Ivo Miguel Barroso Súmula sobre as inconstitucionalidades orgânicas, materiais e formais da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, que mandou aplicar o “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” à Administração Pública e a todas as publicações no “Diário da República”, a partir de 1 de Janeiro de 2012, bem como ao sistema educativo (público, particular e cooperativo), a partir de Setembro de 2011. Inconstitucionalidades e ilegalidades “sui generis” do conversor “Lince” e do “Vocabulário Ortográfico do Português” VERBO jurídico ® VERBO jurídico Súmula sobre as inconstitucionalidades orgânicas, materiais e formais da RCM n.º 8/2011 : 2 Súmula sobre as inconstitucionalidades orgânicas, materiais e formais da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, que mandou aplicar o “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” à Administração Pública e a todas as publicações no “Diário da República”, a partir de 1 de Janeiro de 2012, bem como ao sistema educativo (público, particular e cooperativo), a partir de Setembro de 2011. Inconstitucionalidades e ilegalidades “sui generis” do conversor “Lince” e do “Vocabulário Ortográfico do Português” Ivo Miguel Barroso Mestre Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa I. O prazo de transição de seis anos, previsto no artigo 2.º, n.º 2, do Decreto do Presidente da República n.º 52/2008, de 29 de Julho (que procedeu à ratificação do 2.º Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico), constitui, materialmente, uma reserva, ultrapassando a qualificação de uma mera “declaração interpretativa”. O prazo de transição não serve juridicamente para promover alterações ao Tratado, “a posteriori”, à margem de uma nova convenção internacional firmada entre os Estados. II. O Governo procedeu ao depósito da ratificação em 13 de Maio de 2009, tendo, todavia, o aviso de tal ratificação sido publicado em 17 de Setembro de 2010 (através do Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros n.º 255/2010). Deste modo, o início do prazo de transição começou após a publicação referida, seguida do período supletivo de “vacatio legis” de 5 dias (nos termos da Lei n.º 74/98 (“Lei-formulário”), com alterações posteriores). Deste modo, o prazo de transição começou em 22 de Setembro de 2010; razão pela qual terminará somente em 22 de Setembro de 2016 (e não em Maio de 2015, completados 6 anos após a data do depósito, diversamente do que tem sido veiculado). IVO MIGUEL BARROSO Súmula sobre as inconstitucionalidades orgânicas, materiais e formais da RCM n.º 8/2011 : 3 I 1. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25 de Janeiro, é um regulamento independente. 2. O número 1 desta Resolução determinou a antecipação parcial do prazo de transição em 4 anos, 9 meses e 22 dias, mandando aplicar o Acordo Ortográfico à Administração Pública (directa, indirecta e autónoma). Ao determinar a aplicação do Acordo Ortográfico “ao sistema educativo no ano lectivo de 2011-2012, bem como aos respectivos manuais escolares”, o n.º 3 da Resolução do Conselho de Ministros (RCM) foi ainda mais longe: a antecipação do prazo de transição cifrou-se em 5 anos (!!) — remonta, pelo menos, a Setembro de 2011. 2.1. Tanto a norma do n.º 1 como a do n.º 3 da Resolução do Conselho de Ministros contêm normação primária, sendo organicamente inconstitucionais, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP), pois regulamentam, a título principal, direitos, liberdades e garantias. 2.2. Mesmo a Doutrina que admite que um regulamento possa ser fundado numa convenção internacional, sempre ressalva ou exceptua os casos em que haja a reserva de competência legislativa da Assembleia da República. 3. A invocação da base habilitante do artigo 199.º, alínea g), da Constituição não procede, pois, para além de não se poder tratar de um regulamento independente, o caso da regulação do “Acordo Ortográfico” de 1990 (AO) não se subsume aos conceitos indeterminados-tipo, contidos na previsão daquela norma citada, relacionados com o Estado de bem-estar. 4. O artigo 199.º, alínea d), apenas permite que o Governo exerça poderes de superintendência e tutela em relação à Administração indirecta do Estado; e poderes de tutela em relação à Administração autónoma. Ora, o n.º 1 da RCM n.º 8/2011 consubstancia uma ordem (ou, noutra terminologia, “directriz”), incluída no poder de direcção, que o Governo-administrador não tem em relação à Administração indirecta e à Administração autónoma. VERBO jurídico Súmula sobre as inconstitucionalidades orgânicas, materiais e formais da RCM n.º 8/2011 : 4 Assim, afigura-se manifestamente inconstitucional que o n.º 1 da RCM tenha sido “aplicado”, pois o Governo carece de poderes de direcção sobre a Administração indirecta e sobre a Administração autónoma (cfr. art. 199.º, alínea d), “a contrario sensu”); pelo que o n.º 1 da RCM enferma de inconstitucionalidade orgânica (por falta de competência do Governo) e, por esta via, o n.º 1 da RCM é parcialmente inconstitucional (inconstitucionalidade material (por violação do art. 199.º, alínea d)). Em suma, aquela ordem (ou, noutros termos, directriz) não poderá ser aplicada quer à Administração indirecta, quer à Administração autónoma; mas tão-só (e apenas em teoria) à Administração directa do Estado (cfr. art. 199.º, al. d))1. 4.2. As duas Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas só ficariam obrigadas a “aplicar” o AO no tocante à ortografia dos regulamentos por si emitidos; não em relação a todos os demais actos. A Administração regional está submetida ao Governo regional, pelo que não lhe poderia ser aplicada a Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011. Quanto às autarquias locais, o exposto é mais evidente, atentando que apenas é admitida uma tutela de legalidade meramente inspectiva (art. 242.º n.º 1, da Constituição); havendo inconstitucionalidade orgânica (por falta de competência) e material, por violação da regra do art. 242.º, n.º 1, e do princípio da autonomia local. 5. Quanto ao sistema escolar, não é possível aplicar o n.º 1 da RCM, pois as escolas públicas e as Universidades públicas não pertencem à Administração directa do Estado. As escolas públicas, desde o Ensino básico ao ensino secundário, pertencem à Administração indirecta, pelo que, em consonância com o que foi dito, um regulamento administrativo não poderá inculcar instruções a esses entes. Quanto a este ponto, existem restrições flagrantes a direitos, liberdades e garantias, designadamente o direito à língua e à liberdade de expressão escrita; regulamentação essa que não pode ser emitida através de um regulamento administrativo independente. Quanto à “aplicação” do AO às escolas privadas e cooperativas, regista-se restrições a direitos, liberdades e garantias, realizadas inconstitucionalmente, porque não foram realizadas através de uma lei parlamentar (art. 165.º, n.º 1, al. b). 1 Agradecemos ao Dr. JOSÉ LUCAS CARDOSO, Docente da Universidade Lusíada, esta ideia. IVO MIGUEL BARROSO Súmula sobre as inconstitucionalidades orgânicas, materiais e formais da RCM n.º 8/2011 : 5 6. As mesmas normas dos números 1 e 3 padecem de inconstitucionalidade formal a duplo título: por incursão na reserva de lei parlamentar (artigo 165.º, n.º 1, alínea b)) e por carência da forma de decreto regulamentar, constitucionalmente exigida para os regulamentos independentes (artigo 112.º, n.º 6, 2.ª parte). 7. O número 2 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, que mandou “aplicar” o AO aos actos publicados em “Diário da República”, não deveria ter sido “aplicada” a actos jurídico-públicos de órgãos que exercem outras funções jurídicas do Estado diversas da administrativa (: a função constituinte e a função jurisdicional). Salvo o que diz respeito ao artigo 119.º, n.º 1, alínea h), 1.ª parte, da CRP, a antecipação do fim do prazo de transição, nos termos em que foi realizada, pelo n.º 2 da Resolução do Governo, aprovada em Conselho de Ministros, a todos os actos publicados em “Diário da República”, é inconstitucional a título orgânico, formal (devido ao acto não assumir a forma devida) e material (por violar os princípios da separação de poderes (art. 111.º, n.º 1), da independência dos tribunais (art. 203.º, 1.ª parte), da equiordenação entre os órgãos de soberania (cfr. art. 110.º, n.º 1). O n.º 1 é ainda orgânica e formalmente inconstitucional, por violar a regra aludida do art. 199.º, alínea d), da CRP. O desvalor jurídico, tradicionalmente associado à usurpação de poderes, é o da inexistência jurídica. Neste caso, este desvalor mais grave da inexistência prevalece sobre o desvalor da nulidade (sendo esta decorrente dos vícios de inconstitucionalidade material e formal). Existe também a violação do princípio da reserva de jurisdição (art. 202.º, n.º 1), conjugado umbilicalmente com a inconstitucionalidade orgânica. Paralelamente, como se disse, existe uma inconstitucionalidade material, derivada da violação do princípio da separação de poderes (artigo 111.º, n.º 1). 8. O n.º 1 da Resolução do Conselho do Governo Regional dos Açores n.º 83/2011, de 6 de Junho, na parte em que se refere aos decretos legislativos regionais e aos demais actos não incluídos na função administrativa aos quais tenha sido ordenado que fossem publicados em “acordês” no “Jornal Oficial” da Região Autónoma dos Açores, padecem dos mesmos vícios. O Acordo Ortográfico nunca deveria ter sido “aplicado” a partir de Janeiro de 2012, nem poderá, no futuro, continuar a ser “aplicado”, nem às leis de revisão constitucional, nem a certos actos no âmbito da função política, nem aos actos que relevem da função jurisdicional. VERBO jurídico Súmula sobre as inconstitucionalidades orgânicas, materiais e formais da RCM n.º 8/2011 : 6 8.1. Não é o Direito infraconstitucional que prevê, imperativamente, os termos linguísticos que a própria Constituição utiliza. 8.1.1. A CRP não pode ser alterada através de uma lei de revisão constitucional, mediante a consagração de vocábulos estranhos ao Português europeu, seguindo o Acordo Ortográfico, por atentar contra limites materiais de revisão: i) O princípio da identidade nacional e cultural; ii) O “direito à Língua Portuguesa”, derivado do artigo 11.º da CRP; iii) O princípio da independência nacional (devido às remissões para usos e costumes de outros países, para se apurar quais as normas resultantes de algumas disposições do AO, que remetem para o “critério da pronúncia”). 9. Quanto à Administração indirecta e autónoma, existem argumentos suplementares. Com efeito, em nosso entender, o n.º 1 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 é orgânica e materialmente inconstitucional, na parte em que se refere à Administração sujeita a poderes de superintendência e tutela. O n.º 2 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 abrange ainda os actos da função jurisdicional susceptíveis de serem publicados em “Diário da República”; abrangência essa que se afigura ser organicamente inconstitucional, por usurpação de poderes; e materialmente inconstitucional, devido a ferir os princípios da separação de poderes, da independência dos tribunais e da equiordenação (ou paridade) entre os órgãos de soberania (neste caso, entre Governo e Tribunais). Certos actos - em particular aqueles, no âmbito da função política, que não tenham sido “cobertos” ou previstos pelos próprios órgãos em causa, através de deliberações aplicáveis a esses mesmos órgãos -, não são subsumíveis nas previsões das normas do número 1 da Resolução do Conselho de Ministros. Esses actos, por mera interpretação, estão excluídos da “aplicação” dos números 1 e 2 da Resolução do Conselho de Ministros: actos da função política; das autarquias locais e das Universidades; da Administração independente (incluindo o Ministério Público e as autoridades administrativas independentes); o Provedor de Justiça. Todas estas entidades ficam de fora, pois não se lhes de todo aplica a RCM, como decorre do n.º 1 da RCM, “a contrario sensu”, que não abrange literalmente as pessoas colectivas de Direito Público sobre as quais não impendem quaisquer poderes de superintendência ou de tutela por parte do Governo. IVO MIGUEL BARROSO Súmula sobre as inconstitucionalidades orgânicas, materiais e formais da RCM n.º 8/2011 : 7 Ficam também de fora as entidades particulares que exercem funções públicas (instituições particulares de interesse público; empresas privadas que tenham contrato de concessão, etc.). Também o n.º 2 da RCM não é, em geral, aplicável a estas entidades. Também os particulares em geral, fora do contexto dos números 1, 2 e 3, nunca estão obrigados a grafar em “acordês”. 10. Registam-se os vícios de inconstitucionalidades orgânica e formal do número 3 da referida Resolução do Conselho de Ministros, pois essa norma regulamenta aspectos principais; parcelas essas que se encontram reservadas à competência da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP), designadamente no que diz respeito à liberdade académica (artigo 43.º, n.º 1) e à liberdade de criação e divulgação de obra científica, artística ou literária (cfr. artigo 42.º, n.º 2). 11. A norma do número 6 da Resolução do Conselho de Ministros é organicamente inconstitucional, por regulamentar também direitos, liberdades e garantias: o direito à língua, a liberdade de expressão, em particular, a liberdade de divulgação de obra científica, artística ou literária (artigo 42.º, n.º 2). 12. O n.º 1 da Resolução do Conselho do Governo Regional n.º 83/2011, de 6 de Junho, previu a aplicação do AO à Administração regional açoriana, regulamenta, a título principal, direitos, liberdades e garantias (cfr. artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP); padecendo de inconstitucionalidade orgânica e formal, tal como o n.º 3 da mesma Resolução. O n.º 2, que prevê que a publicação do “Jornal Oficial” da Região Autónoma dos Açores seja realizada conforme o Acordo Ortográfico, é orgânica e materialmente inconstitucional, por usurpação de poderes. 13. Os cidadãos, as entidades públicas e a opinião pública em geral foram informados erroneamente pelo Estado português acerca da obrigatoriedade de “aplicação” do AO, em violação do art. 48.º, n.º 2, da CRP. VERBO jurídico Súmula sobre as inconstitucionalidades orgânicas, materiais e formais da RCM n.º 8/2011 : 8 14. O desrespeito pelo AO — ficcionando que seria válido — tem uma dimensão que poderá ser expressa em sanções, designadamente disciplinares, ao nível da Função Pública e dos servidores do Estado em geral, bem como aos trabalhadores do sector privado. II As inconstitucionalidades e ilegalidades “sui generis” do conversor “Lince” e do “Vocabulário Ortográfico do Português” 1. O conversor “Lince” e o “Vocabulário Ortográfico do Português” (VOP) são reconduzíveis a regulamentos administrativos. O conversor “Lince” e o “Vocabulário Ortográfico do Português”, instituídos pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, padecem de inconstitucionalidades várias. Desde logo, o “Lince” e o e o “Vocabulário Ortográfico do Português” padecem de inconstitucionalidade consequente, uma vez que se fundam na Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, que, por seu turno, padece de inconstitucionalidade orgânica e formal; 2. Por outro lado, os mesmos instrumentos, ao interpretarem autenticamente certas normas do Tratado do AO, padecem de inconstitucionalidades orgânica (por falta de competência) e material, por violação do artigo 112.º, n.º 5, 2.ª parte, da CRP. 3. Padecem ainda de inconstitucionalidade orgânica, por regulamentarem direitos liberdades e garantias (cfr. artigo 165.º, n.º 1, alínea b)); e de inconstitucionalidade formal, decorrente de, sendo regulamentos inovatórios relativamente ao Tratado, não assumirem a forma de lei em sentido formal (lei da Assembleia da República ou decreto-lei autorizado). 4. Concomitantemente, registam-se várias ilegalidades “sui generis” do “Lince”, por violação das próprias normas constantes do Acordo Ortográfico. 5. O “Vocabulário Ortográfico do Português” padece de ilegalidades várias e de demérito. Súmula sobre as inconstitucionalidades orgânicas, materiais e formais da RCM n.º 8/2011 : 9 IVO MIGUEL BARROSO 6. As alterações aludidas merecem um repúdio veemente. 7. Todos os diplomas que se basearem na Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 padecem de inconstitucionalidade consequente; designadamente os seguintes: i) Actos da função política, como Resoluções emitidas pela Assembleia da República ou pelas Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas; restantes actos de outros órgãos; ii) Actos da função jurisdicional, emitidos pelos tribunais. 8. A “unificação” entre as variantes do Português europeu e do Português do Brasil não é possível. Os resultados práticos da aplicação do “acordês” do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) em Portugal, desde 2012, foram a desagregação do costume linguístico do Português europeu, substituído pela completa desordem ortográfica. 9. Os actos administrativos de aplicação da RCM n.º 8/2011 padecem de nulidade (nos termos do artigo 133.º, n.º 2, alínea a), do Código do Procedimento Administrativo). Os órgãos estaduais não deveriam obedecer às normas que implementam, de forma ilegal, designadamente ao “Lince” e aos correctores ortográficos; nem tão-pouco obedecer às normas mais aberrantes do Acordo Ortográfico de 1990, devido a padecerem de inconstitucionalidade material. 10. Padecendo várias normas do AO de inconstitucionalidade material, tal como as normas da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, para além de não existir obrigação de obediência, existe, ao invés, o dever de desobediência por parte das entidades públicas (órgãos políticos e jurisdicionais), residindo no ordenamento jurídico português duas regras implícitas que conferem a todas as autoridades judiciais e administrativas: i) O poder de declarar a nulidade de actos inconstitucionais (sob pena de incorrerem em responsabilidade civil); ii) A consequente competência para decidirem “contra legem”. VERBO jurídico Súmula sobre as inconstitucionalidades orgânicas, materiais e formais da RCM n.º 8/2011 : 10 Há argumentos linguísticos mais subtis para alcançar o objectivo de não obedecer ao AO, tais são as incoerências dos instrumentos de alegada “aplicação”. IVO MIGUEL BARROSO Portal Verbo Jurídico | 01-2014