A EFICÁCIA DO SISTEMA DE JUSTIÇA E O DESENVOLVIMENTO Considero um privilégio participar numa reflexão sobre as instituições e o sistema de justiça, sistema que, a diferentes títulos, condiciona o futuro do País no mundo global e as condições de progresso dos portugueses. A história portuguesa documenta o longo processo de reestruturação do sistema de justiça, eliminando os naturais riscos de fragmentação associados ao municipalismo, aos Juízes da terra, às práticas regionalistas ou aos abusos senhoriais, com a sistematização de sucessivas ordenações ou, por exemplo, a criação de Juízes de Fora e Corregedores. O caminho para o respeito da legalidade comum aparece simultaneamente como factor e consequência do reforço da autoridade do Estado e da independência nacional. O sistema de justiça assume crescente significado com os novos ordenamentos internacionais, a complexidade dos processos de produção e de relacionamento, e a alteração de valores e vínculos sociais. Um sistema de justiça actualizado continua a ser o garante de liberdades e direitos, e da convivência pacífica, mas também é, cada vez mais, um factor essencial do progresso económico e da certeza contratual, contribuindo nessa medida para a localização e deslocalização dos investimentos e do emprego. Devemos começar por sublinhar a importância da independência do sistema judicial na consolidação das democracias ocidentais desde o século XVIII: assegurando a igualdade dos cidadãos perante a lei, limitando os abusos do poder e assegurando a certeza jurídica das relações económicas e sociais. Sem essa independência teriam ficado muito comprometidos os progressos na qualidade da vida política, no desenvolvimento das actividades económicas e financeiras, na prática do quadro laboral e familiar, no encorajamento da criatividade e da inovação, e na organização dos grandes centros urbanos. Os custos da subordinação do poder judicial que ainda se mantêm em muitos países são infelizmente bem flagrantes, em especial nas relações entre os cidadãos e o poder político. A independência do poder judicial não se pode naturalmente confundir com isolamento face às realidades e aos desafios do mundo contemporâneo. Implica distanciamento e equidistância em relação a interesses, mas não dispensa a compreensão e se possível a experiência directa da complexidade de comportamentos e de relações nas sociedades em que vivemos e sensibilidade para apreender as consequências da sua crescente mutabilidade, actualmente de particular relevância. Nos últimos anos tem-se generalizado entre nós – como em diversos outros países – sentimentos de desconforto quanto à operacionalidade do sistema de justiça como garante de um Estado de Direito. A sessão a que tive oportunidade de assistir neste colóquio durante a manhã de hoje abre expectativas encorajantes. Constitui uma demonstração por parte de alguns dos principais responsáveis da sua consciência quanto aos problemas existentes e da vontade de lhes assegurar resposta efectiva. Tornou-se clara a importância atribuída ao melhor desenvolvimento do nosso sistema: a importância da celeridade no seu funcionamento, a necessidade de maior segmentação, a vantagem de dispor de meios alternativos para a resolução de conflitos, a opção de maior recurso a meios electrónicos e a necessidade de reorganização e de liderança para ultrapassar as presentes dificuldades. Este diagnóstico vem ao encontro das conclusões que decorrem da experiência prática das nossas actividades económicas na generalidade dos sectores. Ficou também claro o peso da litigância de massa que reconhecidamente contribui em larga medida para o alongamento dos prazos dos processos transitados em julgado. Seria certamente fácil de resolver se se proibisse ou dificultasse o acesso dos utilizadores à Justiça – como, aliás, aconteceria também no sistema de saúde em relação às listas de espera se se dificultasse o acesso dos doentes aos cuidados médicos. Mas, naturalmente, nunca é uma boa solução meter debaixo do tapete as consequências das dificuldades. Pelo contrário importa, com base num diagnóstico realista, encontrar soluções efectivas e encorajadoras da dinâmica e da confiança social. Ao contrário do que se pode pensar, os conflitos e incumprimentos que chegam aos Tribunais, mesmo considerando o volume da litigância de massa, são apenas a ponta do iceberg da conflitualidade económica e social. A maior parte das situações de incumprimento ou de conflito são resolvidas no âmbito dos próprios agentes económicos e sociais. Acontece aliás que a maioria da litigância de massa acorre aos Tribunais por imposição do nosso ordenamento jurídico e fiscal. Assim acontece, por exemplo, com os cheques sem cobertura de pagamento obrigatório por lei; com o incumprimento dos contratos de arrendamento; ou com dívidas incobráveis. Configuram situações que em outros países não chegariam a ter lugar ou dariam apenas lugar a acções de polícia por incumprimento contratual reconhecido por ambas as partes. Muito menor seria a parcela da conflitualidade que é dirigida para o sistema judicial se se reconhecesse consistentemente o papel da auto-regulação económica e social e se promovesse o seu reforço e aperfeiçoamento. Nos caso das empresas, por exemplo, existem sistemas internos reguladores de comportamentos e de relações – com manuais de procedimentos, códigos de conduta, poder disciplinar, processos de averiguações, processos disciplinares e aplicação de sanções. Por outro lado, a conflitualidade e o desempenho individual são também enquadrados por estímulos, progressões de carreira e práticas de valorização e formação continuadas. Assim acontece também, naturalmente, em outros domínios, designadamente nos diversos ramos das forças armadas e nas forças de segurança. A sua capacidade de auto-regulação não só assegura a redução da conflitualidade interna, como garante a convergência de actuações para o exercício das funções que lhes estão atribuídas. Aprendi mais sobre compatibilização de comportamentos, liderança e motivação em seis meses de serviço militar do que em onze anos de escolaridade e seis anos de Universidade, porque a aprendizagem académica se dirigia à compreensão de textos, à informação documental e à lógica de raciocínio, não à avaliação de personalidades, de comportamentos e das formas de motivação e interacção social. Merece ponderação a capacidade que estes sistemas revelam de enquadrar milhares de jovens em idades de fácil conflitualidade e a sua capacidade de coordenar esforços e de orientar comportamentos muitas vezes em situações de elevado risco. Tal só é possível por uma prática pedagógica de rigor comportamental, individual e de grupo, com efectivos mecanismos de acompanhamento em tempo real, associando à lógica da norma a motivação directa dos desempenhos, desencorajando na prática quotidiana incumprimentos graves e reduzindo, assim, a necessidade de recorrer a procedimentos sancionatórios complexos, com a formalização de interpretações de direitos, julgamento e aplicação de penas. Mais difícil, naturalmente, é assegurar o respeito normativo em organizações menos hierarquizadas e mais diversificadas. O papel do sistema de justiça é reconhecidamente indispensável para assegurar um Estado de Direito, com o respeito das normas fundamentais da convivência pacífica, e indirectamente o progresso económico e social – mas não se lhe pode exigir, face à complexidade da nossa sociedade e às suas rápidas transformações, que garanta em exclusivo que milhões de cidadãos assumem comportamentos positivos e que são erradicados os comportamentos negativos. Numa lógica sistémica alargada, torna-se evidente a necessidade do reforço da auto-regulação – com instrumentos de encorajamento e desencorajamento. Actualmente as capacidades de variadas instituições estão longe de se encontrar plenamente aproveitadas. Assim acontece com os Supervisores sectoriais de actividades financeiras e económicas, com as Ordens profissionais, as Câmaras de Comércio, as Autarquias e as actividades associativas em geral. Está bem longe de esgotado o potencial de parceria estratégica neste âmbito. Em consequência dos rápidos progressos tecnológicos e económicos desde o final da 2ª Guerra Mundial e, em particular, com a nova realidade global estabelecida depois de 1989, vive-se hoje um quadro radicalmente diferente daquele que no séc. XIX e primeira metade do séc. XX configurou os sistemas legais e os sistemas de Justiça que em regra hoje se mantêm com mais limitada capacidade de resposta. Tem hoje, mais do que nunca, plena relevância a visão Shumpeteriana do desenvolvimento como “processo de destruição criativa”. Infelizmente nem sempre se assume na prática a compreensão de que a mudança implica a desaparição de fórmulas pré-existentes e sua substituição pelas novas soluções que oferecerem melhor resposta aos desafios emergentes. Os efeitos dessa incompreensão são, por exemplo, bem patentes nas análises dos desequilíbrios do mercado de trabalho, que continuam ainda a ser equacionados fundamentalmente em termos de taxa de desemprego, quando seria mais importante focar a atenção nos indicadores de criação de novos empregos, uma vez que é inevitável o continuado encerramento de actividades tradicionais. Antes de mais em consequência da perda de vários atributos de soberania nacional, como a política comercial e agrícola – que decorre da adesão à CEE – e a política monetária e cambial – consequência da adopção do euro no espaço da U.E, sem esquecer os reflexos das directivas comunitárias no enquadramento das relações económicas e sociais. Mais fundamentalmente, a vulnerabilidade das nossas empresas é agora condicionada pelos desafios da globalização incluindo a total liberdade de concorrência e de investimento. A médio prazo, a consequência mais radical da queda do muro de Berlim foi certamente a constatação da inviabilidade da economia planificada na URSS. A certidão oficial de óbito do sistema de economia planificada resultou da adopção da economia de mercado pelos partidos comunistas da China e do Vietname. Tornou-se, assim, evidente que na actual fase histórica vivemos submetidos sem alternativa à lógica do mercado, com consequências muito pesadas no que respeita ao emprego, às deslocalizações e à repartição do rendimento. A concorrência tem hoje lugar entre empresas que actuam em mercados abrangendo os vários Continentes. Mas, ao mesmo tempo, o que nem sempre é bem compreendido, desenvolve-se também entre diferentes cidades e diferentes países. Assim, não são apenas os factores de preço, qualidade e inovação que condicionam a sobrevivência das unidades de produção e dos empregos. De forma mais abrangente, pesa a qualidade das várias instituições e das diferentes políticas. Na atracção do investimento e do emprego concorre-se simultaneamente hoje ao nível do quadro fiscal, da legislação laboral, do desempenho da burocracia ou da celeridade e certeza dos sistemas de Justiça. Acontece que actualmente os diferenciais de salários europeus em relação aos que se verificam nos gigantes demográficos da Ásia são agravados em muitos dos nossos países pela existência de condições institucionais menos favoráveis. Demasiadas vezes, as instituições que nos séculos passados já constituíram factores do progresso europeu resistem hoje mal ao confronto das realidades da economia globalizada, face à rapidez com que países concorrentes aperfeiçoam constantemente os seus enquadramentos de competitividade. São, pois, legítimas as preocupações pelo declínio do Modelo Social Europeu, mas não podem encontrar resposta em meras declarações de intenção nem na prática de legislações proteccionistas. Dependem sim da capacidade de manter o diferencial de competitividade que a Europa assegurou nos últimos dois séculos, pelo recurso a constantes inovações, possibilitando desse modo manter um diferencial de salários, de condições sociais e de níveis de vida. O nosso sistema de justiça dificilmente corresponderá aos ambiciosos progressos que os seus dirigentes ambicionam e equacionam se não beneficiar de uma análise abrangente e de integração sistémica, a montante e a jusante: melhores leis e maior credibilidade na sua aplicação, face às soluções adoptadas por outros países. A melhoria do sistema legal exige à partida, mais rigorosa avaliação da necessidade e da oportunidade do processo legislativo, bem como acrescida estabilidade, facilidade de interpretação, e eficácia dos normativos adoptados. Como acontece em outros países, ganharia muito se assentasse num processo participado pelos diferentes agentes abrangidos na sua aplicação, incluindo o prévio escrutínio da sua utilidade e viabilidade funcional. A experiência tem demonstrado ser esse o melhor modo de avaliar os seus custos e benefícios, e de julgar o seu mérito em relação às melhores práticas internacionais conhecidas e à sua operacionalidade, melhor eficácia normativa e relevância competitiva. Entre nós, infelizmente, muita da legislação apresenta-se como desnecessária, quando não prejudicial, e sujeita a alterações muito frequentes. Demasiadas vezes é também objecto de incumprimentos generalizados. Algumas leis equivalem na prática a meras sugestões. Se assim não fosse seria difícil de explicar os excessos de velocidade comuns nas auto-estradas ou os incumprimentos no estacionamento automóvel das principais cidades. Seria também difícil explicar qual o objectivo da campanha da “tolerância zero”... Contribui-se assim para forte perda de credibilidade do sistema de justiça, situação muitas vezes agravada pela morosidade no sancionamento de crimes e infracções – que tende a identificar-se com impunidade – o que afecta particularmente os menos favorecidos. Direitos só existem, de facto, se efectivamente assegurados em tempo razoável, como têm entendido tribunais internacionais. Para progredir, tanto no sistema legislativo como o sistema de justiça, impõe-se naturalmente assegurar consistência com os mecanismos de auto-regulação, garantindo maior participação dos representantes dos directos interessados no processo legislativo e no acompanhamento da sua aplicação. Tal é ainda mais relevante quando aos legisladores e aos intérpretes da sua aplicação escasseia a experiência directa do funcionamento das realidades económicas e sociais, das mutações tecnológicas e dos sistemas das relações internacionais. Em termos gerais, o que está em causa é encorajar de forma coerente e integrada os comportamentos positivos e desencorajar os comportamentos negativos. Não se trata apenas de sancionar as ilegalidades e de assegurar a igualdade perante a lei. Numa sociedade crescentemente mediatizada, importa que os diferentes normativos tenham justificação reconhecida – evitando fundamentalismos, excesso de burocracia e alheamento das realidades – e que sejam objecto de acatamento consciente pela generalidade dos cidadãos. A experiência da cidade de Nova Iorque sobre a presidência de Giuliani constitui nesta matéria um caso paradigmático – de que a tolerância quanto a infracções correntes tende a encorajar a proliferação de práticas e de organizações criminosas. Demoras excessivas acabam por tornar irrelevante a decisão judicial para alteração de comportamentos, contribuindo ainda para agravar custos de contexto e avolumar factores negativos de competitividade e localização de empresas. Não é demais sublinhar a importância do sistema de justiça como garante do Estado de Direito mas também como factor de desenvolvimento: pela capacidade de rápida resolução de conflitos, estímulo ao eficaz cumprimento dos contratos, garantia de condições transparentes de concorrência, encorajamento das transacções e do investimento, e, em geral, pela criação de confiança e solidariedade entre os vários intervenientes nas relações económicas e sociais. Os Tribunais em Portugal, assoberbados como se encontram pelo excessivo número de processos, carecem reconhecidamente de soluções urgentes para as carências e dificuldades que os afectam. Não me parece oportuno sugerir alterações processuais ou organizativas que devem antes de mais nascer da experiência dos agentes judiciais, em particular quando se reconhece a competência e dedicação de tantos dos seus intérpretes. Diferentes avanços de reestruturação e funcionamento foram, aliás, já hoje enunciados pelos principais responsáveis do sector. Envolvem naturalmente problemas de organização e de métodos, que actualmente são bem reconhecidos. A experiência de relacionamento com as actividades económicas e alguns ensinamentos da prática de gestão de grandes operadores empresariais podem inspirar algumas orientações que merecem ser ponderadas: nomeadamente a configuração de soluções dirigidas aos utilizadores e aferidas por bench-marking exigente, a necessidade de informação e indicadores de gestão em tempo real, o reforço de capacidades especializadas e a valorização dos recursos humanos. Os progressos do sistema exigem sem dúvida um envolvimento colectivo assente na mobilização de competências e de vontades, abandonando políticas que tanto têm contribuído para manter polémicas e conflitualidades artificiais. Gostaria de terminar reportando-me ao sentimento de crise que actualmente se vive no nosso País, com maus indicadores económicos e sociais, fracas expectativas e baixa auto-estima dos portugueses. Outros países em situações idênticas, face a um declínio persistente, à existência de estrangulamentos crónicos ou a graves perdas de competitividade, foram capazes de assegurar radical alteração de comportamentos e de objectivos, encarando de frente as causas do seu mau desempenho. Os resultados ficaram conhecidos como milagres económicos nacionais, na Alemanha ou no Japão, após a 2ª Guerra Mundial, os Tigres asiáticos nos anos 70, a Irlanda ou a Finlândia nos anos 80 e 90. Nos seus fundamentos essenciais, em todos estes casos as transformações encontram explicação, mais do que nas políticas económicas, no plano dos valores e dos comportamentos: na renovada capacidade de acreditar que é possível mais ambição e de assumir colectivamente a determinação de construir um projecto eficaz e realista à medida dos desafios que defrontam. Estou convicto que em Portugal cabe ao sistema de justiça – também como inspirador do sistema legal – um papel central na necessária mudança de atitudes e de comportamentos, contribuindo para a certeza e o respeito da lei, o prestígio do Estado, e a confiança dos cidadãos, pela erradicação de abusos, desperdício e impunidade que alimentam a corrupção, e, também, tornando mais inviáveis a irresponsabilidade e as práticas dilatórias que alimentam o desânimo e a resignação. Cabe-lhe um papel central na consolidação dos valores de uma sociedade de direitos mas também de deveres colectivos. Papel insubstituível na fundamentação da confiança, na motivação que pode tornar credíveis objectivos mais ambiciosos e na responsabilização que conduz ao sentimento de urgência que a situação interna e o confronto internacional justificam, e que é indispensável para um padrão de desempenho à medida das aspirações dos portugueses.