133 Uma nota sobre o urbano e a escala Roberto Lobato Corrêa* A presente nota procura contribuir para a clarificação do problema da escala em geografia. Trata-se de problema complexo, que tem merecido crescente atenção por parte dos geógrafos, como se exemplifica com a contribuição de M ARSTON (2000), que considera a escala como uma construção social, e com o debate entre BRENNER (2000 e 2001) e M ARSTON e SMITH (2001), no qual a escala é vista do ponto de vista metodológico e político. Esta nota tem como ponto de partida, de um lado, um longo envolvimento de seu autor com a temática do urbano e, de outro, o importante texto de CASTRO (1995) sobre o “problema da escala” na geografia, na qual a autora considera-a do ponto de vista epistemológico e como uma “ estratégia de compreensão do real como representação”. A nota objetiva, de modo mais específico, indicar as relações entre os modos como o urbano pode ser geograficamente analisado, isto é, escala conceitual, as representações cartográficas e a inteligibilidade do urbano. 1 – As Escalas Conceituais do Urbano Na tradição geográfica o urbano tem sido analisado segundo três linhas principais de investigação. A primeira refere-se ao processo de urbanização, isto é, as bases e as formas de concentração de população em torno de atividades industriais, comerciais e de serviços. As conseqüências deste processo coroam esta linha de investigação. A identificação de formas como a megalópole, a cidade-dispersa, a região metropolitana, o “corredor urbano”, a conurbação e a aglomeração urbana, expressões vigentes na literatura, constituem importantes contribuições sobre a temática do urbano. Qualificações como cidade-primaz, macrocefalia urbana, cidade ortogenética e cidade heterogenética, por outro lado, estão associadas a interpretações relativas à gênese e às conseqüências do referido processo. Há uma cartografia do processo de urbanização e a escala adotada é aquela de nossa área de interesse: internacional, nacional ou regional. A segunda linha de investigação diz respeito à consideração do urbano na escala da rede urbana. Esta é uma escala conceitual. De maneira simples entendemos por rede urbana, ou sistema urbano conforme alguns preferem utilizar, o conjunto funcionalmente articulado de cidades. Este conjunto pode ser analisado em diversas escalas cartográficas. A terceira linha de investigação refere-se ao espaço urbano, ou espaço intraurbano, como alguns o denominam. Trata-se de outra escala conceitual que tem suas correspondentes escalas cartográficas. Estas duas escalas serão privilegiadas nesta nota e sobre elas nos deteremos a seguir. Pois elas constituem as duas escalas conceituais que, de modo mais nítido, se pode identificar ao se considerar as três linhas de investigação geográfica sobre o urbano. * Departamento de Geografia – UFRJ 134 Revista Território - Rio de Janeiro - Ano VII - no 11, 12 e 13 - set./out., 2003 2 – Rede Urbana e Espaço Urbano e suas Representações A figura 1 descreve o foco principal desta nota, isto é, as relações entre as escalas conceituais do urbano e as escalas cartográficas correspondentes, ao mesmo tempo que encaminha a discussão para a inteligibilidade do urbano com base nos dois tipos de escala considerados, conceitual e cartográfica. Escala Pequena - 1:5.000.000 Intensidade Tamanho Origem Funções Etc Interações Escala Grande - 1:10.000 Mudança de Escala Pequena para Grande Plano Uso da Terra Áreas Específicas RLC - 1996 Figura 1 - As Escalas de Análise do Urbano Consideremos, conforme está na parte superior da figura, uma dada região e sua rede urbana. As cidades da rede diferenciam-se entre si de acordo com diversas linhas de diferenciação, das quais serão consideradas somente três, origem, tamanho e funções. Segundo a origem, que inclui o contexto econômico e político e os agentes sociais das criações urbanas, há inúmeros tipos Uma nota sobre o urbano e a escala 135 de cidades, a exemplo de cidades antigas originárias de missões religiosas, cidades mais recentes originárias de entrepostos comerciais e núcleos urbanos criados nos dias atuais por empresas industriais ou de mineração. Segundo o tamanho as cidades diferenciam-se de acordo com o número de seus habitantes ou segundo agregados econômicos distintos, com base, por exemplo, no valor da produção industrial e da receita do comércio e serviços e a renda de seus habitantes. Há, assim, cidades pequenas, médias, grandes e centros metropolitanos. Segundo as funções, para as quais a localização no espaço desempenha ou desempenhou um papel crucial, a diferenciação se faz entre cidades monofuncionais, como uma função caracterizadora, e cidades polifuncionais, combinando diferentes funções (industrial, comercial, de serviços, portuária, etc.). A partir de suas funções, mas também de outros atributos como a renda de seus habitantes, estabelecem-se fluxos entre as cidades e entre estas e suas respectivas hinterlândias e fluxos com centros e regiões extra-regionais. São fluxos de mercadorias, pessoas, informações e de capital, realizados por diferentes meios e dotados de periodicidade e intensidade variáveis. Das funções e fluxo emerge uma diferenciação entre as cidades, que se caracteriza por ser de natureza hierárquica, com base no diferencial de oferta de bens e serviços, combinada com diferenças devido às especializações funcionais, geradoras de relações de complementaridade entre cidades. A figura 1 refere-se a esta rede urbana hipotética, cuja representação cartográfica se faz por meio de mapas com escalas pequenas, 1:500.000, por exemplo, para escalas ainda menores, a exemplo de um estudo sobre o conjunto da rede urbana brasileira, que pode ser representado em mapa na escala de 1:5.000.000 ou ainda menor. Consideremos agora, conforme indicado na parte inferior da figura, o espaço urbano de uma das cidades da rede urbana. Verificou-se, como indicado, uma operação escalar na qual a escala cartográfica foi ampliada. Mudam os objetos a serem representados. Admitiremos tratarse de uma grande cidade, com enorme complexidade em seu espaço urbano. As escalas cartográficas que permitirão representá-lo variam de cerca de 1:25.000 a 1:1.000, e a cada ampliação os objetos disponíveis para análise são mais numerosos. Ressalte-se que dentro da faixa de escalas acima especificada, ainda que haja implicações para a análise, não alteramos a escala conceitual que continua sendo a mesma, a do espaço urbano. A figura 1, em sua parte inferior, revela ou pode permitir o estudo, de um lado, do sítio e do plano da cidade e, de outro, do uso da terra e de outros aspectos associados a esta grande escala. É possível detectar e representar aspectos significativos da topografia e da rede fluvial, assim como representar os resultados de minuciosos estudos geomorfológicos. O plano da cidade, em tabuleiro de xadrez ou radio-concêntrico são facilmente representados, assim como a justaposição de diferentes planos de arruamento. A grande escala, como acima indicada, possibilita o estudo e a representação cartográfica da variedade de usos da terra urbana. O distrito central de negócios, a zona periférica do centro, as áreas industriais e as diversas áreas sociais, entre outros, podem ser objeto de análises acuradas. Os conflitos sociais podem também ser representados cartograficamente, assim como os inúmeros territórios existentes no espaço urbano. Os fluxos intraurbanos, de mercadorias e pessoas, por exemplo, podem ser estudados e representados cartograficamente, assim como as representações associadas a tudo que é “lembrado, imaginado ou contemplado (...) material ou imaterial, real ou desejado (...) vivenciado ou projetado”, conforme aponta COSGROVE (1999, p. 2). 136 Revista Território - Rio de Janeiro - Ano VII - no 11, 12 e 13 - set./out., 2003 Uma observação final se impõe. As duas escalas conceituais, a da rede urbana e a do espaço urbano não estabelecem uma dicotomia, cindindo o urbano em duas partes que não se tocam. Lembremo-nos que a dicotomia não é um dado do mundo real, mas de uma deformação intelectual. A operação escalar não introduz essa visão deformada, geradora de dicotomia, mas, ao contrário, ressalta as ricas possibilidades de se analisar o mundo real, o urbano no caso, em dois níveis conceituais complementares. Assim, processos sociais ocorrendo no âmbito da rede urbana, como a modernização do campo, pode gerar correntes migratórias que, por meio de etapas migratórias, finalizem em favelas na grande cidade, conformando o espaço urbano. Por outro lado, a modernização do campo pode resultar de interesses industriais vinculados às grandes empresas com sedes na área central da cidade. Há, assim, conexões entre escalas, espaciais e conceituais, distintas. As duas escalas contribuem decisivamente para dar unidade à análise geográfica do urbano. Bibliografia BRENNER, N. (2000): The Urban Question as a Scale Question: Reflections on Henri Lefébvre Urban Theory and Politics of Scale. International Journal of Urban and Regional Research, 24(2), pp. 361-378. BRENNER, N. (2001): The Limits to Scale? Methodological Reflections on Scalar Structuration. Progress in Human Geography, 25(4), pp. 591-614. CASTRO, I.E. (1995): O Problema da Escala. In Geografia: Conceitos e Temas, org. I.E.Castro, P.C.C. Gomes e R.L. Corrêa, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. CASTRO, I.E., GOMES, P.C.C. e CORRÊA, R.L. (1996) : Apresentação. In Brasil: Questões Atuais da Reorganização do Território. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. COSGROVE, D. (1999): Mappings. London, Reaktion Books Ltd. Marston, S.A. (2000): The Social Construction of Scale. Progress in Human Geography, 24(2), pp. 219-242. MARSTON, S.A. e SMITH, N. (2001): States, Scales and Households: Limits to Scale Thinking? A Response to Brenner. Progress in Human Geography, 25(4), pp. 615-619.