“Escrever
esgota-nos,
atira-nos
abaixo”
Aos 78 anos, continua a ser um dos
mais importantes escritores vivos; o seu
penúltimo livro, “A Humilhação”, chega
agora às livrarias. O Ípsilon bateu-lhe à
porta em Manhattan, e passou uma hora
dentro deste apartamento com vista para
a cabeça de Philip Roth, com vista para mais
de meio século de história americana.
Tiago Bartolomeu Costa, em Nova Iorque
Philip Roth (Newark, 1933) gosta de se
confundir com a sua obra. Ao longo
de mais de 50 anos de escrita, e após
31 livros publicados, o mais respeitado
autor norte-americano, eterno candidado ao Nobel da Literatura, tem na
escrita a sua única razão de existir.
Não gosto do tempo de espera entre
um livro e outro. Escrevo porque é essa
a minha vida.
“A Humilhação”, o seu 30.º livro,
publicado em 2009, saiu por estes
dias para as livrarias portuguesas
com edição da Dom Quixote. Depois
desse já publicou outro, “Nemesis”,
que terá tradução portuguesa em
2012, e, dir-nos-á no fim da conversa, ainda não sabe sobre o que será
o próximo mas anda a escrevê-lo há
quatro meses.
O Roth que nos recebe no seu apartamento é um homem envelhecido,
mas de espírito atento. Mexe-se repetidamente na cadeira, diz-nos que já
foi nadar, que o faz todos os dias, e
que precisa de andar. A energia que
ganha, garante, dá-lhe forças começar a escrever às oito da manhã. Parar
para nos receber foi uma excepção.
6 • Sexta-feira 15 Abril 2011 • Ípsilon
O seu apartamento no Upper West
Side, em Nova Iorque, perto do Museu Americano da História Natural,
é luminoso mas está praticamente
vazio. Vive aqui seis meses e passa
os outros seis no Connecticut, onde
tem uma casa de campo. Recebe-nos
descalço, como quem passou o dia
ocupado com outras coisas, suficientemente à vontade para brincar com
o seu estatuto: é um dos mais importantes escritores vivos, e o único a ter,
em vida, a sua bibliografia completa
editada em versão definitiva pela Library of América. É o mais importante reconhecimento para um autor
que sempre disse haver uma contradição entre a liberdade da escrita e as
distinções dadas pelos governos.
Roth prefere distanciar-se disso tudo. Até de si mesmo: “A fama é uma
distracção sem valor”. Depois de um
corredor pequeno que separa a entrada da sala, e onde se vêem caricaturas suas feitas ao longo dos anos, a
casa divide-se em três zonas. Divisões
pequenas. À esquerda um pequeno
escritório, à direita o quarto, com
uma cama que ocupa toda a divisão,
separada da sala por uma porta de
correr. Na sala, como se estivesse ain-
da na indefinição de quem acabou de
chegar ou se prepara para partir, há
duas áreas. Junto ao quarto, um sofá
e uma cadeira reclinável ladeiam uma
mesa baixa onde estão duas versões
de “O Terceiro Homem”, filme de
Carol Reed, e livros de Primo Levi e
Edna O’Brien. Tem um plasma e uma
aparelhagem grande que competem
com a vista sobre a cidade (foi daqui
que feita a fotografia destas páginas).
Mas o essencial está do outro lado
desta sala de poucas e vazias paredes
(pendurado, só um antigo mapa de
Manhattan, amarelecido pelo tempo). Uma complexa mesa de trabalho,
com um computador de ecrã elevado, onde Roth trabalha de pé. Não há
livros seus, nem muitos mais livros
na sala – ao lado da cadeira onde se
senta, está apenas um enorme álbum
do pintor canadiano Philip Guston,
marcado com pedaços de folhas –, e
a mesa está limpa.
No dia em que o entrevistámos, Roth tinha em casa um mestre de obras
que lhe estava a resolver um problema com os cortinados da casa de banho. “Há 20 anos que aqui venho. É
um bom homem”, diz-nos. “Depois
diga-me o que é que aconteceu”,
NANCY CRAMPTON
A minha avó dizia que o que tinha acontecido antes da
chegada aos EUA pertencia ao passado e, por isso, vivi sem
ter de me relacionar com a pesada herança judaica. Ser
judeu era, para mim, mais uma forma de ser América
Sobre
a condição
judaica
Philip Roth
junto
à grande
janela do seu
apartamento
do Upper
West Side,
em Nova
Iorque, onde
passa metade
do ano: foi
aqui que o
encontrámos
numa tarde
do início
deste mês
Ípsilon • Sexta-feira 15 Abril 2011 • 7
ORJAN F. ELLINGVAG/ DAGBLADET/ CORBIS
atira-lhe Roth antes de ele se ir
embora. “Anda a dar-me conselhos
sobre esta mulher com quem estou
a sair”, explica o mestre de obras.
“E segue-os?”, perguntamos. “Ele é
um homem sensato”, responde-nos.
Philip Roth conselheiro sentimental:
não é um papel que o vejamos a interpretar. “Dá-lhe conselhos sobre
mulheres?”, perguntamos ao escritor. “Ele é um bom rapaz, mas esta
mulher é mais velha”, responde. É
a única referência, ao longo de toda
a conversa, às mulheres, pedra de
toque da recepção à sua obra, vista
como misógina, um universo onde
as mulheres são figuras secundárias
e dispensáveis. “Disparates. Não trato
melhor os homens.”
Ao longo dos anos, este e outros
ataques colocaram-no numa posição
de permanente defesa. Philip Roth
foi, desde cedo, um dos mais polémicos autores da segunda metade
do século XX. De origem judaica,
dedicou-se a desmontar os arquétipos: da religião, das relações entre
homens e mulheres, do sonho americano, da sexualidade, da ficção. Os
seus primeiros contos, e livros como
“Goodbye Columbus” ou “O Complexo de Portnoy”, em que desestruturava o frágil edifício da família judia,
estabeleceram-no desde logo como
iconoclasta.
Hoje recebo prémios da comunidade judaica, mas quando comecei a escrever houve ataques sérios à minha
pessoa. Quem os fazia não conseguia
decidir-se se o que eu dizia era ou não
baseado em experiências que tinha
tido. Era a única preocupação que tinham. Foram ataques muito sérios e
vis de pessoas que não sabiam como é
que eu vivia, qual era a minha realidade e muito menos o que era uma obra
de ficção. Lançaram toda a artilharia
pesada em cima de mim. Acusaram-me
de ser anti-semita. Eu não tinha muito
mais de 20 anos. Foi muito duro e desagradável. É muito desagradável.
Quando lhe perguntamos se os
ataques tinham alguma coisa a ver
com o facto de não pertencer à elite
judia norte-americana, conta que só
escreveu sobre o que conhecia. Mas
“Goodbye Columbus”, o seu primeiro livro, escrito em 1959, é uma
desmontagem dos arquétipos das famílias judias de classes média-alta e
alta, resumidos numa rapariga ideal,
Brenda Patimkin, que se revela uma
desilusão para o idealista Neil Klugman, de origens mais humildes.
Não fui atacado por causa do meu
contexto social ou do lugar de onde vinha, mas por causa do meu trabalho.
Sim, os meus pais não eram ricos. Aliás, nunca conheci nenhum judeu rico
quando era novo. Não era religioso,
nunca fui. A minha avó costumava dizer que o que se tinha passado antes
da chegada deles aos Estados Unidos
pertencia ao passado e, por isso, vivi
sem ter de me relacionar com a pesada
herança judaica e a permanente memória dessa história. À minha volta
nunca vi qualquer sinal da tradição judaica, nem cabelos caídos em cachos,
nem homens de barba, nem vestes pre8 • Sexta-feira 15 Abril 2011 • Ípsilon
tas. Ser judeu era, para mim, mais uma
forma de ser América. Sabe, eu era
demasiado pequeno quando a Segunda Guerra Mundial aconteceu. Tinha
oito anos quando os Estados Unidos
entraram na guerra contra o Japão, em
1941, mas sei que os judeus americanos
passaram um mau bocado durante a
guerra. O meu irmão, mais velho cinco
anos, quando foi para a marinha, em
1946, falava de algum anti-semitismo,
mas eu era demasiado pequeno para
me lembrar. Não duvido que existisse.
Há uma história, aliás, com o filho de
uma família amiga dos meus pais, que,
mesmo depois de a guerra ter acabado,
foi atirado borda fora do barco onde
todos regressavam: um dos tipos começou a implicar com ele por ser judeu.
Houve uma grande pressão anti-semita
a partir da década de 30, que teve proporções à escala mundial, e a América
era parte disso. Durante a guerra, a
segregação era muito forte. E foram
precisos 50 anos para as mudanças
serem ser radicais. Mas foi assim que
a América foi construída.
É este o contexto de “A Conspiração contra a América”, livro em que
Roth homenageia os seus pais e as escolhas que eles fizeram, reinventando a história da América. É um inteligente fresco histórico que equaciona
a hipótese de o Presidente Franklin
D. Roosevelt ter perdido a reeleição
para Charles A. Lindbergh, o aviador
que atravessou o Atlântico e que era
amigo pessoal de Hitler. Roth leu
num livro que o Partido Republicano tinha considerado Lindbergh, nos
anos 40, para candidato presidencial
contra o democrata Roosevelt, e escreveu, à margem do que estava a ler,
“e se?”. Em “A Conspiração contra a
América”, Herman Roth, personagem inspirada no pai do escritor, é
levado a considerar a deslocalização
do seu trabalho como vendedor de
seguros para o interior dos EUA, coagido pelos simpatizantes nazis que,
entretanto, tinham ocupado os principais cargos políticos do país, dada
a aliança dos EUA com a Alemanha
de Hitler. O discurso final desse pai,
que se vê cada vez mais isolado, fala do significado da história feita em
cada casa.
Ele fala da importância de cada
uma das nossas escolhas e de como,
por mais pequenas que as nossas vidas
sejam, têm uma importância histórica semelhante à da História que fica
nos livros.
Nesse livro Roth conta o que se teria passado se a História tivesse sido
diferente. E fá-lo sob a perspectiva de
um miúdo, com o seu nome.
O que queria contar não podia ser
contado com a nostalgia do passado.
Tinha de ser um miúdo a falar, com
tudo o que isso implica. Eu estava na
idade certa para ser um pequeno patriota. Na escola ia todas as semanas
para um auditório cantar canções para os serviços militares: a canção para
a marinha, a canção para o exército, a
canção para a força aérea... Participava em missões de angariação de fundos
para as tropas e para o que chamavam
Aos 78 anos,
Roth, já não
faz questão de
sair à rua para
se manifestar:
“Fi-lo nos anos
do Vietname,
mas prefiro
escrever a
marchar. Mas
marcho. Se for
preciso,
marcho”
de esforço da guerra, com recolhas de
latas, por exemplo. Tinha missões.
Essencialmente, fiz o que me era pedido quando era miúdo, até deixarem
de mo pedir. Nesse sentido, nunca fui
rebelde. O que as pessoas escreveram,
dizendo que eu comecei a transgredir,
é uma invenção. E um ataque sério, vil
e pessoal.
Em 1974, Roth defendia-se numa
carta publicada em “Reading Myself
and the others”: “Ao longo dos anos,
quaisquer actos sérios de rebeldia nos
quais me possa ter envolvido como
romancista foram certamente mais
direccionados aos limites da minha
própria imaginação e ao modo como me exprimo do que aos poderes
que ambicionassem qualquer espécie de controlo no mundo”. Hoje diz,
ao falar da sua infância, que veio de
“uma classe média-baixa que conseguiu, com os anos, tornar-se de classe
média”.
A minha escola, onde eram todos judeus, produziu muitos miúdos espertos
que foram para a universidade. Fomos
a primeira geração a consegui-lo. O
meu pai nem o liceu fez. Era filho de
imigrantes, nasceu em Nova Jérsia. No
tempo dele, dois em cada três alunos
nunca passavam além do oitavo ano.
Ele trabalhou numa fábrica e, já mais
velho, começou a fazer alguns biscates
como electricista, até se tornar agente de seguros para a Metropolitan Life
Insurance, ascendendo ao escalão máximo que era, na altura, permitido a
um judeu.
Os judeus são presença fundamental na sua obra. O modo como lidam
com o passado, a noção de territorialização dos judeus norte-americanos
de segunda geração, os conflitos com
a tradição e o debate sobre o lugar de
Deus são a espinha dorsal da obra
de Roth, mesmo que sempre tenha
dito “não ter no corpo um único osso
religioso.”
É a partir da relação de recusa com
um corpo vitimizado que Roth estabelece o perfil do novo homem em
construção numa América que se diz
igualitária. Ao longo da sua obra, desdobrou-se em diversos alter-egos que
serviram para desenvolver diferentes
linhas de pesquisa. Com Nathan Zuckerman, aspirante a escritor, reflectiu, em nove livros, sobre o processo
de emancipação e construção de um
autor na América do século XX. Com
David Kepesh, professor universitário, parodiou a literatura (“The Breast”, “The Professor of Desire”, “O
Animal Moribundo”) e cruzou-a com
Nem no tempo do [George W. Bush] eu pensei
que a liberdade estivesse em causa (...). A América é a mais
livre sociedade para escritores que se possa imaginar.
Não me imaginava a viver noutro sítio
Sobre
a América
vejo como uma vantagem, porque não
se cai na auto-censura.
Roth cita de memória uma conferência de Georges Steiner nos anos
80, em que o crítico literário francês
afirmou que “a literatura morreu e só
pode existir em países onde os autores sofram algum tipo de pressão
ou repressão”, e indigna-se: “Como
é que se pode dizer uma coisa destas? Na [antiga] Checoslováquia, vi
pessoas a serem realmente atacadas,
perseguidas e obrigadas a fazer outro tipo de trabalhos porque estavam
impedidas de escrever. Pode dizer-se
que tinham algum prazer nisso em
nome da causa da literatura? Eu fiz
muitos amigos e escrevi sobre isso
[“The Prague Orgy”, pequeno livro
em que Nathan Zuckerman se envolve numa enredada história pessoal
durante um congresso de escritores
perseguidos], e envolvi-me em muitas actividades para os ajudar. Não faz
qualquer sentido para mim admitir
que aqueles que são perseguidos, isolados e difamados estejam a ajudar a
literatura ou a melhorar a escrita. E o
contrário também deve ser verdade,
imagino. Não é função da literatura
ser política, nem a missão do escritor
ser político. Que podemos realmente
fazer? Nada.”
Hoje diz que não se envolve em manifestações nem acredita em grandes
causas.
territórios reais, eminentemente eróticos, contaminados por essa mesma
literatura (Milan Kundera descreveuo como “o grande historiador do erotismo americano, o poeta da estranha
solidão do homem abandonado ao
seu corpo”).
As suas intervenções biográficas, sejam elas reais (“Património”,
“The Facts”), ficcionais (“My Life
as a Man”, “Deception”), ou simples recolhas de textos e entrevistas
(“Reading Myself and others”, “Shop
Talk”), revelam um homem que buscou a realidade através da ficção. As
personagens são as suas marionetas.
Ele é o ventríloquo. Não por acaso,
em “O Teatro de Sabbath”, um antigo
marionetista judeu protagoniza uma
história que explora, de forma sarcástica e cruel, a ficcionalização do mito
judeu numa Nova Iorque também ela
a braços com uma História inventada, em parte, a partir da ideologia
judaica.
Ficcionalização e mitologia são
aliás, ao longo dos seus livros, fontes primordiais de inspiração. E, pelo caminho, é a própria história da
América, a pequena e a grande, que
vai contando.
Roth não recusa pertencer à geração que teve de responder à ideia de
construção do sonho americano.
Os autores americanos são regionalistas. Eu próprio, ao situar os meus
livros em Newark, o sou. Como é que
se pode falar da ideia de América como
um todo? A História é uma coisa fugaz.
Eu não conhecia outra realidade, era
feliz e, por isso, talvez não fosse muito
consciente das consequências do que
escrevia. E ainda bem. Talvez existam
algumas pessoas que acreditem em
consequências, eu não. Nunca foi muito importante pensar nisso. Nunca foi
importante pensar no que o leitor quer
ler. Isso é da sua responsabilidade.
Quando escreveu “O Complexo de
Portnoy”, fantasia sexual em que deitava por terra os mitos judeus acerca
do corpo, Roth foi ao mesmo tempo
incensado pela critica e transformado num bode expiatório do mal-estar
social em relação aos judeus. As confusões entre o autor e o protagonista marcaram, indelevelmente, o seu
percurso. Numa carta que recebeu
após a publicação de “O Complexo
de Portnoy”, uma leitora insurgiase contra o modo como Roth tratava a sua própria família. Num texto
de 1974, o autor cita esta carta para
exemplificar aquilo que hoje apelida
de “contos de fadas”: “Das centenas
de cartas que recebi após a publicação do livro, houve uma de uma mu-
lher de East Orange, Nova Jérsia, que
afirmava ter conhecido a minha irmã
quando eram colegas de carteira no
liceu de Weequahic, em Newark, onde as crianças da família Portnoy iam
à escola. Ela lembrava-me de como
a minha irmã era uma menina doce,
adorável e educada, e tinha ficado
chocada com o modo descuidado
como eu tinha escrito sobre a sua
vida íntima, especialmente com as
piadas sobre a sua infeliz tendência
para ganhar peso. Ora, uma vez que,
e ao contrario de Alexander Portnoy,
eu nunca tive nenhuma irmã, assumo que a senhora se esteja a referir
a qualquer outra rapariga judia com
um problema de peso.”
O exemplo prova apenas, segundo Roth, que as pessoas dizem o que
for preciso só para dizerem alguma
coisa.
Posso dizer que fiquei impressionado
e surpreendido pelas consequências que, é preciso dizer, são banais quando
comparadas com consequências reais
pelas quais passam outros escritores,
como os que conheci nos regimes comunistas da antiga Europa de Leste.
Quando se escreve, está-se de tal forma
envolvido na escrita, a fazê-la, a criála, que não se pensa que alguém vá ler
e pensar o que quer que seja... E isso eu
Não gosto de me manifestar. Fi-lo
nos anos do Vietname, mas prefiro escrever sobre isso a marchar. Mas marcho. Se for preciso, marcho. A única
causa pela qual a literatura deve lutar
é a própria causa da literatura. E essa
é uma batalha perdida, parece. Daqui
a uns anos duvido que a literatura continue a ser algo importante. Ler livros
será um gesto, e uma escolha de uma
minoria. A literatura não pode competir com nada. Nem com o cinema,
nem com a televisão, e muito menos
com a Internet. Precisa de tempo. E ou
o leitor se compromete com o que está
a ler, da mesma forma que o escritor
se compromete com o livro, ou não
acredito que se possa sequer ler. Ler
é um exercício de atenção. Tal como
escrever. Pelo envolvimento que exige,
escrever não deixa espaço para mais
nada. Eu sou, resumidamente, alguém
que passa o dia a escrever.
Quando falámos, Barack Obama
tinha anunciado, dias antes, a sua
recandidatura, mas aguardava-se a
aprovação do orçamento de Estado
para 2011. O impasse nas negociações
entre democratas e republicanos tinha levado à hipótese de fecho do
Governo federal, entretanto resolvido através de um acordo que prevê
cortes históricos nas contribuições
do Estado para reformas em diversas áreas.
podia. Tornou-se num mesmo desafio
livro após livro. E mesmo que pudesse
fazer alguma coisa, o que seria? Há
muitas vozes na sociedade, do lado
certo, que podem falar.
Roth, apoiante de Obama desde
a primeira hora, faz uma avaliação
muito positiva do seu primeiro mandato. E depois acrescenta: qual é a
alternativa?
Os outros são horríveis, horríveis.
Eram-no há cem anos e são-no agora.
Faltam-lhes estrutura, entendimento
e compaixão humana. Mas digo isto
e nem no tempo do [George W.] Bush
eu pensei que a liberdade estivesse em
causa. Ninguém se meteu no meu caminho, nem no caminho de alguém que
eu conheça. Ninguém se censurou. Não
acho que exista um autor na América
que censure uma palavra do que escreve. Talvez existam autores comerciais
que cortem no que escrevem, para servir vários públicos, mas é a mais livre
sociedade para escritores que se pode
imaginar. Não me imaginava a viver
noutro sitio.
A América é, de facto, o território
que Roth tem vindo a desenhar ao
longo dos anos. Quando regressou
de Inglaterra, em meados de década
de 80, depois de lá viver 12 anos por
causa do casamento com a actriz Claire Bloom [que escreveu uma biografia, “Leaving the doll’s house”, onde
disseca essa casamento, tema sobre
o qual Roth jamais fala em público,
dada a violência a que ambos foram
sujeitos], estava sedento pela América. Escreveu três livros, a sua trilogia
americana (todos editados em português: “Pastoral Americana”, “Casei
com um Comunista” e “A Mancha Humana”) que marcaram o regresso a
Nathan Zuckerman, figura central na
sua obra e seu duplo. “Interessavame usar a sua inteligência, a sua historia, e especialmente a sua cabeça, os
seus olhos, a sua voz para falar do que
queria. Não os seus genitais, não a
sua vida, só isto, a cabeça, a mente”.
Zuckerman é aqui o narrador, e a sua
história cruza-se com as das outras
personagens. Em “Pastoral Americana”, observa a falência do sonho
americano através de uma família (ele
um famoso jogador de beisebol na
escola, ela uma misse da cidade) cuja
filha é acusada de ter participado em
manifestações violentas na segunda
metade da década de 60. Em “Casei
com um Comunista”, usa as suas memorias de infância para relatar o
O que se vive agora não é um desastre, são diatribes políticas. Não é da
minha responsabilidade o que se passa. Não estou no negócio da política,
estou no negócio dos livros. Da minha
geração, dos nascidos nos anos 30 e
40, talvez um por cento sejam escritores. A missão era escrever o melhor que
Ípsilon • Sexta-feira 15 Abril 2011 • 9
que aconteceu a um famoso actor
de folhetins radiofónicos que se casa
com uma estrela em ascensão quando esta o denuncia por conspiração
comunista. E em “A Mancha Humana”, é o “affair” Bill Clinton-Monica
Lewinsky que serve de detonador para uma reflexão sobre uma América
a braços com a denúncia, a suspeita
e a acusação fácil.
Zuckerman, tal como Roth, vai de
aspirante a escritor (“The Ghost Writer”) a autor acossado pelo sucesso
de um livro (“Zuckerman Unbound”)
e pelos problemas que isso traz à sua
vida pessoal (“The Anatomy Lesson”)
e a activista político (“The Prague Orgy”).
Numa entrevista publicada em
1985, explica: “Ainda que para alguns
leitores possa ser desconcertante desembaraçarem a minha vida da de
Zuckerman, a dele é uma biografia
imaginária”.
A verdade é que, por duas vezes,
Roth cruzou a fronteira da realidade,
transformando-a em ficção. Em “Património”, apresentado como “uma
História verdadeira”, contava a doença do pai e o modo como se projectava nela. Escrito de forma crua,
demoramos a admitir que não seja
ficcionado. Mas é a mais biográfica
das suas obras, mais até do que “The
Facts”, onde se concentra nos primeiros anos da sua vida de escritor a braços com o sucesso e o escândalo.
Roth acredita que “O Fantasma Sai
de Cena” será o fim de Nathan Zuckerman. Como os primeiros cinco
livros deste ciclo não se encontram
editados em português, escapa-nos o
essencial desta vida ficcionada e, sobretudo, o modo como tudo é lógico
e sequencial. Até para o autor. Neste
último volume, Zuckerman é um velho escritor com problemas na próstata, forçado a defender a distinção
entre ficção e realidade perante as
intenções de um jovem idealista que
insiste em biografar o escritor que teve como modelo, no início da sua carreira. Pelo meio, Zuckerman encontra
a sua fantasia amorosa, Amy Bellete,
a rapariga que no primeiro livro ele
achou ser Anne Frank, e que se tornaria o seu primeiro e sério amor. É
como se Roth abraçasse uma causa
que nunca foi a dele, a da redenção
judaica, através de uma revisão do
percurso da sua personagem (e da sua
própria evolução). Neste livro, Amy
é, também ela, velha, e morrerá com
um tumor cerebral. Às acusações de
que era mais uma forma de Roth se
vingar das mulheres e, no caso, da
única que não cedeu ao charme de
Zuckerman, Roth diz agora:
Não foi o Zuckerman que lhe deu
o tumor, fui eu. Tive uma amiga que,
por causa de um tumor cerebral, teve
alguns problemas mentais. Ocorreume que era assim que a Amy Bellete
devia morrer, destruída e doente, e não
como a menina bonita que foi. O que
dizem não é se não uma interpretação
fácil das coisas, feita por quem não tem
nada para dizer.
Chegado ao fim desse ciclo, Philip
Roth tinha já iniciado um outro, com
10 • Sexta-feira 15 Abril 2011 • Ípsilon
Sobre
o suicídio
Philip Roth em 1960,
com os outros dois premiados
do National Book Award
(Robert Lowell e Richard
Ellmann, da esquerda
para a direita): ao vencer
com “Goodbye, Columbus”,
Roth, então com apenas
27 anos, tornou-se o mais jovem
vencedor de sempre do prémio
Esgota-nos, atira-nos abaixo.
Esse compromisso, que Roth não
rejeita comparar com a entrega religiosa, é feito frase a frase.
Gosto de fazer, pelo menos, uma
página por dia. Quando começo nunca tenho nada. O livro educa-me. E
à medida que vou entrando, vou conhecendo melhor o próprio livro; o
que me é sugerido, é-o à medida que
o vou escrevendo. A frase é a unidade de progresso. Podia ser pior e ser
uma só letra. Tudo o que tento fazer
é ligar uma frase à outra e tentar que
produzam um sentido. Procuro fazer
uma frase o melhor que consigo. E perceber isso é um trabalho tão complexo
que não pode ser distraído por nada.
Estou constantemente a regressar a
essas frases. Revejo parágrafos uma
e outra vez. E quando termino nunca
está pronto. Fecho a página para esse
esboço. E depois faço outro esboço, E
posso ir de quatro a dez esboços por
livro. Os outros vão para um arquivo.
Mas nada lhes acontece.
“Todo-o-mundo”, pequena novela
sobre o envelhecimento que começava no funeral de um homem sem
nome. “Não há qualquer nostalgia
sobre o envelhecimento. As pessoas
preparam-se para a vida de certa forma, e têm certas expectativas acerca
das dificuldades que vêm com a vida.
Depois ficam cegas pelo presente, a
história surge-lhes das formas mais
diversas, para as quais não há qualquer preparação.”
Antes de “Todo-o-Mundo”, já “Património” e “O Fantasma sai de cena” tinham tido o envelhecimento
como tema. E, em “The Anatomy
Lesson”, Roth projecta pela primeira vez no seu protagonista o mesmo
tipo de problemas físicos que o vão
assaltar: um grave problema de costas que o leva, ainda hoje, a ter de
escrever de pé.
“Fui chamado para me alistar em
1955, apesar de a Guerra da Coreia
ter acabado em 1953, mas diagnosticaram-me graves problemas nas
costas e fui dispensado, depois de
meses no hospital. Andei semanas
a limpar o chão junto das camas dos
mais desgraçados, sem conseguir
olhar-lhes no rosto, mas a saber que
me tinham posto ali com uma razão”,
conta em “My Life as a Man”, romance inspirado em factos reais, como
o primeiro casamento falhado e os
efeitos disso na sua vida. Os delírios
pelos quais passou no hospital voltarão a surgir em “Indignação”. Os
auto-reenvios são uma constante da
sua obra, que ao longo dos anos Roth foi arrumando em blocos (“Livros
de Zuckerman”, “Livros de Kepesh”,
“Livros de Roth”, “Miscelânia”, “Outros livros”). Agora que escreveu “Nemesis”, criou mais um bloco em que
juntou “Todo-o-mundo”, “Indignação”, “A Humilhação”: “Nemeses:
short novels”.
Claro que de vez em quando há semelhanças, mas espero que não muitas vezes. E se houver, pior para mim.
Quando escrevo não penso nos outros
livros. Isso é uma ficção inventada por
quem lê, como se a vida fosse linear e tivesse um só sentido. Tento não ler o que
escrevi. O problema é que não suporto
os livros depois de escritos. Esqueço-me
deles até certo ponto. Às vezes tenho
que lá ir, por causa de conferências,
mas apenas para poder responder
adequadamente. O que me interessa é
sempre o próximo livro. Não gosto do
vazio entre um livro e o outro e nunca começo um livro sem fazer outro.
Há uns anos tentei fazê-lo, mas nunca
consegui.
Em “A Humilhação”, Roth parece
colocar Simon Axler, um actor que
se sente incapaz de continuar a representar, à beira do precipício e do
bloqueio.
Queria fazer um livro em que uma
personagem cometesse suicídio. A tarefa era convencer o leitor a acreditar
que o suicídio era verdade. E que, já
agora, era merecido. Era essa a minha
tarefa enquanto escritor. Inventei-o para chegar lá. Foi assim que foi traduzido? Não reflecte exactamente o sentido
do livro. Ele não se sente humilhado.
O sentimento é mais de modéstia ou
humildade.
Ele é Simon Axler, actor de grandes
papéis, como Prospero, o protagonista de “A Tempestade”, de Shakespeare, que se sente incapaz de voltar a
representar e que, após um desastre
amoroso, decide suicidar-se. Roth diz
que pensou várias vezes no suicídio e
nunca o fez porque prefere viver.
Seria idiota. Mas tive alguns amigos
que o fizeram. Todos os que cometem
suicídio têm uma escolha, que é sair
disso, mas não conseguem.
E diz também que o mais estimulante na escrita do livro foi convencer
o escritor a encontrar argumentos
para justificar, desde o início, que no
fim ele se vai suicidar.
Era importante que essa decisão
ocorresse não como consequência do
abandono da rapariga, mas porque
estava premeditado, tal como avisa
Tchékhov: ‘se uma espingarda aparece no primeiro acto, ela deve ser usada’. E é a sua vida com a rapariga que
espoleta o desejo de se matar, não é o
facto de se achar incapaz de representar. Esse é o primeiro choque. Pensarse-ia, se fosse escrito de outra forma,
que, por ele não conseguir ficar com a
rapariga, não conseguiria representar e matar-se-ia. Mas agradava-me a
ideia de ela chegar e fazer isso acontecer. E por causa da sua vida, deixa-o,
ele fica desfeito e perdido, e mata-se.
Como sempre.
Esta desmontagem da sequencia
narrativa é aliás característica em
Roth. Em “The Counterlife”, o protagonsta, Zuckerman, morre num capítulo, para noutro aparecer vivo. Em
“Operation Shylock”, Roth segue um
duplo seu até Praga para se perder,
como Kafka, nos meandros de uma
complexa operação policial, deixando de saber se é o verdadeiro Roth.
E em “The Facts”, coloca uma personagem, novamente Zuckerman, a
comentar a vida do próprio autor.
Esta recusa dos modelos clássicos
de narrativa, respondendo ao desafio de criação de uma nova forma
de compromisso com a sua missão
de escritor, é feita à margem do que
possa interessar aos leitores.
Não sinto nenhuma dependência
em relação aos meus leitores. Esse é o
trabalho deles. E não leio o que é escrito sobre mim, tento evitar tudo isso. E
pode-se evitar cerca de 80 por cento.
Depois há sempre um amigo que envia
alguma coisa por email, mas não estou
interessado nisso. Todos têm opiniões e
todos temos de viver com elas. Há sempre artilharia pesada que é lançada sobre ti. Mas os teus amigos sabem quem
és, e tua família sabe quem és. Nada
mais importa. Mas é claro que não é
fácil. Não é para mim e não imagino
que seja para alguém. Muitas profissões são um peso, esta é uma delas. É
um peso que exige muito compromisso.
Com os anos, centenas de caixotes
acumulados por Roth têm seguido
para a Biblioteca do Congresso, que
está a arquivar o espólio do escritor
(correspondência, esboços e textos
diversos). Para Roth, é um alivio poder libertar-se de tudo isso.
Eu não acho que aquilo tenha algum
interesse, mas eles pagam-me para eu
lhes dar aquela merda acumulada em
caixotes. E eu envio. A cada cinco anos.
Eles guardam, arquivam, põem em ordem, anotam. Acho que é uma grande
perda de tempo, mas é uma belíssima
instituição.
Para Roth, publicado o livro, o
trabalho está completo: “O livro que
publico é o livro que eu gostava que
fosse publicado, nada mais.” Roth diz
que tem dois executores testamentários responsáveis pelo seu legado
depois de morrer.
Não me interessa o que vão fazer, o
que está estipulado é que, sendo pessoas de confiança, saberão fazer o que for
melhor. Eu sou muito céptico quanto
ao valor destas coisas, mas cada autor
tenta ter um arquivo. Devia queimar
todas as minhas coisas? Não sei. Penso
no Kafka, mas o [editor] Max Brody
fez um trabalho importante e nobre,
ao não queimar o trabalho de Kafka.
Consegue imaginar um mundo sem
Kafka?
Um mundo sem Kafka, dizemoslhe, seria um mundo sem “The Breast”, nitidamente inspirado em “A
Metamorfose”: um professor de literatura, David Kepesh, acorda um
dia para perceber que se está a transformar num seio. Mas e um mundo
sem Philip Roth?
Eu posso imaginar o mundo sem
Philip Roth, ia sair-se bem. Eu sou só
um tipo que escreve livros. É mais do
que suficiente.
Ver crítica de livros na pág. 34 e segs.
BETTMANN/ CORBIS
Suicidar-me seria idiota. Mas tive alguns amigos
que o fizeram. Todos os que cometem suicídio têm uma
escolha, que é sair disso, mas não conseguem
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“Escrever esgota-nos, atira-nos abaixo”