MARTIM LUTERO
Contribuições para a Ética1
Mario Francisco Tessmann2
I – Preliminares:
A pessoa e a obra de Martim Lutero são, inegavelmente, um
ponto de inflexão nos caminhos da cultura ocidental. Existe um
mundo antes dele, outro depois dele. O mundo que vai começar a
se encerrar junto a Martim Lutero é o mundo da totalidade. Na
Idade Média ocorria o domínio da instituição religiosa sobre a
sociedade secular. A influência da religião estava em todas as
esferas da vida (educação, ciência, economia, política). Já o mundo
que se descortina com Martim Lutero é o mundo das distinções. É
indispensável, de acordo com o pensamento de Lutero, distinguir o
que é temporal do que é eterno; o que é institucional do que é
individual; o que pertence à cultura e o que pertence à religião.
Lutero é um mestre na arte das distinções. Esta é, sem sombra de
dúvida, uma das maiores contribuições metodológicas para o
mundo em que vivemos, estejamos nós conscientes ou não deste
fato. Como Martim Lutero chegou a este raciocínio?
II – Elementos biográficos:
Movido pela angústia de culpa, uma marca típica do ser humano
medieval, Lutero ingressa na vida religiosa em 1505, com intuito de
encontrar os instrumentos necessários, que pudessem ajudá-lo a
viver sem a aflição da mesma. Como filho fiel da igreja de então,
Lutero dedica-se a seguir as pegadas que seus instrutores lhe
passam para a vida monástica. Já dentro do convento, Lutero
aprendeu a lidar com a filosofia de Aristóteles – a rainha dos
conceitos da época – tornando-se inclusive professor de ética
filosófica por um curto período. Seus pares neste período
1
- Palestra proferida por ocasião da comemoração do Dia da Reforma, no dia 07.11.2012 na Câmara de
Vereadores de Curitiba.
2
- Pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), Professor da Faculdade de
Teologia Evangélica de Curitiba (FATEV) e Doutor em Teologia pela Universidade Karl Ruprecht de
Heidelberg na Alemanha.
perceberam logo que Lutero era um homem singularmente sensível,
tanto em termos de espiritualidade como de reflexão cristã.
Em função desta sensibilidade e do anseio que tinha por
aprofundamento nas verdades do cristianismo, Lutero foi enviado
por seus superiores do convento para a pequena cidade de
Wittenberg, que na época tinha uma população aproximada de
2.500 habitantes e uma recém-fundada universidade. O objetivo era
claro: Ajudar o jovem monge a firmar suas convicções a partir do
livro fundante da igreja, a Bíblia. Após 2 anos de estudos intensivos,
Lutero torna-se doutor em Bíblia. Recebe a partir daí a tarefa de
orientar seus irmãos de convento nos fundamentos da fé cristã,
conforme as regras da igreja da época. Esta incumbência do
ensino, Lutero a exerceu por mais de 3 décadas, até o fim de sua
vida em 1546.
O que Lutero encontra na Bíblia, que o leva para caminhos de
resistência, confronto e, por fim, ruptura com a igreja da época? É
oportuno neste momento desfazer uma lenda, que percorre a
mentalidade de muitos evangélicos, de que Lutero somente teria
conhecido uma Bíblia, quando de seus estudos em Wittenberg. Era
prática comum na época de que todo jovem – homem ou mulher –
que ingressasse na vida religiosa, logo cedo aprenderia a lidar com
os textos da Bíblia, em especial, os Salmos nas orações. Dito isto,
permanece a pergunta: o que Lutero encontrou testemunhado na
Bíblia, que o marcou de maneira tão enfática, a ponto de entrar em
rota de colisão com a organização mais poderosa de sua época, a
igreja?
Lutero mesmo nos dá a resposta a esta pergunta, quando ele, já
no final de sua vida, recapitula sua trajetória pessoal. Ele nos diz
que durante muito tempo, seguindo os caminhos de interpretação
que a igreja lhe havia disponibilizado, lia a Bíblia como um livro de
exigências, fossem elas doutrinárias ou morais. E a exigência tem
um código embutido em si: ela sempre acusa! Cabe lembrar, neste
momento, que Lutero era um homem afligido pela consciência de
culpa, sentia-se continuamente em débito com Deus e a igreja. Foi
em busca da libertação desta culpa, que Lutero voltou, em boa
medida, os seus olhos para dentro da Bíblia, mas num primeiro
momento não a encontrou. Com o passar dos anos, após estudos
intensivos, foi que ele, segundo suas próprias palavras, teve “as
portas do paraíso abertas” para si.
Que portas eram estas, que haviam sido abertas para Martim
Lutero? Na busca pela verdade – testemunhada na Bíblia – Lutero
depara-se com a afirmação de que o “justo viverá pela fé”. Para
quem tinha sido treinado na filosofia aristotélica, como Lutero, o
entendimento de justiça pressupõe a prática crescente de atos
justos. Neste sentido, ele entendia que a fé era mais uma exigência
de Deus. O drama tornou-se, então, insuportável e o próprio Lutero
chegou a mencionar que o Deus de tantas exigências era digno de
ódio!
Perante tamanha aflição, Lutero experimentou o inimaginável.
Percebeu que o significado da palavra fé não poderia ser visto
como mais uma exigência, mas sim, como uma dádiva, que Deus
oferece a todo e qualquer ser humano. E no que consiste esta
dádiva divina? Segundo Lutero, ela é a possibilidade que o ser
humano tem de confiar em Deus, que – antes do cumprimento de
qualquer exigência - nos acolhe, nos recebe, independentemente
de nossas realizações. Deus, em seu rosto visível – Jesus Cristo –
vem buscar os exaustos e fadigados de tantas exigências, sejam
elas religiosas, sociais, políticas, jurídicas e econômicas. Neste
sentido, “o justo” para Lutero é o ser humano fragmentado,
desconstruído, que sabe, no entanto, que está primeiramente
perante o Deus da compaixão e não o Deus da exigência. Esta
inversão da imagem de Deus é o que a teologia luterana clássica
designa, no linguajar técnico, como a passagem do Deus da ira
para o Deus da graça.
Vale lembrar aqui, que para Lutero, Deus não deixa de exigir.
Contudo, toda e qualquer exigência somente é possível a partir
daquilo que Ele mesmo concede. Deus não solicita, o que Ele antes
não tenha ofertado em abundância, enfatiza Lutero. Com esta
reflexão, nos encontramos no fundamento de ética de Lutero, uma
ética cuja preocupação pelo humano é a marca fundamental.
Olhemos uma vez, como esta preocupação pelo humano, se
desdobra no pensamento ético de Lutero.
III - Concretizações éticas:
Desde 1520, Lutero ocupa-se com temas voltados à ética em
geral, seja por necessidades pessoais ou por pressões oriundas de
seu ambiente. Partindo de abordagens mais generalistas, como a
interpretação dos Dez Mandamentos, Lutero vai focando suas
aproximações em temas éticos mais concretos. Seus temas
envolvem a realidade do casamento e da família, da prática de
juros, da obediência devida, ou não, à autoridade secular, do envio
de crianças para escola (em especial de meninas) e da manutenção
das mesmas pelos governantes, entre outros tantos.
Por ser um homem voltado às preocupações regulares do dia-adia, Lutero procura orientar, sem complicar. Como disse, em certa
ocasião e de maneira apropriada, o filósofo Nietzsche: “A Reforma
Luterana foi a indignação do simples contra algo complicado”. Este
olhar de Nietzsche aplica-se muito bem, quando voltamos nossa
atenção para as orientações éticas de Lutero. Ele não é um homem
preso aos princípios éticos da fé cristã, como se os mesmos fossem
leis férreas e eternas. Antes, Lutero volta-se continuamente às
situações concretas, que envolvem, por exemplo, o comerciante e o
estabelecimento de preços no mercado; o drama de consciência no
uso das armas no serviço militar; a lida do marido ou da esposa
com cônjuge enfermo ou incapaz. Perante esses dilemas, Lutero
age e orienta, olhando, como já dissemos anteriormente,
primeiramente, para o ser humano, somente num segundo
momento para os princípios. É como se ele quisesse de alguma
forma nos dizer que os princípios éticos somente tem significado, se
dignificarem o ser humano e não o contrário.
Por mais que Lutero tenha se empenhado em viver desta forma –
e orientado pessoas nesta direção – sua prática também teve
debilidades. Seja por convicção pessoal e/ou por ser fruto da época,
a lida de Lutero com pessoas de crenças diferentes da sua, foi
marcada muitas vezes pela incompreensão e pela intolerância. O
exemplo mais drástico disto foram os judeus. Lutero também tendia
a um conservadorismo político, que o impossibilitava de enxergar
nas aspirações dos trabalhadores da terra de então, por exemplo,
uma manifestação concreta da liberdade cristã.
Estes dois pontos limitantes, entre outros condicionados pela
época, não devem, contudo, nos impedir de perceber a riqueza da
contribuição de Lutero para a reflexão ética, em especial, sua
ênfase numa ética que prioriza o ser humano real. Esta visão não
elimina os princípios cristãos norteadores da vida, mas
simplesmente procura direcioná-los para dentro da vida como ela é.
Concluindo, é possível dizer que Lutero lançou as bases para
uma ética, que modernamente, chamamos de ética da
responsabilidade. Esta é uma ética que pergunta não apenas pelas
intenções dos atos, mas antes, pelas práticas e suas
conseqüências, nesta e nas futuras gerações. Esta ética tem a
marca indelével do compromisso com o ser humano e com o
ambiente que o circunda. A ética da responsabilidade, cujos
fundamentos podemos encontrar em Lutero, encoraja o ser humano
a viver de maneira adulta, assumindo a cada decisão que precisa
ser feita o risco da culpa. Ela também fortalece o compromisso com
aquilo que é o mais precioso em nossa existência, a preservação da
vida, seja ela na forma que venha se manifestar. Que os estímulos
da ética de Lutero também nos ajudem a afirmar os elementos que
qualificam a vida política e cidadã de cada um de nós.
Grato pela atenção.
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