FERNANDA MOREIRA FICHA TÉCNICA EDIÇÃO: Fernanda Moreira TÍTULO: Pôr-de-sóis AUTORA: Fernanda Moreira ILUSTRAÇÃO DA CAPA: Fernanda Moreira 1.ª EDIÇÃO LISBOA, 2010 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Agapex ISBN: 978-989-96847-3-7 DEPÓSITO LEGAL: 316578/10 © FERNANDA MOREIRA PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, Porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt Fernanda Moreira | Pôr-de-sóis Dedicatória A todas as mulheres vítimas de violência doméstica, que sem encontrar resposta para o seu dilema pessoal, se suicidaram A todas as jovens traídas pelo amor À minha amiga Margarida Mendes, que conheci nas Convertidas 1, e, por amor, se perdeu na vida! À Dr.ª Maria do Céu Nogueira. 1 Convertidas era uma instituição que se situava em pleno coração da cidade de Braga, onde realizei o estágio de Educadora Social. Esta instituição acolhia mulheres sozinhas e com vários problemas sociais que as autoridades tutelares fecharam nos finais dos anos noventa sem criarem alternativas para o acolhimento de mulheres sós e abandonadas. 5 Fernanda Moreira | Pôr-de-sóis 6 Fernanda Moreira | Pôr-de-sóis INTRODUÇÃO Preguiçosamente caminhava pela praia molhando os pés numa ou noutra onda mais beijoqueira. Parei, por momentos, estendendo o olhar pelo horizonte, quando descobri, perto de mim, uma anciã que me imitava. Olhei-a, olhou-me. Sorri-lhe, sorriu-me. - Hoje a água está muito fria!... - disse eu, só para não ficar calada. - Quando era nova não olhávamos se estava fria ou não, enterrávamo-nos na água até à cinta a puxar os barcos - fixou novamente o olhar nas águas roliças Não havia cá pessoas a tomarem banho, apenas trabalho! - É daqui a senhora? - Perguntei. - Sou. Vivia acolá - apontou - do outro lado daquelas rochas, numa barraquinha, junto a outros pescadores, mas agora nada resta!... - no tom da sua voz havia um misto de mágoa e saudade. Sorri sem saber que palavras proferir. - Agora só venho aqui para recordar o passado... E a menina? - perguntou, penetrando-me no olhar. - Sempre que posso, gosto de vir até à praia ver o mar. Amo o seu murmúrio, as gaivotas, o vento... calei-me observando o brilho do sol bailando sobre as ondas. A anciã passou a mão pela testa de um modo triste, como querendo apagar um pensamento amargo. - Quer que lhe conte uma história do meu passado? A história de uma menina, de uma princesa que amava o mar tanto como você o diz amar ou ainda 7 Fernanda Moreira | Pôr-de-sóis mais? Acenei que sim, espicaçada já pela curiosidade. - Sentemo-nos então ali, naquela rocha. As minhas pernas já não são o que foram! Segui-a. Sentámo-nos. O olhar da anciã repousava ainda sobre as águas revoltas, envolvidas num lençol de espuma. Após um breve silêncio, começou: -... Os seus olhos eram rasgados e cintilantes, um pouco sonhadores. Formavam um contraste, dois olhos verdes que se enamoraram desta vastidão imensa, tão azul, tão cheia de luz. O que havia de semelhante entre o mar azul e aqueles dois olhos garços era a turbulência, uma cintilação quase divina que emanava das águas tranquilas do seu olhar! Ela era uma princesa apaixonada pelo mar que passara pela praia vendo o sol morrer no horizonte, colorindo-o de tons escarlates... e no mar há muitos pôr-de-sóis e todos diferentes, cheios de variedade! Dizia, a minha princesa: «- Amo o amar como nunca amei outra coisa sobre a terra! Podem dizer que as cidades são belas, que as árvores são um ninho de singelíssima beleza na Primavera, que os vales, com as suas boninas, são sonhos de luz, mas nada se compara a esta imensidão de água, com estas gaivotas voando livres sobre as vagas. Não há pôr-de-sóis comparados com estes. Nada se compara com esta beleza terrível e serena, com este ribombar constante das ondas enrolando-se na areia. Vim a este mundo para amar o mar e, quando morrer, hão-de as suas águas embrulhar-me o corpo como sudário branco, cheio de espuma dos mil pôr-de-sóis 8 Fernanda Moreira | Pôr-de-sóis que ainda não vi! E então, nesse momento, hão-de surgir sereias das suas profundezas a cantar e, quando o sol for tombando em agonia sobre a água tingida de sangue, o meu corpo naufragará levado por essas sereias, porque eu sou uma princesa e elas levar-me-ão novamente para o reino que perdi. Esse reino que era só meu! E um dia, nas noites ténues de luar, descalça, com os cabelos soltos ao vento, passearei sobre as ondas rodeada de peixinhos e gaivotas e tecerei, com as minhas mãos, colchas de espuma e algas para oferecer ao Mar!» Um dia, quando eu morrer, há-de ser quando o sol se estiver a pôr, alma triste como a minha, alma que tudo abandona para acordar... sabe-se lá onde!... E calava-se olhando a vastidão imensa, e eu ficava junto dela sem compreender, na sua plenitude, aquelas palavras. Os cabelos negros, negros como a noite sem luar, ora os prendia numa trança, ora os trazia caídos até às ancas, apenas presos pelo lenço. As sobrancelhas eram finas e arqueadas, o rosto magro e pálido, demasiado pálido até. O nariz pequenino e afilado, os lábios finos, um pouco entreabertos, como duas linhas rubras feitas a medo e uma covinha no queixo que se expandia quando sorria. Alta e delgada, vestia saias compridas até ao artelho. Vestia sempre cores vivas, de tons verdes e azuis como os do mar que ela adorava, contrastando com o resto das mulheres que envergavam roupas escuras e tristes. Constância era diferente. Constância era uma princesa que o Destino condenara às galés, ao eterno degredo da vida!... 9 Fernanda Moreira | Pôr-de-sóis 10 Fernanda Moreira | Pôr-de-sóis I Nunca me esquecerei do dia em que a conheci!... Parece ter sido ontem, apesar dos anos terem levado essa imagem de mim para sempre! Tinha ido levar uma cestinha de peixe a uns fidalgos que moravam do outro lado da praia e costumavam passar aqui, todos os anos, os meses de Verão. Lembro-me que o céu se cobria de nuvens pesadas, cinzentas, toldando a face esbranquiçada do sol e o mar tornara-se revolto, rebentando em estrondosos roncos de encontro às rochas. Apesar de iminência da tempestade, quando regressei a casa segui por um atalho oposto que me permitiria passar próximo da casa do senhor Zé da Lapa. Meu pai falava tanto do senhor Zé da Lapa, do seu velho amigo de infância, que um dia tinha abandonado a faina para arranjar trabalho na cidade, tão cansado estava da mágoa sofrida, quando uma embarcação, que levava seu pai e dois irmãos, havia naufragado em alto mar, engolindo seus corpos para sempre. Ficara pela cidade e aí formara família. Arranjara alguns patacos e, como a idade começava a pesar, decidiu voltar com a sua esposa e com a única filha. Ultimamente, entre os pescadores, não se ouvia falar em outra coisa. E o meu pai, aos serões, falava tanto do seu amigo, das campanhas 2 de que ambos 2 Campanha: conjunto de homens e barcos que se juntavam para irem pescar em alto mar. 11 Fernanda Moreira | Pôr-de-sóis fizeram parte e das suas aventuras, que o meu desejo e curiosidade em os conhecer crescia de dia para dia. O senhor Zé da Lapa tinha vindo primeiro arranjar casa para albergar a família e montar um pequeno negócio. Logo que aqui chegara veio cumprimentar meu pai que o recebeu de braços abertos e de olhos rasos de lágrimas. Era um homem alto, bem parecido, um pouco curvo, de ombros largos e de tez pálida, ligeiramente moreno, reminiscências do sol da sua juventude. O cabelo tinha algumas cãs, assim como o bigode que usava cobrindo-lhe o lábio inferior. Sob umas pestanas espessas, uns olhos fundos e pequenos. O nariz adunco, voz firme e harmoniosa. Em suma, mostrava ainda traços sóbrios e gentis do homem que fora na sua mocidade. Tocou-me no rosto, numa carícia e disse a meu pai que eu iria ser uma linda mulher. Depois, saíram juntos. Vi-os desaparecer envoltos numa onda de entusiasmo. Era a primeira que tínhamos a visita de alguém que eu não conhecia e que, no entanto, fazia já parte da minha vida! Naquele homem havia algo de bom e de saudoso que ligava meu pai à sua juventude e, a prova disso, é que nunca o vira tão arrebatado, tão cheio de energia como naqueles dias. A esposa e a filha chegaram à praia uns oito dias depois e eu morria de curiosidade ansiosa por vê-las. Por isso, naquele dia, regressei a casa por outro caminho que me facultaria, talvez, satisfazer a minha curiosidade. Sabia que a senhora Teresa, esposa do 12 Fernanda Moreira | Pôr-de-sóis senhor Zé da Lapa, tinha uma lojinha onde vendia um pouco de tudo a par da tasca do marido, nos fundos da casa, e havia grandes possibilidades de a conhecer. Caminhava eu com alvoroço, quando uma chuva violenta começou a cair e o céu se rasgou em raios de fogo. Escurecera e tudo tomara um aspecto sinistro, enquanto o mar se encrespava ainda mais. No momento em que passava junto da casinha de pedra, tentando descobrir um abrigo que me protegesse dos aguaceiros, uma voz harmoniosa e doce chamou-me: -Suba. Recolha-se aqui! Olhei para cima timorata e vi um rosto sorridente, esperando-me no limiar da porta, que certamente iria fechar quando me viu. Como hesitasse, tornou a chamar-me. - Vá, não tenha medo. Suba. Não lhe faço mal! Decidi-me. Subi as escadas e entrei envergonhada, sem palavras. Fechou a porta, o lume crepitava na lareira e a luz de um candeeiro tremelicava. A cada ribombar de um trovão, o meu corpo vacilava. Ela mantinha-se firme. - Tire o xaile e sente-se junto à lareira. Não tenha medo, fechei tudo, nenhum raio cairá cá dentro. Além disso, temos o Senhor connosco. - Enquanto falava, cheia de ternura, empurravame gentilmente para junto da lareira. Puxou um banquinho e convidou-me a sentar. A chuva batia nas vidraças, furibunda. - Como se chama? - perguntou, pondo mais lenha no lume que ateava com os foles. - Madalena Rosa... - Lindo nome. Se eu não fosse Constância, seria 13 Fernanda Moreira | Pôr-de-sóis esse o nome que gostaria de ter. O nome de uma flor, das mais lindas! - os seus lábios mexiam-se como por encanto e a sua voz tinha um som mágico. Constância! Este nome jamais seria varrido do meu coração. Amá-la-ia como irmã se isso me fosse permitido. Ouvia-a calada, em êxtase. - De quem é filha? - indagou, fixando-me. Reparei-lhe na blusa de chita rameada, na saia castanho claro, no avental branco a que limpava as mãos e nos chinelos com florezinhas vermelhas. Toda ela irradiava encanto e felicidade. - Sou filha de Manuel Lombarda... - Ah!... - o seu "ah!” era significativo e prazenteiro – O meu paizinho fala muito dele. Então é como se fosse da família! Estas últimas palavras inebriaram-me de alegria. Apetecia-me abraçá-la, beijá-la, tal era a minha loucura! Emborcou um pote de peixe cozido sobre o alguidar e começou a tirar-lhe as espinhas, cuidadosamente, para não se queimar. A chuva continuava a fustigar as vidraças e o trovão redobrou de ferocidade. Ela olhava-me sorridente e consoladora, notando a minha inquietação. Puxou, então, de um banquinho, colocou o alguidar sobre os joelhos e ficou ali, sentada, junto de mim. - Eu nasci assim num dia tempestivo como este. Talvez por isso, este tempo não me meta medo. Sorri, ela continuou: - A minha mãe debatia-se com as dores do parto. 14 Fernanda Moreira | Pôr-de-sóis Eu, Madalena Rosa, sou a última de seis filhos que minha mãe teve e que morreram pouco depois de nascer ou mesmo antes e, por isso mesmo, ela ficara sempre doente. Os médicos aconselharam-na a não ter mais filhos, mas fez ouvidos moucos. Queria ter mais um para lhe consolar os dias da velhice... Quando ficou grávida, rezou e agradeceu. A minha avó, que vivia ainda nessa altura, fartou-se de fazer promessas para que eu vivesse e para que tudo corresse bem durante o parto. O meu pai temia, não tanto por mim, mas pela vida da minha mãe - fez uma pausa, ateou o lume novamente e continuou - Quando chegou o temido, mas tão desejado momento do parto, a minha mãe não conseguia expulsar-me e a parteira saiu do quarto abanando a cabeça de olhar sombrio e agoirento. Minha avó e outras vizinhas oravam em frente do crucifixo. Meu pai saiu, como um louco, à procura de um médico, mas não o encontrou e só havia outro a cinco léguas 3 de distância. Entretanto, minha mãe ardia em febre e em dores. Acabou por cair em delírio. Meu pai arrepelava os cabelos e no meio do desespero resolveu sair novamente. Uma chuva torrencial começou a cair acompanhada de trovões ferozes que faziam estremecer a terra e o negro da noite era impenetrável. No momento em que este abria a porta deparou com um grupo de ciganos lhe pediu abrigo para aquela noite. O meu pai diz que só se lembras de lhes ter respondido: - Fiquem onde quiserem, nada tenho para roubar e a minha esposa, que é o que de mais precioso tenho na vida, a morte parece querer-ma levar! 3 Légua, medida itinerária antiga que correspondia a cinco quilómetros. 15 Fernanda Moreira | Pôr-de-sóis Uma cigana aproximou-se dele e segredou-lhe que talvez o pudesse ajudar. Quando meu pai entrou, acompanhado pelos ciganos, todas ficaram embasbacadas, benzendo-se pensando que o meu pai enlouquecera de vez. Constância ria ao contar esta passagem. - Como eu gostaria de ter lá estado para ver a cara daquelas mulheres piedosas! - comentou ainda a rir, depois fez uma pausa pensativa - Enquanto minha mãe fenecia no leito. Meu pai, apesar das reclamações da minha avó, introduziu a cigana dentro do quarto onde minha mãe estava. Enquanto isso os ciganos começaram a rezar, as mulheres, depois de hesitarem, imitaram-nos. O meu pai ia entrando e saindo do quarto ora pedindo água quente, ora toalhas de linho limpas à minha avó. Passados alguns momentos de aflição, ouviram-se os vagidos de uma criança. Todos louvaram a Deus. - É una niña!... - disse a cigana, vindo à porta Mas su madre sufre mucho... Após estas palavras, dirigiu-se a um cigano, trocaram algumas palavras e ele deu-lhe um frasquinho com um bálsamo qualquer, seguidamente, a cigana, entrou novamente no quarto. Poucas horas depois, minha mãe melhorou. Estava fora de perigo, graças à cigana. A tempestade recrudescera, o vento uivava, caia granizo. Meu pai aqueceu e deu-lhes do melhor manjar que tinha. - Não gosto de ver partos em dia de tempestade dizia a minha avó - Diz-me o coração que grande desgraça vai acontecer! 16