dois casais foram morar nas suas respectivas casas. Ladislau o penúltimo filho, conheceu a jovem Emília Mazurek, numa festa de igreja. Os pais dela moravam na Colônia Gonçalves Júnior. O namoro começou com as freqüentes visitas dele à casa da moça. Apaixonaram-se. Decorrido algum tempo, Leonora foi conhecer a jovem que seria sua nora e tratar da data e detalhes do casamento. Comemoraram o enlace com uma grande festa, que durou três dias. Foram morar com a mãe Leonora na casa da Serra dos Nogueiras. Teriam sido felizes desde então, se as amigas casadas de Emília não a tivessem aterrorizado com toda espécie de comentários a respeito do ato sexual. Ela era totalmente inocente e desinformada. Recusou-se a consumar o matrimônio. 223 Temendo que o baixinho e voluntarioso marido a violentasse adormecida, Emília trancava a porta do quarto a chave. Durante o dia ele trabalhava na lavoura e ela ajudava a sogra nos afazeres domésticos. Durante a noite, discutiam e lutavam até ela conseguir expulsá-lo para fora do quarto. Não demorou muito tempo e a intuição popular farejou que algo de irregular estava acontecendo. Espalhou-se o boato de que Emília continuava virgem, mesmo um mês depois de casada, porque o marido era impotente. Como sempre o interessado foi o último a saber. - Esta vendo Emilia o que o povo anda dizendo? Você está me expondo ao ridículo. Pense bem o que está fazendo – o marido gritou raivoso. Depois daquela cena, finalmente, ela resolveu sujeitar-se ao ato. E numa bela e fria noite de junho, com a lua espiando pela janela do quarto, ela deixou de ser virgem, e eles se amaram até o dia amanhecer. - Não foi tão ruim assim, até gostei deveras – confidenciou ela à amiga, noutro dia. E assim ano após ano, foram lhes nascendo crianças, até completar doze filhos. Mieceslau (Mieczko), o filho caçula do avô Ladislau, herdou a aura de misticismo que envolvia o pai. Com a morte deste, tio Mieczko ficou com o anel de signos cabalísticos, com todos os livros que o pai consultava nas suas experiências místicas, romances e livros de leitura comum. Na casa antiga do tio João, passando da bodega para a sala, havia num canto da parede dependurado um antigo relógio cuco. Certa tarde abriu-se a porta da bodega e entrou no interior da sala o moço Eduardo Waleczko. Ajoelhou-se em frente ao relógio e chamou todos para rezar, pois era a hora da Ave Maria. Não conseguiram convencê-lo que isto era um relógio e não uma imagem de santo. Ele teimava em ficar e rezar. 224 Mandaram chamar o tio Mieczko que era seu amigo. Com palavras convincentes ele conseguiu tirá-lo da sala e levá-lo para a casa dos seus pais. Eduardo estava doente, insano mentalmente, alienado. Batia nos pais e irmãs; quatro homens não conseguiam subjugá-lo. Mieczko com palavras adequadas conseguia acalmá-lo. Ele tinha poder sobre sua mente, tinha herdado esse dom do seu pai Ladislau. Ele aprendeu a arte dos benzimentos, das rezas e curas com ervas medicinais. Era muito procurado pelas pessoas necessitadas. Tornou-se uma figura popular, mas singular e excêntrica. Deixou crescer o cabelo, a barba, o bigode comprido enrolava atrás das orelhas. Morava num bairro de Irati, onde era muito respeitado. Em 1942 a avó Leonora, convidada pelo filho João, foi morar com ele no Casarão da Serra, onde permaneceu até 1950, depois foi morar no sobrado em Irati. Viveu ali durante 10 anos. Morreu em 31 de outubro de 1961, aos 86 anos. Foi sepultada no Cemitério Municipal de Irati. Os numerosos descendentes dos Gryczynski e Wasilewski espalharam-se pelo Paraná e pelo Brasil. Uns dedicam-se tradicionalmente à agricultura; outros à indústria e ao comércio, ainda outros às mais diferentes profissões liberais. Não deixando de lado a música, as artes e as letras. Esses imigrantes, representados pelas novas gerações, integraram-se profundamente com a Nova Pátria, participando notavelmente na formação da sociedade brasileira, dando sua colaboração para a transformação da cultura original luso-brasileira. 225 ALBERTO FILIPAK Na véspera do Ano Novo de 1940, a comunidade da colônia Alto da Serra dos Nogueiras organizou o baile comemorativo, no salão da escola. As jovens da casa de João Gryczynski estavam agitadas com os preparativos. Precisavam limpar e lustrar os sapatos do tio, escovar e passar o terno de casimira e a camisa de tricolina, escolher a gravata, se quisessem que as levasse para o baile. Mas antes que chegasse a noite, as roupas estavam ordenadamente estendidas em cima da cama do tio, prontas para serem usadas. As moças, vestidas e penteadas, aguardavam o chamado do tio. Às 8 horas em ponto, ele convidou a tia Maria, as filhas Olga e Úrsula, Antônia minha irmã, eu e as duas professoras que se hospedavam na casa da família. Todos nos seguimos para o clube. Quando chegamos ao local, o baile já tinha começado. Os músicos tocavam uma valsa, e os pares rodopiavam pelo salão. Os jovens dançarinos notaram a nossa chegada. Estava entre eles o moço Alberto Filipak, que, indeciso por um momento, aproximou-se, cumprimentou meus tios, e dirigindo-se a mim falou timidamente: - Monika, quer dançar comigo esta valsa? Eu estava de pé perto da mesa, olhei para ele, e meu rosto cobriu-se de rubor: - Eu ? – perguntei surpresa. - Sim, há tempos que desejo falar com você. - Então vamos dançar e conversaremos. Estavam em pleno salão. Entretanto, tinham dado o braço e passeavam ao longo da sala, à espera da valsa, que ia tocar. Os músicos deram os primeiros acordes, os pares saíram a girar pelo salão. Eu que adorava valsar entregueime toda à dança, era como se estivesse flutuando no ar. 226 Não tardou muito que eu compreendesse que estava nos braços de um homem apaixonado. Ele me segurava firme ao seu corpo. E hei-nos unidos, a voltear rapidamente, leves como duas plumas, sem perder um compasso, sem discordar uma linha. Paramos com a música. - Se não estiver cansada, seria uma honra dançar novamente com você – disse Alberto, amavelmente. Eu estava aborrecida, sentia-se indisposta, não achava justo ser cerceada daquela maneira. Queria dançar com outros rapazes; aquela preferência começou a incomodar-me; não querendo ser indelicada aceitei e rodamos pelo salão mais uma vez. Alberto voltou à carga com seu par: - Peço-lhe que reserve todas as danças desta noite para mim - disse, apertando-me junto a seu corpo. Estou apaixonado por você, cego de amor! Desde o primeiro dia em que a vi, no caminho, voltando da escola, apaixonei-me pela sua figura de adolescente discreta, introvertida, seu jeito tímido, pelos expressivos olhos azuis-esverdeados. Nenhuma outra moça despertou-me tal sentimento de amor e de proteção, só você Monika. Eu sentia-me desconfortável, aflita, um pouco bruscamente, retorqui: - Oh, não acredito! Posso parecer ingênua, mas não sou tola! Ninguém se apaixona assim de repente. Também sou muito jovem para assumir um namoro sério. - Mas acredite. As minhas intenções são as melhores, e para confirmar isso, vou falar com seu tio João. A música parou num longo choro de violino e de baixo. Alberto enxugou discretamente o suor do rosto, e dirigindo-se a mim: - Quer tomar alguma coisa?- perguntou com a mais adocicada das vozes. 227 - Aceito um copo de guaraná, mas vamos sentar à mesa dos meus tios. Ele apertou-me a mão calorosamente, dirigindo-se ao local indicado. Sempre atencioso, pediu licença para sentar e fazer-lhes companhia. - Monika dança divinamente, é uma pena que não aceite dançar comigo todas as músicas – confidenciou Alberto à tia Maria. - Por que não quer dançar com ele, minha filha? Pode crer que esse moço é bem-vindo a nossa família. Ele entabulou uma conversa interessante e calorosa com o tio, mas rondava os olhos de sua preferida. Aproveitou a oportunidade e a bondosa disposição da tia para pedir permissão para namorar-me e freqüentar a casa. Teve o consentimento do casal. O sucesso da iniciativa, entretanto, fora grande, ele o sentiu nos olhares sorrateiros, curiosos dos outros rapazes; nos gestos de desdém que eles faziam. Foi a consagração daquela noite. O rapaz tremia de emoção. O maestro afinava o violino, enquanto o gaiteiro puxou na sanfona um xote agitado. Os pares se esparramaram pelo salão. Os dançarinos executavam coreografias frenéticas, improvisando trocas de pares. Depois fez-se o merecido descanso. Os ocupantes da mesa do tio João denotavam cansaço e sonolência. A música cessara. O baile terminou às quatro horas da madrugada, sem que antes saísse qualquer pessoa. Era hora de ir embora para casa. Alberto despediu-se da família e retirou-se em seguida. Estava cansado. Já na cama sentia vontade de chorar e rir. Monika não lhe saía da cabeça, deslumbrava-lhe os olhos, surgialhe na lembrança, cativante e bela como uma fada. Claramente podia deduzir que estava perdidamente enamorado. 228 Pelos quintais os galos cantavam. A lua em quarto minguante trouxera queda de temperatura. Pés-de-vento atiravam para o ar, em súbitos bafejos, a poeira da estrada. No céu cintilavam estrelas, trêmulas, passavam às vezes meteoritos viageiros. A neblina da manhã cobria o leito do rio Saracura, que movimentava o moinho do avô Ladislau. Ouviam-se os gemidos e batidas do pilão no monjolo, socando o milho para farinha biju. Nheee...Toc...Nheee...Toc. Alberto fazia-me visitas semanais, sempre aos sábados. Vinha trotando por 4 quilômetros de estrada de terra, montado no seu cavalo baio. Chegava ao anoitecer. Adentrava a bodega onde o tio João atendia alguns clientes. - Boa tarde, senhor João, vim para um dedo de prosa – disse, sentando numa cadeira com assento de palhinha, encostada no balcão. - Vá sentando, que já mando vir o chimarrão – convidou o dono da casa. Trouxeram o chimarrão, Alberto pegou a cuia e, enquanto sorvia, com a bomba de bocal de ouro, a água quente e amarga da bebida, ia disfarçadamente procurando com os olhos a mocinha dos seus sonhos. Enquanto esperava, o moço recordava o dia em que a viu pela primeira vez, junto a um grupo de crianças que voltavam da escola. Foi ali que se encantou por aquele par de olhos, que o fitaram firmes, de frente. Oh! os grandes olhos azuis mesclados de verde; fascinavam-no. Naquele momento ele estremeceu ao poder daquele olhar. Mas o que mais gostava dela eram os cabelos, que caiam em cachos dourados pelo pescoço. Alberto suspirou, levantou-se impaciente. - A Monika não está?- perguntou. - Está, sim, já mandei chamá-la. Depois eu o recebi na sala de visitas, onde as portas e janelas ficavam abertas para eu estar a salvo de qualquer 229 maledicência Era uma precaução desnecessária, porque sempre havia a presença da minha irmã Antônia ou de outra pessoa da família, nunca ficamos a sós, era proibido beijar ou segurar a mão um do outro. Quando eu e Antônia, ficamos a sós, ela comentou: - Ele parece gostar muito de você. - Acho que sim – murmurei timidamente. - Gosta dele? - Gosto! admiro-o, mas não o amo. Namoramos durante cinco meses. Eu na realidade me esforçava para acender no coração o amor pelo moço. Era um jovem digno desse afeto, era belo e de bom caráter. Alberto tinha, dentro do azul dos seus olhos, a força e a garra dos homens determinados, idealistas. Quando chegava a noite, eu deitava na cama procurando dormir, olhava o teto em vão, mas o sono não vinha, apesar do cansaço do dia. Pensava num grande amor que viria ao meu encontro, algum dia. Quem sabe o destino já o reservara para mim?... Será que viria?... Mas, quando?... Por enquanto, pelo menos agora, sonhar eu podia... Acendia a vela, e sob a luz tênue que dançava pelo quarto, mergulhava na leitura dum romance. Lá pelas tantas, quando o sono me assaltava, eu dobrava o livro, com pena, e ainda sonhava com os amores da heroína da história. Da janela vinha a claridade dourada da lua que se derramava pelo jardim. Puxei a cortina, me virei para o lado. A Olga, minha prima, já dormia tranqüilamente. Os fantasmas da infância voltaram naquela noite. Eu julgara tê-los exorcizado há muito tempo. No começo, depois da morte da minha mãe, os visitantes noturnos apareciam com freqüência. Neblinas tênues pairavam por cima da cama, e a voz da minha mãe sussurrava-me no ouvido palavras de carinho. Acordava, o coração disparado, mas não via nada. Demorou muito, mas desapareceram. Hoje eles 230 estão presentes novamente. É o espírito da minha mãe que vela por mim, guiando-me nesse passo decisivo da vida. Certa tarde Alberto falou algo acerca do casamento, não lhe dei muita atenção, pedi para dar-me um tempo, para poder refletir. Eu era de temperamento romântico, entregava-me a devaneios e fantasias, sonhava com o príncipe encantado, não conseguia assimilar a idéia de casar-me com um moço simples, da colônia. Mesmo sendo ele um rapaz de boa aparência, gentil e educado. Alberto fez o curso primário na escola da Serra dos Nogueiras. Em 1930 ingressou no Seminário São Vicente de Paula, em Irati. O desejo de seus pais era que fosse ordenado padre. Como seminarista, em 1934 concluiu o curso ginasial. Para ser padre teria que estudar por muitos anos mais. Analisou a vida eclesiástica e reconheceu que não tinha vocação para o sacerdócio. Resolveu voltar para casa e trabalhar com o pai na lavoura. Na tarde de 13 de maio de 1940, Alberto veio falar com meu tio. Ele chegou vestindo um terno escuro, camisa branca e gravata. Estava elegante, bonito. Desceu do cavalo, que logo foi recolhido ao pátio da casa. Cerimonioso, tirou o chapéu e cumprimentou os donos da casa. Tomou uma cuia de chimarrão que o tio lhe oferecera e, sorrindo lisonjeado pela recepção amistosa, entrou na sala de visitas. Foi sem mais preâmbulo ao fim da entrevista. - Senhor João, peço-lhe cinco minutos de atenção. - Sou todo ouvidos, pode falar – respondeu o tio. - Peço-lhe a mão de Monika em casamento – disse de ímpeto - ficarei honrado se me conceder. O tio João quis resguardar um pouco a dignidade paterna, mas sua satisfação era grande. - A mão da minha sobrinha Monika? - interrogou ele – ora....pois digo-te que te concedo com satisfação, se ela concordar, é claro. Tenho certeza que farão um casal feliz. 231 Pediu para que me chamassem. Laurita, minha prima, correu bradando em voz alta: - Monika! o Alberto chegou e quer ver você. Venha! Trancada no quarto, remoendo um pranto secreto, eu tapava os ouvidos com as mãos para não escutar. O moço reclamava a minha presença. Ouvi o chamado de Laurita. Tratei de me refugiar no antigo sótão. Entrei pela portinhola que dava acesso ao telhado e escondi-me nesse exíguo espaço sentada em cima de uma viga. As teias de aranha envolveram-me o cabelo e a roupa, mas fiquei sentada quieta sem dar qualquer sinal da minha presença ali. - Monika! Venha! – clamava Laurita. Em vão me chamavam e procuravam pela casa toda. Não estava em parte alguma. Eu sumi. Após várias horas de conversa, bebericando o chimarrão com tio João, o moço resolveu ir embora. Estava desolado, um mal-estar dominava-o. - Voltarei outra hora, sou paciente, mais cedo ou mais tarde, ela aparece - disse o moço, colocando o chapéu na cabeça. Estava despedindo-se. - Espere um pouco – disse a tia Maria Ela subiu ao sótão, chamando-me em voz alta, e até ameaçando dar-me uma surra se não aparecesse. Atemorizada pela voz irada da tia, pelo longo tempo decorrido, deduzi que o Alberto já tivesse ido embora, então resolvi sair do meu esconderijo detrás da parede. - Já vou tia – respondi com voz chorosa – retirei a tábua solta da parede por onde saí coberta de teia de aranha e poeira. Pó acumulado durante muitos anos. A tia Maria me viu e falou com voz ríspida: - O Alberto e teu tio estão esperando lá na sala. Ele pediu você em casamento. Vá até eles e dê a resposta, se quer casar com ele ou não. Mas antes lave o rosto, penteie o 232 cabelo, se recomponha. Só te adianto uma coisa, moço bom como Alberto, você não vai encontrar com facilidade. Ele é trabalhador e de boa família, é filho da minha comadre Ana e José Filipak, gente de bem, conhecidos, respeitados pela comunidade. Vai dar um bom marido. O que você quer mais da vida? - continuava o longo e justo sermão da tia. Ela acompanhou-me em direção à sala de visitas onde éramos esperados já há muito tempo, por um pretendente desconsolado. O tio demonstrava apreensão no semblante, ao dirigir-se ao moço: - É certo que ela não o ama ardentemente como você diz que a ama, mas aceita-o, aprecia-o, com o tempo ela vai amá-lo como merece. Estima-te muito. É uma moça trabalhadeira, de boa índole, inteligente e instruída, mas é voluntariosa e braba, de pavio curto. Estou informando-o sobre o gênio forte da minha sobrinha. Alberto ouvia com um sorriso pálido nos lábios finos. O rosto estava carregado e pensativo. - Mesmo assim quero casar-me com ela, estou apaixonado, gosto muito dela.- respondeu Alberto. Entrei e cumprimentei o pretendente. Parei defronte do tio que demonstrava preocupação. - Monika! O Alberto veio pedir você em casamento. Eu disse-lhe que estava de acordo, mas dependia de você aceitar. Pense bem, para depois não se arrepender! Por um momento, fiquei paralisada. Sem saber o que fazer fiquei tremendamente indecisa. - Tio! posso pensar um pouco? Darei a resposta em seguida, seja ela qual for. Sai da sala, fui tomar um copo de água na cozinha. Na cadeira de balanço estava sentada minha avó Leonora. Pedi conselho a ela. Ela disse-me que eu faria um bom casamento se aceitasse, pois o Alberto daria um excelente marido. Voltei à sala e dei a minha resposta sem vacilar. 233 - Se o senhor acha, tio, que eu devo me casar com ele, se é do seu agrado, eu aceito. Pesou na minha decisão o fato de que o Alberto era amigo dos meus tios Ladislau e Mieceslau, eles o estimavam e o recomendavam, como uma excelente pessoa. A avó Leonora também se desdobrava em elogios a ele. Portanto, mesmo que não sentisse nenhum afeto especial, apenas amizade, não teria o que temer, era aceitar, casar e enfrentar a vida com ele. O amor viria depois com a convivência, conforme asseguravam os mais velhos. Assim, sem muito questionar, foi resolvido o meu destino. A tia Maria providenciou o enxoval. Fez quatro travesseiros e dois acolchoados de pena de ganso (pierzyna), lençois, toalhas, roupas íntimas, vestidos novos e casaco para frio. Comprou uma máquina Singer, de costura, que seria de grande utilidade no meu trabalho. Vieram os pais de Alberto para combinarem os detalhes. A data do matrimônio foi marcada para o dia 16 de julho de 1940, dia de Nossa Senhora do Carmo. O Alberto estava com 21 anos e eu com 17 anos. A festa seria realizada na casa dos meus tios. A tia Maria organizou uma extensa lista de convidados, entre parentes e amigos. Mandou preparar um lauto almoço. A cerimônia do casamento foi realizada na igreja polonesa de São Miguel em Irati, pelo padre Paulo Warkocz. O civil, no Cartório de Registro Civil de Irati. Vestida de branco, de véu e grinalda, com bouquet de flores naturais nas mãos, eu caminhava como sonâmbula, não entendia as palavras do padre e nem do juiz. Sem pensar, repetia apenas o que eles diziam. Não conseguia me concentrar, não achava as coisas, andava insegura como se estivesse suspensa no ar sem sentir apoio nenhum. Estava totalmente atordoada. 234 Terminada a festa, viajamos em lua de mel, de trem, para Curitiba. Prolongamos a viagem até Paranaguá, onde se realizava a festa anual na igreja de Nossa Senhora do Rocio. No regresso, hospedamo-nos na casa do tio João durante seis meses, tempo em que procuramos adquirir prática no comércio. O pai de Alberto, meu sogro José Filipak, era neto de Valentim Filipak e de Marianna Kasprowicz, uma família pioneira de emigrantes poloneses que chegaram ao Brasil em 25 de agosto de 1880, provenientes da Galícia Ocidental, de Jasno, região de Kraków, sul da Polônia, que estava sobre o domínio da Áustria. Instalaram-se na colônia Tomás Coelho, nas proximidades de Curitiba. Trabalhavam na agricultura de subsistência, e como tinham o ofício de oleiros, construíram a “garncarnia” onde fabricavam artigos de barro, como potes, vasos, pratos, tigelas, também faziam tijolos de barro para construção. José era filho de Francisco Filipak e de Maria Trybek, nasceu em Tomás Coelho em 5 de março de 1886. Anna, mãe de Alberto, era filha de Jacob Augustyn e de Madalena Kosinski, emigrantes poloneses da região da Galicia Ocidental, parte austríaca, vieram para o Paraná em 1880. Anna nasceu em Tomás Coelho PR.em 15 de abril de 1891. Casou-se com José Filipak, em Campo Largo, em 16 de junho de 1908. Foram morar em Itaqui, lugar onde o pai de Anna tinha uma olaria para fabricação de telhas e tijolos. José era agricultor, trabalhava na lavoura em terras junto à Serra de São Luís do Purunã. Com a construção da Estrada de Ferro São PauloRio Grande, que oferecia facilidade no transporte e comunicações, a cidade de Irati desenvolvia-se rapidamente. As terras férteis da região atraíram moradores das proximidades de Curitiba, Campo Largo, Tomás Coelho e Araucária. 235 O fluxo de pessoas tornou-se intenso, e os recémchegados começaram a fixar-se em redor de Irati. Numa dessas levas, no ano de 1918, a família de José Filipak e a de seus irmãos, influenciados pelas boas referências sobre a região, mudaram-se para Irati. José Filipak adquiriu 12 alqueires de terra, na colônia Alto da Serra dos Nogueiras, a 3 quilômetros de Irati. Ali construiu a casa e os paióis, e implementou a cultura de cereais e criação de animais domésticos. José era homem trabalhador, alegre e de bom caráter, sempre pronto a ajudar às boas causas; religioso, fez parte da comissão próconstrução da igreja São Miguel em Irati e do Colégio N.S. das Graças. O casal criou 10 filhos, enfrentando dificuldades e privações ocasionadas pela sua situação de pioneiros na região. José, faleceu aos 62 anos de idade em 4 de janeiro de 1948, foi sepultado no Cemitério Municipal de Irati. Anna, mãe de Alberto, viúva, após o falecimento do marido, ficou na residência da família até o ano de 1959, quando foi convidada a morar com seus netos, filhos de Alberto, que estudavam em Curitiba. Residiu com eles durante cinco anos. Após o casamento de Ricardo, foi morar com seu filho caçula, Paulo, em Reserva, e em 1975, passou a morar com a filha Rosa em Irati. A avó Anna era para mim como uma mãe, sempre me tratava com amizade e benevolência. Era uma pessoa simples, laboriosa, extremamente religiosa. Faleceu em 4 de novembro de 1980, aos 89 anos de idade. Foi sepultada em Irati. *** 236 COLÔNIA CHUPADOR (ALVORADA). O povoado de Chupador, hoje Alvorada, localiza-se no município de Prudentópolis, na tríplice divisa, deste, com Imbituva e Irati, a 20km da cidade de Irati. Situa-se à margem da estrada asfaltada BR 277, que demanda Foz do Iguaçu. Teve seu início em 1908, quando famílias aparentadas, dos Ferreira e Bomfim, mudaram-se de Covalzinho e passaram a ocupar “O Faxinal dos Ferreira”, área de terras concedidas pelo Império, cuja posse detinham havia muito tempo. Construíram seus ranchos com lascas de pinheiro, cobertas de tabuinhas, numa clareira no meio do faxinal. O lugar passou a denominar-se „Chupador”. Segundo os mais antigos moradores, o nome originou-se do terreno úmido e salgado (barreiro), de composição salinosalitroso, existente no meio da mata, nas fraldas da Serra do Chupador. Os animais selvagens afluíam seduzidos pelo salitre e pelo sal-gema. Os índios usavam o barreiro para curar diversos males, vinham atraídos pelo sabor e qualidades curativas da água, que continha partículas de minerais e cloreto de sódio. O “Barreiro Chupador” era muito procurado pelos habitantes locais. Os enfermos ao saírem dali se diziam curados dos seus males pela água que bebiam e se banhavam. Com o passar do tempo a nascente de água e o barreiro secou, tendo ficado sem proteção da mata ciliar destruída pelos colonos. Antigo morador do lugar, Pedro Ferreira de Bonfim era descendente de índios guarani e caboclos, conhecia a arte da cura pelos benzimentos e pelas beberagens de ervas que preparava. Já bastante idoso, era de aparência peculiar, curvado, de barba crescida, trazia sempre um cobertor secapoço às costas e chapéu de palha na cabeça. Conversava consigo mesmo. 237 Morava com o filho Laurentino e a nora Nha Cristina. Passava as tardes procurando raízes e plantas curativas nas matas e elevações da Serra do Chupador. Era um curandeiro muito respeitado pela comunidade, um homem sábio, conhecia a natureza. Quando de manhã olhava as montanhas e o céu, dava sua opinião sobre o tempo. As vezes dizia, “hoje não vou procurar raízes, porque vai chover, o cocuruto da Serra está pitando”. Em meados da década de trinta, o povoado já era bem conhecido. Para ali mudaram-se diversos colonos atraídos pelas terras férteis, de cultura, baratas e de fácil aquisição dos caboclos-fazendeiros, e ainda pelos extensos faxinais, povoados de erva-mate. Os colonos e os caboclos viviam em paz, criavam seus animais, vacas, cavalos, porcos e cabritos, soltos nos campos. Não havia cercas separando as propriedades, os animais pastavam junto, nos campos abundantes de grama verdejante, ervas e frutas, principalmente de pinhão, fruto do pinheiro, de que se alimentavam pessoas e animais. Paralelamente à criação de animais domésticos, crescia a exploração agrícola rudimentar, de milho e feijão. Alguns colonos ensaiavam maiores plantações de batata inglesa, trigo e cebola. A Colônia Chupador prosperava. Enquanto Alberto Filipak colhia a safra de batatas que tinha plantado na colônia Pedra Preta, João Gryczynski providenciava a retomada de uma casa de sua propriedade, que estava alugada a um comerciante, na Colônia Chupador. Salim, o inquilino, era natural da Síria, polígamo, seguia os costumes da sua terra, vivendo na companhia de duas mulheres, Maria e Zulmíra, e seus muitos filhos. Tio João teve dificuldades em convencer o inquilino a desocupar o imóvel. Vaga a casa, ali ele instalou o armazém de secos e molhados, que ficou sobre nossa administração. Mudamos para Chupador em janeiro de 1941. 238 Ficou acertado, que, pelo nosso trabalho no armazém, iríamos receber 50% dos lucros líquidos auferidos, os outros 50% seriam do dono do estoque de mercadorias. A sociedade durou cinco anos, época em que conseguimos ganhar o suficiente para pagar a mercadoria para o tio João. Dois anos depois, Alberto comprou do tio João um automóvel Ford ano 1930, no qual aprendeu a dirigir, fazendo o trajeto de 20 quilômetros de Irati até Chupador, sem saber como fazer parar o veículo. Parou porque a gasolina terminou. Insistiu na direção do automóvel até aprender a dirigir com perfeição.Com o início da Segunda Guerra Mundial e o racionamento de gasolina, teve que colocar o automóvel no estaleiro. Vendeu-o mais tarde. Em 1943 comprou um caminhão Ford movido a gasogênio, para fazer o transporte de mercadorias e cereais. A tia Maria e minha sogra Anna visitavam-nos com freqüência. A sogra trazia enormes e gostosas broas de centeio, que eu ainda não sabia fazer. A tia Maria levou-me de presente uma pequena leitoa; seria o começo da nossa criação de porcos, que progrediu com ótimos resultados. Na primeira casa onde moramos durante cinco anos, nasceram meus filhos: Ricardo em 23 de novembro de 1941 e Mari Carmem, em 16 de julho de 1943. Vieram ao mundo pelas mãos abençoadas de D. Pierina Nadal. Eu trabalhava no atendimento à clientela do armazém. Deixava o bebê deitado dentro de uma cesta grande de vime, em baixo do balcão, para tê-lo sob minhas vistas. O Ricardo, era um bebê lindo, saudável, desenvolto. Aos nove meses ensaiava as primeiras palavras e logo aprendeu a caminhar sozinho. Corria pela casa e brincava com o carrinho e cavalinho de madeira que o pai lhe deu. Era uma criança alegre, que não incomodava. Aos dezoito meses, por infelicidade, o menino contraiu poliomielite, 239 moléstia infecciosa aguda, causada por vírus. Foi um choque doloroso para nós, quando o médico diagnosticou a causa da febre altíssima que o devorou durante dias, manifestando-se em seguida a paralisia do braço e da perna esquerdos da criança. Não havia surto dessa doença na região. Apareceram apenas dois casos esporádicos. Foi aplicado tratamento intensivo e fisioterapia, que unidos a cuidados especiais, com o passar do tempo, devolveram-lhe os movimentos do braço e parcialmente da perna. Teve como seqüela a atrofia muscular, não se desenvolveu igual à direita. Com a perna esquerda mais frágil e mais curta, Ricardo mancava um pouco, mas ele aceitou a deficiência e conviveu com o problema. Eu cuidava do armazém, vendia açúcar, sal, feijão, farinha, toucinho, lingüiça, cachaça, alpercatas de corda de sisal, botinas de couro cru, tecidos rústicos para roça, linha, botões e demais mercadorias que a comunidade precisasse. Em contrapartida, comprava dos colonos, mel, cera de abelha, crina de cavalo, galinha, ovos, alho, cebola, repolho, manteiga e requeijão. Aos sábados, o empregado Estefano arrumava tudo o que coubesse no carroção de toldo, puxado por quatro cavalos. Ele ia dirigindo o veículo e eu sentada na bancada ao lado. Percorríamos vinte quilômetros de estrada de terra até a cidade de Irati, onde eu vendia a mercadoria no comércio local. Na volta lotava o carroção de miudezas e artigos de fácil venda no armazém. Alberto almejava expandir os negócios. Comprou cinco alqueires de terra de faxinal, do fazendeiro caboclo Pedro Ferreira, com o objetivo de ali construir a nova casa para a família e ampliar o armazém. O Ferreira vendeu com a promessa de gastar aos poucos, na nosso armazém o valor do terreno em mercadoria. 240 O terreno adquirido se situava em frente da antiga morada, a beira da estrada que vinha de Irati e demandava à cidade de Prudentópolis. Alberto construiu no local uma casa geminada, da qual parte seria destinada ao armazém e outra, à residência. Mudamos para a casa nova em 1945, residimos ali durante cinco anos. Doamos meio alqueire do terreno à Mitra Diocesana, onde os colonos solidários construíram a igreja de São Pedro e o cemitério. Era costume dos antigos habitantes do interior, construir uma capela na sede da fazenda, dedicada a algum santo de devoção do fazendeiro. Pedro Ferreira era devoto de São Pedro. Fez uma grande festa na capela da família, no dia do padroeiro. Foi içado o mastro com imagem do santo estampada na bandeirinha, saudado com o espoucar de muitos foguetes e bombinhas, houve reza com ladainha e coro de cânticos religiosos, seguido de almoço com churrasco de dois bois e tachos de mandioca cozida. De sobremesa serviram rapadura. Tudo regado com muita cachaça de alambique, bebida que deixou os festeiros alvoroçados. Os resultados já previstos, de confusão e gritaria, que com intervenção dos mais velhos, logo foram apaziguadas. Como não podia deixar de ter, houve leilão de prendas oferecidas pela comunidade. A renda foi destinada para o conserto do telhado da capela que gotejava em dias de chuva. De noite, à beira da fogueira houve cantoria com desafio de repentistas, caboclos cantadores. Compareceram à festa no dia aprazado todos seus parentes homens, mulheres e crianças, também gente da Colônia e das redondezas, que confraternizaram com a família Ferreira. Por uma fatalidade, em setembro do ano de 1946 e por mais três anos consecutivos, apareceu a praga de gafanhotos. Vieram da região desértica do Grão-Chaco no Para- 241 guai. Os gafanhotos chegaram quando a plantação de batatas florescia. Certa tarde escureceu o céu, uma nuvem de insetos com 50 quilômetros de largura bloqueou o sol, miríades de locustas pousou em cima das plantações de milho, batata, trigo, centeio e dos campos verdejantes. Tudo foi devorado em poucas horas. Os arbustos verdes e os pés de laranjeiras ficaram sem folhas e sem casca. Essa invasão de gafanhotos lembra-me, tristemente, o ser humano que invadiu a terra e os mares e os destrói sem piedade, como locustas que devoram tudo na sua passagem. O homem sequer preocupa-se, seriamente, em deixar algo para gerações futuras. Foi uma luta incansável dos colonos contra esta praga que causou enormes estragos nos campos e lavouras das regiões atingidas. A nuvem fatídica de locustas, rodava a região, tocada pelos lança-chamas dos agrônomos, e com barulho de latas e fumaça pelos colonos. Antes de irem embora, as fêmeas desovaram em buracos feitos na terra pela saliência externa do seu abdômen. Passados alguns meses nasceram as larvas, que é o primeiro estágio dos insetos depois de saírem do ovo, transformaram-se em saltões, criaram asas e novamente, como um dilúvio esparramaram-se pelas plantações, prosseguindo na devastação de tudo que era verde. Assim foi nos três anos seguintes. Recorreu-se a vários processos para os destruir. Empregou-se lançachamas e espalhou-se pós inseticidas. Abriram-se valas tocando os gafanhotos para dentro, cobrindo-os com terra. Sem as lavouras, mesmo as de subsistência, os colonos tiveram que fazer empréstimos ou comprar a prazo, para poderem sobreviver. Alberto dedicava-se à compra e venda de cereais; era sócio na firma “ Sociedade Cerealista Brasileira Ltda”, 242 mas com a invasão dos gafanhotos que exterminaram toda a produção das lavouras, a região necessitava ser abastecida com sementes e cereais vindas de outras fontes. Alberto, com seu espírito de comerciante, viu nisto a ocasião de colaborar na recomposição da economia local para os próximos anos e ganhar algum dinheiro. Adquiriu um caminhão Dodge 1945, novo, de 10 toneladas. A gasolina estava liberada com o fim da Segunda Guerra Mundial. Ele ia a Irati, lotava o veículo com sacos de açúcar, sal, farinha de trigo, latas de querosene, ferramentas de lavoura e viajava para o centro-oeste do Estado, região de Mamburê, Goio-erê, Campo Mourão, Peabiru, onde não houve incidência de gafanhotos, vendia a carga que levava e trazia na volta, milho, feijão, sementes de trigo e batata, tudo que faltava na nossa região. Nas viagens que fazia para o interior do Estado, com grande sacrifício, pois as estradas de terra eram mal conservadas, cheias de atoleiros em dias de chuva, sem pontes, tinha que atravessar o veículo no vau dos rios. Mesmo assim com as muitas viagens que fez, obteve um bom lucro para pagar o caminhão e ainda comprar um Jeep Land Rover, que, infelizmente, não aprovou nas estradas de terra. Toda a poeira que levantava ao rodar era recolhida dentro do Jeep, e os passageiros ficavam sufocados e empoeirados até os olhos. Alberto tratou de vendê-lo. Nas horas vagas, quando não tinha freguesia para atender, eu costurava, pedalando a máquina Singer de costura, que ganhei da tia Maria. Fazia vestidos de encomenda para noivas e arrumava-as no dia do casamento. Costurava calças, camisas, calções e roupas para crianças. A máquina de costura ficava atrás do balcão, quando chegava um cliente eu o atendia, depois voltava à costura. Para dar conta do serviço trabalhava até altas horas da noite. Levantava bem cedo para ordenhar a vaca “Bolacha”. 243 As crianças esperavam com os copos nas mãos, para tomar o leite ainda morno, vindo direto das tetas da vaca. Os nossos filhos freqüentavam a escola local; tinham muitos amigos com os quais corriam e brincavam pelos campos de gramado verde, subiam em árvores, comiam frutas silvestres, caçavam passarinhos, tomavam banho de rio e pescavam, sempre com os inseparáveis Tonico e Stacho, filhos de Maria Zaremiak, minha amiga e vizinha. Certa tarde, chegou uma forte tempestade com granizo, um manto de água e gelo derramou-se do céu, rapidamente formou poças fundas na estrada, a água corria pelas valetas que nem um rio desembestado. Tão rápido quanto a tormenta chegou, assim ela foi embora. O tempo esquentou e o céu clareou. Nessa ocasião, o Ricardo estava com sete anos. Acostumado a ir pescar com o pai no rio que passava dentro do cercado dos porcos, naquela tarde, depois da chuva, ele sumiu das minhas vistas. Só demos pela sua falta na hora do jantar. Saímos à sua procura. Chamamos em voz alta. Nada. Não estava em parte alguma. Vieram os vizinhos e seus palpites. Pode ser que o raptaram, ou perdeu-se no mato? ou caiu no poço? Apavorada, peguei uma lanterna de pilha e fui iluminar o fundo do poço. Nada havia que denunciasse a presença de um corpo. Dei graças a Deus! Alberto e os vizinhos deram revista em tudo quanto foi canto. A pé, percorreram todo o potreiro, foram até a beira do rio, adentraram no capão de mato, não havia nem sinal do menino. Já bem tarde, chegou Antônio Feliz, amigo e freguês do armazém. - O que estão procurando? – perguntou interessado. - É o nosso menino que sumiu. – respondi chorando. - Que idade ele tem? Que roupa veste? – indagou Pois eu vi um menino de uns sete anos, sentado numa pin244 guela (um tronco de árvore caída atravessado sobre o rio), a água revolta corria bufando por baixo da tora de madeira. O menino estava calmamente sentado, pescando, não viu que já tinha escurecido. Ao lado dele, sobre o tronco, havia uma fieira de lambari. Ele é um bom pescador. - É o Ricardo meu filho - gritei e saí correndo para buscá-lo. O pai, já mais calmo, chamou-me: - Espere! Não vá assustar o menino, ele pode cair da pinguela e afogar-se. As águas estão perigosas com a cheia do rio. Deixe que eu vou trazê-lo. Trêmulo, com medo, Ricardo voltou para casa. De início, o trabalho caseiro era realizado pela empregada Maria Martiniuk, depois pela Olga Diatchuk, moça que trabalhou conosco durante vinte e um anos. Ela ajudoume a criar os meus dois filhos, Ricardo e Mari Carmem. Olga era de origem ucraniana, moça responsável e dedicada, ensinou as crianças a falar e rezar nessa língua. Acompanhava-os nas aulas de catecismo na igreja local. Fizeram a Primeira Comunhão no dia 24 de junho de 1951. Alberto era trabalhador, idealista, de índole progressista, não se conformava com o horizonte estreito dentro da comunidade em que vivia. Queria mais; viajar, conhecer terras e regiões novas, enfrentar o desconhecido. Em 1950, comprou uma caminhonete Chevrolet e um dia partiu junto com alguns amigos. Foi conhecer o lugar onde seria construída a nova capital do país, Brasília. Na área destinada à construção da cidade, e nos meandros políticos locais, pairava no ar grande expectativa de enriquecimento rápido e corrupção. Pelo meio da aglomeração de gente havia muitos aventureiros e fugitivos da justiça. Alberto ficou mal impressionado com o ambiente que ali reinava. Deu uma guinada, mudou de rumo. Nessa aventura chegou até o noroeste do Paraná. Paranavaí foi a sua pri245 meira parada, depois influenciado por corretores de terra, seguiu até Terra Rica. Tudo aqui era sertão bruto, apenas havia uma derrubada de 100 alqueires, destinada para a construção da nova cidade. Alberto, com seu espírito visionário, que enxergava longe no horizonte, viu a perspectiva de desenvolvimento e progresso desta região. Comprou algumas datas no lugar que seria centro da cidade e 10 alqueires de terra para plantar café. Retornou para a Colônia Chupador, com firme propósito de se mudar para o noroeste do Paraná, com a maior urgência. Animado pela expectativa de descortinar novos horizontes, trilhar novos caminhos, ter a oportunidade de expandir seus negócios, transmitiu largamente o seu otimismo e com o meu pleno consentimento, vendeu o armazém, a casa e o terreno para o seu irmão Vicente. Incentivado pela existência na região de grandes reservas de peroba-rosa e muitas outras madeiras de lei, decidiu montar uma serraria em Terra Rica. Teve informações que em Santa Catarina poderia encontrar serraria que já estava parada por falta de matéria prima para operar. As extensas florestas de pinheiros tinham-se esgotado. Foi até União da Vitória e conseguiu localizar nas proximidades da cidade, uma serraria que correspondia plenamente à sua necessidade. Adquiriu-a, desmontou, contratou caminhões para o transporte e enviou as máquinas para Terra Rica. A mudança da família foi acomodada no caminhão Dodge, dirigido por Ciro Padilha. Eu e o Alberto viajamos na caminhonete Chevrolet. Despedimo-nos dos filhos, Ricardo e Mari Carmem que ficaram na casa que foi nossa, na companhia do tio Vicente e sua família. Iríamos revê-los só daí a quatro meses. Era o meado do ano letivo e em Terra Rica não havia escola, pois que era um patrimônio incipiente, no meio do sertão. 246 COLONIZAÇÃO DO NORTE DO PARANÁ Há 180 milhões de anos ocorreu o derrame de lava vulcânica, constituindo extensas e espessas camadas de basalto no sul do Brasil. Formou-se ali a melhor terra do planeta, com uma profundidade de até 30 metros. A decomposição dos lençóis de rochas extrusivas deu origem às terras-roxas que cobrem a região do centro-oeste do Estado de São Paulo e o Norte do Paraná. De cor vermelho-escuro é famosa pela sua fertilidade. É um fato confirmado que os indivíduos têm sua vida e sua aparência condicionada pela fertilidade da terra onde fixam raízes. Se esta for fraca, plantas e homens dela dependentes serão pobres, tristes e inexpressivos. Se esta for fértil, plantas e homens serão plenos de viço. O território denominado Norte do Paraná é região de vales muito férteis, formados pelos afluentes da margem esquerda dos rios Paranapanema e Paraná, no arco que esses dois rios traçam entre as cidades de Cambará e Guaíra. De suave relevo, as altitudes variam de 400 a 700 m. Essa área, definida pelos rios Itararé, Paranapanema, Paraná, Ivai e Piquirí, abrange uma superfície de 100 mil quilômetros quadrados, dividida em três áreas: o Norte Velho, que se estende do rio Itararé até a margem direita do rio Tibagi; o Norte Novo, que vai até as barrancas do rio Ivai; e o Norte Novíssimo que se desdobra até o curso do rio Paraná, ultrapassa o rio Ivai e abarca toda a margem direita do rio Piquiri. A ocupação da região do Norte Velho retrocede ao ano de 1840, compreende as regiões entre os rios Itararé, Paranapanema e Tibagi. Durante os anos seguintes, fazendeiros mineiros e paulistas sabedores da existência de terras fertilíssimas, devolutas, interessados em expandir as 247 fronteiras cafeeiras ocuparam-nas, estabelecendo a posse e iniciando o cultivo do café no Paraná. Por volta de 1843, um desses mineiros, Domiciano Correia Camargo, vendeu sua propriedade em Minas Gerais e veio para o Norte do Paraná. Fez sua posse na margem esquerda do rio Itararé; depois dele chegaram muitos outros e possearam as terras localizadas entre os rios Itararé e Cinzas. Em 25 de fevereiro de 1906, foi assinado em Taubaté no Estado de São Paulo, o “Acordo de Taubaté ”, que estabelecia limites da produção cafeeira para os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, em face da baixa cotação no mercado internacional e da superprodução nestes Estados. O impedimento de novas plantações de café não atingia o Estado do Paraná, que neste tempo não passava de sertão bruto. Desde 1910 produzia-se café no Norte Pioneiro e em 1924 já havia fazendas com um milhão de pés de café. Em 1916, foram concedidas terras devolutas para a empresa Corain & Company, na região de 1º de Maio, na confluência do Tibagi com Paranapanema, que se dedicava ao cultivo de algodão. Até 1923, o Norte do Paraná era uma região de difícil acesso, em grande parte coberta por florestas exuberantes peculiares às áreas de terra roxa. Aqui e ali abriam-se grandes clareiras, onde os pioneiros da colonização plantavam café, mas era preciso muita coragem e espírito de renúncia, para viver e trabalhar nesse sertão distante, enfrentando dificuldades de toda ordem, desde enxames de mosquitos de toda espécie e a animais selvagens. O governo do presidente da República Artur da Silva Bernardes (de 1922 a 1926) desenvolveu gestões para que técnicos ingleses viessem ao Brasil estudar sua situação financeira, econômica e comercial. Em janeiro de 1924 248 chegava ao Brasil a Missão Montagu. Entre os muitos membros dessa missão, veio Lord Lovat, assessor para assuntos da agricultura e florestamento. A missão de Lovat convergia os interesses que viriam a contribuir decisivamente para a colonização do Norte do Paraná. Tendo viajado por várias regiões paulistas e chegado até o Norte do Paraná, ficou impressionado com a fertilidade das terras roxas da região. Depois de muito planejamento e negociações, Lord Lovat resolveu adquirir terras no Norte do Paraná, a fim de produzir algodão. Em 24 de setembro de 1925, foi fundada em Londres, uma empresa, a “Brazil Plantation Syndicate Limited.”, e uma subsidiária brasileira, a “Companhia de Terras Norte do Paraná”. Logo em seguida os ingleses entraram em negociação, com o presidente do Estado do Paraná, Dr. Caetano Munhoz da Rocha. Este concordou com a venda de terras aos ingleses no Norte do Estado. A Companhia de Terras Norte do Paraná tornou-se proprietária de uma enorme área de terras, com 515 mil alqueires paulistas, situada na margem esquerda do rio Paranapanema, entre os rios Tibagi e Ivai, adquiridas junto ao Governo do Estado. O êxito da colonização deve-se à legitimidade dos títulos de propriedade das terras oferecidas à venda, pois já no governo de Dr. Afonso Alves de Camargo, com cujo apoio contou a Companhia, legitimou-se toda a área ao preço de 20 mil réis por alqueire paulista. Por conseguinte coube à Companhia a responsabilidade pelo notável incremento dado à colonização e, em conseqüência, à agricultura e economia paranaenses. A empresa se dedicou intensivamente à colonização das terras adquiridas. Noa dia 29 de agosto de 1929, começa o reconhecimento pioneiro da região, ainda virgem, balizada pelos cur249 sos dos rios Paranapanema, Tibagi e Ivai, onde a Companhia de Terras Norte do Paraná se preparava para plantar a civilização. Foi a partida para o desconhecido sertão; um punhado de homens, em nome da Companhia, deu o primeiro passo para a fundação do patrimônio Três Bocas, hoje Londrina, e para que se concretizasse o mais extraordinário plano de colonização já realizado por uma empresa privada no Brasil. As estradas eram primitivas, em verdade, caminhos por onde os índios transitavam; havia inúmeros atoleiros de barro malcheiroso, pelo acúmulo de água e folhas da mata, na qual os veículos atolavam até os eixos. Somente uma tropa de muares de carga e montarias podiam prosseguir viagem até as terras da Companhia situadas além da margem esquerda do rio Tibagi. No dia 27 de março de 1930, um colono pioneiro adquiriu da Companhia de Terras Norte do Paraná o primeiro lote de terra vendido pela empresa no Norte do Paraná, que colonizou 546.078 alqueires paulistas. Isto corresponde a 1.321.499 hectares de terras devolutas concedidas pelo governo do Estado, nos anos de 1925 e 1927, para exploração direta e a partir de 1930 com o projeto de colonização, destinado a pequenos proprietários. À Companhia coube a incumbência de vender terras a colonos, em pequenas propriedades agrícolas de 5 a 15 alqueires paulistas. O loteamento da Companhia de Terras Norte do Paraná obedecia rigorosamente a um planejamento preestabelecido. Os lotes rurais eram traçados em forma de largos retângulos, tendo frente para uma estrada e fundos para um rio. Já em 1931, a Companhia registrava grande venda das terras adquiridas. Compradores acorriam em grande número, atraídos pelos preços, pelas condições vantajosas e pela fertilidade do solo. Em poucas regiões do país poderá 250 se encontrar fenômeno semelhante ao ocorrido no povoamento e colonização do Norte paranaense, no que concerne à divisão e ao comércio das terras, planejamento e fundação de cidades, tudo isso na política de monocultura – o café. A Companhia de Terras Norte do Paraná idealizou, implantou e executou esse gigantesco plano de povoamento no Estado. Teve seu apogeu com a fundação e o sucesso de grandes cidades como Londrina, Apucarana, Arapongas, Maringá, Cianorte, Umuarama e muitas outras cidades e centros urbanos dentro da área concedida. A cidade de Mandaguari foi fundada em 1935; desmembrada de Apucarana passou a município em 10 de outubro de 1947. Eram tempos difíceis aqueles, as estradas tornavam-se intransitáveis em períodos de chuva, tudo ficava atolado na lama massapé, vermelha, que grudava nas solas dos sapatos. Essa terra roxa, argilosa, os ricos massapés provavam ser terras de primeira qualidade para plantação de café e cereais. Quando o sol queimava, nas estradas, ao passar um caminhão ou ônibus, levantava uma nuvem de poeira vermelha que não se enxergava nada, e quando o ônibus parava para pegar um passageiro, o poeirão entrava pelas janelas e por todas as frestas. As janelas tinham que ficar abertas por causa do grande calor. Lá fora o matagal ficava coberto pelo pó vermelho. Nos primeiros anos, as cidades recém-fundadas se apresentavam com ruas de terra, datas demarcadas de um lado e do outro, onde se viam raízes e troncos semicarbonizados. Muita poeira em dia de sol e lama até os tornozelos em dias de chuva. Era uma beleza ver a mata de pertinho; altas perobas, figueiras, paus-d‟alho, tudo ao alcance dos olhos, bastava chegar à janela. Um exemplo dessa conjuntura é Maringá, a princípio um pequeno patrimônio localizado no interior do muni251 cípio de Mandaguari. Fundado pela Companhia de Terras Norte do Paraná, não tardou em cumprir sua profecia, tornando-se uma das mais importantes cidades do Estado do Paraná. Sendo reconhecida pelo metro quadrado de verde para cada habitante, e por sua boa qualidade de vida. Na expansão cafeeira, sobretudo nas férteis terras roxas do Norte do Estado, têm papel destacado a grande companhia de colonização, a inglesa Paraná Plantation Limited, depois Companhia de Terras Norte do Paraná (C.T.N.P), mais tarde substituída por Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (C.M.N.P.). Em 1942, em virtude das dificuldades ocasionadas pela Segunda Guerra Mundial, os ingleses venderam a C.T. N.P. a um grupo de capitalistas paulistas, composto por Gastão de Mesquita Filho, Gastão Vidigal, Artur Bernardes Filho e Irmãos Soares Sampaio. Depois o controle acionário da Companhia passou para Gastão Vidigal e Gastão de Mesquita Filho. Nasceu a Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, que continuou o projeto de colonização. Fundou cidades no Noroeste, como Nova Esperança, Mandaguaçu, Floraí, Santo Antônio do Caiuá, Alto Paraná, São João do Caiuá. A gleba Umuarama de 40 mil alqueires paulistas, foi posteriormente adquirida pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, e colonizada obedecendo aos moldes da empresa predecessora. *** O lado direito do rio Apucaraninha é composto de terras dobradas, de montanhas e vales, arenosas, com pedregulho, cobertas duma mata mais baixa, mas em compensação, coalhada de pinheiros altaneiros, de troncos grossos. Desde o ano de 1847, nas terras que iriam constituir a Colônia Apucarana de colonização oficial, haviam se 252 estabelecido paranaenses e alguns paulistas, tendo antes, de acordo com a legislação estadual, registrado oficialmente as suas posses e propriedades. As terras ocupadas por eles estavam encravadas nas terras destinadas à colonização e por onde devia começar a medição. Veio a ordem do inspetor de Terras e Colonização do Paraná para que se efetuasse a medição de todas essas propriedades. Foram convocados os proprietários por cartas e editais, para apresentarem os seus títulos de propriedade. Com a proclamação da República, em 1889, e pela Constituição de 1891, as terras devolutas da União passaram à responsabilidade dos Estados, que receberam, inclusive, o domínio e a propriedade das terras devolutas que faziam parte das antigas concessões dadas pelo Império. Portanto, a titulação dessas terras coube ao Estado do Paraná. O Governo Estadual continuou os projetos de colonização, no Norte e Noroeste do Estado. Grandes áreas de terra foram concedidas para empresas de colonização estrangeiras, que as lotearam e formaram novas colônias, tanto de imigrantes quanto de brasileiros. Os interesses econômicos dessas companhias estavam diretamente ligados à cafeicultura. A partir de 1930, a região situada ao Norte do Estado do Paraná, foi ocupada por milhares de pessoas das mais diversas origens e raças, mineiros, paulistas, nordestinos, catarinenses, japoneses, italianos, alemães, espanhóis, gente que veio do sul, norte, centro e oeste do país. Ocuparam as terras roxas e as matas seculares, excluindo a presença indígena e cabocla, como povos que habitavam esse espaço. Famílias inteiras, movidas pelo sonho da época, o café, deslocavam-se para esse Eldorado. Este movimento migratório iniciou-se em 1940, período da ditadura de Getúlio Vargas. O que animou os pioneiros cafeicultores foi a qualidade do solo, próprio para o cultivo da preciosa rubiá253 cea. As notícias que chegavam davam conta do sucesso obtido nas regiões Norte Pioneiro, Norte Novo e Norte Novíssimo, onde dezenas de cidades brotavam da noite para o dia e o café fazia a fortuna de muita gente. Com a ocupação vertiginosa, entre as décadas de 1940 e 1950, a região foi uma das áreas mais dinâmicas do país em termos de absorção de imigrantes. Afluem milhares de pioneiros e desbravadores de sertões, e ocupam a fértil região. É a fronteira agrícola que avançava povoando o Norte do Paraná, integrando gente de origens diferentes, do Brasil e do exterior. Chegavam colonos e mudanças novas, ruas eram abertas, a clareira se alargava, casas eram construídas. Todos chegavam querendo terra para plantar e datas para construir casa. O cafezal foi plantado entre troncos encarvoados da queimada. Ao terceiro ano, os cafeeiros estavam brancos de flores, o cafezal parecia um jardim. Os cafezais da terra roxa produziam muito mais do que os cafezais paulistas e mineiros, enriquecia o lavrador. Nunca uma terra tinha produzido tanto café. É no poeirão vermelho que todos aprenderam a enxergar, não a cor nem a raça, nem a condição de ninguém, porque aqui chegaram todos na mesma condição, de gente procurando vida nova, numa terra nova. A extraordinária e fértil região norte e noroeste paranaense foi por muito tempo uma espécie de Terra da Promissão, um Eldorado, especialmente para paulistas, mineiros e nordestinos, que iniciaram uma corrida em busca de terra, pão e trabalho. Esse êxodo voluntário tornou-se um dos mais longos movimentos migratórios registrados em todo país. Foi desse pioneirismo que resultou o desaparecimento das florestas, a profusão de lavouras de café, a abertura de estradas e 254 a fundação de povoações e cidades, colocando o Norte no rol das regiões mais ricas do Estado. Ao precursor no desbravamento e ocupação do Norte e Noroeste do Paraná, nas múltiplas etapas de sua evolução juntou-se, por vezes, enorme onda de aventureirismo. A notícia da fertilidade da terra roxa, do extraordinário progresso e do dinheiro, que corria a rodo, atraiu para a região, além de elevado número de homens de negócios, fazendeiros, comerciantes e industriais, grandes e permanentes ondas de aventureiros, oriundos de todos os quadrantes do território nacional. Na nova Terra da Promissão, uns e outros se confundiam muitas vezes, na luta pela posse da terra e do dinheiro. Patrimônios e cidades estavam sendo fundados, abriam-se estradas, desenvolviam-se as mais diversas atividades, e uma nova civilização, com base na cultura do café, surgiu de uma hora para outra. A consolidação da cafeicultura na região Norte e Noroeste permitiu o avanço da frente colonizadora na década de quarenta. O eixo produtor de café deslocou-se do Norte Pioneiro para a região do Norte Novo e do Novíssimo. No final da década de 1950, o Paraná tornou-se o maior produtor brasileiro de café. No início do regime republicano, já era o café o esteio da economia brasileira. Se em São Paulo o café determinou a abertura de estradas de ferro e de rodagem, a organização do porto de Santos, a construção de cidades, também constituiu uma das principais bases para o crescimento da indústria. No Paraná as riquezas geradas pelo café contribuíram para o desenvolvimento de cidades, para a construção de estradas de rodagem modernas, asfaltadas, e de estradas de ferro, também para a ampliação e modernização do porto de Paranaguá. 255 Nos anos posteriores, alguns fatores contribuíram para a decadência da cafeicultura paranaense. A cultura do café exige uma combinação conveniente de solos e climas. Os solos do norte paranaense em grande parte constituído de terras roxas de excelente qualidade ofereciam condições ao cultivo do café, mas o mesmo não se dava com o clima nem sempre favorável; e a região cafeeira paranaense era sujeita ao risco de geadas intensas, como as de 1955 e 1957, as de 1962, 64 e 66, e as de julho e setembro de 1976 e 1977, que arrasaram as plantações de café, reduziram a produção cafeeira e aceleraram o processo de diversificação da economia. Com a repetição das geadas e a implantação, pelo governo, da política de erradicação de cafeeiros a fim de diminuir a produção nacional, a cafeicultura no Paraná foi seriamente afetada. As terras férteis e o clima ameno paranaense contribuíram grandemente para a variedade da produção agrícola. Passou-se a plantar trigo, milho e soja, ou formar pastagens para criação de gado. No Paraná houve uma sucessão de ciclos econômicos: da caça ao índio e ao ouro, o pastoril, da erva-mate, da madeira e do café e, hoje, o da soja, do trigo e do milho. O feijão-soja é originário da China; planta da família das leguminosas, subfamília papilionácea (Glycine hispida), empregada na alimentação e sobretudo na fabricação de óleos comestíveis. Introduzida no Brasil em 1882, na Bahia por Gustavo Dutra, levada para Campinas, se expande pelo Sul do País, onde é cultivada em grande escala, também no Sudeste e Centro Oeste. Até 1908, a cultura é feita em campos experimentais por agricultores japoneses, que trouxeram em suas bagagens sementes de variedades que cultivavam com sucesso no Japão. A soja começou a constar nas estatísticas oficiais em 1952. 256 A maior expansão do cultivo da soja teve início na década de sessenta. A área de plantio cresce de modo vertiginoso, invade os cerrados de Minas, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, e até as últimas fronteiras agrícolas em Rondônia e Tocantins. Os preços internacionais compensadores e a escassez de alimentos no mundo são fatores decisivos na expansão da cultura. Em 1932, Ceslau Mariano Biezanko, agrônomo, cientista e pesquisador polonês, num trabalho pioneiro, fez experiências com soja, numa fazenda em Guarani das Missões no Rio Grande do Sul e acabou dando ao Brasil uma de suas principais fontes de divisas. As pessoas não queriam acreditar que, de uma semente tão pequena fosse possível extrair leite, queijo, manteiga, óleo, farelo, carne, farinha e remédios. Consideravam isto uma ficção científica. A ocupação de áreas anteriormente destinadas ao café e a incorporação de glebas novas à fronteira agrícola contribuíram para a consolidação da sojicultura. O desestímulo e o receio de ocorrência de novas geadas fizeram com que muitos pequenos proprietários vendessem suas terras, mudando-se para outras regiões, como Rondônia, Mato Grosso e Tocantins. No decorrer do século XX, às grandes fazendas monocultoras, juntaram-se as médias e pequenas propriedades policultoras, que caracterizam e distinguem a estrutura agrária do Estado. No entanto, a modernização agrícola não trouxe só benefícios e riquezas, contribuiu com a mecanização das lavouras, na expulsão da zona rural de grande número de trabalhadores braçais, que saíram do campo em direção às cidades à procura de emprego, inchando as favelas, ou engrossando as massas dos “Sem-Terra”, acampados à beira de estradas, ocasionando um grave problema social. 257 SUDOESTE E OESTE DO PARANÁ Antes que as primeiras famílias pioneiras se estabelecessem no sudoeste, nos Campos de Palmas e de Guarapuava, outros povos ali habitaram desde tempos imemoriais. Plantavam roças de milho, abóbora e mandioca, caçavam, pescavam e criavam seus filhos nas belas campinas e faxinais cobertos de erva-mate. Eram os Camés, Dorins e os Votorões, povos indígenas dos grupos Kaingang e os Tupi-Guarani, que estendiam seu domínio por todo território paranaense, dividiam essa imensa área de terras entre si, por vezes nada amistosos. Os Dorins eram rudes e bárbaros, os Votorões semibárbaros e os Camés inteligentes e dóceis, porém valentes. Havia ainda os Iratins, que habitavam o vale do Rio das Antas e as florestas nas fraldas da Serra da Esperança. Os Kaingang não aceitavam a presença do homem branco nesta terra. Muitos conflitos ocorreram nos campos de Palmas e Guarapuava entre os colonizadores e as tribos indígenas. A partir dessa época a ocupação da região foi se intensificando e os índios empurrados para sertão adentro. Em 1771, Cândido Xavier de Almeida e Souza, comandante da 4ª Bandeira exploradora da região, descobriu os Campos de Guarapuava; o motivo principal da expedição era deter o avanço espanhol na zona meridional. Desde a ocupação dos Campos de Guarapuava, o povoamento progrediu para a região oeste e sudoeste paranaense; suas terras foram divididas pela concessão de numerosas sesmarias, onde se estabeleceram fazendas para criação de gado bovino e eqüino. Preocupou-se o governo federal em efetivar a ocupação da vasta região florestal, que se estendia até as barrancas do rio Paraná. A ocupação dos Campos de Palmas se deu a partir do ano de 1839. O fluxo de tropeiros que passavam por esta 258 região era muito grande, graças à Estrada das Missões, levavam gado de Nonohay, no Rio Grande do Sul, até a feira de Sorocaba, passando por Mangueirinha e Guarapuava. Os primórdios históricos da região fronteiriça estão ligados ao ciclo da erva- mate e ao madeireiro, que dominaram inteiramente a economia deste território, desde o final do século XIX.. Muitos foram os fatores de penetração e fixação do homem nessa região. Excetuando-se o mate e a madeira, para cá vieram peões e agregados de fazendas de Palmas e Clevelândia à procura de novas áreas, também foragidos da polícia do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Corrientes, além de posseiros, vindos da zona do Contestado, expulsos pela Brazilian Railway Company. A proximidade com a região fronteiriça contribuiu para esta penetração. No início da colonização do oeste e sudoeste paranaense toda a vasta região que vai de Foz do Iguaçu, seguindo a fronteira do Estado de Santa Catarina aos limites de Palmas, era sertão pouco conhecido e inexplorado, se constituía em grande vazio demográfico. Toda essa região era coberta por matas de araucárias e floresta subtropical, mas, aos colonizadores, o que interessava eram os campos próprios para a pecuária. Esta atividade caracterizava a então Comarca de Curitiba. A conseqüência deste gênero de ocupação, essencialmente pastoril, manteria desocupados por longos anos as áreas de mata. Os latifundiários de Palmas, que dominavam economicamente a região, não se interessavam em investir em colonização de suas terras, a não ser na criação de gado. Só em meados da década de vinte, esse vasto território começou ser ocupado, principalmente pelos posseiros. O início da povoação de Foz do Iguaçu efetiva-se em 1888, com a instalação da Colônia Militar do Iguaçu. Toda a região fronteiriça, entre o Brasil e o Paraguai, até o 259 ano de 1912, quando foi criado o município de Foz do Iguaçu, pertencia à Guarapuava que, dos Campos Gerais, no segundo e terceiro planaltos, estendia-se até as barrancas dos rios Paraná e Iguaçu. As colônias Marechal Mallet e Foz do Iguaçu foram povoadas com brasileiros, justamente para garantir a posse do território, tendo em vista questões de limites com a Argentina. A primeira estrada construída ligando Foz do Iguaçu a Guarapuava, foi em 1917; antes só existia um “picadão”, quase intransitável para carroças, que realizavam o percurso em um mês cheio de transtornos. Só era possível e mais rápido o tráfego com tropas de muares. O governo do Estado do Paraná, baseado na Lei de Terras, de 1892, da conjuntura da Primeira República, ofereceu concessões de terras para estabelecimento de colônias agrícolas, para famílias estrangeiras e nacionais. Esse fato provocou grande movimentação fundiária no Estado, sendo que muitas concessões foram feitas, constando, inclusive, as obrages (empresas) dos argentinos Miguel Matte, de Domingos Barthe, de Nuñes y Gibaja, de Julio T. Allica a maior de todas as obrages, a inglesa Maderas del Alto Paraná e a Mate Laranjeiras do consórcio de capitais brasileiro e argentino. Cada uma dessas companhias possuía portos próprios nos rios Paraná e Piquiri. Em verdade, a presença da erva-mate em estado nativo no Alto Paraná é que constituía o verdadeiro motivo dos interesses estrangeiros. Colonização não era seu objetivo principal. Em Foz do Iguaçu, dominava a forte presença estrangeira. O dinheiro brasileiro não possuía valor algum. Ninguém o recebia. Circulava na região o peso argentino. As atividades ervateiras, a extração de madeiras e o comércio eram totalmente dominados por argentinos. A década de vinte representou o ápice da extração da erva-mate, nos ervais nativos do sudoeste do Paraná, 260 uma verdadeira extensão dos ervais paraguaios. Aqui essa planta era explorada basicamente por empresas argentinas e com raras exceções, paraguaias e brasileiras. A navegação realizada no rio Paraná utilizava as embarcações platinas. Durante muitos anos, a Companhia Matte Laranjeiras explorou a erva-mate e a madeira, brasileiras. Quando a cultura da erva-mate entrou em decadência, por questão de mercado internacional, os trabalhadores foram despedidos. O tratamento a eles dispensado era o pior possível, trabalhavam em regime de semi-escravidão para os ervateiros argentinos. Mas, só em 1924, o general Isidoro Dias Lopes, instalado no povoado, denuncia à nação o estado de abandono em que se encontra o lugar. O governo federal volta a sua atenção à essa região. Inicia-se a nacionalização, obrigando ao uso do português no comércio, na prefeitura e nas escolas. Os argentinos tinham promovido uma completa desnacionalização, com o espanhol e o guarani como línguas correntes, e o peso argentino como moeda circulante. Na origem tanto dos acampamentos tropeiros como das estradas de carros de boi, estão presentes a extração e o transporte da erva-mate, explorada por argentinos e ingleses. É o primeiro ciclo da economia regional. Em 1930, o Interventor Federal do Paraná, general Mário Tourinho, cancelou todas as concessões de terras devolutas, feitas pelos governos anteriores, cujas empresas não cumpriam as clausulas dos contratos. Desta forma reconquistou algo em torno de três milhões de hectares de terras, que mais tarde seriam efetivamente colonizadas. A colonização oficial, diretamente dirigida pelo Governo do Paraná, sucedeu o da concessão, pelo Estado, de grandes extensões de terras a particulares que se comprometiam a colonizá-las. Inúmeras concessões foram feitas no norte e oeste do Estado. 261 O que se verificou na maior parte do Oeste foi um assalto às terras devolutas do Estado, ou a grandes glebas particulares. Houve inúmeras invasões por “grileiros”, pessoas intrusas ansiosas em ocupar terras alheias. No começo a ocupação da terra foi tranqüila, em razão de serem devolutas, configurando o estado de “posse”. Esta ação de tomada da terra preocupou o Estado, que por sua vez procurou legalizar a situação dos muitos posseiros da região. Na década de 1930, o progresso do Paraná era grande. Com a crise sofrida pela industrialização do mate, o pinheiro substitui a erva-mate e começa a ocupar o primeiro lugar na atividade econômica do Estado, é a fonte principal de arrecadação de impostos. As exportações de madeira para os mercados europeus e platinos e para outros estados brasileiros expandem-se rapidamente. As primeiras movimentações no território cascavelense deram-se por conta da implantação da Colônia Militar de Foz do Iguaçu em 23 de novembro de 1889. Este fato intensificou o trânsito entre Foz do Iguaçu e Guarapuava. A estrada não passava de uma trilha de tropas. Em 1895, o ervateiro Augusto Gomes de Oliveira, construiu uma estrada rústica, de básica importância para o comércio da época. A trilha, suficientemente ampla para passagem de carroças utilizadas no transporte de produtos diversos, principiava num pouso de tropeiros, a beira do rio da Cascavel. Diversos tropeiros passavam por Encruziliada, com suas bruacas carregadas de mantimentos destinados à guarnição militar de Foz do Iguaçu e portos do rio Paraná. Alguns viajantes resolveram fixar-se no lugarejo, construíram seus ranchos e plantaram roças de milho. Ocuparam os campos com criação de gado e muares. Daí em diante a vila prosperou. 262 O núcleo colonial que gerou o atual município de Cascavel foi fundado pelo guarapuavano José Silvério de Oliveira em 1920, que decidiu se estabelecer na vila com pequeno armazém. O lugar era conhecido como Encruzilhada. Em 1930, a vila apresenta vários ranchos de tábua lascada, cobertas de tabuinhas, e não mais de 20 moradores. Mais tarde o povoado passa a chamar-se Cascavel. Segundo a lenda, a denominação Cascavel remonta ao período da construção da Estrada Colônia Mallet (hoje Laranjeiras do Sul) a Foz do Iguaçu. Quando tropeiros faziam pouso às margens de um riacho (atual Rio Cascavel), certa noite ouviram o som dos guizos de cobra cascavel, e após localizarem o réptil, o mataram. O local passou a ser chamado de “Pouso da Cascavel” e emprestou o seu nome ao riacho e passou a identificar o lugar. Nos anos 40 teve início a extração da madeira em grande escala, fator que motivou o progresso da região. A exploração do pinheiro atrai levas de colonos e empresários gaúchos e catarinenses. As serrarias se estabeleceram às margens da Rodovia Federal Guarapuava–Foz do Iguaçu. Multiplicaram-se, também, de preferência ao longo da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. O ciclo madeireiro, depois do café, mantivera-se forte no Sudoeste, Oeste e Norte do Paraná, até fins da década de 1960, resistindo em situação relativamente próspera até meados da década seguinte, com suas conseqüências, positivas e negativas, trazendo o enriquecimento, até extinguir-se, com a devastação das florestas paranaenses. Findo o ciclo da madeira e aberto o da agricultura, os agricultores passaram a dedicar-se ao cultivo da soja, do trigo e do milho em grande escala, aplicando a mais moderna tecnologia. Desenvolveu-se, também, em grande quantidade a suinocultura. Instalaram-se grandes indústrias para o processamento de grãos e de carne suína. 263 O município de Cascavel representa considerável potencial voltado para a agroindústria, com processamento de sementes oleaginosas, produção de óleos vegetais refinados, fábricas de rações, frigoríficos, indústrias de papel e produtos alimentares, fábricas de equipamentos agrícolas. A criação das Cooperativas do Oeste e Sudoeste Paranaense, como a Cotriguaçu, Coopavel, Copacol e outras, incentivou a expansão da sojicultura, consolidou a diversificação agrícola. As extensas glebas cultivadas com milho, trigo e soja apresentam um panorama de rara beleza aos olhos do viajante que demanda a estrada BR 277 rumo ao Oeste - Foz do Iguaçu. A construção do Hospital Regional de Cascavel (Hospital Universitário), Hospital são Lucas, Santa Catarina, Nossa Senhora da Salete, Policlínicas de Olhos, Hospital Psiquiátrico São Marcos e diversas outras Clínicas, que atendem a pacientes da cidade, de toda a região Oeste, e ainda de fronteiras do Paraguai e Argentina, que procuram os excelentes serviços médicos especializados. A implantação da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), da Universidade Paranaense (Unipar), da União Panamericana de Ensino Superior (Unipan), da União Estudantil de Cascavel (Univel), das Faculdades da Fundação Assis Gurgacz (Fag), das Faculdades de Cascavel (Fadec), do Centro Interdiocesano de Teologia Católica (Cintel), faculdades que oferecem ao estudante opções de diversos, excelentes, cursos de ensino superior. A estrutura industrial implantada no município e o intenso desenvolvimento de Cascavel atestam a laboriosidade do seu povo, e o empenho dos seus governantes. Com a Lei estadual nº.790, de 14 de novembro de 1951, sancionada pelo governador Bento Munhoz da Rocha, foi criado o município de Cascavel. 264 Com o desenvolvimento do transporte feito por caminhões, sobretudo após 1930, fator que facilitou a penetração das serrarias para o interior do Estado, desenvolveuse a indústria do pinho atraindo parte da mão-de-obra excedente da erva-mate, que estava em crise. A partir de 1946, inúmeras serrarias se instalaram no oeste e sudoeste paranaense, regiões de vastas florestas de pinheiros nativos. Instalaram-se em Cascavel a Madeireira Moysés Lupion, a Industrial Madeireira que absorveu a antiga Central Barthe e outras empresas foram criadas. A Riograndense Maripá S/A- Industrial Madeireira e Colonizadora Rio Paraná colonizou Marechal Cândido Rondon em 1945, fundou: Mercedes, Toledo, Ouro Verde do Oeste, Pato Bragado, Quatro Pontes e outras cidades. O ciclo da madeira mantém-se até fins de 1960, decai com o fim da matéria prima. Imensas riquezas em florestas de araucárias, imbuías e perobas foram dizimadas. O governo estava despreocupado com o futuro, sem planejamento, provocou-se, em poucos anos, o esgotamento das reservas de pinheiro; não se pensava em reflorestamento. Sendo a serraria uma atividade nômade, não se integra na região em que está estabelecida. De início, forma em torno de si um núcleo populacional característico, com dezenas de casas para operários, armazém de secos e molhados, escola, capela e campinho de futebol. Quando esgotada a floresta, a serraria é transferida para outra boca do sertão. Essas benfeitorias ficam e contribuem para a fixação das famílias que desistem em acompanhar a serraria de mudança para outro lugar, e dão início a povoados. A serraria deixa por onde passa uma região devastada. Dos 200 mil quilômetros quadrados da superfície do Estado, 76 mil estavam cobertas pelas matas de pinheiro. Hoje chega-se à triste conclusão de que o ciclo do pinho no Paraná está praticamente encerrado. 265 A partir de 1940, gaúchos e catarinenses, sobretudo os primeiros, vindos do sul, penetram e se instalam no Oeste paranaense. A possibilidade de adquirir terras com certa facilidade trouxe milhares de agricultores interessados em plantar e empresários a atuar no setor madeireiro. Grande parte do êxito da colonização da região se deve a propaganda feita das terras a serem colonizadas. O povoamento baseou-se em migração gaúcha e catarinense. As facilidades existentes, no entanto, atraíram também grande número de aventureiros desejosos de enriquecimento rápido. A terra é ocupada mediante a colonização oficial do governo Manoel Ribas; da atuação de diversas colonizadoras credenciadas pelo governo; e pela invasão das terras devolutas pelos grileiros e posseiros. O sistema de aquisição de terras devolutas que pertenciam ao domínio da União e dos Estados, era o de posse. A legislação portuguesa, desde o século XVIII, permitia esse tipo de propriedade, e passou a ser tolerada pela legislação brasileira. Esse sistema ainda vigorava no sudoeste e oeste do Paraná, no início do século XX. Essa apropriação de terras devolutas não era feita legalmente. O posseiro chegava, derrubava a mata, abria caminhos, construía o rancho, plantava a roça, tudo sem despesas para o governo. O posseiro era geralmente a dianteira da colonização. A posse não era definitiva. Quando os colonos chegavam a uma região de vanguarda, compravam a posse do caboclo ou o expulsavam à força. Os caboclos trocavam suas posses por um cavalo, um boi gordo, uma espingarda, um pelego ou outra coisa de valor relativo. Os posseiros vendiam pequenas porções de terra e forneciam aos compradores apenas documentos provisórios em pedaços de papel sem valor legal. Era a desistência da posse daquele pedaço de terra. Depois, embrenhavam-se no sertão, abriam uma nova posse mais adiante. 266 A luta pela posse da terra entre agricultores e aventureiros, por um lado, e latifundiários e seus jagunços, por outro, gerou um clima de terror e violência por toda a região Oeste, as emboscadas e os crimes misteriosos ligados a posse de terras agravaram-se a partir de 1950. Em 20 de junho de 1947 o governo de Moysés Lupion, assinava o Decreto-Lei n° 646, instituindo a Fundação Paranaense de Colonização e Imigração. Em 1952, o Coronel João Rodrigues da Silva Lapa é designado pelo Governo Estadual para aplacar os conflitos entre jagunços e posseiros nas glebas em disputa. O ciclo madeireiro no sudoeste teve rápida expansão, influenciado pelo movimento de legalização das terras posseadas, conduzido de tal modo que se criou uma grande instabilidade social na região, surgindo conflitos por litígios agrários, visto que a titulação não contemplava as famílias estabelecidas e sim elementos que residiam na capital, sem qualquer ligação com a região. Diversas colonizadoras se embrenharam na matas, com o objetivo de medir e demarcar terras devolutas do Estado. A grande maioria destas empresas se valeu de ardilosas negociatas políticas, para conseguirem a concessão de grandes áreas de terra. Não respeitaram o direito de posse das famílias, que estavam estabelecidas havia dezenas de anos na região. Passaram então a amedrontar os colonos, exigindo pagamentos absurdos pela demarcação e titulação das terras. A situação das famílias só foi tranqüilizada após a criação do “Grupo Executivo para as Terras do Sudoeste do Paraná”, cujo objetivo era titular as terras em litígio. Só ai terminaram as disputas entre posseiros e jagunços mantidos pelas empresas colonizadoras. Uma enorme área de terras, no oeste, povoada de erva-mate e pinhais, pertencia à família Matte. Foi conse267 guida mediante concessão no ano de 1918. Miguel Matte fundou a Companhia Florestal do Paraná S/A, com capital argentino e brasileiro, com sede em Foz do Iguaçu., com finalidade de exploração da erva-mate e madeira. Em 1946, vendeu a empresa com a gleba toda para a Companhia Pinho & Terras Ltda., organizada naquele ano, no Rio Grande do Sul, por cidadãos gaúchos. Esta Companhia passou a operar no oeste paranaense, a partir de 1946, e foi responsável pela colonização de inúmeras glebas e fundação de importantes cidades como Céu Azul, Medianeira, Matelândia, Palotina e São Miguel do Iguaçu. Na região oeste e sudoeste do Paraná, muitos colonos vindos de outros Estados estabeleciam-se em terras devolutas ou abandonadas, com cultura efetiva e morada habitual. Em conseqüência, quando o Estado vendeu as terras, ou desejou ele próprio colonizá-las, muitos lotes e mesmo glebas inteiras já se encontravam ocupadas pelos posseiros, o mesmo acontecendo em terras particulares. Centenas de famílias de São Paulo, Minas, do Rio Grande do Sul e Santa Catarina vieram ao Paraná, em busca de terras férteis e de fácil aquisição, instalando-se como posseiros nas glebas de terras devolutas existentes. A terra roxa, fértil, coberta de matas de madeiras de lei constituiu a motivação principal dos conflitos de terras, que tiveram em sua origem a multiplicidade de títulos, alguns legítimos, outros falsos, alguns ainda dos tempos do Império. Os conflitos pela posse eram o principal desafio das autoridades de segurança e dos governos do Paraná. Essa etapa final da ocupação foi marcada por lutas armadas entre pequenos proprietários, posseiros, grileiros, invasores e jagunços. A cobiça, a ganância de indivíduos inescrupulosos, criou as figuras do posseiro e do jagunço, os personagens principais nos embates violentos pela posse da terra. Iniciam-se também questões litigiosas. 268 Com títulos falsos de propriedade, ou pela força, invasores, muitas vezes contratados por grandes proprietários e companhias imobiliárias, apossavam-se ilegalmente de terras, expulsando ou matando os que nela haviam se instalado. O governo de Manoel Ribas iniciou o projeto de colonização, rescindindo antigos contratos de colonizadoras, excetuando a Companhia de Terras Norte do Paraná e a empresa de Francisco Gutierrez Beltrão. Entusiasmado com o êxito da colonização iniciada pelos ingleses, o Governo Estadual resolveu lotear ele próprio as terras que ainda lhe pertenciam. Surgiram então várias colônias oficiais entre 1942 a 1944. A que mais prosperou foi a Colônia Paranavaí em 1942, que se localizava no Noroeste, no grande triângulo, entre as barrancas dos rios Paranapanema e Paraná, confrontando a leste e sul com as terras da Companhia de Terras Norte do Paraná. Além da colonização oficial, dezenas de imobiliárias particulares operaram com loteamentos e colonização. Atuou também, nessa região, a Companhia Colonizadora Brasil-Paraná Loteamentos S.A. proprietária de extensa gleba concedida, cujas terras estendiam-se até as barrancas do rio Paraná. Fundou a cidade de Querência do Norte. Nesta região houve por muito tempo e ainda há, uma acirrada disputa e litígios pela posse da terra. Em 1943, foi criado o Departamento de Terras do Estado. A normalização das posses deu segurança ao colono. A venda de terras devolutas ou oriundas de antigas concessões anuladas, a companhias colonizadoras ou a requerentes particulares, traz um novo problema: a regularização das terras ocupadas pelos posseiros ou a sua retirada do local. A posse real dessas imensas áreas de terras pelos colonizadores não foi sem sacrifício. 269 Os conflitos de terra mais violentos aconteceram em Jaguapitã (1947), em Porecatu (1951) e no Sudoeste do Paraná. Também no Noroeste (1957), continuaram as disputas pelas terras de Querência de Norte, Santa Cruz do Monte Castelo, Santa Isabel do Ivai e Icaraíma, áreas situadas na margem direita do rio Ivai e fronteiriças ao rio Paraná. As lutas pela terra continuaram até o final do século XX, e continuam ainda, com a pretensão dos grupos dos “Sem-Terra” invadindo propriedades produtivas. Por volta de 1949, levados pelo impulso de transformar florestas em núcleos de civilização chegaram à região os primeiros povoadores do lugar da antiga “Fazenda Macuco”, incentivados por Remo Massi e seu filho Reinaldo, fundadores de Itaúna e Diamante do Norte. Em 1958, o desbravador de sertões Enio Pipino, da Sinop, além de colonizar, com sucesso, Terra Rica em 1950, fundou Formosa do Oeste, Iporã e Ubiratã no Paraná. Posteriormente transferiu a sua empresa, Sinop, para o Norte de Mato Grosso onde colonizou e fundou novas cidades, como Sinop, Cidade Vera, Sorriso, Nova Ubiratã. A Colonizadora Norte do Paraná Ltda, dirigida por Írio Spinardi, fundou a cidade de Loanda em 1952, e Assis Chateaubriand em 1960. Ariosto da Riva, dono da Companhia “Indeco”, fundou Nova Londrina. Atuou também, no centro-oeste, a Companhia Byington de Colonização Ltda, que, em 1953, colonizou o município de Altônia, Pérola e São Jorge do Patrocínio. *** 270 COLÔNIA PARANAVAÍ A história da região de Paranavaí tem seu começo em 1501, quando espanhóis e bandeirantes portugueses invadiram os sertões, trilhando caminhos fluviais e abrindo picadas na floresta, com o objetivo da preação de índios, busca de ouro e pedras preciosas. A área de terras que constitui hoje o Paraná era denominado Província do Guayrá, pertencia ao Paraguai, e era domínio da Coroa Espanhola. O município de Paranavaí, antes da ocupação apresentava em toda a sua extensão como cobertura vegetal a mata característica do clima tropical, que recobria 100% da área do atual município, distinguia-se por apresentar em sua maior parte o tipo cerradão. Cresciam árvores de grande porte como peroba, marfim, canela, angico. Predomina em toda a região de Paranavaí o solo (latossolo) vermelho escuro. A formação Caiuá da série São Bento, sobre a qual se situa Paranavaí, constitui-se de arenitos altamente desagregáveis, suscetíveis à erosão profunda com escarpas e vales em forma de voçorocas. O primeiro núcleo habitacional surgiu na antiga Fazenda Montoya (Fazenda Brasileira) na região de Paranavaí. Foi assim nomeada em homenagem ao padre jesuíta Antônio Ruiz de Montoya, que em 1631, bravamente, junto com os índios, enfrentou o ataque do bandeirante paulista Antônio Raposo Tavares. Após a destruição da Redução de Guayrá, fugiu dos perseguidores liderando doze mil índios numa epopéia ímpar de retirada, percorrendo cerca de oitocentos quilômetros descendo o rio Paraná, em centenas de balsas e canoas. Os que conseguiram transpor o rio Uruguai refugiaram-se em Reduções existentes em Ijuí, em terras gauchas. A vasta região de terra fértil, que se limita ao norte com o rio Paranapanema, ao sul com o rio Ivaí, a leste 271 por uma linha reta que partindo da origem da Corredeira do Estreito no rio Paranapanema ao rio Ivaí, confrontando com as terras do Estado e a Oeste por linha entre os rios Paranapanema e Ivaí, era denominada Gleba Pirapó ou (Fazenda Brasileira). Essa gleba de 317 mil alqueires de terras devolutas que pertencia à União, havia sido concedida ao político gaúcho Lindolfo Leopoldo Bökel Collor, mais tarde nomeado Ministro do Trabalho de Getúlio Vargas e um dos articuladores da Revolução de 30. A Fazenda Brasileira era projeto de Lindolfo Collor, tendo sido transferida posteriormente à Braviaco, da qual era sócio o engenheiro agrônomo Landulfo Alves de Almeida, político baiano, que foi senador e interventor na Bahia, o seu irmão Humberto Alves de Almeida e Dr. Geraldo Rocha, dono de jornais no Rio de Janeiro. A Braviaco surge em 5 de outubro de 1920, como sucessora da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, subsidiária da Brazilian Railway Company, obteve a concessão das terras da Fazenda Brasileira (Gleba Pirapó). As concessões a favor da Braviaco constavam ainda da Gleba Catanduvas, Gleba Piquirí, e Gleba Ocohy, num total de 500 mil alqueires (1.185.914 hectares). Nesse período o território correspondente ao noroeste do Paraná pertencia à Comarca de Tibagi. A região era habitada por tribos de índios Guarani, Kaingang e Xetá (extintos). Não podemos deixar de reconhecer que eles foram os primeiros habitantes e donos da terra, desde os tempos remotos. Na disputa pela ocupação das terras do Paraná desde o século XVII, até e durante o século XX, muitos capítulos da história foram escritos com fogo e sangue; primeiro massacrando e expulsando os índios, depois os caboclos, 272 em seguida os posseiros que deveriam desocupar e abandonar a posse. Até o ano de 1925, a região do atual município de Paranavaí era escassamente habitada por caboclos e posseiros. Os primeiros desbravadores atingiram o lugar através da rudimentar estrada que seria uma ramificação do antigo Caminho do Peabiru, uma continuação do ramal que vinha de Presidente Prudente em sentido meridional, a ligar a redução de Nossa Senhora do Loreto e Santo Inácio Mini, seguindo por via fluvial pelo rio Paranapanema até Guayrá. Em 1926, foi iniciada a construção de uma estrada de rodagem com 110 quilômetros, partindo das proximidades do rio Pirapó, à margem esquerda do rio Paranapanema com destino à Fazenda Brasileira. Foi também construída a estrada com 100 quilômetros de extensão, ligando a Fazenda ao Porto São José, dando acesso à Guayra, Porto Mendes e Argentina por via fluvial. Em 1927, o Distrito de Montoya recebeu seu Cartório de Paz, com escrivão nomeado pelo Estado. A Fazenda Brasileira era sede geral da Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco), que plantou um milhão de pés de café e formou 300 alqueires de pasto para gado. Nessa empreitada trabalhou um contingente humano de 1.200 famílias que foram trazidas do Nordeste. O Interventor Federal do Paraná, general Mário Alves Monteiro Tourinho, baixou o decreto nº 300, de 3 de novembro de 1930, que cassou sumariamente todas as concessões de terras no Estado, por não cumprimento das cláusulas dos contratos, e por terem sido feitas sem observância das disposições legais e contrárias aos interesses públicos. Cancelou a concessão das terras feita à Braviaco pela construção do ramal Ponta Grossa-Guarapuava. Pelo decreto, fez retornar ao domínio do Estado do Paraná todas 273 as glebas devolutas, concedidas pelo Império ou pela Província. Em 8 de abril de 1931, mediante o decreto nº. 800, o Interventor Mário Tourinho regulamenta a venda das terras devolutas do Estado, objetivando solucionar o problema da colonização das terras paranaenses por famílias nacionais e estrangeiras, limitando a 200 hectares a área a ser concedida a cada família ou pessoa, e fixa o preço em 18 cruzeiros por hectare. Foi cassada a concessão de terras da “Fazenda Brasileira”, pois o propósito de colonização da imensa gleba concedida não se efetivou. Os cafezais, já com três anos, começando a produzir, foram abandonados, e o mato tomou conta das plantações; as famílias foram embora. A Fazenda foi desocupada e abandonada em 1932. A área toda volta às mãos do Estado do Paraná, que determina seu loteamento. Após a cassação, toda aquela região transformou-se em campo de luta pela posse das terras. A violência reinava de forma brutal e explícita, na antiga “Fazenda Brasileira”. Getúlio Vargas, descontente, exonera Mário Tourinho do cargo de Interventor Federal e nomeia para o lugar seu amigo pessoal, Manoel Ribas, natural de Ponta Grossa, que governou o Paraná por treze anos consecutivos, de 30 de janeiro de 1932 até 3 de novembro de 1945. A Fazenda Brasileira limitava-se com as terras da C.T.N.P., rios Paranapanema, Paraná e Ivaí – resultando destes dois últimos a nova denominação de Paranavaí. Em 1933, Manoel Ribas planejou a colonização desta região, que começou efetivamente a partir de 1944, sob a orientação do Dr. Francisco de Almeida Faria, quando se deu a retomada do crescimento do povoado, já com o nome de “Colônia Paranavaí”. 274 Dois personagens lendários se destacam nessa região, o tenente Telmo Ribeiro e o capitão Aquiles Ferreira Pimpão. Eram homens rigorosos, duros e autoritários, nomeados e apoiados pelo interventor Manoel Ribas. Eram “a lei” na Colônia Paranavaí. O tenente, depois, coronel Telmo Ribeiro, considerado representante de Manoel Ribas, chegou à Colônia Paranavaí, por volta de 1936, com a função de fazer a limpeza na área da antiga concessão dada à Braviaco, expulsando todos os caboclos, posseiros e “grileiros”, que haviam se posseado nas terras devolutas recuperadas pelo Estado. “Grileiros” eram indivíduos que procuravam apossar-se de terras alheias, mediante falsas escrituras de propriedade. Após a limpeza ficaram muitas cruzes pelos picadões, como prova dos seus métodos brutais, ilegais mas comuns naquela região e naquela época. O coronel Telmo era o homem que resolvia todas as questões, literalmente mandava nesse território. Em razão de aquela localidade estar ligada, por estrada, somente ao Estado de São Paulo, Manoel Ribas, determinou que fosse aberto um “picadão” que, partindo de Rolândia, passava pela região de Maringá, prosseguia até o antigo povoado de Montoya (Fazenda Brasileira), ligando este ao Porto São José no Rio Paraná, fazendo conexão com o restante do Estado. O “picadão” existente que atravessava o sertão do Noroeste do Paraná, foi melhorado em 1939, pelo capitão Telmo Ribeiro, e batizado como “Estrada Boiadeira”, nela transitavam tropas de gado que vinham de Mato Grosso em direção a São Paulo. Pela Lei n°.790, de 14 de novembro de 1951, foi criado o município de Paranavaí, com o território desmembrado de Mandaguari. 275 Na área da antiga Fazenda Brasileira, originaram-se os municípios de Paranavaí, São Carlos do Ivaí, Paraíso do Norte, Tamboara, Nova Aliança do Ivaí, Mirador, Amaporã, Planaltina do Paraná, Guairaça, Santa Isabel do Ivaí, Querência do Norte, Santa Cruz do Monte Castelo, Loanda, Porto Rico, São Pedro do Paraná, Marilena, Diamante do Norte, Itaúna do Sul, Nova Londrina e Terra Rica. Depois de sua vertiginosa ocupação, a região da antiga Fazenda Brasileira perdeu substancial contingente humano a partir de 1962, com a decadência da cafeicultura regional atingida pelas fortes geadas e o empobrecimento do solo. Ganhou espaço a pecuária bovina com a formação de grandes fazendas, ocasionando maior êxodo rural. A instabilidade do arenito Caiuá e a improvidência do homem estão convertendo o noroeste do Paraná em deserto. A ganância, a sede de lucros, sobrepõe-se ao bom senso e a responsabilidade, e não é obedecida a Lei Federal de Proteção ao Meio Ambiente, que obriga a deixar 200 metros de mata ciliar ao longo dos rios, desde a cabeceira até a foz. Desprotegido nas margens, enormes quantidades de terra é conduzida pelas chuvas aos rios assoreando-os, a água vira lama. As perdas da fertilidade do solo são irreparáveis. Poluem-se os rios com produtos químicos de fertilizantes e defensivos. Os nossos rios estão pedindo socorro. *** 276 TERRA RICA. A floresta tropical da parte norte do terceiro planalto, de terras roxas, abrangendo uma área vastíssima, contínua, desenvolveu grande variedade de árvores de madeira nobre. Destacavam-se frondosas e gigantescas perobasrosa, angico, pau-marfim, pau-d´alho, canela, cedro, palmito, figueira, ipê roxo, canjerana e luxuriante vegetação. No entanto, no extremo noroeste do Paraná o solo é arenoso, chamado de Arenito Caiuá, recoberto pela mata latifoliada perene, subtropical, também rica em madeira de lei. Era uma floresta densa, assustadora, cheia de animais selvagens, aves, répteis, formigas, mosquitos, pernilongos, e insetos que não davam trégua a ninguém. Os governos do Estado, das décadas de quarenta e cinqüenta, movimentaram-se no sentido de colonizar as regiões Oeste, Noroeste e Norte Novo do Paraná. Para isto, não economizaram concessões de terras às empresas colonizadoras e às imobiliárias, em troca, exigiam a imediata colonização. Em 1947, Aniz Abud, empresário paulista, requereu e obteve, junto ao governo estadual de Moysés Wille Lupion de Troia, a concessão de uma gleba de terras devolutas de 28.000 mil alqueires paulistas, ou 67.760 mil hectares, que constituem o atual município de Terra Rica, no Noroeste do Paraná. Foram adquiridas ao preço de 2,00 (dois ) cruzeiros por hectare. Abud transferiu essa gleba para Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná “SINOP”. Constavam como sócios da empresa Sr. Adhemar de Barros, Ênio Pipino e João Pedro Moreira de Carvalho. A gleba de terras adquirida de Aniz Abud, a ser colonizada pela Sinop, estava localizada no Norte Novíssimo. Era uma nova ”boca do sertão” que se abria, na margem 277 esquerda do rio Paranapanema. Encravada nas terras da Colônia Paranavaí, tendo como limites, à direita, a cabeceira do ribeirão Coroa do Frade, descendo por este até a sua foz no rio Paranapanema, à esquerda, a nascente do ribeirão do Quati e do Corvo, na divisa com Diamante do Norte, descendo até a foz no rio Paranapanema. No início de 1949, foi aberta uma clareira no meio da mata e construído o primeiro rancho de pau-a-pique coberto com folhas de palmeira. O local serviu de acampamento para os funcionários da Companhia. Os engenheiros da Sinop, Dr. Jaime Patrick Clarck, Yukiji Sudô e o agrimensor Antônio Sugahara, fizeram a divisão da área em pequenos lotes rurais de 5, 10, 20 e 50 alqueires e delimitaram o perímetro urbano. A Sinop reservou na sua gleba uma área de cem alqueires, num local privilegiado para o estabelecimento da nova cidade, que inicialmente recebeu o nome de “Estrela do Norte”, substituído mais tarde por “Terra Rica”, devido à fertilidade do solo e às extensas florestas povoadas de centenárias árvores de peroba rosa. A área escolhida oferecia as melhores condições quanto à topografia, com um relevo suave, não muito distante dos vários cursos d‟água, tributários do rio Paranapanema que banham aquela região. Primeiro foi feita a derrubada da mata, depois de seca e queimada, realizaram a limpeza dos tocos de árvores que restaram. Ficaram ainda, nos lotes urbanos, enormes toras de peroba, semiqueimadas, com os galhos secos levantados acima do chão. Em seguida, o terreno foi aplainado por tratores e niveladoras, traçadas as primeiras ruas e avenidas. O povoado que se formava tinha apenas uma rua principal, a Avenida São Paulo, que corria de um extremo a outro do perímetro urbano, e servia também como pista de pouso e de- 278 colagem dos aviões monomotores da Sinop que traziam corretores e compradores de terras. No local demarcado ergueu-se a estrutura da primeira casa, o “Hotel Central “, construído pela Sinop e arrendado ao Sr. José e Dona Maria Ribeiro. Dona Maria era uma baiana despachada, alegre e trabalhadeira, comandava a cozinha com voz forte, no meio das panelas e caldeirões. O hotel servia como ponto de referência; ali se hospedavam os viajantes, empreiteiros, corretores e compradores de terras e os que não tinham ainda onde se instalar. Os suprimentos para o Hotel eram trazidos de Presidente Wenceslau, pois ainda não havia nada que fosse produzido na região. Havia sim na mata muito palmito e caça; antas, tatus, porcos do mato e aves que eram abatidas e consumidas pelos hóspedes do Hotel Central. Para suprir as necessidades mais urgentes das famílias e de centenas de peões que derrubavam a mata, trabalhavam na construção das casas e nas plantações, foi logo implantado o patrimônio e incentivado um diversificado comércio. A Avenida São Paulo era a rua principal, em cujos lados começaram se alinhar as casas de comércio e residências. A cidade nascia no meio da mata, onde todo dia chegava gente do Brasil inteiro, em jardineiras, caminhões e Jeeps, eram os primeiros colonos desbravadores do sertão. Depois vinham mais famílias, de todas as regiões do país, paulistas, mineiros, nordestinos e paranaenses. Nos primeiros anos chegaram à Terra Rica, em caminhões adaptados para transporte de passageiros, os “paus de arara”, centenas de trabalhadores braçais, peões, que logo se engajavam nas turmas de derrubadas de mata e nas plantações de café. Os peões iam para os ranchos na segunda feira e voltavam no sábado. Ficavam nas pensões e casas de prosti279 tutas. Gastavam nos finais de semana tudo o que ganhavam durante a semana. Com o fim das derrubadas, acabavam os peões solteiros, que iam embora à procura de outra derrubada, ficavam só os casados, morando na fazenda para cuidar dos cafezais. Vieram também ao novo patrimônio, empreiteiros, sitiantes, lavradores, colonos, corretores de imóveis, carroceiros, carpinteiros, comerciantes, pessoas de toda a gama de profissões, que poderiam desenvolver numa cidade incipiente. Apareceram aventureiros, jagunços e pistoleiros, mas não se fixavam, logo iam embora. Houve alguns conflitos entre a Sinop e posseiros que moravam nas terras, que afirmavam terem nascido ali e por lei a posse era deles. Para retirar os posseiros, caboclos e grileiros que estavam ocupando as terras que tinha comprado do Governo, a Sinop teve que expulsá-los, para isso usou-se a força bruta dos pistoleiros. A Sinop, tal como as outras Companhias colonizadoras, possuía jagunços e pistoleiros, como o famoso Taquara. Esse fato permite demonstrar que os conflitos eram resolvidos de forma violenta. Muitos corpos de posseiros e grileiros desceram o rio Paranapanema. Era a lei do mais forte. As famílias de pioneiros chegavam ao lote adquirido e se acomodavam debaixo de barracas de lona, sem o mínimo de conforto, até levantar um rancho de pau-a-pique coberto de folhas de palmeira, rebocado de barro, deixando frestas, onde muitas vezes a onça tentava colocar a sua pata felina. Essa cabana servia como abrigo até que se pudesse construir uma casa melhor. Em seguida, faziam a derrubada da mata. Deixavam a derrubada secar pelo espaço de três meses, depois ateavam fogo, que ficava por vários dias ardendo; extinguindo-se, deixava atrás de si a terra coberta de cinzas e restos 280 de troncos calcinados. Abriam-se as covas e plantavam-se as mudas de café. No meio das fileiras plantavam-se feijão, arroz e milho. Viviam da colheita destes cereais até o café começar a produzir, decorridos três a quatro anos. Em 26 de julho de 1951, começava a odisséia de mais um pioneiro norte-paranaense. Alberto Filipak e a esposa iniciavam a viagem de mudança deixando a Colônia Chupador (atual Alvorada), perto da cidade de Irati, sul do Paraná, para fixar residência em Terra Rica, que se situava no extremo noroeste do Paraná. Faziam parte dos muitos pioneiros que ali chegavam de diversos cantos do país à procura de oportunidades, participando do processo de crescimento e construção da cidade. Como todos, acalentavam sonhos e esperanças. Juventude, era a idade certa para começar, pois pioneirismo se faz na mocidade, quando toda a garra e o vigor disponíveis fazem impulsionar a seiva do progresso e do desenvolvimento de uma região. Já decorreram dois dias de viagem. O comboio de caminhões que seguia para o Norte estava na estrada no alto da Serra do Cadeado, perto de Mauá, pequeno núcleo, localizado além, no alto da Serra de Apucarana. Alguns anos antes, pela mesma trilha tinham passado as primeiras caravanas de mulas, levadas pelos tropeiros, rumo ao sertão do norte do Paraná. Depois o caminho foi alargado e terraplenado pelos ingleses da Companhia Norte do Paraná. Mesmo assim havia atoleiros que duravam o ano inteiro, nos trechos onde batia pouco sol, nas sombras da encosta da Serra, onde no alto elevavam-se árvores seculares. Caminhões encalhavam por dias a fio e era preciso retirar a carga para desatolar. Foi exatamente isso que aconteceu com os caminhões que levavam a mudança e as máquinas que Alberto Filipak transferia para Terra Rica. 281 Choveu a tarde toda, uma chuva fina que deixou a estrada lisa como sabão. Foi preciso descarregar os caminhões para desatolar e colocar correntes. Pernoitaram num rancho de pau-a-pique, onde dormiram sentados, encostados um no outro. Tomaram o café em canecas de lata, acompanhado de raiz de mandioca cozida. Felizmente a estrada secou e os caminhões puderam seguir viagem. Mais três dias se seguiram de viagem penosa, seguindo rumo à Apucarana e Maringá por estradas estreitas, lamacentas e escorregadias, quando chovia, ou cobertos de pó vermelho quando o sol queimava. No quarto dia os caminhões tomaram a direção da Colônia Paranavaí, agora, com os leitos da estrada forrados de bancos de areia fina. Era preciso ter o máximo de cuidado ao atravessar tais areiões, pois se o motorista não embalasse o veículo encalhava no meio do trajeto, e só sairia de lá puxado por trator de esteira. Pernoitaram na vila de Paranavaí, que já era um núcleo bem populoso, com uma infra-estrutura comercial organizada, com armazéns, hotéis e farmácias, igreja, estação rodoviária e outras benfeitorias. De manhã iriam enfrentar o último e o mais difícil percurso que demandava à Terra Rica. Não era uma estrada, mas um caminho sinuoso, pelo meio da mata, com fundos sulcos feitos pelos veículos e areiões acumulados pela chuva. A viagem de 60 quilômetros era um desafio à perícia dos motoristas. Após seis difíceis horas de viagem, um dos homens que viajava em cima da carroceria apontou uma grande clareira no meio da mata, e, ao longe, via-se fumaça das chaminés. Era o novo povoado. Uma rua larga e reta de terra, adentrava o lugarejo. Casas sem pintura, ainda rosadas da madeira nova, entre ranchos de palmito. Diversos terrenos limpos, pron282 tos para novas construções, nas datas demarcadas. Casas brotavam da terra ainda com restos da mata, palmitos e troncos queimados, ainda fumegando. Ouvia-se a sinfonia de batidas de martelos. Nascia a cidade. Vinham mineiros, paulistas, nordestinos, nortistas, gaúchos, catarinenses e migrantes do sul do Paraná. Uns vinham comprar terra para plantar café, outros para cultivar algodão e cereais. Outros ainda tencionavam construir serrarias no patrimônio ou no interior da mata, para explorar a madeira de peroba-rosa abundante na região. Ao chegar em Terra Rica, Alberto procurou o engenheiro da Sinop para demarcar as datas que havia comprado anteriormente. No local fez construir um rancho de pau-a-pique para servir de cozinha e um rancho comprido, coberto de lona para acampamento-dormitório dos peões que tinha trazido consigo do sul e outros que devia contratar para o trabalho de montagem da serraria, e derrubada da mata para plantio de café. Ele e a esposa hospedaram-se no Hotel Central. Com o propósito de construir a serraria à beira de um rio, adquiriu 3 alqueires de terra, do cidadão Alberto Martinhão, localizada às margens da Água Guairacá, distante 10 km do patrimônio de Terra Rica, em direção à gleba Adhemar de Barros, que estava sendo demarcada. O picadão que dava acesso ao local era apenas um túnel verde de três metros de largura, com o teto de galhos das altas árvores e cipós entrelaçados a 4 metros acima do chão, encravado no meio da floresta virgem. Era por este caminho que Filipak teria que transportar a sua serraria. Ele a levou, era homem determinado e de grande coragem. Mandou os peões derrubarem a mata e limparem o lugar demarcado para a construção. O cunhado Miguel Demitrow, que veio do sul com a mudança, era carpinteiro 283 e Hilário Boesch, técnico em montagem de máquinas. Ambos comandavam a execução da obra. Construídos os grandes barracões que iam comportar as máquinas da serraria, edificou-se o aglomerado de casas para os operários e suas famílias. Não demorou muito e a caldeira a vapor dava o seu primeiro apito. Estava pronta a serraria e estavam nos seus postos os operários que iriam fazê-la funcionar. Houve festa de inauguração, com discurso e foguetes. Para explorar a madeira de peroba que era abundante na região, só era preciso retirar as toras, já cortadas, do meio das derrubadas, facilitando aos colonos o trabalho na limpeza do terreno para plantação de café. Feita a medição na roça, para posterior acerto, as toras eram estaleiradas na beira da estrada, depois transportadas pelos caminhões para o pátio da serraria. Em seguida, foram construídos e organizados, o escritório da firma e, anexo a este, o armazém, que, inicialmente era dirigido pela Elizabeth (Isabel), esposa de Miguel Demitrow. Depois foi construída a escola, que era freqüentada pelas crianças da serraria e da colônia. Edificou-se também a capela. As mulheres da localidade organizavam rezas e terços todo final da semana. Não se podia esquecer de preparar o campo de futebol, para o lazer e divertimento dos operários. Nos finais de ano era organizada a festa de Ano Novo, com missa, churrasco oferecido pela firma, futebol à tarde e baile à noite, animado pela música de sanfona, viola e pandeiro. Como os operários em sua maioria eram nordestinos, na reunião tocava e dançava-se ao ritmo de samba e pagode. Às vezes, no calor da festa, os ânimos se alteravam e começava a briga. Neste caso era necessário chamar a polícia para acalmá-los. *** 284 Contavam que naquele sertão do Noroeste do Paraná, que era uma terra bruta, havia índio, onça, malária, tifo, febre amarela e leishmaniose, miríades de mosquitos e borboletas voejando à beira de rios e pântanos. Não havia estradas, só picadões no meio da mata fechada que ziguezagueavam entre colossais perobas, que várias pessoas juntas, de mãos dadas não conseguiriam abraçar. Para atender a essa população que se dirigia para a zona rural, era necessário construir estradas de acesso às glebas a aos respectivos lotes. Quando chovia, era quase impossível o trânsito. A estrada que levava à vila de Paranavaí era uma trilha estreita, pelo meio da mata, os areiões acumulados nos leitos pelas águas das chuvas difíceis de atravessar. Em direção à divisa do Estado de São Paulo, mais precisamente à Presidente Wenceslau, onde se situava a sede da Sinop, havia uma estrada provisória, recortada no meio da floresta, que levava ao porto Euclides da Cunha, às margens do rio Paranapanema. Na época das chuvas ficava intransitável, por causa dos atoleiros que se formavam no barro argiloso ( massapé) que grudava nas rodas. O veículo teria que atravessar o rio de 500 metros de largura, em balsa, puxada por cabos de aço. A balsa era feita de três batelões compridos de ferro, de aproximadamente dois metros de altura, unidos por vigas de madeira e assoalhada com pranchas grossas de peroba. Tinha vinte metros de comprimento. O balseiro ligava o motor a óleo cru, que metralhava o silêncio do rio. Por segurança a balsa ia presa por um cabo curto a outro cabo de aço esticado acima do rio. Acontecia, às vezes que as águas do rio subiam vertiginosamente com a chuva torrencial, encrespando com o vento, esticava o cabo de aço que rangia, balançando a balsa até que o cabo de aço quebrava, a água enfurecida puxava a balsa rio a285 baixo, com a correnteza, rodava até encontrar uma corredeira de pedras grandes, espalhadas acima do leito, onde o rio se espraiava. A balsa batia nas pedras e os batelões de ferro entortavam como papelão. Ali ela parava. Diariamente trafegavam por ali caminhões com mudanças que se dirigiam ao Paraná e jardineiras (ônibus), lotadas de passageiros que iam ou voltavam de Terra Rica. Certo dia, o motorista da jardineira encostou na barranca do rio e buzinou para o balseiro trazer a balsa para outro lado da margem. Os passageiros, para sua segurança, desceram e foram a pé até a jangada. Embarcaram, a jardineira, um jeep, um caminhão de mudança e uma charrete, em seguida subiram os passageiros. Fincados firme os mourões do embarcadouro, com os dois cabos de aço se estendendo esticados, acima do rio. O balseiro desamarrou do embarcadouro uma das cordas, o ajudante soltou a outra. Jogaram as cordas no convés, pularam para a balsa já na correnteza. Eram cordas da grossura de um punho, sujas de barro vermelho. Soltaram a balsa que deixou a margem, guiada e empurrada por longo varão de madeira. O motor demorou a pegar, depois roncou... tossiu... e parou novamente. Na segunda tentativa funcionou bem e deslanchou. Depois de duas horas e meia de travessia pelo caudaloso rio, a jangada atracou no outro lado da margem. Os passageiros embarcaram na jardineira para prosseguir a viagem, pela estrada estreita, lamacenta, que se enfiava pelos dois paredões verdes e sombrios da floresta. As rodas de um caminhão tinham aberto duas trilhas e a jardineira seguia por elas, o motorista sabia que se saísse do sulco não iria para frente, o carro deslizaria para a valeta, devia seguir as trilhas batidas. Os viajantes nunca tinham visto tanta mata, só havia floresta por todos os lados, os galhos debruçados na estrada, precisava afastá-los 286 para passar. E de repente caiu uma pancada de chuva, gotas grossas, rápida chuva de verão que encharcou a floresta, a estrada. Naquela terra de matas, uma só chuva não enchia o rio, pois antes a floresta bebia quase toda a água que caia do céu, as árvores cobertas de parasitas eram enormes esponjas sugando a chuva. A mata toda sombreada, estava sempre úmida e bastava uma chuva para fazer ressurgir os atoleiros nas estradas. Correntezas de água desciam morro abaixo invadindo as valas cavadas pela erosão à margem da estrada. Esperaram durante uma hora para que a água escorresse para as valetas, e continuaram viajando pela estrada com atoleiros ou lisa como sabão. Adiante, a jardineira escorregou na lama, indo parar no barranco. Os passageiros desceram e olhavam desanimados. Um homem ajudou a cortar capim e jogar no sulco fundo feito pelas rodas do ônibus ao patinar no barro. O motorista raspou com enxadão a argila vermelha, escorregadia, defronte dos pneus, para conseguir colocar as correntes. Feito isso, o chofer sentou-se ao volante e gritou: - É preciso empurrar o ônibus porque só a força do motor não vai resolver. Os passageiros desceram do barranco onde tinhamse empoleirado, agarraram na traseira e nas laterais do ônibus. O motorista acelerava o motor, os homens empurravam, as rodas patinavam jogando barro para trás, mas o veículo tornou a atolar. Novamente o motorista acelerou com toda força do motor, os homens empurrando juntos, fazendo careta e amassando barro até as canelas, até que a jardineira deu um solavanco para a frente quando as rodas pegaram terra firme, o ônibus subiu em ziguezague, as rodas espirando barro nos que empurravam atrás. Finalmente desencalhou. Os passageiros já felizes subiram na jardineira e prosseguiram viagem rumo à Terra Rica. 287 Em 1952, surgiram as primeiras casas comerciais, farmácia, hotel e restaurante, tudo muito precário. A luz elétrica era fornecida por um pequeno gerador elétrico, da Sinop, que funcionava das dezoito às vinte e três horas. Mais tarde foi construída a Usina Elétrica Padre Eduardo, pela Sometra. Como a cidade de Terra Rica foi localizada num espigão, não havia riachos, córregos, ou fontes de água. Esta era fornecida pela Sinop em tambores de 200 litros e, quando se esgotava, as pessoas munidas de tambores iam de carroça, ou Jeep Wyllis com tração nas quatro rodas, pegar água nos rios mais próximos. Os tambores com água eram colocados em jiraus, feitos de paus roliços, um metro acima do chão, próximo às moradias. A roupa era lavada nos rios. Mais tarde foram perfurados dois poços artesianos, que passaram a abastecer a cidade de água. De início, havia só alguns Jeep Wyllis, Toyota e caminhões de transporte de carga, automóveis não existiam, pois não havia estradas para eles, atolariam nos areiões que se formavam com as chuvas. A maioria das pessoas andava a cavalo e muitas charretes (veículo de duas rodas puxado por um cavalo) faziam o transporte de mantimentos e passageiros pelo patrimônio, pelas chácaras e pelos sítios. A odisséia começava quando chegava a época das chuvas. O patrimônio de Terra Rica ficava isolado por terra. Só havia transporte utilizando-se os aviões da Sinop. Com o prolongamento das chuvas, as mercadorias iam se esgotando e muitas vezes chegavam a faltar. Era uma época de grandes dificuldades e sacrifícios, que foram compensados, para aqueles que enfrentaram os obstáculos e os venceram. O comércio expandiu-se, abriram-se diversas casas comerciais, destacando-se a “Casa Alberto”, de propriedade de Alberto Filipak (comprou o fundo de estoque da bodega de Chico Rico). O novo armazém foi inaugurado em 1953. 288 Na “Casa Alberto” sempre havia a mercadoria que o sitiante e o peão precisasse. Vendia de tudo, desde açúcar, sal, farinha, feijão, banha de porco e óleo, carne seca, machados, facões, cunhas e foices, violão, cavaquinho e sanfona, calças e calções de brim, camisas de algodão xadrez, botinas de couro cru, alpercatas de sisal, querosene, lampiões e lamparinas. Os peões compravam aguardente da marca “Oncinha” ou „Pirassununga”, que levavam para os acampamentos nas derrubadas pelo sertão adentro. Bebiam e tocavam violão nas silenciosas noites dos ranchos. Bebida e música tornavam menos árduas as suas vidas solitárias. As vindas dos sitiantes ao patrimônio limitavam-se aos sábados ou segunda-feira. Alguns quando podiam, vinham assistir à missa de domingo, na pequena capela de Santo Antônio de Pádua, padroeiro da cidade. Com o crescimento do patrimônio foi necessário construir uma escola. Adaptaram para isso uma casa residencial e professoras voluntárias começaram a lecionar. Os filhos dos pioneiros já podiam estudar. As florestas da região eram abundantes em árvores de madeira nobre. Construíram-se diversas serrarias com a finalidade de aproveitamento da infinidade de troncos de árvores abatidas na mata, ainda com casca, serradas em toros de diversos comprimentos, esparramadas pelas derrubadas. Estaleirava-se os toros à beira de estrada, para dar espaço ao plantio de café. Além da indústria de madeira de Alberto Filipak na Água Guairacá, foi construída a de Joaquim Brizo, de João Barionuevo, de Antônio Lanziani, de Simão Lebedenko, de Irmãos Solleti. Como também as cerâmicas para fabricação de telhas e tijolos, da Sinop e de João Snat, próximas ao rio Paranapanema. Localizado no Norte Novíssimo, o hoje município de Terra Rica possui a área de 676 quilômetros quadrados 289 e 1.688 pequenas propriedades rurais. A altitude é de 452 metros acima do nível do mar. O solo arenoso, originado da decomposição do arenito caiuá e de rocha eruptiva, é muito fértil mas extremamente vulnerável à erosão. Em 10 de outubro de 1947, foi criado o município de Mandaguarí, a Colônia Paranavaí era um dos quatro distritos. No dia 5 de agosto de 1950, Terra Rica foi elevada à categoria de Distrito Administrativo de Paranavaí, desmembrando-se do município de Mandaguarí, ao qual pertencia até aquela data. Em 26 de novembro de 1954, pela Lei estadual n.º 253, Terra Rica foi elevada a município. *** 290 No início de Terra Rica, quando ainda não havia escola no patrimônio, para aquelas crianças cujos pais tinham posses o recurso era estudar em outros centros maiores, como Presidente Wenceslau ou Presidente Prudente no Estado de São Paulo, ou em Curitiba. Nesse caso os estudantes ficavam em internatos, geralmente dirigidos por religiosos, só visitando a família nas férias. Foi o que ocorreu com Ricardo e Mari Carmem, os dois filhos de Alberto Filipak, que, em 1952, foram estudar em Presidente Wenceslau, no Estado de São Paulo. Foi alugada uma casa para residência das crianças e Olga, funcionária antiga, foi fazer-lhes companhia. Estudaram naquela cidade durante um ano, voltando depois para Terra Rica, onde já foi iniciada uma escola, com professoras voluntárias lecionando. Nessa época Monika esperava mais um filho. Tendo chegado o tempo do nascimento da criança, e como em Terra Rica não havia recursos médicos, ela foi para Maternidade em Presidente Prudente. Em 22 de julho de 1952, às 9 h30 m da manhã, nasceu a sua filha caçula, Rosi Celeste. Dias após, recebendo alta do hospital, Monika precisava voltar para casa em Terra Rica. A estrada que levava de Presidente Prudente a Terra Rica estava intransitável, devido à época de chuvas. Dois dias depois, Alberto, veio de Jeep Willys buscar a mãe e a filha recém-nascida. Como a sua condução não oferecia nenhum conforto às passageiras e a distância era longa, não havendo outra alternativa ele contratou um avião Cessna, monomotor para transportá-las. O bebê, Rosi Celeste, veio para casa como só os distintos pioneiros chegam, de avião. A aeronave aterrizou na Avenida São Paulo, central, que servia de pista de pouso e decolagem, e a mais nova cidadã terrariquense com a 291 mãe, desembarcaram do avião, na porta da sua residência. Foram recepcionados pelos dois irmãos, em férias. A infância feliz da menina Rosi foi cheia de agitação e traquinagens. A sua personalidade forte e inconfundível e a fértil imaginação criavam situações incomuns. A sua pagem Ilza não conseguia segurar a vivacidade da menina que, junto com seu primo Adão (Didio) e as amiguinhas, aprontava mil travessuras. Rosi adorava o pai, ele fazia todas as vontades da filha caçula. Monika passava os dias inteiros atolada no trabalho, atendendo o armazém, o escritório e a serraria. Ocupada com os negócios, não conseguia dar maior atenção à pequena filha. Depois de analisada a delicada situação, foi resolvido pelos pais, que Rosi, de seis anos de idade, ficaria melhor atendida pela avó Anna e pelos irmãos Ricardo e Mari Carmen, que moravam em Curitiba. Em 24 de junho de 1959 ela foi para junto deles. *** Anastácia Greskow (Nascia) mudou-se com a família do tio João para o sobrado novo em Irati em 1949. Residiu com eles até 1953. Por ocasião das festas de Natal fui visitar a tia Maria, e no meu retorno à Terra Rica, Anastácia, em férias, viajou comigo para conhecer a cidade. Gostou e resolveu ficar. Anastácia era uma jovem bonita, de porte altivo, de maneiras refinadas, educada. Ela sempre foi uma verdadeira lady. Seu modo de ser chamou atenção de Mário Martinhão, paulista, nascido em Novo Horizonte, Estado de São Paulo. O jovem era militar, cadete da Aeronáutica, veio com o pai a Terra Rica, para ajudá-lo na organização da Fazenda, adquirida da Sinop. Também dedicava-se à corretagem de terras da Companhia. 292 Moço de bom caráter, simpático e atencioso, Mário logo conquistou Anastácia. Do primeiro encontro surgiu um sentimento espontâneo e caloroso entre os dois, que logo se transformou em amor. Em seguida veio o pedido de casamento. O enlace matrimonial realizou-se no dia 28 de outubro de 1954, na igreja de São Sebastião em Paranavaí. Embarcaram, em seguida, para São Paulo e praias de Santos em viagem de núpcias. Na volta fixaram residência em Terra Rica. Mário continuou o seu trabalho de corretor de terras. Ali nasceram seus três filhos: Zuleika, Sérgio e Marcos. Mais tarde transferiram a residência estabelecendose na Água Guairacá, perto da serraria, com armazém de secos e molhados, com finalidade de abastecer os operários e a comunidade local, que aumentava. Residiram ali por doze anos, trabalhando no comércio varejista. Tempos depois mudaram-se para Maringá onde residem atualmente. Ambos esforçados e plenamente devotados ao trabalho, conseguiram vencer na vida, garantindo a educação e formação dos filhos em cursos superiores, além de assegurar para si uma vida tranqüila. À Anastácia (Nascia) e Mário, dedico uma afeição fraternal e uma profunda amizade. Em 1954, veio trabalhar como balconista, na „Casa Alberto”, a jovem Maria Yolanda, de 15 anos. Nascida em Brejo Santo, Ceará, filha de Luzia Nunes e Manoel Alves de Souza. Seu pai, como milhares de nordestinos, veio ao Paraná à procura de trabalho e melhores condições de vida para sua família. Contratou com Alberto o cultivo de 10.000 mil pés de café, com direito a moradia, no sítio de 10 alqueires, próximo à Terra Rica. Como as terras a serem cultivadas situavam-se num espigão não havia córrego de água nas proximidades. Fez-se necessário perfurar um poço. Para localizar o lençol 293 de água subterrâneo cortei uma forquilha de galho de pessegueiro, segurei cada ponta da forquilha em uma das mãos e caminhei pelo terreno à procura do veio, que, quando encontrado, surpreendemente, a energia conjugada vergou o galho indicando o ponto exato; ali foi cavado o poço que abastece de água a propriedade. Maria Yolanda mostrou-se amiga fiel e dedicada a seus empregadores. Honesta e responsável, permaneceu durante 20 anos com a família. Casou-se com Jaime Beck, do qual tem três filhos. Depois de casada residiu na casa anexa à loja, onde trabalhava como gerente. Em 1966, mudou-se com o casal Monika e Alberto para Paranavaí. Continuou trabalhando como gerente, até 1972, na loja “Casa das Noivas”, de propriedade de Monika. Atualmente dirige a sua própria, seleta, loja de modas em Paranavaí. No início de 1954, Alberto convidou seu irmão Vicente e a esposa Eugenia, para virem morar em Terra Rica. Propôs-lhes sociedade no armazém “Casa Alberto”, que prosperava, estava precisando de mais gente para trabalhar. Alberto comprava madeira em toros, serrava, transportava por caminhões até o rio Paranapanema e embarcava em chatas (barcaça larga e pouco funda para transporte de carga pesada), que desciam pelo rio até a sua foz no rio Paraná, subiam então até o terminal da Estrada de Ferro Sorocabana em Presidente Epitácio. A carga era transferida para vagões, e a madeira serrada seguia de trem para São Paulo, onde era comercializada pelos corretores. O alto preço conseguido na venda direta da madeira fez com que os negócios de Alberto e Monika prosperassem. Somando a isso a produção da lavoura de café da sua propriedade e os lucros com o armazém que se expandia, fato que oferecia condições favoráveis para estabelecimento de uma nova filial da “Casa Alberto” no patrimônio A- 294 dhemar de Barros. A filial ficou sob a administração de Paulo Panka, seu cunhado. Em 1960, Alberto e Vicente abriram a sociedade do armazém. Alberto construiu no centro, na avenida São Paulo, uma sede nova para a “Casa Alberto”, com amplas e modernas instalações. Para ajudar no atendimento à clientela, que já era numerosa, convidou suas duas primas, as jovens Filomena e Irene Kosinski, que passaram a trabalhar e morar com a família. Construiu também próximo à loja, a sua nova residência, maior e mais confortável. Ao lado, foi construído um dormitório, onde se acomodavam as funcionárias da loja e as serviçais da casa. A alimentação para todos era servido no refeitório da casa. Olga Diatchuk, a moça que acompanhou a família na mudança para Terra Rica, supervisionava o trabalho na loja e na residência. Para abastecer as lojas, Monika viajava a São Paulo, que era o centro industrial e fornecedor de mercadorias por atacado. Na azáfama das compras de armarinho e miudezas, na tradicional rua Vinte Cinco de Março, entre tantas opções e preços que encontrou, ela decidiu levar também brinquedos para distribuir entre as crianças carentes de Terra Rica. Faria um belo Natal para os pequenos. Assim pensou e assim fez. Comprou cadernos, réguas, estojos de lápis de cor, bolas de borracha de diversos tamanhos, bonecas das mais variadas, caminhãozinhos de madeira, cavalinhos de pau, cavaquinhos, pandeiros, gaitinhas de boca, bichinhos de pelúcia, jogos de panelinhas e de louça, afinal, tudo que uma criança gostaria de ganhar. Assim que a mercadoria chegou em Terra Rica, os brinquedos foram embalados, juntou-se ainda uma garrafa de refrigerante e um pacote de bolachas ou bombons. 295 O pinheirinho que crescia no jardim da residência, foi enfeitado com luzes coloridas. No Dia do Natal, já pelas seis horas da manhã podia se contar grupos de crianças esperando em frente da loja “Casa Alberto”. Chegavam mais crianças acompanhadas das famílias. Às 10 horas, ao som de música de Natal (em toca-discos), saiu de dentro da loja o Papai Noel (Alberto), vestido a caráter, com longa barba branca e barrete vermelho na cabeça, carregando o saco de brinquedos às costas. Organizou-se a fila das crianças, que nessa altura já estavam alvoroçadas. Papai Noel conversava com elas, dava conselhos e entregava os presentes. As balconistas ajudavam na tarefa de repor os presentes para o velhinho distribuir. Assim foram presenteadas aproximadamente quinhentas crianças no Natal de 1956, depois durante dez anos; todo ano aumentavam mais, até que no ano de 1966, vieram mil crianças de toda redondeza, até do outro lado do rio Paranapanema. Era uma festa alegre, de crianças felizes, que compensava o investimento. Com a fase de prosperidade da região impulsionada pelo bom preço da madeira, do café e dos cereais ali produzidos, e graças à conjugação contínua dos esforços do casal, Alberto obteve resultados positivos nos negócios. Contava sempre com a eficaz colaboração da esposa, que se ocupava da contabilidade e do setor financeiro da empresa. Quando Alberto assumiu a prefeitura de Terra Rica, não podendo dar atendimento a negócios particulares, uma ainda maior responsabilidade recaiu sobre os ombros da sua esposa Monika. Na ausência do marido ela atendia todos os compromissos da empresa, distinguindo-se por um extraordinário tino comercial e habilidade administrativa. Na serraria, ela supervisionava a compra e entrada de toros de madeira bruta, a produção, transporte, embarque e venda de madeira 296 serrada e dos pagamentos a todos empregados, inclusive das fazendas de gado e da plantação de café. Alberto Filipak, logo que se fixou em Terra Rica, ingressou na política local. Sociável, popular, conciliador, benquisto pelo povo, candidatou-se a vereador em 1955, foi eleito como o mais votado, exerceu o cargo por mais três mandatos sucessivos. Em 4 de dezembro de 1955, tomou posse o primeiro prefeito Municipal, Sr. Francisco Ramires Galioti, sucedendo-lhe por eleição, em 1959, o Dr. James Patrick Clark. Com o falecimento deste, em 11 de novembro de 1961, assumiu o cargo de prefeito Municipal, o vereador Alberto Filipak, que exerceu o mandato até 4 de dezembro de 1963. No cargo mostrou ser um administrador dinâmico e empreendedor. O município prosperou durante seu mandato, governou com sucesso durante dois anos. Para sua sucessão na eleição de 1963, Alberto lançou como candidato, o cidadão Armando Moron. Era um homem bom, mas fraco como candidato, sem expressão política. Pela oposição concorria à eleição o jogador de futebol, Rui Gimenes. Popular e ambicioso queria vencer. Para conseguir o seu objetivo não escolhia armas. Iniciaram-se os ataques à atuação política e administrativa de Alberto, e, mais nefasto ainda, à sua vida particular e à de sua família. Foi uma batalha inglória. A estrela tutelar ascendente de Alberto Filipak começou a declinar. Os inimigos políticos cavavam um poço fundo sob seus pés. Alberto desgostoso, afastou-se da política. Tratou de liquidar seus negócios e pensou mudar de cidade. No final do ano de 1962, com a escassez de peroba no município e na região, matéria prima que abastecia as serrarias, vendeu as máquinas e caldeiras, para uma firma madeireira, que as transferiu para Mato Grosso, região que acenava como a nova fronteira de colonização. 297 Em 1958, Alberto comprou a “Fazenda Miss Brasil”, de 200 alqueires paulistas, no município de Terra Rica, formou o pasto e começou a criar gado Nelore. Em 1961, comprou a “Fazenda Alvorada” de 150 alqueires, no município de Paranavaí, ia dedicar-se exclusivamente à pecuária. Resolveu mudar-se com a família para Paranavaí, cidade a 60 quilômetros de distância. Deixou a loja de Terra Rica para seu filho Ricardo, já casado. Moramos em Terra Rica durante 15 anos, de 1951 a 1966. Foram anos profícuos no nosso trabalho e nos negócios. Deram ensejo à prosperidade de quem chegou ao sertão do Noroeste do Paraná, motivado pelo espírito de perseverança no trabalho, almejando o progresso. Terra Rica, assim como toda a região Norte e Noroeste, sofreu com as fortes geadas, que dizimaram os cafezais e reduziram a população. Muitos sitiantes vendo perdidas as suas lavouras migraram para novas frentes de colonização que se abriam no Mato Grosso e Rondônia. Atualmente Terra Rica é uma cidade próspera, com ruas largas, iluminadas, e avenidas lindamente arborizadas, com canteiros de palmeiras entremeados de primaveras (buganvílias), que quando florescem dão uma visão encantadora à paisagem. Esta cidade é um exemplo para outras comunidades, de que se pode vencer as dificuldades e progredir. *** 298 Monika e Alberto tiveram três filhos: Ricardo, Mari Carmem e Rosi Celeste. Ricardo, o primogênito, estava com 14 anos quando foi estudar em Curitiba, no início do ano de 1955. Ficou residindo e estudando no Internato Paranaense de Irmãos Maristas. Concluiu o curso ginasial nesse educandário. Em 1959, passou a morar com as irmãs Mari Carmem e Rosi Celeste, e a avó Anna, na residência da rua Nilo Cairo n.° 181, com a finalidade de continuar os estudos. Matriculou-se no Colégio Novo Ateneu, diplomandose como Técnico em Contabilidade, em 1961. Nessa época, conheceu e encantou-se pela estudante Laís Míriam Araújo, linda jovem de tez morena e cabelo escuro descendo em longa trança pelo pescoço. Moradora na rua Francisco Torres, portanto, vizinha da sua residência, viam-se todos os dias e toda hora. Surgiu entre eles uma grande afinidade, transformando-se depois numa forte paixão. Já não podiam viver um sem o outro. Um amor intenso os unia. Resolveram se casar, apesar da oposição dos pais, pois ainda não tinham concluído seus estudos. Em 23 de maio de 1964, realizou-se o enlace matrimonial, na igreja Nossa Senhora de Guadalupe em Curitiba. Os noivos seguiram em viagem de núpcias para as praias do litoral de São Paulo. Na volta, fixaram residência em Terra Rica. Inicialmente Ricardo foi trabalhar com o pai na serraria localizada na Água Guairacá. Em 1966, assumiu a loja e armazém “Casa Alberto”, comércio que administrou com sucesso durante oito anos. Nessa época, nasceram os seus três filhos, Cristina Ângela, em 3 de abril de 1966, Ricardo Marcelus, em 2 de dezembro de 1967, e Luciana de Fátima, em 9 de setembro de 1971. Ricardo estava feliz, pois adorava os filhos. 299 Em fevereiro de 1974, transferiram a residência para Paranavaí, onde Ricardo assumiu a loja “Casa das Noivas”, anteriormente de propriedade da sua mãe. Ao mesmo tempo dirigia a loja de Terra Rica. Os seus negócios prosperam, pois o Ricardo tinha um tino comercial fora do comum. Adquiriu a fazenda “Três Pinheiros” de 244 hectares de terras em Iporã, formou pasto e criava gado Nelore. Paralelo ao sucesso dos negócios, a desconfiança infiltrou-se entre eles tirando a harmonia do seu lar. O casal já não se entendia, e o casamento deles estava soçobrando. Acabou o grande amor que os uniu. Em 1983, separaramse definitivamente. Laís com os filhos mudou-se para Curitiba. Ricardo, em outubro de 1986, deu outra direção à sua vida, transferindo-se para Ji-Paraná, em Rondônia. Nessa época Rondônia acenava como uma nova fronteira de colonização. O acesso fácil à terra fértil e barata atrai milhares de famílias de colonos do Sul e Nordeste do país. À margem da estrada BR364 surgem cidades, como Ji-Paraná, Vilhena, Ariquemes, Ouro Preto. Ricardo viu ali uma bela oportunidade de refazer a sua vida. Incansável, com muita luta e sacrifício conseguiu equilibrar-se financeiramente. Aproveitando a sua vocação para o comércio, instalou uma boa loja comercial. O comércio se expandiu e ele abriu mais quatro lojas. Nos seus planos constava uma fazenda de criação de gado. Na ocasião oportuna comprou 200 alqueires de terra em mata no Jaru, e começou a formar pasto. O objetivo de possuir uma fazenda de gado o impulsionava, mas o investimento era dispendioso e o trabalho exaustivo. Surgiram-lhe problemas de saúde, causados pelo estresse, somado à chaga emocional motivada pelas desavenças e a separação dos filhos que ele tanto amava. O coração foi afetado e, apesar do tratamento médico, Ricardo 300 faleceu de ataque cardíaco, aos 54 anos de idade, em 17 de janeiro de 1995; foi sepultado em Ji-Paraná, Rondônia. Com o falecimento do meu filho, uma parte de mim morreu com ele, a dor e a saudade que sinto são indescritíveis. Os filhos herdaram a parte que lhes pertencia de direito do patrimônio que ele havia conquistado. Cristina Ângela, a primeira filha de Ricardo e Lais, continuou os estudos em Curitiba. Ingressou na Universidade Federal do Paraná, formou-se em Informática em 1986. É funcionária pública dedicada, trabalha na Celepar, órgão do Governo Estadual. Cristina adora viajar e, por coincidência, ocupa um cargo no seu trabalho que lhe propicia a oportunidade de conhecer muitos países. Casou-se com Renato Ferraz Machado, nascido em Campo Mourão PR. Renato formou-se em Informática pela “Facet” e em Administração, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em 2003. O casal mora em Curitiba. No dia 16 de janeiro de 2004, o seu lar foi agraciado por Deus com o nascimento da filha Mariana, que veio completar a felicidade dos pais. Ricardo Marcelus, o segundo filho de Ricardo e Lais, ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Paraná, diplomando-se em 1993, com especialização em Cirurgia Geral e posteriormente em Cirurgia Pediátrica. É um médico dedicado à profissão e a seus pequenos pacientes. Casado com Carla Cansian Baldissarelli, formada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Residem atualmente em Chapecó S.C. O casal foi enriquecido com o nascimento do seu primogênito, Vitor Henrique, no dia 6 de dezembro de 2002. Luciana de Fátima, mudou-se para Curitiba com a mãe Lais Miriam. Continuou os estudos no Colégio Divina Providência. Aprovada no exame Vestibular para o curso de Odontologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 301 formou-se em 1995. Fez especialização em implantes, na Unicamp, em Campinas. Luciana é de natureza extrovertida, sociável e alegre. Batalhadora, luta para conseguir o que quer da vida. Mari Carmem, a segunda filha de Alberto e Monika, estava com 12 anos quando no início do ano de 1955, juntamente com seu irmão Ricardo, foi estudar em Curitiba. Ela ficou no Internato do Colégio N.S. de Lourdes, no Cajuru, de irmãs francesas, durante cinco anos, época em que completou o curso ginasial. É digno de menção o comportamento dócil da Mari no Internato. Ela obedecia prontamente a todas as determinações, jamais se rebelava contra qualquer ordem dada pelas freiras. Concluiu o Curso Técnico de Contabilidade, no Colégio São José. Em 1965, diplomou-se em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Seus pais alugaram uma casa em Curitiba, para servir de residência aos filhos, tendo em vista que o Ricardo não quis mais ficar no internato. A avó Anna, mãe de Alberto, fazia-lhes companhia. Para exercer o trabalho caseiro veio a antiga serviçal Olga. Nessa época, Mari, conheceu o estudante de Veterinária Ivan Nunes Torres, namoraram durante seis anos. Casaram na igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, em Curitiba. Ivan, é filho de Moacir Nunes Torres e Emília Maluf. Nasceu em Joaquim Távora, PR. Formou-se em 1964, em Medicina Veterinária pela Universidade Federal do Paraná.. Ivan é um homem de coração generoso, conciliador e prestativo. Sempre está a ajudar a quem precisa. Atualmente residem na cidade de Cascavel. Adquiriram o Hotel Grand Prix, iniciando-se no ramo hoteleiro. Mari Carmem é de natureza meiga, sensível, capaz de condoer-se do sofrimento do próximo, é freqüentemente solicitada por pessoas, para confidências e à procura de 302 ajuda. Aplica a psicologia inata na solução dos mais diferentes problemas. A vida do casal é dedicada ao trabalho e à família. Sempre se fez presente nos movimentos sociais e filantrópicos da comunidade católica de Cascavel. São paroquianos atuantes no serviço da igreja. Ambos são ministros da Eucaristia. Palestrantes em Seminários religiosos, organizados pelos seguidores do Frei Inácio Larañaga. Mari Carmen e Ivan tiveram quatro filhos. Grace, a primeira filha, nasceu em Curitiba. Estudou em Paranavaí e Cascavel onde morou com seus pais. Foi aprovada na Faculdade de Educação Musical do Paraná em Curitiba, onde se formou como educadora em música no ano 1987. Inteligente e esforçada, trabalha como autônoma, exercendo com competência a profissão de professora de música e atuando em espetáculos musicais (shows), fazendo parte do “Grupo Fato” no qual é tecladista e compositora. Casou-se com Ulisses Quadros de Moraes (Galetto), formado em História pela UFPR e seu parceiro no trabalho artístico. Mariane, a segunda filha, também nasceu em Curitiba. De temperamento sensível como a mãe, seguiu sua vocação para a música. Fez o vestibular e foi aprovada na Faculdade de Educação Musical do Paraná, onde se formou, especializando-se em Didática do Ensino Superior, na área da música. É funcionária da Fundação Cultural de Curitiba. Casou-se com Miguel Ângelo Porfirio, empresário da indústria do mobiliário. O casal tem um filho, Gabriel, nascido a 13 de julho de 2002. Karin, a terceira filha, nasceu em Curitiba. É formada pela Pontifícia Universidade Católica de Curitiba em Fisioterapia. Exerce a profissão no seu consultório de Fisioterapia Estética. Como profissional é competente e dedicada. Como pessoa é prestativa, meiga e bondosa. Casou-se com Fernando Camargo Umbría, formado em Engenharia 303 Civil, em 1994, pela Universidade Federal do Paraná, com mestrado em Engenharia Hidráulica e curso de especialização em gestão de Energia. Rodrigo, o quarto filho, nasceu em Paranavaí, PR. É formado em Ciências Biológicas, pela Universidade Federal do Paraná. Trabalha na preservação ambiental e proteção dos mananciais que abastecem de água a cidade de Curitiba e região metropolitana. Rosi Celeste, a filha caçula de Alberto e Monika, foi morar em Curitiba na companhia dos irmãos Ricardo e Mari Carmem e a avó Anna em 1959. Estudou no Colégio Nossa Senhora de Lourdes, no Cajuru, de freiras francesas. Formou-se em Pedagogia em 1973, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Paranavaí, cidade onde morava. Rosi Celeste casou-se com Sérgio Rubens Mansano, em 19 de dezembro de 1971. Sérgio é filho de Brígido Mansano e de Maria Aparecida Pereira, nasceu em Tupã, Estado de São Paulo. É formado em Agronomia pela Universidade Federal do Paraná, em Curitiba. O casal residiu em Paranavaí até 1977, onde Sérgio dedicava-se à profissão de agrônomo e à cafeicultura nas terras de sua propriedade. Quando ocorreu a grande geada em 1975 e 1976, que arrasou os cafezais da região, Sérgio vendeu as terras que possuía e mudou-se para Araguari em Minas Gerais. Seguiu o exemplo de muitos cafeicultores do Paraná, que vendo destruídas suas lavouras pelas geadas, foram tentar a sorte nos cerrados do Triângulo Mineiro, onde o clima é ameno, não sujeito a geadas. Sérgio adquiriu terras para cultivo de café no cerrado mineiro. Começou criando viveiros de mudas de café. Corrigiu e adubou o solo, plantou e a terra produziu café e cereais com fartura. Com muito trabalho e sacrifício conseguiu formar uma fazenda de café, modelo. Atualmente, 304 junto com os filhos, dedica-se à cultura dessa rubiácea, de soja e de milho. Homem dinâmico, perseverante, progressista, é um estudioso da área agrícola, das técnicas de produção e melhoria da qualidade do café. O mérito do Engenheiro Agrônomo e Produtor Rural, Sérgio Rubens Mansano, foi reconhecido pela Associação dos Cafeicultores de Araguari MG, por ocasião da Feni-Café 2002, premiado que foi com a Comenda Raul Belém, que tem por objetivo agraciar aquele que mais se destaca no segmento da produção com qualidade da cafeicultura. Rosi, diligente e zelosa, entrega-se à administração do lar, o cuidado aos filhos e ao neto Pedro Ruan. Por aproximadamente 20 anos, ela contribuiu voluntariamente para a causa da educação e cuidado dos menores órfãos e abandonados, internos no Orfanato e Educandário Eunice Waewer e na comunidade terapêutica Pró-Vida de assistência e recuperação dos dependentes de drogas e álcool. Num trabalho voluntário, muito do seu tempo é dispensado a ajudar as pessoas pobres e necessitadas. Seu coração generoso distribui a dádiva de amor ao próximo, visitando doentes, levando-lhes a Hóstia Sagrada, pois que é ministra da Eucaristia na paróquia local. Participa ativamente das reuniões da igreja e dirige a Oficina de Oração. O casal Rosi Celeste e Sérgio, tem três filhos: Cândice, Alexandre e Sérgio Rubens Filho. Cândice nasceu em Paranavaí, PR. Formada em Ciências Biológicas pela Unesp, extensão de Botucatu, com pós-graduação pela Unicamp. Atua na área do Meio Ambiente. Lutadora pelos seus ideais como seu primo Rodrigo, é defensora incansável na defesa do meio ambiente. Casada com o Engenheiro Agrônomo Marco Antônio Baldoni, eles têm um filho, Pedro Ruan, nascido em 17 de maio de 2000. 305 Alexandre nasceu em Paranavaí Pr. Técnico Agrícola, formado pela Fundação Shunji Nishimura de Tecnologia de Pompéia, Estado de São Paulo. Casado com a jornalista Patrícia Karine Martins, jovem da sociedade local. Ele dedica-se ao cultivo da soja e do milho, nas glebas da família. Trabalhador incansável, herdou do avô Pedro a persistência na labuta diária. Digna de menção é a estrofe impressa no seu convite de formatura na Fundação em Pompéia, como Técnico em Agricultura, que alerta para o seguinte: “Herdarás o solo sagrado e a fertilidade será transmitida, de geração em geração. Protegerás teus campos contra erosão e tuas florestas contra a desolação. Impedirás que tuas fontes sequem e teus campos sejam devastados, para que teus descendentes tenham abundância para sempre.” (03/ 12/ 1994). Sérgio Rubens Filho nasceu em Araguari, Minas Gerais. Técnico Agrícola, formado pela Fundação Shunji Nishimura de Tecnologia de Pompéia, SP. Fez estágio de um ano nos Estados Unidos, com especialização direcionada para a criação de gado de corte e suínos. É casado com Carolina, filha de tradicional família local. *** 306 Alberto e Monika transferiram a residência para Paranavaí em 11 de março de 1966. Foi construída uma bela casa, ampla e confortável, no Jardim Progresso. Cercada de jardins com canteiros de delicadas rosas, onde também vicejavam magníficas primaveras (buganvílias), formando, à entrada, um dossel de ramos e pencas de flores violáceas. Teve tudo para ser um lar feliz; mas não o foi, pois a natureza humana é imprevisível e nunca sabemos que armadilha o destino nos reserva.. Eram quatro pessoas que ali habitavam. Além do casal, mais a filha Rosi Celeste de 14 anos e a serviçal Edite. O espírito de pioneirismo, a ânsia de possuir novas terras e o desejo de abrir novos caminhos, levaram Alberto a procurar aventura no Mato Grosso, a nova fronteira de colonização. O seu vibrante ritmo de atividades, inclusive como corretor de terras, acrescidas das intrigas de inimigos ocultos, foram minando o casamento e distanciando o casal, a ponto de não ser mais possível a vida em comum. Fatos e acontecimentos imprevistos atropelaram o rompimento inevitável da união conjugal. Amigavelmente partilharam os bens que possuíam, ficando a metade para cada um. Foi um casamento harmonioso, com equilíbrio de direitos, uma parceria leal que permaneceu durante 32 anos. Foi feliz enquanto durou. Alberto fixou residência em Paranavaí. Uniu-se maritalmente a Celestina Garcia Fervença, com quem teve um filho, Alberto Filipak Júnior. Faleceu dia 3 de dezembro de 1988, de síncope cardíaca, aos 69 anos. Foi sepultado em Paranavaí. Perdeu-se um grande homem, um destemido pioneiro norte-paranaense. Durante os seis anos seguintes, administrei a minha loja “Casa das Noivas”, em Paranavaí. Em 1974 transferi a residência para Curitiba, deixando a loja para meu filho Ricardo. 307 FAZENDA SÃO BENEDITO Soube por intermédio de amigos e corretores de terra que, na região do município de Aripuanã, norte de Mato Grosso, região da Amazônia Legal, havia terras excelentes para cultura e formação de pastagens para criação de gado. Fiquei entusiasmada, e como todo sonhador, já imaginei a minha fazenda formada, cheia de gado branco da raça Nelore, pastando tranqüilamente nos luxuriantes campos verdes. Entrei em contato com o corretor Francisco Sampaio (Chico) que era dono de uma aeronave Cessna, monomotor, de 5 lugares, avião que ele mesmo pilotava. Combinamos uma viagem para ver as terras à venda no Aripuanâ. Ao clarear do dia 20 de junho de 1976, partimos de Paranavaí rumo à Cuiabá, capital de Mato Grosso. Fui eu, meu filho Ricardo, Chico e como co-piloto Júlio Ischikawa. A viagem de sete horas transcorreu sem problemas, tendo feito apenas uma escala em Campo Grande para reabastecimento do avião. Chegamos em Cuiabá à tarde, hospedando-nos no hotel Santa Rosa, no centro da cidade. No dia seguinte, levantamo-nos às 5 horas da manhã. Após o café rumamos para o aeroporto de Cuiabá, onde nos esperava o piloto Chico Sampaio, que já tinha revisado e abastecido o avião, feito e apresentado o plano de vôo ao D.A.C. com o roteiro Cuiabá-Vilhena-Rio Roosevelt e a duração da viagem de 6 horas, entre a ida e volta. Partimos de Cuiabá às 6 horas, o tempo estava bom e o sol da manhã já brilhava no céu azul claríssimo. De início e até Vilhena, voamos sobre campos e cerrados, margeando a estrada asfaltada BR364, que demandava a Porto Velho, capital de Rondônia. Descemos em Vilhena onde o Chico reabasteceu o avião de combustível, tomou um cafezinho no bar e seguimos viagem rumo ao Rio Roosewelt. 308 Logo a paisagem vista de cima mudou completamente; um amplo dossel de copas verdes cobria o horizonte. Ficamos deslumbrados pela espantosa altura das árvores e pela exuberante vegetação que recobre a Amazônia. Voamos mais de uma hora sobre esta fantástica floresta tropical. Via–se, a perder de vista, apenas copas de árvores, vales com rios e igarapés deslizando por entre as folhagens luxuriantes. Dava-me arrepios de emoção ao contemplar essa maravilha sem igual no mundo, que o Brasil possui. Não podemos perdê-la nem destruí-la. Esse imensa área verde não deve ser tocada, deve continuar como uma reserva florestal. Com essa visão, o meu entusiasmo pela região aumentava cada vez mais. Em 29 de junho de 1976, fechei a compra de 19.996 hectares de terras, da Fazenda São Benedito, situadas no município de Aripuanã, noroeste do estado de Mato Grosso, (na altura do paralelo 10), no lado direito do rio Roosewelt, divisando com este por 18.320 metros, desde a confluência do Rio Branco, rio acima, até a divisa da Fazenda Concisa. Adquiri a gleba de Dario e Urbano Lunardelli. Em 5 de maio de 1977, comprei mais 4.997 hectares, de Miguel Petrilli, anexando a área à Fazenda São Benedito, que junto, perfez o total de 10 mil alqueires paulistas. Rio Roosewelt nasce nos campos de Vilhena, em Rondônia, logo ultrapassa a divisa do estado de Mato Grosso e corre rumo ao norte. Seus afluentes mais importantes, do lado esquerdo, são o Rio Branco e o rio Madeirinha e do lado direito, o Capitão Cardoso, Jacutinga, Santa Maria, São João, Guariba e inúmeros igarapés; junta-se ao rio Aripuanã, tributário do rio Madeira, no Estado de Amazonas. Seu percurso de mil quilômetros, de águas caudalosas, não é próprio para navegação. A torrente impetuosa que corre 309 pelo leito de pedras, acidentado, forma corredeiras e cachoeiras perigosas. A 30 km rio acima encontrava-se a sede da Fazenda Concisa, de propriedade do Sr. Crisógono Rosa da Cruz, o nosso mais próximo vizinho. A Fazenda Concisa, também de 10 mil alqueires, fazia divisa com as terras da Fazenda São Benedito. Situava-se, também, no lado direito do rio Roosewelt. Zoguinho como era chamado, era um empresário paulista, homem de bem, trabalhador e honesto. Construiu uma bela sede na Fazenda, com todo conforto, com luz elétrica e água encanada, campo de pouso para avião, casas para os empregados, escola, instalou um motor a óleo diesel para fornecer luz aos moradores. Corajoso, talvez um pouco sonhador, com dificuldade, pela grande distância dos meios de abastecimento e comunicação, formava sua fazenda em pastagens para o gado. Possuía dois aviões Cessna, monomotores, com os quais abastecia a fazenda com alimentos e trabalhadores. Fazia o fornecimento na vila de Ji-Paraná em Rondônia, a 400 km de distância. Não existiam estradas de rodagem. A Fazenda Concisa era nosso ponto de apoio, pois não tínhamos campo de pouso para avião. Utilizávamos o da Concisa, depois, de barco a motor, descíamos o rio Roosewelt até a sede da nossa Fazenda. Morava ali, na beira do rio, num rancho de palafitas, feito de pau-a-pique, Antônio Alves da Silva, com a mulher e quatro filhos, aborígene, antigo seringueiro. Vivia da pesca, de pequena plantação de milho e mandioca e colheita de borracha dos seringais da Fazenda. Para morar nas terras, eventualmente percorrer as divisas, evitando a invasão de estranhos, recebia uma ajuda de custas mensal, de um salário mínimo. Ficou na Fazenda durante 15 anos, de 1977 a 310 1992, pediu para ir embora, foi indenizado devidamente e mudou-se para Ji-Paraná. A região onde se situa a Fazenda São Benedito fica na altitude de até 300m acima do nível do mar. O clima é tropical úmido, temperatura média anual 25° a 40°. Com regime de chuvas de 2500 mm anuais, distribuídas entre época de chuvas e de seca. O tipo de solo é formado de latossois vermelho ou amarelo, arenito e argila com pouca profundidade. Ph 5,7 a 6,5. Matéria orgânica 1,2. A topografia é de planícies com algumas elevações. Cobertura vegetal é formada de floresta densa, sombria, árvores de até 50m de altura de copas entrelaçadas. Quanto à hidrografia, possui rios e inúmeros igarapés que cortam a área, todos deságuam no rio Roosewelt. É rica em minérios, como cristal de rocha, ouro de aluvião, cassiterita e diamante. Assim que tomei posse das terras, já demarcadas, mandei fazer um picadão de 15m de largura em redor da área, fincando marcos de madeira de lei a cada 500m. O empreiteiro Francisco Ferreira de Alencar (o Chicão) executou a tarefa em nove meses de trabalho, com uma turma de 20 homens, trazidos até ali de avião. Dada como terminada a empreitada do picadão, o Chicão avisou-me para que eu fosse receber o serviço e fazer o pagamento, necessariamente em dinheiro. Fui de Paranavaí à Cuiabá, no dia 5 de maio de 1977, de taxi aéreo, pilotado pelo nosso amigo Chico Sampaio. Pernoitamos em Cuiabá. Eu levava dentro da frasqueira, na parte de baixo, 450 mil cruzeiros em dinheiro, para fazer o pagamento. O piloto não sabia deste detalhe. No outro dia bem cedo embarcamos no Cessna, já abastecido, e com o plano de vôo autorizado pelo DAC Com horário previsto para a viagem de duas horas de ida até Vilhena-Rio Roosewelt e duas horas para retorno à Cui311 abá, no mesmo dia. O tempo estava bom, o céu azul sem nuvens. Eram 7 horas da manhã. Um vento suave soprava do norte. Voávamos tranqüilamente sobre terras de cultura e cerrados, acompanhando a estrada BR364. Num dado momento o piloto Chico vira-se para mim e pergunta: - A senhora está reconhecendo a região que estamos sobrevoando? - Não estou certa, mas estranhamente o posto de gasolina da beira de estrada BR364, que ficava uns 500m à esquerda, e era ponto de referência para aviões que voavam para Vilhena, no entanto, agora encontra-se bem à direita por uns 1000m de distância. Por que está pegando este rumo? Algo deve estar errado. - Acontece que o vento empurrou a cauda do avião que desviou um pouco da rota, mas eu já vou corrigir - respondeu ele. Voamos por duas horas e não localizamos a cidade de Vilhena. Apreensivo o Chico chamou por diversas vezes, pelo rádio, a torre de controle de Vilhena. Não houve resposta. Continuou chamando, até que o comandante do avião de passageiros da Vasp, que cruzava o espaço rumo a Porto Velho, atendeu ao chamado, informando que a torre de Vilhena estava avariada e não estava respondendo. Chico tentou orientar-se pela bússola quanto ao rumo a tomar para chegar à Vilhena, mas a agulha magnética não funcionava, apesar de ter sido testada em Cuiabá, e o rádio do Cessna não alcançava nenhuma estação ou faixa de contato. Estávamos sem recursos. Voando a 10 mil pés de altura por mais duas horas, não conseguimos localizar nenhuma cidade, povoado, derrubada de mata, ou aldeia indígena. Nada, nenhuma fumaça de chaminé, ou queimada via-se no horizonte, nada que denunciasse a presença de 312 gente. Só víamos abaixo de nós uma floresta fechada, com as copas das árvores unidas que nem couve-flor madura. Atravessamos morros e montanhas, vales e rios. Não encontramos nenhuma clareira onde o avião pudesse pousar. O Cessna tinha cinco horas de autonomia, já gastamos quatro horas voando, portanto, com urgência devíamos encontrar um lugar para aterrissar. Chico, o piloto, virou-se para mim e disse: - Na realidade nós estamos perdidos, eu não sei onde nos encontramos, eu nunca vim para cá. Eu lhe peço não se desespere e não chore. Reze e ajude-me a localizar, olhando para o horizonte e para baixo, algum lugar seguro para pousar o avião. Quem sabe encontraremos alguma reserva indígena com campo de pouso. O vôo seguiu o rumo a oeste, quando notamos abaixo de nós um rio grande, caudaloso, de águas de cor escura, amarela, correndo pelo vale. Era o rio Guaporé, que nasce na Serra dos Parecís no Mato Grosso, corre em curvas caprichosas para noroeste rumo a Rondônia, quando vira para o norte e segue fazendo divisa do Brasil com a Bolívia, deságua no rio Mamoré. Ultrapassado o rio, nos deparamos com uma cadeia de montanhas, que seria a Serra dos Quatro Irmãos ou Aguapeí, na divisa do Brasil com a Bolívia. Mas nós não conhecíamos o lugar, estávamos irremediavelmente perdidos naquela imensidão de florestas. O avião atravessou as montanhas, e o vôo continuou, agora em cima de pântanos e lagoas, donde nascia um pequeno rio que corria rumo norte. Eram as nascentes do rio Paraguá, pouco distante de San Ignácio, lugarejo da Bolívia, a 200 km da fronteira com o Brasil. O rio Paraguá é afluente do Guaporé, na margem esquerda. 313 Já sem esperanças de fazer um pouso seguro, naquele momento voando em cima de pântanos, com incerteza quanto ao destino seguinte, dirigi-me ao Chico: - Escolha uma destas lagoas para pousar o avião, pois apesar de estar, com certeza, coalhada de piranhas, poderemos ter uma chance de salvamento, será talvez, melhor do que ficarmos presos nas copas das árvores, ou espatifados no chão, e sermos comidos por animais selvagens que vagam pela mata. Quero te assegurar que não estou nervosa nem desesperada, pois o destino das pessoas pertence a Deus, seja feita a sua vontade. O combustível do avião estava terminando, só havia para 15 minutos de vôo. Vasculhando o horizonte com os olhos à procura de um lugar possivelmente seguro para descer, quando avistei ao longe uma clareira no meio da floresta, que parecia ser um campo de pouso. Ao aproximar-se mais, vimos que realmente era. O Chico sobrevoou o local e desceu num campo pequeno, de terra, cheio de buracos, onde com dificuldade conseguiu equilibrar o avião e parar. - Graças a Deus, estamos salvos - falei emocionada. Assim que o motor foi desligado, como por encanto, surgiram do meio do mato dezenas de soldados em uniformes de camuflagem na floresta, armados de fuzis que apontavam para nós. Cercaram o avião. Abrimos a porta para descer, quando vi uma carabina apontada para mim e um outro soldado apontava a arma para o piloto Chico. - Desce - ordenou o soldado, falando em espanhol. - O senhor pode me informar onde nós estamos? – perguntei-lhe. - Estão na Bolívia, somos o posto avançado do exército de fronteira – respondeu ele. - Na Bolívia ? – indaguei pasma, já apavorada. Como sairemos daqui, deste lugar ermo no meio de pântanos? – perguntei-lhe eu. 314 Os soldados revistaram nos e o avião de ponta a ponta, batiam na lataria, para ver se tinha algo escondido. Supunham que éramos contrabandistas ou traficantes de cocaína. Expliquei ao comandante do posto que tínhamos nos perdido, voando sem rumo o combustível do avião estava no fim, o rádio de bordo parou de funcionar. Ficamos totalmente sem recursos. Ladeados por quatro soldados, os outros ficaram cuidando do avião, fomos levados para o acampamento a uns 800m de distância, onde viviam os 50 homens do destacamento com suas famílias. O comandante Juan Ariza de uns 52 anos de idade era viúvo e vivia só. O alcaide do povoado Sandoval Toro vivia com a mulher Fermina e duas filhas pequenas. Todos eram mestiços descendentes de índios quíchuas, falavam esta língua e também o espanhol. Viviam ali em galpões armados sobre troncos de árvores cravados verticalmente no chão, cobertos de folhas de palmeira babassu, sem paredes, com piso de terra batida. Dormiam 10 pessoas em cada galpão, um em cada rede, presa e alinhada entre os postes de madeira que sustentavam as coberturas. Havia seis galpões construídos numa clareira de mais ou menos 3.000 mil metros quadrados, onde foram derrubadas e retiradas as árvores e a vegetação. O povoado localizava-se no meio da floresta tropical úmida, com calor de 35° a 40°. Ali moravam e dormiam as 50 famílias do acampamento militar. A cozinha era separada; o fogão de pedra com pedaços de trilho de ferro em cima, onde era colocado um grande tacho de latão de ferro para cozinhar a carne de sol, ou a banana verde cozida na água ou gordura bovina. O sal usado era o sal-gema em pedras. Pelo caminho até o acampamento o comandante Ariza, muito gentilmente, ofereceu-se para carregar a fras315 queira. Gelei ante sua proposta, pois se fosse revistada e se descobrisse que eu levava 450 mil cruzeiros em dinheiro vivo seria confiscado como prova de contrabando. Rapidamente revidei: - Agradeço muito, mas a frasqueira é leve, trago nela pertences de uso pessoal, ficaria envergonhada se fossem expostos. O homem educadamente não insistiu mais, e eu não me separava nunca da frasqueira. Fomos convidados para o almoço que consistia de mandioca cozida e carne de sol frita em gordura de boi. A comida era servida em pratos de ágata descascados pelo uso de muitos anos. Comia-se com as mãos, e bebia-se água de riacho. Para o jantar foi servida banana verde cozida. Não tinha café, açúcar, nem leite. Notava-se a falta de tudo, viviam muito pobremente. Todos andavam descalços. Antes de ir dormir perguntei à D. Firmina: - Onde poderei banhar-me, escovar os dentes, ir ao sanitário? - Banho é só no rio a uns 500 m de distância, trazemos a água para beber e cozinhar em cabaças de porongo dependuradas numa vara - respondeu Firmina. Quando precisar fazer a sua necessidade, vá atrás de uma touceira no mato, só tome cuidado com cobras, aqui há muitas cascavéis e surucucus, e também muitos animais selvagens. Os cães e o fogo os espantam. Quando estiver dormindo na rede à noite, se alguma cobra estiver deslizando por baixo da sua rede, não se incomode, só não se mexa, deixe ela passar. Agradeci pelas informações e pedi para dormir perto da Firmina e suas filhas, ficaria mais tranqüila. De manhã para o desjejum, Firmina serviu-nos bananas verdes cozidas em água. Os homens tomaram tereré, isto é, chimarrão de água fria, costume indígena. No almo316 ço foi repetido o cardápio do jantar, carne de sol com mandioca. Não havia variedade de alimento, verdura ou fruta. Somente na época das águas os homens desciam de canoa até Vila Bela da Santíssima Trindade, no Brasil, para abastecer-se de leite em pó, açúcar, sal, óleo de soja, remédios, roupas e calçados. A farinha de mandioca e o sabão, as mulheres da aldeia faziam. O clima tropical permitia o uso de pouca roupa e não precisavam de cobertor. O comandante Juan Ariza chamou o piloto Chico para uma conversa: - O teu avião entrou na Bolívia sem autorização e, portanto, está sujeito ao confisco pelo governo boliviano. Vou avisar, pelo rádio, os meus superiores em La Paz, da sua presença aqui. Chico ficou desesperado por causa da situação comprometedora, batia a cabeça no chão ao pensar que ia perder o avião, única coisa que possuía. Ariza, foi ligar o rádio para expor o ocorrido e pedir as instruções, mas a bateria que acionava o aparelho havia descarregado. Não havia nenhum outro meio de comunicarse com a capital La Paz. O avião que trazia abastecimento para os soldados vinha uma vez por mês, e tinha passado por ali há dez dias, só ia retornar no final do mês. Naquele dia 6 de maio à tarde, quando já fazia dois dias de nossa permanência no acampamento, apareceu um cidadão boliviano de nome Lorenzo Diaz, ele era professor de português em Santa Cruz de la Sierra. O comandante Juan Ariza encarregou-o de negociar a liberação do avião por 10.000 mil cruzeiros. Lorenzo chamou o Chico para um canto do pátio e fez a proposta. Chico estava aflito, pois não possuía esse valor em dinheiro. Recorreu à mim. Fiquei indecisa, não podia denunciar a existência em meu poder da volumosa quantia. Ocorreu-me uma idéia. 317 - Comandante, posso afastar-me um pouco? preciso fazer minha necessidade fisiológica. - Pode sim, vá com ela Dolores, minha filha! Adentramos a mata próxima. - Dolores querida, fique longe de mim, pois tenho vergonha expor-me perto de você. A menina afastou-se um pouco, eu escondi-me atrás de uma touceira, abri a frasqueira e retirei a quantia de dinheiro necessária. Entreguei o valor ao Chico, que pagou o resgate. Estávamos liberados. Mas antes de tudo tínhamos que providenciar combustível para o avião. Só restava para 15 minutos de vôo, no acampamento não havia nafta para aviação, Santa Cruz ficava há 200 km de distância e não tinha estrada. Estávamos encurralados pela floresta e pântanos. O professor Lorenzo informou-nos que distante uns 30 km dali havia uma fazenda de criação de gado de propriedade de Urbino Garcia. Ele vinha de avião de Santa Cruz e, portando, devia ter gasolina de aviação em estoque para reabastecimento. Pedimos uma idéia ao comandante Ariza e ele permitiu que fossemos até lá. Noutro dia às 7 horas da manhã embarcamos no avião. No assento traseiro ia eu e o comandante, armado com carabina e dois revólveres na cintura. Igualmente armado, ia sentado na frente, o professor Lorenzo. Chico pilotava o avião. Estava muito nervoso com a situação indefinida. Jogamos na sorte. Se o vôo fosse direto para a fazenda o combustível seria suficiente, mas se o rumo estivesse errado, cairíamos no meio da floresta sem opção de socorro. Voamos os 15 minutos, consumindo o restante de combustível e com alegria, vimos surgir a sede da fazenda de Urbino Garcia. O avião desceu num campo de terra bem conservado. Peões e crianças correram para ver. Uma jovem mulher de traços 318 indígenas veio receber-nos.. O professor explicou a ela que precisava de gasolina para o avião. - Temos na fazenda dois tambores de 200 litros de gasolina, mas não tenho autorização para vender e nem chaves do depósito. Meu marido Guido é o administrador, mas saiu há uma semana, para arrebanhar o gado alongado da fazenda. Não tinha previsão para sua volta. Se quiserem podem esperar - informou a mulher. Indicando com a mão um pomar extenso, cheio de laranjeiras carregadas de frutos maduros, pon-kan e bananeiras, disse: - Podem colher e comer à vontade enquanto esperam. Era admirável a altura das árvores frutíferas, nunca vi coisa igual. Os pés de laranjeira frondosos deviam medir uns 5m de altura, com os galhos pensos pelo peso dos frutos. As bananeiras sustentavam cachos de 2m de comprimento, cobertos de frutos de tamanho excepcional. Era uma terra muito fértil e o clima tropical úmido propiciava o crescimento. Já ao entardecer ouvimos o toque do berrante e o tropel do gado. Nossas esperanças redobraram, felizmente o administrador voltava. Assim que Guido Pardo apeou da cavalgadura, o professor expôs-lhe a nossa situação. - De fato a situação de vocês é precária - comentou vacilante - vou ver o que posso fazer. Temos em depósito dois tambores cheios de gasolina. Não tenho autorização do patrão para vender, portanto, temo a sua reação negativa. Embora esteja com receio, vou lhes ceder o combustível, mas além do preço, devo acrescentar o valor da viagem à Santa Cruz, para repor o estoque. Assim não haverá perdas - concluiu Guido. Com a ajuda do Chico foram transferidos 100 litros de gasolina para o tanque do avião. Paguei o combustível e 319 ficamos gratos pela ajuda do administrador Custei acreditar nesse milagre. Juan Ariza aproveitou a ocasião, comprou tanta carne de sol quanta coubesse no avião, que teve que voar baixo por causa do peso excessivo. Voltamos saturados do cheiro forte da carne seca. Já era bem tarde quando chegamos de volta ao acampamento. Descemos do avião, o comandante Ariza, Lorenzo e eu. Descarregaram a carne. O Chico não desceu, estava cabisbaixo, apreensivo. Chamou-me e disse - A senhora suba no avião, porque eu vou embora, vou fugir. Fiquei desconcertada. - Você não acha que já está muito tarde, vai escurecer logo, vamo-nos perder novamente e cair no meio da floresta? Eu não vou – respondi firmemente. Chamei o comandante Ariza e informei-o da tentativa de fuga do piloto. Foram colocados soldados armados a vigiar o avião. Frustrado Chico desceu, deitou no chão e chorou como uma criança. Após o jantar, composto de cardápio que não variava, carne de sol com mandioca e água do rio para tomar, deitamos nas redes para dormir. O dia 8 de maio amanheceu com forte cerração cobrindo o vale, condensando-se ao longo dos pântanos. No horizonte mal se delineavam as montanhas, a floresta chorava gotas de orvalho, o ar estava abafado. Já fazia quatro dias que saímos de Paranavaí, os familiares estavam preocupados. Chico tentou ir embora logo de manhã, apesar do tempo estar fechado. O comandante Ariza, com carabina na mão, proibiu, aconselhou para que esperasse o tempo melhorar. Assim que tivesse condições favoráveis, ele autorizaria a decolagem. - Aonde você quer chegar com o horizonte encoberto? Sem visibilidade nenhuma? Com certeza vai chocar-se 320 e encontrar a morte nas montanhas ou nas árvores da floresta! – argumentou Juan Ariza. Pelas 11 horas da manhã o tempo abriu, sumiu a neblina, o sol apareceu. O comandante autorizou a partida, e, com o dedo em riste mostrou o cume da montanha que se delineava, ao longe, no horizonte. - Siga este rumo e vai sair em Vila Bela da Santíssima Trindade, em Mato Grosso. São 200 km até a fronteira. Não desvie desta rota – recomendou. Fui despedir-me da D. Fermina e das filhas do alcaide Sandoval Toro, agradeci pela atenção e cuidado que a nós dispensaram. Também fui dizer adeus ao melancólico e solitário cinquentão Juan Ariza, comandante do destacamento, que, com voz triste, pediu-me: - Fique aqui comigo, porque estou triste e só, gostei de você, preciso de companheira que me alegre os dias. Surpresa com a proposta, e não querendo decepcioná-lo expliquei, justificando-me razoavelmente. - Desta vez não posso ficar, pois tenho um compromisso importante. Sou repórter de um jornal conceituado, vim com finalidade de cobrir a visita do presidente Ernesto Geisel, do Brasil, no encontro com coronel Hugo Banzer presidente da Bolívia, que vai realizar-se em Santa Cruz de la Sierra. Não tente prender-me à força, isto provocaria um conflito diplomático. Eu voltarei logo, no máximo daqui a um mês estarei de volta. Pode esperar. Adiós! Juan Ariza aceitou a minha desculpa, disse que ia esperar o meu retorno com impaciência. Ficou olhando triste, quando o avião deslizou aos solavancos pelo campo de terra e decolou rumo ao céu. Acenei-lhes com a mão. Eram duas horas da tarde, o avião subiu a 10.000 pés de altura (3.300m), voávamos acima das nuvens cúmulos, que se apresentavam abaixo de nós, como um imenso painel horizontal, recoberto de flocos de algodão branqui321 nho. As nuvens fechadas vedavam o espaço e não aparecia nem uma fresta que desvendasse algo no chão. O avião transpôs as montanhas e o rio Guaporé. Num dado momento abriu-se um espaço claro entre as nuvens, foi quando avistamos entre as florestas sem fim, uma derrubada, campos com gado pastando, casas e uma pista de pouso para aviões. Chico, soltou o trem de pouso e desceu suavemente o avião. Veio ao nosso encontro um homem moreno, alto, de chapéu de palha e roupas de peão de fazenda. Era Valdir de Souza, administrador da fazenda Nossa Senhora das Graças, cujo proprietário era meu conhecido e amigo, Hélio dos Santos. Recebeu-nos amavelmente. Marina, sua esposa proporcionou-me um banho morno, gostoso, com sabonete perfumado e toalha limpa. Fiquei tão feliz que tive a impressão de ter nascido de novo. Ofereceu-nos um almoço composto de feijão, arroz, frango frito e salada de alface. Para nós era um manjar dos deuses, depois de ter-se alimentado só de carne de sol e mandioca, durante três dias. Agradeci à Deus por estar de volta ao Brasil, reconheci que não tem lugar no mundo melhor do que a terra da gente. Depois de descansarmos um pouco, seguimos viagem para Vilhena, com orientação segura do Valdir, chegamos em 40 minutos. Chico foi informar-se sobre a direção certa a seguir para a Fazenda Concisa no rio Roosewelt, pois ele não conhecia a região e temia perder-se novamente. Em vista disso contratei o “Gaúcho”, um piloto experiente, para nos levar até lá. Chegamos às 18 horas, o sol estava se pondo. Zoguinho, o proprietário da Concisa, um homem bom e hospitaleiro, ofereceu-nos a casa para pernoite, as refeições e barco a motor, pilotado por um mestiço índio, um seu empregado, para nos levar à Fazenda São Benedito. 322 Descemos o rio Roosewelt por 30 km até a sede da Fazenda. O transcurso de bote pelo rio, que neste lugar deve medir 1.000m de largura, foi impressionante. Miriades de insetos e borboletas multicoloridas sobrevoavam as águas, peixes grandes como dourado, pintado, piracurú e outros, de todos tamanhos, saltavam fora d`água para apanha-los. As margens ornadas de vegetação ribeirinha, de pequenos arbustos e árvores que inclinavam seus galhos até as águas, como a mirar-se no espelho. Havia obstáculos de grandes pedras alojadas no leito do rio. Nalguns trechos surgiam corredeiras e cascatas impossíveis de atravessar de bote. Precisávamos descer e continuar a pé. Os homens carregavam a embarcação até o lugar favorável, então continuávamos a viagem pelo rio. Chegamos na sede onde éramos esperados pelo Chicão, o empreiteiro, e Antônio Alves, encarregado da Fazenda. Fiz o acerto de contas com os dois homens, e o pagamento em dinheiro ao Chicão que o repassaria à seus peões. Voltamos de barco para a Concisa, e antes de regressar a Vilhena, sobrevoamos as linhas do picadão feito pelo Chicão, para reconhecimento da área. Pernoitamos em Vilhena, no rústico hotel construído de madeira bruta, de propriedade de um gaúcho. Não havia nada melhor. Noutro dia saímos bem cedo e voamos até Cuiabá. Devido a hora tardia pernoitamos naquela cidade. O Chico fez a revisão e abasteceu o avião, e numa viagem tranqüila, voltamos a Paranavaí. Os nossos familiares já estavam preocupados com a demora. Voltei diversas vezes para a Fazenda São Benedito, eventualmente acompanhada pelo meu filho Ricardo, ou pela filha Mari, ou pelo Ivan ou Sérgio meus genros. Às vezes ia de avião de carreira da Vasp ou Varig, até Porto Velho, e voltava 400 km até Ji-Paraná, de ônibus, para nesta cidade, contratar o já nosso amigo e conhecido piloto, 323 João Sedlacek, que voava com seu velho avião, fazendo heroísmo pelo sertão da região amazonense. Levava 1 hora de vôo até a Concisa no Rio Roosewelt. Certa ocasião, quando o avião do piloto João sinalizava para pousar no campo da Concisa, recebemos comunicado pelo rádio de bordo que o proprietário não autorizava nossa descida. Eu estava acompanhada pelo meu genro Ivan. Ficamos intrigados, pois nunca fomos impedidos de descer nesta Fazenda. Zoguinho era nosso amigo. Informaram-nos que o Sr. Fábio Ferraz era o novo dono da Concisa e não nos conhecia. Depois de muita justificativa e explicação minuciosa, tivemos autorização para pousar. Ainda receoso, ofereceu-nos pernoite e hospedagem. Somando-se à problemática recepção, ao descermos do avião, dirigimo-nos à residência do Sr. Ferraz, caminhando pelo descampado de vegetação baixa, onde, de agosto a setembro, proliferam micuins microscópicos e carrapatos-pólvora. Fomos atacados por estas pragas da região amazônica, que sobe pela roupa, aloja-se na pele, causando um comichão de enlouquecer. Além de nuvens de borrachudos e mosquitos-pólvora que fizeram seu banquete de sangue, nos nossos rostos e braços. Instantes depois olhei para Ivan e comecei a rir. - Você está tão engraçado, está irreconhecível, olha no espelho. Teu rosto está inchado como uma bola, mal aparecem teu olhos. Até parece com japonês. - E a senhora já viu seu rosto? Deve estar igual ao meu. E que estes insetos provocam uma alergia tremenda nas pessoas e nos animais.. Ainda bem que lembrei e trouxe comigo um antiálergico. Devemos tomar logo. De manhã, após uma noite mal dormida por causa dos borrachudos, pernilongos, e pulgas que havia na cama, fomos de barco até a sede da Fazenda São Benedito. Acer324 tei as contas com o encarregado, dei as instruções e voltamos para a Concisa. Agradecemos a hospedagem ao Sr. Ferraz e a sua esposa D. Selma. Voltamos para Ji-Paraná, onde embarcamos no avião de carreira da Vasp, com retorno a Curitiba. Muitas vezes fiz esta viagem de ônibus, da Empresa Eucatur. Saindo de Curitiba, a viagem de 3.000 mil km, levava 42 horas até Ji-Paraná, em Rondônia, onde morava meu filho Ricardo. Era uma viagem longa, com desconforto, cansativa, marcada pelas paradas e atrasos do ônibus convencional, sempre superlotado. Em Ji-Paraná eu contratava o piloto João Sedlacek para o vôo até a Fazenda. Nessa ocasião, Ricardo meu filho, me acompanhava. Certa ocasião, de passagem por Cuiabá, quando esperava a minha bagagem de pé no saguão do aeroporto da cidade, senti uma palmadinha nas costas. Virei-me rapidamente para ver quem era. Dei de frente com um homem de média estatura, gordo, mulato de pele lustrosa, cabelo encarapinhado, com correntes no pescoço e pulseiras de ouro. Parado, com um enorme sorriso, mostrando os dentes de ouro, o homem dirigiu-se a mim: - A senhora não me reconhece ? Sou o Zé Rico, da dupla sertaneja Milionário e Zé Rico. Estou indo para a Alta Floresta fazer um show, vou cantar com meu parceiro Milionário, que me espera naquela cidade. A senhora D.Monika não lembra de mim? Reconheci-a de imediato. Eu trabalhei de ajudante do motorista Josè Baiano, puxamos muita tora de peroba para a serraria de vocês. Recebia o meu salário da sua mão. O mundo deu voltas e mudou a minha sorte. Hoje viajo e canto por este Brasil afora. - Dou-lhe os meus parabéns pela brilhante carreira de cantor, e desejo que o êxito continue por longos anos. È, a vida realmente nós faz surpresas – falei, emocionada. 325 O alto falante do aeroporto chamou para embarque dos passageiros da Vasp com destino à Ji-Paraná e Porto Velho. Outro chamava os passageiros que iam à Alta Floresta. Despedimo-nos e cada um seguiu o seu caminho. Depois com o passar dos anos tornou-se cada vez mais difícil a minha ida até a Fazenda. Treze anos depois, doei o total dos 10.000 mil alqueires paulistas de terra, da Fazenda São Benedito aos meus filhos, Ricardo, Mari Carmem e Rosí Celeste, inclusive aos meus dez netos. Em 28 de fevereiro de 2000, esta área de florestas magníficas foi vendida para a Associação Assistencial Adolpho Bezerra de Menezes, instituição com sede em Presidente Prudente, Estado de São Paulo. Já se passaram 24 anos, desde o dia em que lá estive pela primeira vez e até o dia em que a vendemos à Associação, a floresta virgem continuava intacta, com o vento farfalhando entre as folhagens das gigantescas castanheiras. Só consentimos em vendê-la com a promessa solene de os compradores conservarem essa esplêndida riqueza vegetal como reserva florestal e ecológica. Espero que cumpram a sua promessa. Sou apaixonada pela natureza, pelas imensas florestas que povoam a Amazônia e seus animais nativos. Deploro a destruição das matas, o extermínio dos animais selvagens, a poluição dos rios e mares, a pesca descontrolada e predatória. Comparo a humanidade com piolhos, que invadem, sugam e destroem a terra sem piedade. Se recordar é viver novamente, então eu vivo de lembranças. De alma sensível, adoro a música, flores e livros. Sou uma pessoa de caráter introvertido, voltada para o universo interior. Organizada e determinada, devoto grande amor ao trabalho, seja ele qual for, faço-o com dedicação e responsabilidade. Na minha avaliação, o trabalho enobrece e dignifica a pessoa. 326 327