Glauco, um breve saindo da caverna C. Nunes; C. Marques; F. Leão Miranda; I. Mega; J. Pereira; J. Serrão Comunicação no IX Encontro da Sociedade Portuguesa de Psicoterapias Breves Resumo Formação e desenvolvimento pessoal são duas áreas inerentes ao crescimento e ao trabalho de qualquer psicoterapeuta. Com esta comunicação pretende-se espelhar o percurso de um grupo de psicoterapeutas em formação nesta Sociedade. O primeiro ano de formação foi um ano repleto de dualidades. À imagem da hermenêutica de Ricoeur o grupo foi-se construindo entre opostos. Na procura de um equilíbrio eternamente desequilibrado, foi-se abraçando e contrapondo explicação e compreensão; passado e futuro; eu e outro; desencontro e encontro; palavra e silêncio. Tudo isto não só resultou num conflito de interpretações entre o eu e o mundo, mas também e, sobretudo, num conflito entre o eu e o próprio. As mudanças de perspectiva, as distintas mundivisões e a procura de uma integração, despoletaram, no grupo, uma variedade de sentimentos. O caminho e o decorrer deste crescimento foi-se pautando em torno de antigos e novos saberes e suas incertas relações. Tudo isto se traduziu numa (re)construção do grupo e do indivíduo enquanto psicoterapeuta. Assim sendo, privilegiou-se o vivido e o sentido no momento presente como representante da totalidade do ser. Por outro lado, considerou-se que a história e a sua narração assumem um papel fulcral se pretendermos aceder à construção e à essência da identidade do psicoterapeuta. O reducionismo e a concretude dos factos e teorias não permitiriam abarcar tamanha riqueza. Por isso, e recorrendo à experiência fenomenológica do grupo, os factos foram transformados em símbolos e a realidade numa alegoria. Apostando na libertação inerente ao processo criativo, conta-se, não se contando, a história deste grupo. Com isto não se pretende mais do que voltar ao início. Expondo-nos a nós mesmos, aos que aí estão e aos que aí vêm fechamos um ciclo e iniciamos outro. Com esta comunicação pretendemos espelhar o percurso de um grupo de psicoterapeutas em formação nesta Sociedade. O primeiro Ano desta formação foi repleto de dualidades que despoletaram em nós uma diversidade de sentimentos. Apostando no poder da criação, da palavra, do dito e do não dito, vamos contar-vos Uma história. A história do nosso grupo, essa, está nas entrelinhas. E não é nas entrelinhas que se descobrem as histórias mais interessantes, sobretudo nos nossos espaços terapêuticos? A personagem da história que se segue é Glauco, um breve saindo da caverna. E é através dos seus olhos que vos damos a conhecer o nosso mundo… Falemos de Glauco. Glauco era alguém inquieto com a vida, tal como tantos outros. Questionava-se frequentemente acerca de si e do mundo. Já tinha pensado em Sócrates. Ultimamente, quase jurava que era capaz de imaginá-lo, mesmo sem nunca o ter visto. E ao mesmo tempo, sentia um misto de vontade e medo. Tudo e todos pareciam mover-se com destino, menos ele. Foi então que decidiu abrir verdadeiramente os olhos, deixar entrar a claridade da vida e traçar os caminhos que o levariam até Sócrates, O Grego. Glauco sentiu-se convidado a falar de si e falou. Relatou imensos episódios, discriminou o que achava que estava descompassado em si, jorrou inquietações e dúvidas e subtilmente pediu respostas que o apaziguassem. Sócrates esperou. E após um silêncio de presença disse: – As respostas que me pedes, não as tenho, não é dentro de mim que as encontrarás! Mas diz-me, conheces a Alegoria da Caverna? – Sim, vagamente. – Referiu Glauco. – Então Glauco, compara o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna e a luz do fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à superfície e à contemplação dos seus objectos, considera-a como uma descoberta de ti próprio e da realidade que te rodeia. Poderá ser assim contigo, se for essa a tua escolha. (Plato, 1998) – Concordo com a tua opinião, até onde posso compreendê-la... – disse Glauco. Sócrates retorquiu: – Partindo dessa compreensão, aceitas percorrer este caminho? – Apenas preciso de um mapa para saber para onde vou. Tens? – Indagou Glauco. – Um mapa não nos ajudaria… Vamos trilhar por terrenos desconhecidos e um mapa nunca será o terreno que iremos percorrer. Mas estarei sempre aqui. – Disse Sócrates confiante. 2 Apesar dos receios sentidos e sem saber bem porquê, as palavras de Sócrates ecoaram no seu ser. Os grãos de areia foram caindo e novas questões brotavam na mente de Glauco. Entre velhas inquietações e desejos futuros, questionou Sócrates: – Como poderei ingressar nesta Academia que é a tua, e que agora pretendo fazer minha? Sócrates calmamente respondeu: – Fala com a Isabel… E assim foi... Numa manhã de Outono, Glauco redescobriu-se inquieto, mas agora sabia, pelo menos em parte, porquê: ia iniciar o seu percurso na Academia. Expectante e algo receoso, sentiu-se recebido num ambiente estranhamente acolhedor. Foi aí que conheceu Atenas e Circe. Entre palavras adocicadas, ideias partilhadas e objectivos propostos, Glauco, num misto de irritação e desilusão, foi percebendo que, mais uma vez, não se encontrava num local onde lhe seriam oferecidas respostas. Mal imaginava que a incerteza caminharia a seu lado e as respostas nasceriam dentro de si. Atenas e Circe eram diferentes. Detentoras de saber e consciência, de ciência e de arte, acompanharam Glauco. Este traçava a sua rota e apercebia-se dos paradoxos da viagem, enquanto elas iam iluminando lugares desconhecidos. Passeando pela Academia, Glauco cruzou-se com duas personagens que despoletaram dentro de si uma certa perplexidade. Uma apresentou-se como Cronos, o Rotineiro e a outra como Kairos, o Momentâneo. Cronos falava com uma voz de timbre constante e pesado. Kairos, não tinha essa ritmicidade e Glauco até podia jurar que a voz deste variava consoante as suas próprias questões e expressões faciais. Após uma conversa que Cronos dizia já ir longa, mas que Kairos afirmava mal ter começado, Glauco, afastou-se com este: – Deixa-me contar-te um segredo. – Murmurou Kairos – Aqui entre nós não há Tempo. Mas ainda assim deixa-me que te fale dele. Ele é implacável e não adianta tentarmos fugir-lhe mas, podemos lidar com ele de outra forma, pois “o homem não está no tempo, é o tempo que está no homem” e “o que é passado ou que é futuro é também, o presente no mundo” (Martins, 1991). No instante em que compreenderes que o Tempo se reúne dentro de ti, serás, um «fui, sou e serei», e chamá-lo-ás de Temporalidade. 3 Glauco após um breve fechar de olhos, como quem aconchega uma ideia, encontrou-se sozinho. Olhou em redor e avistou Cronos, ao fundo, a brincar com a areia. Questionou-o: – Por acaso não viste Kairos? – Quem? – Retorquiu Cronos. Glauco caminhava para mais um Encontro na Academia. Ia movido por uma excitação que não deixava de ser tranquila. Sentia-se inspirado, era isso. Pelo caminho foi-se deixando surpreender. Escolhendo assim, tudo se alterou. A definição das coisas e das pessoas apurou-se, mergulhou na infinitude das cores e dos pequenos e grandes encontros. Navegando ao sabor do vento e das begónias deparou-se ao longe com alguém que o olhava calorosamente. Deixou-se ir… retribuiu com a sua presença ali, naquele momento. – Conhecemo-nos…? – Questionou Glauco. – Chamo-me Martin…“A minha presença nasceu quando tu te tornaste presente.” (Buber cit. por Hycner, 1995) – Disse Martin, num sorriso. – Curiosas essas palavras…é que o meu percurso até aqui foi tão diferente do habitual! Repleto de encontros e de olhares que comunicam… – Pensou glauco em voz alta. – Conheces a palavra-princípio EU-TU? – Perguntou Martin suavemente. – Palavra-princípio EU-TU?! – Disse Glauco, com estranheza na voz. – Considera esta reflexão: “A relação EU-TU começa, quando voltamos o nosso ser para o outro e o outro nos recebe nessa graça. Podemos apenas preparar-nos para a possibilidade desse encontro e nunca forçar a sua ocorrência. É um momento, fluído e genuíno. Temos de aprender a aceitar o encanto da sua chegada e a nostalgia da sua partida…” (Buber cit. por Hycner, 1995) Martin e Glauco, em fracções mínimas de tempo, quedaram-se confortáveis. Depois, sintonizados, disseram: – Subimos? Certo dia, Glauco debatia-se com questões que lhe afogavam a alma. Caminhava com o coração apertado e o seu desejo era estar bem longe dali. Emaranhado em sentimentos angustiantes, distraiu-se e… caiu… À sua volta juntavam-se indivíduos cujas caras não conseguia desvelar… das suas bocas saíam ruídos que não se assemelhavam a palavras, ou seria antes conversa de bebé…? Baralhado e confuso, uma cara destacou-se no meio da multidão. Nada tentou 4 dizer, apenas ficou em silêncio… Perdendo a noção do tempo ali se demoraram os dois, simplesmente olhando-se… Lentamente a sua mente tornou-se mais límpida e o seu coração mais tranquilo… foi então que se sentou: – O que se passou? – Tropeçaste, quem sabe… – Referiu a figura. – Eu bem sabia! Deviam remendar essa falha no chão!! – Resmungou Glauco. – Qual falha? – Questionou tranquilamente a figura. Glauco olhou para o chão e encontrou-o totalmente liso e impecável. Exclamou: – Não compreendo?! – Básico, meu caro Glauco. A falha não está no chão, está dentro de ti, dentro de cada um de nós. Numa manhã em que o próprio galo estava mudo, Glauco despertou. O Mundo já não era o mesmo. Passou pelo espelho e ali ficou. Olhava-se, mas não se encontrava. Aquele que via, não era ele mesmo ou seria? Como todos os dias, saiu de casa para a Academia. Mas aquele não era mais um dia... Era outro dia. Cumprimentou as mesmas pessoas mas agora com aparências e vozes estrangeiras. “Que fizeram ao Mundo?”. As pisadelas e empurrões que sentiu eram agora, e afinal, carícias. Nunca se sentiu tão vivo. “Quem é este no qual despertei?” – interrogou-se Glauco. Regressou a casa ao final da tarde, cruzou-se consigo mesmo e voltou a parar. De repente uma sombra atrás de si despertou-lhe a atenção. No seu quarto esvoaçava uma bela borboleta. Voltou-se para o espelho e finalmente encontrou-se. Sorriu: – Afinal o mundo que mudou foi o meu. No dia seguinte, o cinzento do céu contrastava com o colorido o humor de Glauco. Entrou na Academia, cumprimentou atenciosamente Isabel e tirou um chocolate da taça ao dispor. De repente algo distraiu os seus sentidos. Glauco seguiu um intenso aroma de fumo e de tempo e sentiu-se transportado até ao início do século passado. Como que hipnotizado, atravessou a nuvem de fumo que o levou até ao seu próximo encontro. – Como se chama? – Perguntou Glauco envergonhado. – Há quem me chame o visionário, outros o inconsciente. Mas trate-me por Dr. Freud, o vienense. Entretanto puxe uma cadeira e deite-se. Ponha-se à vontade. – Mas assim não o vejo... – Referiu Glauco confusamente. 5 – Não se preocupe, apenas fale de si. – Disse Freud com voz segura. – Falar? Mas falar de quê? – Perguntou Glauco. – Não resista, apenas fale livremente. Após 48 minutos em que Glauco falou de tudo e um pouco, Freud interrompeu-o e falou. As suas palavras eram sábias e rigorosas. Pela primeira vez sentiu que alguém lhe falava para o porquê da sua mente. Passados os dois minutos restantes, terminou. Glauco saiu e não sabia muito bem o que pensar. Era incapaz de ser neutro a tal encontro. Pela primeira vez respostas e explicações. Precisava de um momento para si. Não sabendo muito bem o que fazer ou o que sentir, optou por guardar este conhecimento. Poderia ser-lhe muito útil. Simplesmente não sabia ainda como… Procurou algo que lhe refrescasse a mente, e nessa procura encontrou um refresco para a alma, ao ser abalroado e envolvido por um grupo ruidoso de pensadores. Aturdido perguntou: – Mas quem são vocês? – Quem somos nós?! – Responderam altivamente a uma só voz. E num tour de table apresentaram-se. Conheceu Kierkegaard, o enjoado, Husserl, o fenómeno, Heidegger, o alemão, Ponty, o francês, Ricoeur, o complexo, Sartre, o existencialista, entre outros cujo nomes não conseguiu reter. – E então? – Perguntou Glauco. – E então?! – Respondeu o grupo outra vez numa só voz. – Para nós cada homem é único, é um ser no mundo, irrepetível, e para o conheceres tens que te despir e despir todas as suas palavras. Com isto o grupo ruidoso afastou-se, deixando Glauco atordoado e sentado na escadaria. Mais tarde nesse dia, Ferenczi, o inovador abordou-o e disse: – Meu amigo, também eu me deitei no divã vienense, mas parece-me útil acrescentar duas outras questões. Uma, que é bom por vezes puxar o lustro ao espelho, para que ele reflicta melhor a realidade, e a segunda, que é bom estabelecer objectivos, porque a procura da verdade por si só e enquanto tal, não tem fim. Ainda com o pensamento toldado pelas descobertas mais recentes, Glauco não se deu conta de que vagueava por partes da Academia que desconhecia. Continuou a caminhar até que parou diante de uma porta, abriu-a e, entrou. Diante de si, um outro sorria. – Olá! Sou Franz Alexander, o activo. 6 – Olá! Chamo-me Glauco e já tinha ouvido falar de si, um dos Mestres mais brilhantes de Berlim! Que honra! Há tanto que gostaria de discutir consigo! Nem sei por onde começar… – Respondeu entusiasmado. – Aconselho-te a escolher um tema, pois o tempo urge, Glauco. Escolhe o tema que te é mais querido e importante - disse Alexander. Motivado Glauco falou sobre como se tinha sentido nos encontros anteriores. Alexander retribuiu-lhes as seguintes palavras: – Sabes Glauco, às vezes encontramos pessoas nos mais diversos meios, com as quais vivemos experiências incríveis. Somos aceites como nunca antes o fomos, compreendidos de uma forma que desconhecíamos ser possível. É uma experiência única, que nos poderá mudar para sempre. E um dos verdadeiros desafios da nossa vida é termos consciência do que sentimos com as palavras, os gestos, e as acções dos outros. Dessa forma podemos aspirar a compreendê-los melhor, olhá-los de outra perspectiva, o que nos permite e ajuda a repensar, escolher e ajustar as nossas próprias atitudes quando nos relacionamos com os outros. – Isso é de tamanha exigência….Será que alguma vez vou conseguir fazê-lo? – Respondeu Glauco desanimado. – Sinto que existe no teu coração o interesse genuíno para tentar, e a consciência da sua importância, sendo que esse é, porventura, o passo mais difícil. Hoje temos que ficar por aqui. Está na altura de prosseguires o teu caminho. As estações passaram pelo mundo e Glauco cruzou-se com um homem de idade avançada rodeado de pessoas... Sentiu-se intrigado e com vontade de o conhecer. O homem aproximou-se de Glauco e, num gesto afectuoso, estendeu-lhe a mão e disse: – Sou Yalom… E estas pessoas que vês partilham comigo a minha obra última. – E de que trata essa obra? – Indagou Glauco. – De mim, de ti, de nós, do fim e da vida. A intenção, essa, é sempre a de partilhar com outros o que aprendi ao longo da minha existência … A vontade que me move cresce de dia para dia…estar na casa dos setenta tem contribuído decisivamente para isso … – Explicou Yalom. – Será que leio alguma angústia nessas tuas palavras…? – Deixa-me que te diga uma coisa, Glauco: “A morte em termos físicos destróinos; mas a ideia de morte pode salvar-nos.” (Yalom, 1996) Ajuda-me a estabelecer 7 prioridades, a valorizar umas coisas e a relativizar outras. A viver uma vida plena, autêntica e feliz. – Há muito que me questiono sobre a autenticidade daquilo que faço, digo e sinto… – Disse Glauco. – Estar próximo das tuas angústias é valioso para te tornares consciente do que realmente é importante para ti a cada momento. Só assim ganhas coragem, só assim podes rever as tuas prioridades e só assim as tuas relações se tornam mais ricas e tolerantes. Em cada encontro, Glauco sentia-se à entrada de um novo caminho. No entanto, revia-se em todos eles. Como não se podia dividir em tantos Glaucos como teorias, pensou que teria de aceder a um lugar comum, dentro de si. O caminho vislumbrava-se sinuoso e acidentado, não imune ao sofrimento. Atenas e Circe continuavam cirúrgicas nas intervenções e intensas na presença. Com elas, tinha encontrado um espaço para reflectir. Reflectiu muito sobre a dificuldade em reflectir, em dar e em receber, e sobre, sempre sobre o tempo. Os silêncios que se ouviam ruidosamente, comunicavam tantas coisas diferentes, mas em último considerava-os companheiros na busca das suas verdades. A Liberdade de Ser tinha-se tornado palpável de tão próxima e significante, mas também a Responsabilidade, a sua responsabilidade pela condução da sua vida. Esta vai sendo a história de Glauco, o grupo, o homem e o terapeuta. Confessounos no outro dia que era conhecendo a sua história que se poderia abrir à história do outro. Referências Bibliográficas: Hycner, R. (1995). De pessoa a pessoa: psicoterapia dialógica. São Paulo: Editora Summus. Martins, J. (1991). Não somos cronos, somos kairós. Revista Kairos Gerontologia, 1(1), 11-24. Plato. (1998). Republic. (R. Waterfield, Trad). Oxford: Oxford University Press. Yalom, I. (1986). Love's Executioner: And Other Tales of Psychotherapy. Bloomsbury Publishing PLC. 8