TRÊS TEMPOS DE UM CRUZEIRO - Crônica Do Livro BAMBUS I – Revivência. Revisado em 2008 I .Turismo quase selvagem. 1992. O navio era russo. Ou quase. Kazaquistão, seu nome. De Odessa, portanto Ucraniano. Só que a derrocada soviética estava recentíssima. E a popa ainda carregava, por via das dúvidas, a bandeira vermelha do Kremlin. Na contradição, financiado por uma classe média abastada alemã tirando onda VIP... E nós. (Não me perguntem como fomos parar lá!) E o ritmo a bordo ainda era marcial. A atmosfera defensiva e desconfiada. E aquela altivez de grande potência nuclear. Bom, nuclear até que eles continuam sendo... E lidavam com a gente com o rigor despeitado para com os estúpidos consumistas ocidentais. Tornava-se ainda mais cruel na hora das complicadas e rarefeitas refeições. Pretensa sofisticação que parecia zombar da gente. Sucessão de pratos com pomposos nomes multilingues e muito escassa substância. Aliás, “comme il faut”, não tivessem todos mais ou menos o mesmo sabor. Cardápio vegetariano? Expressão de nojo fingindo misericordiosa indiferença. E ai de você se aparecer 15 minutos atrasado! O que você perdeu da maratona “garni” está perdido para sempre. Preciosas graminhas jamais repostas, só para educar os selvagens. E de repente, o subalterno submisso somos nós, a despeito de todos os “Deutsche Mark” de investimento. E comportem-se, que vocês foram apanhados em território soviético e aqui quem manda somos nós. E bem que vocês precisam de um pouco de disciplina, seus decadentes! Salão Bayconur lotado. Duzentos alemães famintos esperando a primeira salsa. E de lá da porta da cozinha vem o PF da ET aqui. A garçonete traz o prato erguido bem alto, para que ninguém deixe de ver. No rosto bonito geralmente carrancudo, um sorriso perverso. Castigo para a impertinente excentricidade do meu vegetarianismo, completado com a retirada sumária do meu direito às demais etapas da refeição, mesmo as que em nada feriam meu regime. Não me davam escolha. E não falo nem russo nem alemão, pra reclamar! Meu inglês, solenemente ignorado como se fosse suahili. Acabava falando português só de vingança. Sim, mas o Prato Feito. Duzentos pares de olhos rancorosos e estômagos vazios esperando a garfada inicial, que eu retardava até que começassem a servir... e que meu PF estivesse gelado em mais penitência. A cada refeição, o constrangimento e a indignação me embrulhavam as vísceras. Fui educada até que me encheram um creme de espinafre de pimenta. Desta vez o “mâitre” me compreendeu. E a maratona: “Buillon mit ei”, “Gemüserisotto”, “Srasi mit Pilzsauce”... Geralmente saía antes, bem antes, para a cumplicidade e a paz do Mediterrâneo. Ah, azul profundo incomparável! Acabava sempre por me devolver a mim mesma. Superava até o confinamento nas baias que eles Todos os Direitos Reservados – Jandyra Navarro chamavam “camarote”. Ou a falta de um metro quadrado de privacidade e silêncio. Silêncio p’ra quê? O horizonte brumoso e sem fim, me salvava do “lazer” perpétuo ao redor. Do burburinho das conversas fúteis, noite e dia. Das bandas! Duas, três... Uma em cada convés, “alegrando” o ambiente “ad nauseam”! E quando descansavam, os alto-falantes do próprio navio assumiam. Às sete horas da manhã a teletela infernal da minha cabeceira já começava a tocar sua “alvorada”, recitando o programa do dia. De meia em meia hora, uma atividade para entorpecer o rebanho. Coquetel na Sala de Jogos, concurso da Rainha do Kazaquistão, “show” na piscina do convés principal, baile do Capitão, que, aliás, apenas se dignou a percorrer o salão engalanado em sua honra, para sumir de novo nos secretos recessos da “área restrita”. Durante três dias tentei descobrir como desligar aquele disfarce de rádio. Decidi por destruí-lo e salvaguardar o resto da sanidade. No quinto dia, com a perspectiva de mais dez, comecei a acordar de madrugada para algumas horas de silêncio e solidão. A imensidão entregue finalmente a si mesma! A espuma pesada de sal, que o vento poderoso me atirava por cima da amurada. Foi numa destas mágicas vigílias solitárias que tive o privilégio de testemunhar a travessia. 2. Dardanelos. De dentro do meu tormento aprisionado, pouco era o interesse pela geografia. Só buscava meus momentos de paz, ainda que me extasiasse com a consciência, sempre súbita, de estar cruzando as Cíclades, ou admirando a árida costa de Lesbos. Duas horas da madrugada e estou perambulando pelo convés dos botes. Vento fortíssimo, constante e frio. Mas nada pra perturbar o silêncio precioso! Nem o mar furioso que açoita o casco. O navio estremece a cada coice. Avalanches de espuma se despejam pela proa e logo são dispersas em nuvem de sal. O cabelo arrancado do lenço inútil chicoteia meu rosto dormente. Toda molhada e feliz, me debruço por cima do convés principal, bem na proa e na cara do vento. Lá embaixo, a quilha avança indiferente à resistência tempestuosa do mar. Cheiro de tabaco passa no vento em baforadas. Custo a distinguir a origem. No convés inferior, acocorado e imóvel junto às correntes, um marinheiro vigia as âncoras. A roupa azul escuro o tornaria invisível, não fosse a cabeleira loura e o cachimbo de fumo barato, que compartilhamos numa intimidade inusitada. De repente, de dentro da noite escura e do horizonte vazio, o vulto da costa começa a se insinuar. Terra, depois de dias de só mar e ventania! O contorno indistinto vai se impondo depressa à claridade difusa e tímida do luar. Colinas borrifadas de purpurina dourada, mais e mais perto. Miríades de luzinhas!... Meu Deus, aquilo lá é o Dardanelos! Vamos entrar no Dardanelos! Todos os Direitos Reservados – Jandyra Navarro O alto-falante atrás de mim estala e me assusta. Uma voz grave atira um tropel abrupto de sons abafados. O homem do cachimbo se levanta e manuseia as catracas das âncoras. Diminuímos a marcha. Guinada para bombordo e percebo um cabo que invade o mar lá adiante. E crescendo de pressa... Vamos contornar. O estreito então aparece bem à frente. Bem estreito mesmo! O marinheiro espera no seu posto, baforando a fumaça doce. Um passageiro importuno vem quebrar meu privilégio exclusivo com uma câmera de vídeo. Passa sem me ver e vai embora para estibordo. Uma lanchinha branca se aproxima. O navio acende o convés principal, abaixo de mim. Súbita e ofuscante orgia de luz. A lancha acosta no nosso flanco direito e o prático turco salta para o navio. Um oficial russo passa para a lancha como numa troca de reféns. A lancha se afasta. Começamos a entrar no estreito, bem de vagar. Dardanelos, eu e a madrugada turca! Por que estas coisas comigo são sempre inesperadas? A costa é montanhosa dos dois lados. À esquerda, uma imensa fortaleza bizantina, destacada para os turistas por focos alaranjadas. Adiante outra, altiva. À direita, uma cidade grande. Lembro do mapa, consultado dias antes pelo Otmar: Canakale. E como é longo, o Dardanelos! Perco-me no tempo. Até que, finalmente, a boca negra do outro lado se abre lá longe. O céu já começa a aperolar-se para Leste, sentenciando o fim da liberdade. O sol me encantará de novo em turista. As luzinhas polvilhadas pelos montes reforçam o negrume do mar aberto adiante, que se aproxima depressa... depressa... E mergulhamos de novo no vazio escuro de céu-mar sem referências. O vento nos recebe solto outra vez. A realidade viva é de uma força tão brutal, que não deixa espaço a pensamento. Preenche e transpassa e dilui nas rajadas raivosas, como a espuma, que explode de novo, dilacerada pela quilha e rapidamente se desfaz no ar. O horizonte vai se enrubescendo todo de alvorada. A lancha volta a acostar. Nova troca de reféns. Apertos de mão. Eles pulam de um barco para outro com a desenvoltura de quem salta uma sarjeta de água suja. A lancha se afasta. O prático acena para alguém, todo sorriso, indo para casa tomar café. Outro marinheiro aparece no meu convés para arrumar as espreguiçadeiras. Olha para mim e diz qualquer coisa. Um dia desses vou aprender russo. Deixo-o com seu trabalho. Última olhada no mar, de vales e cumes de turbulência espumosa. Chumbo e cobre de um Mármara, que não é mais azul. Todos os Direitos Reservados – Jandyra Navarro 3. Istambul . Foi na volta de Yalta que o navio aportou em Istambul. Passamos o dia na cidade. Dia comum de semana, de um setembro ensolarado. Surpreendeume a sensação de vida, que, pela segunda vez, em meses, veio relampejar minha sombria indiferença enlutada. Cidade lenda. Na fervilhante atmosfera colorida e meio proletária, lembra alguma coisa do Rio de Janeiro. Só que densa da história dos séculos! Predestinada para a ambição dos povos por sua localização especial, ela costura Europa e Ásia num passo sobre o Bósforo. E a bagagem de três dos maiores impérios do mundo: o Romano, o Bizantino e o Otomano. Marcada por guerras incontáveis, Cruzadas, pestes, saques, incêndios... Mas sempre renascida para o indispensável de uma passagem estratégica entre Oriente e Ocidente. Hoje não é mais o mítico ponto final do “Orient Express”. Mas estará sempre no entroncamento de duas culturas. O trânsito intenso em avenidas largas e prédios modernos de grande metrópole escondem ruelas velhíssimas nesta profusão de bazares e construções amontoadas que o Ocidente desdenha e o Oriente veste de mistério e atmosfera. Gente de roupa ocidental, homens de gravatas elegantes e fartos bigodes negros sob narizes respeitáveis. Mulheres em longos trajes coloridos, cabeças cobertas por lenços amarrados sob o queixo e cheias de colares e pulseiras de ouro. Sorridentes vendedores de chá, de samovar às costas, aventais encardidos, largos calções turcos e polainas sobre sapatos muito gastos. O grande bazar, labirinto de galerias e vitrines entulhadas, quase rivaliza com o AlKalili egípcio. E no bazar encontramos parentes de comerciantes da Saara do Rio, que correm sorridentes atrás da gente ao ouvir “brasileiro”. Mesquitas com suas múltiplas cúpulas imensas e minaretes rendados, de interiores sombrios todos filigranados em arabescos. Abóbadas profundas, desdobradas, que ecoam o ritmo das arcadas e se repercutem em ogivas... Sinfônica orquestração de curvas em mil modulações semelhantes nunca repetidas. Como o canto ondulante dos muesins, chamando para as preces, num só eco cidade afora... O Topkapi, de pavilhões e jardins e varandas e torres... Seus tesouros incalculáveis e vista deslumbrante por sobre o estreito e dois continentes, embuçados na névoa pálida do outono. Voltei ao navio, mas não voltei inteira. Larguei o jantar e sua rotina estúpida para ver a partida com um pouco de paz no convés dos botes. Anoitecia. A enorme lua crescente prenunciava um momento mágico. Sua luz enrubescida de calor cintilava na água serena do Bósforo. As luzes da cidade foram se acendendo e realçando as mesquitas, as torres, as fortalezas. E iluminando a vida anônima de um fim de tarde qualquer. Brilhos que se multiplicaram pelas colinas do porto. O ar cálido amolecia. Estranha embriaguez de dança sensual. De muito fundo, um pressentimento, transbordando de mansinho os limites da consciência. Lembranças que não conhecia... ou que não ousei identificar. Deixei que passassem e tomassem Todos os Direitos Reservados – Jandyra Navarro vida de novo no mar enluarado, nos cheiros que o vento trazia da cidade. Já não era eu... Fazia tanto tempo não sentia este desconfortável e inebriante planeio entre presente e passado. Susto de lembrar o que o cérebro nunca registrou. Falas tão familiares, mas que já não podia decifrar... Doce encantamento de sedas e aromas, de dança e de música, de nostalgia e saudade, muita saudade. De mim? Sensação rara de voltar pra casa aliviando este meu exílio de sempre. Então o “yatsi ezani”, a oração do fim do dia, começou a soar. A voz de mil muezins repercutiu pelas colinas ao redor da enseada do Corno de Ouro onde estava ancorado o navio. Ah, minha alma ficou suspensa, flutuando nas sinuosidades daquele canto. Voz que rompia a lógica do tempo e que o consciente não podia, não sabia, e, impotente, se submetia. Mais que espanto, paixão extasiada. P’ra lá dos credos, dos conceitos e preconceitos, dos contextos culturais. Apenas voz humana, limpa e potente, marcando a transição sagrada entre dia e noite. Passagem misteriosa e tão breve, onde a consciência está liberta da linearidade do Tempo. Ponto crítico em que a vida cotidiana ganha de repente uma dimensão maior de recolhimento e silêncio. Ponto fugaz de onde nos espreitam as respostas... O navio começou a soltar-se e a deslizar suavemente para fora do porto. A silhueta de Istambul recortava-se com mais e mais clareza contra o céu rubro... E as pessoas começaram a chegar, com seu tagarelar incessante. Aglomeraram-se nas amuradas, encheram os espaços todos. De repente, o som estridente de guitarras. O grito rouco da Tina Turner. Excitadas, as pessoas falavam e riam ainda mais alto. Corri pelo navio sem achar nem um lugarzinho silencioso. Nenhum! Entreguei o desespero ao pranto e agarrei a visão da cidade que se afastava. Não ouvia mais os muezins, nem o encantamento. Tina Turner onipresente dentro da gaiola! E Istambul mergulhou inexoravelmente para dentro da noite e me deixou só entre os alienígenas. Foi Otmar, este companheiro de exílio, que veio, sei lá de onde, para me socorrer. Só mesmo o pressentimento da sua bondosa sensibilidade. E o solícito gorducho das bermudas engomadas interessou-se pelo meu pranto, agora dentro do abraço do protetor, que respondeu qualquer coisa sobre “a música que incomoda”. “Ah”, o turista explicou, “mas isto é porque é de praxe que se toque uma música sempre que o navio deixa um porto.” A louca era eu. Todos os Direitos Reservados – Jandyra Navarro