O ENSINO DE GEOGRAFIA PROBLEMATIZANDO AS CONSTRUÇÕES
IDENTITÁRIAS NA PERIFERIA URNANA CIDADE DE ALVORADA / RS¹
Talita Rondam Herechuk²/Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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PROBLEMATIZAÇÕES INICIAIS
Este trabalho é fruto das minhas vivências, angústias, alegrias e questionamentos
como professora de Geografia do Ensino Médio noturno em uma escola da periferia urbana
da cidade de Alvorada/RS. Experiências estas que vivi ao ensinar Geografia e que podem
causar em outros professores da rede pública de nosso imenso país intensos momentos de
identificação e reflexão, posto que, acredito que meus anseios não são só meus, mas sim
compartilhados com muitos professores de todo o Brasil.
Em uma aula de Geografia, numa turma de primeiro ano do ensino médio noturno,
com alunos, na maioria, jovens e adultos trabalhadores, ao discutirmos sobre as
conseqüências da recorrente veiculação nos meios de comunicação de massa da imagem de
Alvorada como “cidade violenta, pobre e marginalizada, uma cidade sem lei”, um aluno,
com grande espontaneidade, disse não querer se manifestar a respeito, pois ele não era de
alvorada, ele somente residia lá. Com este relato deparei-me com situações vividas por mim
outrora, já que fui moradora desta cidade por 20 anos e estudei em escola desta localidade.
Passei a me questionar sobre este assunto, que mais tarde originaria este trabalho que é
subdividido segundo as seguintes indagações:
Por que grande parte dos moradores de Alvorada não se sente pertencente a este
município? O que tem ocasionado esta falta de vínculos simbólicos, culturais, sociais e
¹ Este texto faz parte do início da construção de minha dissertação de mestrado: “Eu não sou de Alvorada. Eu
só moro aqui”: O ensino de Geografia problematizando as construções identitárias dos alunos moradores da
cidade de Alvorada / RS, que está sendo realizada no Programa de Pós Graduação em Geografia da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e conta com a orientação da professora doutora Ivaine Maria
Tonini.
² Mestranda do Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
licenciada em Geografia pela mesma universidade e professora de ensino fundamental e médio da rede
municipal de Cachoeirinha /RS e da rede estadual do RS.
territoriais com este lugar? Como seria possível problematizar estas construções identitárias
negativas e estigmatizadas de Alvorada, veiculadas nos grandes meios de comunicação de
massa?
Desta forma, é notória a urgência de acharmos alternativas para devolvermos a
auto–estima do morador de Alvorada e isto pode, e deve, ser realizado por meio da
educação, ou mais especificamente, através de práticas pedagógicas promovidas nas aulas
de geografia que re-valorizem o espaço em que esses alunos vivem. Essa área de estudo,
passa a ter um valor inestimável para equacionarmos ou, ao menos, amenizarmos, as
dificuldades dos alunos de se reconhecerem como pertencentes ao seu lugar de vivência.
Assim o ensino da Geografia, atento às decifrações do espaço geográfico que os
educandos vivem e elaboram, deve buscar articular o uso do espaço à leitura do mundo, e
desenvolver nesses jovens e adultos o sentimento de pertencimento – pertencer a um
mundo natural e social; a um tempo veloz e lento; a um lugar único e global; a uma
realidade em permanente transformação.
E, nesse contexto, surgem alternativas de práticas docentes, que ao problematizarem
o papel da mídia na construção dos seus discursos sobre as identidades dos moradores da
periferia, viabilizem a valorização do espaço de vida dos alunos/moradores de Alvorada.
Alunos que como muitos outros moradores das periferias das grandes cidades brasileiras,
sentem – se estigmatizados por sua condição social e pelo lugar onde moram, e assim,
passam a realizar um processo de desprezo com seu espaço de vida.
POR QUE GRANDE PARTE DOS MORADORES DE ALVORADA NÃO SE
SENTE PERTENCENTE A ESTE MUNICÍPIO? O QUE TEM OCASIONADO
ESTA FALTA DE VÍNCULOS SIMBÓLICOS, CULTURAIS, SOCIAIS E
TERRITORIAIS COM ESTE LUGAR?
Por toda a estigmatização e todo o preconceito que sofrem por morarem em uma
localidade marcada pela exclusão social e pela falta de vínculos territoriais, o morador de
Alvorada acaba promovendo um sentimento de desapego e desvalorização do espaço que
habita, ou seja, não se identifica com sua cidade, já que para ele estas identificações,
construídas por aqueles que detêm o poder discursivo, são marcadas por muito sofrimento.
Conforme Bauman (2004) esclarece:
[...] a identificação é também um fator poderoso na estratificação, uma
de suas dimensões mais divisivas e fortemente diferenciadoras. Num dos pólos
da hierarquia global estão aqueles que constituem e desarticulam as suas
identidades mais ou menos à própria vontade, escolhendo-as num leque de
ofertas extraordinariamente amplo, de abrangência planetária. No outro pólo se
abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da identidade, que
não têm direito de manifestar as suas preferências e que no final se vêem
oprimidos por identidades aplicadas e impostas por “outros” – identidades de
que eles próprios se ressentem, mas não têm permissão de abandonar nem das
quais conseguem se livrar. Identidades que estereotipam, humilham,
desumanizam, estigmatizam...” (Bauman, 2004, p. 44)
Como nos mostra Heidrich (2006)
“ a condição humana de estar nos espaço
pressupõe ter acesso a um lugar, relacionar-se, realizar a transformação e ter a consciência
disto”, quando estes quesitos estão ausentes ou são precários, os indivíduos acabam
enfraquecendo os vínculos territoriais com o lugar que habitam, como ocorre em Alvorada.
Já que é difícil manter estes mesmos vínculos num local em que os sujeitos vivem numa
realidade de completa escassez: de emprego, de infraestrutura e de condições adequadas
de sobrevivência, o sentimento de pertencimento ao local de vivência fica esvaziado de
sentido, ocasionando, como nos mostra Heidrich (2006), uma situação de vulnerabilidade
territorial, traduzida pela ausência da tríade apropriação – valorização – consciência deste
território:
Por meio do estabelecimento de vínculos, por criações ou invenções
humanas, através de práticas sociais, é que se produz território, que se constitui
uma territorialidade. Nesse sentido, a perda de vínculos, econômicos, culturais,
políticos ou sociais, implica no afastamento do indivíduo ou da coletividade, da
condição territorial presente naquele momento. [...] Dessa forma, se pode dizer
que a exclusão social retira ou afasta as pessoas da integração apropriaçãovalorização-consciência.... (HEIDRICHT, 2006, p. 27)
Sendo que, para entendermos melhor a gênese destas questões, precisamos recorrer
as características sócio-históricas de constituição deste município. Alvorada configura – se
como município autônomo em 17 de setembro de 1965, antes disto pertencia ao município
de Viamão (região metropolitana de Porto Alegre). Distante 16 km da região central de
Porto Alegre, Alvorada possui 70,8 km de extensão territorial e fica à leste da Capital, na
margem esquerda do Rio Gravataí, na depressão Central do Estado. Limita-se ao norte com
Cachoeirinha e Gravataí, ao sul com Viamão e Porto Alegre, a leste com Gravataí e
Viamão e a oeste com Porto alegre. Faz parte da Região Metropolitana de Porto Alegre.
Mapa 1: Localização do município de Alvorada na região metropolitana d Porto Alegre.
Fonte: Plano ambiental do município de Alvorada-RS
Conta com uma população estimada em 2005, segundo a FEE, de 216.122
habitantes numa área de 70,8 Km; possuindo uma população com um índice médio de
renda baixo.
Claro que todos estas características se constituíram ao longo de toda a formação
histórica deste local. Como consta no trabalho de Oliveira (2006), antes mesmo de
emancipar-se o município já contava com grande percentual de população afrodescendente, e tornou-se um pólo atrativo de migrantes expulsos das áreas rurais ou de
outras zonas urbanas decadentes de nosso estado e até mesmo de estados vizinhos. Além de
ter abrigado as pessoas que, gradualmente, foram segregadas do próprio município de Porto
Alegre e empurradas para áreas mais desvalorizadas e distantes do centro urbano como é o
caso de Alvorada. Formou-se, desta forma, um grande aglomerado de exclusão. Haesbaert
(2007) esclarece que estes sujeitos que estão em situações de intensa vulnerabilidade social,
ou seja de exclusão social vivem um intenso processo
de desterritorialização ou
territorialização precária:
“Desterritorialização [...] deve ser aplicada a fenômenos de efetiva
instabilidade ou fragilidade territorial, principalmente entre grupos socialmente
mais excluídos e/ou profundamente segregados e, como tal, de fato
impossibilitados de construir e exercer efetivo controle sobre seus territórios,
seja no sentido de dominação político-econômica, seja no sentido de
apropriação simbólico-cultural.” (Haesbaert, 2007, p. 312)
Também, para podermos entender melhor a configuração sócio-econômica-espacial
de Alvorada, deve-se considerar de suma importância a reflexão à cerca de sua posição, em
relação ao PIB per capita dos municípios do Rio Grande do sul divulgado pela FEE / RS.
Em 200, a cidade estava em 496° lugar, ocupando a última posição de nosso estado, com
um valor de R$ 3.051,00.
Outro índice que, ao observarmos, podemos refletir sobre a situação
socioeconômica deste município é o IDESE, que abrange um conjunto amplo de
indicadores sociais e econômicos classificados em quatro blocos temáticos: educação;
renda; saneamento e saúde. Segundo a FEE, em 2003, Alvorada está em 210º lugar, como
mostra o quadro a seguir.
IDESE – 2003 / FEE
LUGAR
RS
ALVORADA
___
210
EDUCAÇÃO
RENDA
SAÚDE
SANEAMENTO
IDESE
0,852766148
0,768735848
0,565231802
0,841265691
0,756999872
0,821059223
0,512861614
0,655946547
0,815513704
0,701345272
TABELA 1: IDESE – 2003 / FEE.Disponível em:
http://www.fee.rs.gov.br/sitefee/pt/content/estatisticas/pg_idese.php
Estes indicadores nos mostram claramente que o grande agravante é o índice da
renda que demonstra o grau de empobrecimento dos moradores desta cidade. No entanto,
em contrapartida, os índices como educação, saúde e saneamento, evidenciam que, nestes
quesitos, o município não está tão abaixo do índice geral do Rio grande do Sul, o que
acaba por elevar a sua colocação em relação aos outros municípios do estado.
A cidade não conta, também, com muitas ofertas de empregos dentro do próprio
município, o que leva os moradores de Alvorada a percorrem grandes distâncias para
chegarem até seus locais de trabalho. Efetuam uma migração pendular que os obriga a
desperdiçarem horas de seu dia em transportes coletivos para chegar até o seu local de
trabalho. Em 2000, como pode ser observado na tabela 2, Alvorada era o segundo
município brasileiro com o maior percentual de pessoas realizando fluxos migratórios
pendulares diariamente.
Tabela 2: Ranking dos municípios com maior proporção de pessoas ocupadas que realizam deslocamentos
pendulares - 2000. Disponível em: www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2008/.../ABEP2008_1384.pdf
Haesbaert corrobora esta constatação nos dizendo que “enquanto uns vivem um
“movimento territorializador” [...] muitos mais vivem movimentos alienantes com os quais
não se sentem nem um pouco identificados”, como os trabalhadores desta cidade que
gastam horas e horas se deslocando de casa para o trabalho.
Fica-nos a pergunta mencionada por Cavalcanti (2008):
“Será que alguém escolhe morar em áreas periféricas? [...] Pode-se
admitir que algumas pessoas “escolham” morar em áreas extremamente
afastadas dos centros das grandes cidades, comprometendo seu cotidiano com
horas prolongadas em pontos de ônibus, em longos, repetidos e intermináveis
trajetos casa-trabalho-casa, casa-escola-casa, casa-lazer-casa?” (Cavalcanti,
2008, p. 132)
Claro que nós já sabemos que a resposta é uma negação. No entanto presencio neste
município de análise um movimento significativo de pessoas que querem reverter esta
situação. Sendo escolha ou não morarem lá, elas querem desenvolver sentimentos de
apropriação, pertencimento e transformação de tal localidade. Conforme Milton Santos já
dizia: os “de baixo”, por não estarem absorvidos pela fábula do consumismo como as
classes médias e terem que lutar diariamente pela reprodução social, cultural e econômica
de suas vidas, estão mais propensos a criar mecanismos de resistência a este sistema
perverso em que estão inseridos.
COMO
SERIA
IDENTITÁRIAS
POSSÍVEL
NEGATIVAS
PROBLEMATIZAR
E
ESTAS
ESTIGMATIZADAS
CONSTRUÇÕES
DE
ALVORADA
VEICULADAS NOS GRANDES MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA?
Uma vez que sabemos que “identidades fixas, unificadas, completas, seguras e
coerentes são uma fantasia”, como afirma Hall (1992); claro que ter a ousadia ou a ilusão
de querer uma construção identitária una e sólida para os Alvoradenses, que seja a
salvação de seus males, não é, com certeza, o objetivo deste trabalho, mas viso
problematizar estas construções identitárias que são idealizadas pela cultura dominante ou
são negadas para aqueles denominados da “subclasse”. Aqueles que o noticiário e o jornal
não dão rosto, ou nome, onde toda vontade de ser alguém no mundo, ser visto, reconhecido,
aceito, lhes é negada veementemente a todo instante.
Hall (1999) traz importantes contribuições sobre este jogo de identidades e
identificações:
“ Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o
sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas
pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é , às
vezes, descrito como constituindo uma mudança de uma política de identidade
(de classe) para uma política da diferença.” ( Hall, 1999, p.21)
Esses diferentes são identificados como sendo deste ou daquele jeito, viverem desta
ou daquela forma. Por vezes, são até vistos como um “mal” a ser banido, excluído,
combatido, por morarem na periferia e não compartilharem da mesma rede de significações
que os demais. Sendo que a oposição centro-perifeira – tendo o cuidado para não
absolutizá-la, resumindo nela toda as contradições sociais – como sugere Semprini (1999)
traduz-se como a representação do centro como posição dominante, com o poder de ditar as
regras de funcionamento do sistema, já na periferia encontram-se em compensação, os
grupos que só marginalmente possuem essa capacidade.
Esse autor também argumenta que freqüentemente o único aspecto que unifica todas
essas identidades “ é sua posição marginal em relação ao centro do espaço sociocultural. E
nesse contexto surgem os meios de comunicação com um papel decisivo na manutenção
dessa subalternidade dos moradores das periferias urbanas. A mídia esta longe de ser um
espelho da sociedade, ela é um lugar onde se elaboram, negociam e se difundem os
discursos, os valores e as identidades, principalmente da cultura dominante.
Wacquant apud Cavalcanti (2008) reforça a idéia de que as áreas periféricas dos
grandes centros urbanos no mundo, e conseqüentemente as pessoas que moram nestes
locais são vistas de modo preconceituoso e pejorativo pela mídia:
“Favela no Brasil, poblacione no Chile, villa miséria na Argentina,
cantegril no Uruguai, rancho na Venezuela, banlieue na França, gueto nos
Estados Unidos: as sociedades da América Latina, da Europa e dos Estados
Unidos dispõem todas de um termo específico para denominar essas
comunidades estigmatizadas, situadas na base do sistema hierárquico de regiões
que compõem uma metrópole, nas quais os párias urbanos residem e onde os
problemas sociais se congregam e infeccionam, atraindo a atenção desigual e
desmedidamente negativa da mídia, dos políticos e dos dirigentes do
Estado.”(Wacquant apud Cavalcanti, 2008, p. 125)
Como já mencionei, o conflito entre diferentes sistemas de significação tem
substituído aquele pela posse de riquezas ou de meios de produção. Embora ambos estejam
intrinsecamente imbricados e busquem manter os privilégios sociais, culturais, políticos e
econômicos nas mãos daqueles que já os possuem. Bauman (2004) reitera que “a guerra
por justiça social foi portanto reduzida a um excesso de batalhas por reconhecimento.
“Reconhecimento pode ser aquilo que mais faça falta a um ou outro grupo dos bem
sucedidos.”
Conforme cita Semprini (1999) “ conquistar o poder discursivo tornou-se o
principal desafio nas sociedades onde o individualismo e o subjetivismo ocupam um espaço
crescente e onde tanto o espaço social como a identidade dos grupos que o compõem são
definidos em termos socioculturais. Essas subjetividades são descritas por Guattari (1999)
como fabricadas. O indivíduo é produzido em massa, seriado nas suas idéias, nos seus
pensares, nos seus comportamentos, nas suas vontades ou sentimentos:
“Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística – tudo o que
nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam –
não é apenas uma questão de idéia, não é apenas uma transmissão de
significações por meio de enunciados significantes. Tampouco se reduz a
modelos de identidade, ou a identificações com pólos maternos, paternos, etc.
Trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as
máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de
perceber o mundo. “(Guattari, 1999, 9. 27)
Podemos entender os meios de comunicação de massa, principalmente o jornal, o
rádio e a televisão como uma poderosa máquina de controle social na contemporaneidade.
Como sabemos que a forma e o conteúdo da mídia são rotineiramente manipulados e estão
a serviço das classes dominantes, evidenciam-se assim, os grandes prejuízos causados à
imagem da cidade de Alvorada e aos seus moradores. Para citar um exemplo: Quando em
2004, Alvorada passou a liderar o ranking do estado como cidade com maior número de
homicídios, a mídia incansavelmente noticiou os acontecimentos violentos que estavam
ocorrendo, mas quando nos anos seguintes o número de homicídios diminuiu
consideravelmente nada foi dito. Numa contagem rápida que fiz nas manchetes do Jornal
Zero Hora, de grande circulação no estado do Rio Grande do Sul, somente nos meses de
novembro e dezembro de 2004 contabilizei 15 reportagens com o nome da cidade de
Alvorada no título, e todas relacionadas a diferentes formas de violência. Será que só
existe violência neste lugar? Para quem não conhece a cidade – e nunca irá conhecer por
ter medo – Alvorada realmente é uma “terra sem lei”.
De acordo com Martín-Barbero(2004), os meios de comunicação de massa,
principalmente o jornal, o rádio e a televisão vivem
dos medos que eles próprios
desenvolvem nas pessoas:
“Medos que provêm secretamente da perda do sentido de pertencer, em
cidades nas quais a racionalidade formal e comercial foi acabando com a
paisagem na qual se apoiava a memória coletiva, nas quais a normalização das
condutas, tanto quanto a das edificações; levam à erosão das identidades, e essa
erosão acaba roubando-nos o piso cultural, jogando-nos ao vazio. Medos, enfim,
que provêm de uma ordem construída sobre a incerteza e a desconfiança que nos
produz o outro, qualquer outro – étnico, social, sexual – que se aproxima de nós
na rua e é compulsivamente percebido como ameaça” (Martín-Barbero, 2004,
p.295)
Mas a partir da visão estereotipada construída sobre esta cidade surgiram formas de
resistência popular (vídeos, reportagens, filmes, etc), que se difundiram mediante o uso dos
instrumentos que são próprios da cultura de massas. Conforme Santos (2008) nesse caso “a
cultura popular4 exerce sua qualidade dos discursos dos “de baixo”, pondo em relevo o
cotidiano dos pobres, das minorias, dos excluídos, por meio da exaltação da vida de todos
os dias”.
Estas estratégias de luta ou resistência podem ser mais bem compreendidas à luz
dos estudos Foucaultianos. Foucault (1995) nos esclarece que “podemos chamar de
estratégias de poder aos conjuntos dos meios operados para fazer funcionar ou para manter
um dispositivo de poder”. E complementa nos dizendo que:
3
Santos (2008) estabelece uma clara distinção entre cultura de massa e cultura popular. A primeira seria “o
resultado do empenho vertical unificado, homogeneizador, conduzido por um mercado cego, indiferente às
heranças e às realidades atuais dos lugares e das sociedades”. Já a segunda seria a “resistência local a esta
cultura de massa homogeneizante. Por ser baseada no território, no trabalho e no cotidiano, ganha a força
necessária para deformar, ali mesmo, o impacto da cultura de massas”. (Santos, 2008, p. 143 e 144)
“O ponto mais importante é evidentemente a relação entre relações de
poder e estratégias de confronto. Pois, se é verdade que no centro das relações de
poder e como condição permanente de sua existência, há uma “insubmissão” e
liberdades essencialmente renitentes, não há relação de poder sem resistência,
sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder implica,
então, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta [...]” (Foucault, 1995,
p. 248)
Como instrumentos de resistência podemos citar o filme “Dá 1 tempo”, produzido
pela produtora Alvoroço filmes4, idealizado por jovens moradores da cidade e filmada em
diversos locais do município. Outro mecanismo que visa mostrar, como diz em seu slogan:
“o lado bom de Alvorada”, é o canal televisivo Olhar TV5 disponível na internet , que traz
diferentes notícias sobre a localidade.
DE QUE FORMA MINHAS AULAS DE GEOGRAFIA PODERIAM CONTRIBUIR
PARA QUE OS HABITANTES DESTA CIDADE PUDESSEM ENXERGAR SEU
LUGAR/TERRITÓRIO DE MORADIA E A SI PRÓPRIOS DE FORMA MAIS
POSITIVA?
Faz-se, então, necessária e urgente, a proposição de alternativas pedagógicas que
viabilizem a geração de ambiências nos alunos moradores do município de Alvorada. Na
qual por ambiência entende-se “as relações existentes em um ambiente ou meio. Essas
relações são fruto da perspectiva ou do ponto de vista de um indivíduo, que as interpreta
conforme sua subjetividade”.(Castrogiovanni e Costella, 2006).
As ambiências condicionam não só as experiências sócio-culturais das crianças, mas
seus afetos, sua sensibilidade estética, seus valores, suas emoções. A Geografia em sua
função alfabetizadora, ao tomar essas experiências como conteúdo alfabetizador, pode
explicitar “... o diálogo entre a interioridade dos indivíduos e a exterioridade das condições
do espaço geográfico que os condiciona”, conforme esclarece Rego (2000). Assim o ensino
4
As informações sobre a produtora Alvoroço Filmes estão disponíveis em : http://www.alvoroco.com.br
5
O “site” onde se encontra o canal de tv na internet Olhar Tv é: http://www1.olhar.tv.br/index.php
da geografia, atento às decifrações do espaço que as crianças elaboram e buscando articular
o uso do espaço à leitura do mundo, deve desenvolver na criança o sentimento de
pertencimento – pertencer a um mundo natural e social; a um tempo veloz e lento; a um
lugar único e global; a uma realidade em permanente transformação.
Ou seja, levar para a sala de aula diferentes materiais produzidos pela meios de
comunicação de massa e, também, pelos meios de comunicação alternativos, torna-se
imprescindível para que os estudantes possam refletir sobre os discursos criados sobre eles.
Permitindo que eles escapem desta homogeneização e uniformização de suas
subjetividades através do desenvolvimento de singularizações que seriam:
“ Uma maneira de recusar todos esses modos de codificação
preestabelecidos, todos esses modos de manipulação e de telecomando, recusálos para construir, de certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com
o outro, modos de produção, modos de criatividade que produzam uma
subjetividade singular. Uma singularização existencial que coincida com um
desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no qual
nos encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar os tipos de
sociedade, os tipos de valores que não são os nossos.” ( Guattari e Rolnik, 1999,
p. 17)
Estas problematizações poderão permitir ao educando pensar o intercâmbio entre os
diferentes sistemas de produção e de circulação de sentidos e significações através da
tradução, compreendida, segundo Semprini (1999), como sendo a “capacidade de encontrar
significações equivalentes, permitindo o confronto e o hibridismo entre sistemas de
sentidos diversos. Por outro lado ela permiti desreificar e dessencializar a identidade dos
diferentes grupos, distinguindo-os de sua base demográfica”.
A escola e o ensino de geografia devem, de acordo com Leão (2008), estar
preparados para incorporar a linguagem da mídia, servindo-se dela sem ser por ela
dominada; para tanto, é necessário conhecer esta linguagem para que professores e alunos
sejam interlocutores ativos e não receptores passivos da linguagem da mídia.
Já Cavalcanti (2008) mostra a importância de colocarmos em discussão estes
temas trazidos pela mídia e que afetam diretamente a vida dos alunos de Alvorada. Esses
temas que fazem parte da vida cotidiana deles, são veiculados de modo recorrente pela
mídia, o que acaba acarretando o risco de que sejam tratados de modo superficial, com forte
viés ideológico e preconceituoso. A autora acrescenta:
“ Na lógica que rege a sociedade contemporânea, há uma tendência a que
se tornem também objetos de espetacularização. Aos professores cabe trazer os
temas para serem debatidos, com transparência, permitindo todas as “falas”
possíveis, propiciando a divergência e explicando sua complexidade.”
(Cavalcanti, 2008, p.32)
Por todos estes motivos proponho desenvolver com meus alunos uma leitura crítica
e dialógica das diferentes imagens e mensagens veiculadas em heterogêneos meios de
comunicação sobre a cidade de Alvorada e seus moradores.
Estas leituras deverão
contemplar o estudo e a construção de alguns conceitos relevantes para o pensamento
espacial: lugar, paisagem, território e cidade. Sendo a cidade considerada o palco da vida,
Cavalcanti nos diz que ela não deve ser estudada somente em sua forma física, mas sim
como materialização de diferentes modos de vida e acrescenta a importância dos conceitos
de território e lugar para ensinar a cidade:
“Ambos estão relacionados com a formação de identidades, com a vida
cotidiana, com o exercício do direito à vida nesse pedaço da cidade (periferia).
No particular desenvolvimento das identidades, é relevante levar em
consideração sua história, sua constituição articulada a relações de poder e o
papel da alteridade em sua formação.[...] a identidade constrói-se por meio do
reconhecimento de uma alteridade, que só acontece onde há interação, transações,
relações ou contatos entre os diferentes grupos. Reforça-se assim a necessidade
de explicar a diversidade,[...] ultrapassando a lógica que tende a negar a
diferença, a separar os diferentes, a impedir o encontro.” (Cavalcanti, 2008,
p.145)
Com o intuito de formar estes conceitos e de problematizar as construções
identitárias nas periferias, os professores devem ficar atentos às realidades vividas por seus
alunos. Além de problematizar os assuntos postos na mídia, pretendo dialogar,
concomitantemente, sobre todos os tipos de violência que estes alunos sofrem diariamente.
As violências físicas, mas também todas as formas de violência simbólica que lhe negam o
direito de terem boa educação e emprego, uma habitação digna em um local com infra-
estrutura básica, acesso à saúde de qualidade e ao lazer. Ou seja, que lhes seja dado o
direito de habitar, conviver, pertencer e transformar a cidade em que vivem.
Para isto é importante que sejam utilizados diferentes tipos de materiais, como
reportagens, depoimentos, dados e filmes para sensibilizá-los, chocá-los, intrigá-los; para
que compreendam esta realidade urbana que habitam. Assim poderão desnaturalizar todas
as agruras que vivem ou presenciam todos dias e todos as formas de preconceito e de
estigma de que são alvos, entendendo que são processos produzidos social e historicamente
e que eles podem mudar o rumo do mundo, de seus próprios “mundos”.
PARA (NÃO) CONCLUIR
Alvorada pode então ser percebida como uma cidade periférica, onde existe todo
tipo de escassez. Escassez de empregos, de condições dignas de lazer, educação, saúde e
segurança, para a grande maioria de sua população. Mas a pior carência, que a cidade
tanto necessita sanar, é a de auto-estima e valorização.
Como observamos os grandes meios de comunicação de massa tem colaborado para
a construção de uma imagem muito negativa, preconceituosa e estereotipada da cidade, que
calcada na espetacularização da violência tem conseqüências diretas e avassaladoras na
vida do aluno que reside nesta cidade. Este não quer reconhecer-se como alvoradense
graças a toda a carga de estigma que este adjetivo carrega. Como transformar a realidade da
cidade em que vive se nem ao menos quer se sentir pertencente a ela? Como identificar-se
com um lugar que carrega consigo imagens tão negativas de violência e pobreza?
Mas neste momento em que Alvorada esta intrinsecamente ligada na mídia a fatos
tão negativos, surgem movimentos que visam (re)significar e (re)qualificar a relação do
morador de Alvorada com seu município.
Notando a iminente necessidade de problematizar estas identificações veiculadas
nos diferentes meios de informação que citei no trabalho, torna-se indispensável e
importante o uso deste material nas aulas de Geografia.
Através das reflexões e análises os alunos poderão compreender que eles também
podem modificar para melhor o ambiente que habitam. Eles poderão perceber que toda
essas notícias negativas sobre Alvorada são somente a visão de quem as conta e que eles
próprios poderão formular suas idéias, imagens e representações de Alvorada sob a ótica de
seus próprios olhares.
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O ENSINO DE GEOGRAFIA PROBLEMATIZANDO AS