DEMOCRACIA E SEGURANÇA NA POLÍTICA EXTERNA NORTEAMERICANA: UMA BREVE ANÁLISE DA INTERVENÇÃO ARMADA
NO AFEGANISTÃO (2001-2008)
Cairo Gabriel Borges Junqueira
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RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a política externa dos Estados Unidos da
América (EUA) no pós-Guerra Fria utilizando as bases do pensamento tradicionalista liberal, as
premissas conceituais democráticas e a forte ligação existente entre segurança e exportação da
democracia nas intervenções externas e armadas lideradas pelo país. No caso específico do
Afeganistão, a intervenção caracterizou-se como exemplo fracassado de imposição de regime
externo por meio do uso da força. Conclui-se que o 11 de setembro de 2001 e a consequente “Guerra
ao Terror” da Doutrina Bush reviveu a história norte-americana, na qual, quando existe uma grande
ameaça, apelasse para os ideais do país baseados na contestada relação “democracia-segurança”.
PALAVRAS-CHAVE: Política Externa Norte-Americana; Democracia; Segurança; Intervenção
Armada; Afeganistão.
INTRODUÇÃO
Há um debate constante a respeito da Nova Ordem Internacional que se inicia na década de
1990, logo após a queda do Muro de Berlim em 1989 e, em momento posterior, a derrocada da União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em 1991. Pode-se considerar que emergiu uma Ordem
Multipolar em que Estados Unidos da América (EUA), União Europeia e Japão formaram um “triangle
of relationship”, no qual estavam presentes as maiores barganhas políticas e econômicas em escala
mundial. Todavia, alguns especialistas acreditam que os EUA inauguraram uma fase unipolar, na
qual o sistema internacional teve como característica principal a concentração de riqueza que não
tendeu a ser contestada por qualquer outra potência relevante (VIOLA; REIS, 2004).
Mesmo passando por momentos de relativo isolacionismo, os EUA iniciaram sua inserção
internacional ainda durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Mas foi com o sucesso da vitória
na Segunda Guerra (1939-1945) e a configuração da Guerra Fria que o país ganhou o status de
potência – ou maior potência – global. No pós-Guerra Fria, conforme supramencionado, houve uma
série de mudanças geopolíticas e comerciais. Entretanto, os EUA não deixaram de ocupar seu lugar
de destaque nos principais palcos de solução de controvérsias, resolução de litígios, conflitos
armados, interesses nacionais, mercado financeiro, dentre outros.
Tomando-se como ponto central a configuração unipolar que se seguiu logo após o fim do
conflito bipolar, as doutrinas de política externa norte-americana começaram a ser alvo de uma
infinidade de estudos e pesquisas, inclusive na área de Relações Internacionais em menor número,
diga-se de passagem, mas com importância ímpar. Nesse ínterim, dois temas bastante recorrentes
na prática da política externa do país, os quais serviram como via-mestra para que três expresidentes norte-americanos, George Herbert Bush (“Bush Pai”), Bill Clinton e George Walker Bush
(“Bush Filho”), caminhassem com suas agendas exteriores, também foram alvos de análises
acadêmicas de pesquisa, sejam eles: democracia e segurança.
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Mestre em Relações Internacionais, com ênfase em Política Internacional e Comparada, pela
Universidade de Brasília - Instituto de Relações Internacionais (IREL). Bacharel em Relações
Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de
Franca (FCHS). E-mail: [email protected].
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Para se ter uma noção inicial do peso político de ambos os conceitos citados, Maria Helena
de Castro Santos (2010a) realizou um estudo quantitativo e concluiu que, principalmente no início do
século XXI, a preocupação com segurança permaneceu ocupando lugar muito importante na política
externa dos EUA. Ainda assim, a palavra “democracia” obteve espaço relevante estando presente
nos discursos de todos os Secretários de Estado dos presidentes apontados, sendo que Condoleezza
Rice, do segundo governo de “Bush Filho”, por exemplo, utilizou cerca de 10% a mais o segundo
vocábulo comparado com o primeiro em seus pronunciamentos públicos.
Para tanto, o trabalho que ora se apresenta procurará vincular as questões de democracia e
segurança à política externa norte-americana. Assim, é impossível desvincular tais questões da séria
de intervenções realizadas no pós-Guerra Fria em nome da exportação democrática, mormente no
Oriente Médio. Além de casos conhecidos em outras regiões e continentes, como Haiti, Somália,
Bósnia, Kosovo e Líbia, é no Próximo Oriente e na Ásia Central que se situam os dois exemplos
primordiais de exportação da democracia por meio do uso da força: Iraque e Afeganistão.
Em decorrência da atualidade desses conflitos imiscuídos nas diplomacias e interesses dos
mais variados países e nos principais fóruns de discussão internacionais, com destaque para a
Organização das Nações Unidas (ONU), é salutar justificar o estudo a seguir como uma tentativa de
se verificar o que está nos bastidores da política externa dos EUA e apontar quais são as origens
presentes no atual discurso da “missão americana” em fomentar os valores democráticos em nível
mundial. Conforme será visto em Robert Packenham (1973), para os governantes norte-americanos o
desenvolvimento está baseado em democracia, estabilidade, paz e pró-Americanismo.
Ademais, o estudo de caso em questão será especificamente a intervenção armada e
considerada um fracasso de Foreign Imposed Regime Change (FIRC), cuja possível tradução é
“Imposição de Regime por Forças Externas”, no Afeganistão iniciada em 2001 com o objetivo
primordial e único de capturar Osama Bin Laden, ex-líder e fundador da Al-Qaeda e responsável
pelos atentados terroristas ao World Trade Center em setembro do mesmo ano. Consequentemente,
George W. Bush iniciou a chamada “Guerra ao Terror” e quis, a todo custo, derrubar o Taliban, grupo
fundamentalista islâmico que abrigava os membros da própria Al-Qaeda. Estavam postas, destarte,
as tentativas para se expandir os valores liberais norte-americanos aos afegãos, episódio de extrema
relevância para a pesquisa acadêmica e para o estudo que se segue.
Sumariamente, tem-se como finalidade analisar a política externa norte-americana no pósGuerra Fria, utilizando as bases do pensamento tradicionalista liberal, as premissas conceituais
democráticas e a forte ligação existente entre segurança e exportação da democracia nas
intervenções externas e armadas. É importante ressaltar que tal exportação pode se dar por diversos
meios, dentre eles intercâmbios acadêmicos, culturais e científicos. Contudo, o estudo do Afeganistão
trata-se da tipologia do uso da força, exemplo de FIRC fracassado, o meio mais controverso para ser
usado em nome da “paz universal e democrática” proposta pelos EUA.
Na seção subsequente serão estudadas as ideias e doutrinas do pensamento dos EUA
durante a Guerra Fria, período em que o liberalismo tornou-se ideologia dominante no país, presentes
nas obras de Louis Hartz (1955) e Robert Packenham (1973). Em um segundo momento, terá
destaque o arcabouço conceitual-teórico trabalhado pela literatura do pós-Guerra Fria na relação
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“democracia-segurança”, retomando as concepções de Josef Schumpeter (1943) e Robert Dahl
(1996; 2009) e passando para as ideias e doutrinas do pensamento dos EUA, cujos expoentes
encontram-se em Larry Diamond (1992), Tom Farer (1996), Dankwart Rustow (1970), Laurence
Whitehead (2005), Maria Helena de Castro Santos (2010a; 2010b; 2011), dentre outros
Por conseguinte, na quarta seção, far-se-á uma cronologia, tendo como referencial o livro de
Fraser Cameron (2005), dos presidentes norte-americanos no pós-guerra, começando por “Bush Pai”,
indo ao governo Clinton e finalizando na tão contestada política de “Bush Filho”. O estudo de caso do
Afeganistão terá seu lugar de criticidade na seção seguinte. Após ser realizado um pequeno
antecedente histórico recente do país, o episódio do 11 de Setembro de 2001 será o ponto primordial
para se estudar a Doutrina Bush e o consequente combate ao terrorismo. Nesse ponto, a tipologia de
FIRC por meio de uma nova liderança de Alexander Downes (2011) será o referencial teórico.
Ainda assim, a Operação Liberdade Duradoura (OEF, em inglês) e a atuação da Força
Internacional de Assistência para Segurança (ISAF, em inglês) serão analisadas tendo como base o
trabalho de conclusão de curso e a dissertação de mestrado de Danillo Alarcon (2009; 2012). Por fim,
ainda no presente item e não menos importante, as contribuições de Bruce Kuniholm (2002), Patricia
Gossman (2001), Robert Jervis (2003), Melvyn Leffter (2005) serão motivo de apreciação para se
chegar à conclusão do impasse em que o governo de George W. Bush presenciou no que concerne à
fracassada tentativa de se exportar a democracia aos afegãos.
Ao final, na conclusão per se, será feito um balanço geral e um apanhado da influência das
temáticas de segurança e democracia na política externa dos EUA. Ver-se-á que a exportação
democrática através do uso da força foi o traço marcante no Afeganistão e continua a ser, mesmo
passado a Era Bush, um aspecto característico da história norte-americana. Sobrevêm séculos e o
rumo do país parece seguir uma linha geral e tênue entre os dois conceitos centrais discutidos até
então.
O IDEÁRIO LIBERAL DA POLÍTICA EXTERNA NORTE-AMERICANA
A partir da última década de noventa, as doutrinas da política externa norte-americana
compartilham um corpo conceitual que envolve princípios e valores há muito tempo vistos como
influências da chamada tradição liberal americana. O núcleo teórico do discurso de vários
acadêmicos e da maioria dos tomadores de decisão do país ainda baseia-se na obra de Louis Hartz
(1955), na qual foram colocadas as diretrizes do Excepcionalismo Americano, entendido como um
conjunto de ideias cujo bojo situa-se na tentativa de se inserir, qualitativamente, os EUA como país
diferente de qualquer outro no mundo.
A defesa desse pensamento remete-se a tempos remotos, inclusive com Alexis de
Tocqueville, o primeiro pensador a descrever o território norte-americano como um lugar excepcional,
sendo a primeira grande nação a desenvolver um pensamento ideológico unitário. Este, por sua vez,
é enraizado no tripé liberdade, igualdade e fraternidade, o qual norteia o pensamento político liberal
que permeou os discursos de seus presidentes ainda no período posterior à Guerra Fria.
Ademais, segundo Hartz (1955), os EUA nunca presenciaram traços marcantes de uma
sociedade feudal, socialista e/ou revolucionária. Até mesmo o ápice da Independência em 1776
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manteve os traços liberais de sua sociedade e não se assinalou como um movimento de mudança de
ordem interna. Do seu legado, depreende-se a liberdade social, política e jurídica como parte do
cotidiano dos norte-americanos, haja vista que os norte-americanos tinham paixão pelo laissez faire
em seus pensamentos (HARTZ, 1955, p. 53).
Se não havia hierarquia social, existia, portanto, a tão gloriosa democracia norte-americana. É
dessa obra que advém a máxima de todo nativo nascer como igual ao seu semelhante, havendo
horizontalização nos processos decisórios, ou seja, sufrágio universal. Não se constituindo em
Aristocracia, os EUA seriam o retrato da igualdade de classes, os norte-americanos pertenceriam a
um só lugar e a um só Estado. No espaço onde todos surgiram iguais, a democracia consolidou-se
como o principal semblante da tradição liberal.
Fundamentado em Hartz (1955), Robert Packeham (1973) defendeu que a atual política
externa do país tem o mesmo corpo de ideias centrais, com imenso caráter normativo, abalizado
nestas premissas: “[...] as doutrinas de política externa do hegemon voltadas para a difusão da
democracia no pós-Guerra Fria também compartilham um mesmo corpo de conceitos, princípios e
valores, baseado igualmente na tradição liberal americana” (CASTRO SANTOS, 2010a, p. 157).
Nos
meandros
da
Guerra
Fria,
Packeham
(1973)
identificou
três
doutrinas
de
desenvolvimento político para os norte-americanos. Uma econômica, cujo objetivo era aumentar o
Produto Interno Bruto (PIB) per capita e as mercadorias; outra com dilema de segurança para
promover a estabilidade política e alianças com diversos outros países detentores dos mesmos
ideais; e uma última com o aspecto da democracia para difundir a visão liberal dos norte-americanos
ao “terceiro mundo”, ou seja, aos países menos desenvolvidos da Ásia, África e América Latina.
Mesmo não obtendo sucesso no seu objetivo, pois no pós Segunda Guerra o número de
Golpes de Estado e de casos de violência aumentaram consideravelmente nessas regiões,
Packeham (1973) demonstra o quão impactante são segurança e democracia para o itinerário político
norte-americano. Para o autor, as premissas da ideologia norte-americana afetam diretamente suas
doutrinas políticas, por isso a missão de levar preceitos democráticos, anticomunistas e próamericanistas tornaram-se traços marcantes nos contenciosos com a URSS ainda na metade do
último século, especificamente entre 1947 e 1968.
Na mesma obra, Packeham (1973) retoma os pensamentos de Hartz (1955) e descreve as
quatro principais proposições liberais presentes nas doutrinas de desenvolvimento político norteamericano, sejam elas:
1) Mudança e desenvolvimento são fáceis;
2) Todas as coisas boas vêm juntas;
3) Radicalismo e revolução são ruins; e
4) Distribuir poder é mais importante do que acumulá-lo.
No que concerne ao primeiro ponto, os EUA sempre acreditaram em sua dominância cultural
que proporcionava e facilitava os desenvolvimentos sociais, políticos e econômicos em que estavam
inclusos. No limiar dos anos quarenta, a concepção de “autoajuda” inserida na Agência Internacional
de Desenvolvimento (USAID) servia para disseminar a ideologia do país em lugares que estavam
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dispostos a desenvolver seus programas de sucesso. Caminhava ao encontro das ações o fato dos
EUA inserirem-se internacionalmente acompanhando seu acentuado crescimento econômico.
O segundo aspecto é resumido satisfatoriamente por Samuel Huntington (1968, p. 5-7 apud
PACKEHAM, 1973, p. 124), o qual diz que os EUA foram abençoados com abundância econômica,
bem-estar social e estabilidade política, contribuindo para a aceitação de uma unidade repousada na
bondade geral [unity of goodness, em inglês] por parte dos norte-americanos. A grande participação
social fruto do sufrágio apontado ainda em Hartz (1955) é a chave para o entendimento dessa
perspectiva, porque haveria um transbordamento da igualdade entre as populações para os
ambientes políticos e econômicos, articulando uma cadeia de ações positivas entre eles.
Portanto, como haveria de se esperar, qualquer movimento socialista ou comunista ou
quaisquer manifestações revolucionárias seriam repudiadas pela política central norte-americana. As
políticas consideradas esquerdistas sempre foram vistas como sinônimo de conflito, desordem e
violência, fatos que deporiam contra o desenvolvimento político norte-americano e que, como
consequência, seriam sempre algo ruim em se lidar. Nos dizeres do próprio Packeham (1973), os
nativos nasceram iguais e nunca necessitaram de uma profunda revolução social para se tornarem
assim. De tal sorte, além da supracitada democracia, a carência de revoluções e a negação do
Socialismo são outros dois semblantes da tradição liberal americana.
Já a quarta e última proposição das doutrinas políticas fazem jus à ideia de democratização
do processo decisório. Estando o poder disseminado entre os indivíduos, bloqueia-se a concentração
do mesmo nas mãos de apenas um governante, no caso um aristocrata, ou de uma oligarquia.
Quanto maior for o número de participantes na política, maior será o grau de isonomia entre os
cidadãos, uma vez que os norte-americanos são todos iguais perante a lei.
Resumidamente, o que fica evidente nas obras de Hartz (1955) e Packeham (1973) é a
persistência e a perenidade do ideário liberal que se encontra na política externa nacional, inclusive
permanecendo no cenário do pós-Guerra Fria, o qual será analisado em momento oportuno. Se os
policy-makers norte-americanos sempre adotaram um realismo político empírico, não se pode dizer o
mesmo dos seus discursos teóricos marcados, em grande medida, pelo tradicionalismo liberal
analisado na presente seção.
O LEGADO CONCEITUAL: DEMOCRACIA E SEGURANÇA NO PÓS-GUERRA FRIA
Antes de entrar no emaranhado político característico da visão unipolar norte-americana após
o fim da URSS, é vital indagar as seguintes questões: Sobre qual democracia estamos falando e que
corpo conceitual ela abrange? Dos debates conhecidos à época, apenas uma corrente ganhou
ênfase e predomínio: a “democracia procedimental” vinculada principalmente a Josef Schumpeter
(1943) e Robert Dahl (1996; 2009).
Diferentemente da Tradição Democrática Clássica em que a concepção de bem comum está
intimamente ligada à vontade geral, ou seja, à vontade dos indivíduos razoáveis e ao caráter de
segundo plano assumido pelos representantes, Schumpeter (1943) representa a visão “minimalista”,
na qual não há bem comum e a vontade é manipulada pelos políticos. Sua grande preocupação são
as eleições, devendo ser livres e competitivas. Aqui, a democracia aparece como um espaço para se
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alcançar decisões políticas em prol dos indivíduos, contudo permanece circunscrita aos meios
eleitorais guiados pelas elites sociais.
Democracia, nas palavras do próprio autor, é a livre competição pelo voto livre. Ela se
caracterizaria mais pela concorrência organizada do que pela soberania do povo e o sufrágio
universal, sendo uma espécie de método, haja vista possuir como fim último as decisões políticas,
propriamente ditas. Por conseguinte:
A concepção schumpeteriana de democracia colide também com a noção
de soberania popular sustentada pela teoria democrática tradicional, já que,
de acordo com Schumpeter (1984), o povo não exerce o poder. Qual é,
então, o papel do povo? Não é outro senão o de “produzir um governo, ou
melhor, um corpo intermediário, que por sua vez, produzirá um governo”.
Essa é a função básica do eleitorado, embora o próprio Schumpeter
alargue-a um pouco, incluindo aí a função de desapossar o governo
recusando-se a reelegê-lo; porém, de toda maneira, não são os eleitores
que decidem as questões de interesse coletivo. Como afirma Bobbio
(1986b), “(...) as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem
respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles
que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade. Ponto e
basta” (AMANTINO, 1998, p. 135).
Vê-se a relativa aversão que Schumpeter (1943) tem da doutrina clássica da democracia
cujas bases foram analisadas em Hartz (1955) e Packeham (1973). Mais interessante ainda é
observar que o economista austríaco por si só indaga, mesmo defendendo sua visão e criticando o
método tradicional, quais seriam as razões para que o ideário liberal permanecesse extremamente
vinculado às sociedades, em especial aos norte-americanos. Para o autor, as noções de liberdade,
igualdade e fraternidade viraram um artifício de fé religiosa. A democracia tornou-se um ideal, ou
melhor, parte de um sistema ideal de coisas, uma bandeira, um símbolo de tudo que o homem admira
e/ou ama. É aqui que reside a eloquência dos discursos de presidentes, lisonjeando as massas e
criticando os discursos dos adversários.
No patamar em que a democracia é uma questão de procedimento e não de substância, as
contribuições de Dahl (2009) são dignas de reconhecimento, pois o autor é a maior referência nos
debates democráticos contemporâneos. Se “[...] a democracia é para a maioria um jogo bem melhor
que qualquer outra alternativa viável” (DAHL, 2009, p. 74), deve-se distingui-la entre real – sistema
representativo de governo – e ideal – valor absoluto a ser alcançado abrangendo valores universais.
Com uma série de apontamentos, o autor mostra quais seriam os dez critérios de um
processo democrático:
1) Participação efetiva;
2) Igualdade de voto;
3) Entendimento esclarecido;
4) Controle do programa de planejamento;
5) Inclusão de adultos;
6) Liberdade de formar e aderir a organizações;
7) Garantia de fontes alternativas de informação;
8) Eleições livres e idôneas;
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9) Instituições coesas; e
10) Igualdade política (isonomia) e busca pela paz.
O cientista político parte do pressuposto de que uma característica chave da democracia é a
contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados como
politicamente iguais. Em si, o processo de democratização teria como centro a contestação pública
aliada ao direito de participação por parte de toda ou da maioria da população. É desta constatação
que Dahl (1996, p. 31) diferencia a democracia, considerada como um ideal, pois leva em conta os
princípios elencados acima, e as Poliarquias, as quais “[...] podem ser pensadas então como regimes
relativamente democratizados, ou, em outros termos, [...] regimes que foram substancialmente
popularizados e liberalizados, isto é, fortemente inclusivos e amplamente abertos à contestação
pública”.
A democracia enquanto símbolo de tudo aquilo que é bom e amável (SCHUMPETER, 1943)
ou valor máximo a ser seguido com procedência universal (DAHL, 2009) é o discurso dominante para
os norte-americanos. Outros autores, críticos dos modelos minimalista e contemporâneo abriram
caminho para um debate ainda mais atual do que o ut supra. Dentre tais, Larry Diamond (1992)
cunhou o conceito de “Democracia Liberal”, um modelo mais amplo, porque incorporou as questões
de direitos humanos, liberdades civis e participação cidadã. Mesclando tanto o ideário liberal norteamericano quanto a teoria democrática hegemônica, tal concepção também abrange liberdade,
pluralismos, participação eleitoral e, sobretudo, vigor do Estado de Direito.
Diamond (1992) foi o responsável por ratificar uma nota literatura que colocava a exportação,
ou, em suas palavras, a promoção da democracia para além dos EUA no contexto do pós-Guerra
Fria. Os preceitos democráticos foram os grandes vencedores da batalha ideológica travada no
conflito bipolar, cabendo aos norte-americanos promover a democratização ao redor do mundo.
Sendo a democracia universal, tudo seria mais fácil, benigno e próspero para aquela nação.
Retomando os preceitos do Excepcionalismo Americano, o autor nos diz que o compromisso dos
EUA com a liberdade e a democracia era a razão de muitos países e pessoas continuar a olhar para
a “América” como liderança internacional (DIAMOND, 1992, p. 29).
Na mesma linha de raciocínio, o único modo de se construir um mundo seguro e próspero
seria através da promoção da democracia nos parâmetros analisados. Países como Irã, Iraque, Líbia,
Coreia do Norte e Síria são ainda considerados ameaças aos seus interesses, e, por esta razão, os
cidadãos norte-americanos estariam menos seguros e menos protegidos pela rule of law em virtude
da existência de regimes autoritários. Diamond (1992) defendeu que a política externa dos EUA na
década de noventa deveria ir de encontro à geopolítica clássica e realista, ela precisaria sair do
passado e construir novos temas, agendas e estratégias. Estas estariam afetadas diretamente pela
promoção da democracia, uma vez que somente aquele país tem a habilidade de fazê-la com relativo
sucesso.
Tom Farer (1996), defensor da hegemonia norte-americana, justifica o fortalecimento da
democracia ao redor do mundo, principalmente e em específico, na América Latina. Entretanto, seus
preceitos são inteiramente relacionados com a ideia de exportação democrática de maneira geral, por
isso merece ser referenciado no presente artigo. Em sua obra, o autor pontuou que as democracias
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são variáveis e, assim, fatores externos – sanções econômicas ou militares – as influenciam
diretamente.
No imediato pós-Guerra Fria, era dever dos EUA mostrar o quão bom a democracia tornarase em comparação com governos socialistas e autoritários. Inclusive, Farer (1996, p. 16) aprova o
uso da força, dizendo que ela deveria ser empregada de maneira ordenada e com a certeza de colher
bons resultados, pois ela depende da população civil e de seus papeis enquanto atores políticos. Verse-á que muitas autoridades ignoraram essa pré-condição e tiveram fracassos nas jornadas de
exportação da democracia, sendo o Afeganistão um exemplo emblemático. Todavia, tal ação sempre
foi considerada efetiva e, a partir da década de noventa, houve maior tolerância ao uso da força,
abrindo espaço para o pragmatismo da política externa norte-americana.
De tal sorte, à medida que o discurso em prol do sistema foi passando à agenda de
segurança, encontrou outra literatura que conceitualizava o processo de transição democrático em
terceiros países. Dankwart Rustow (1970) pontuou quatro fases dessa trajetória, devendo ser
obrigatoriamente seguidas na sequencia: background condition; fase preparatória ou de conflito; fase
de decisão ou consenso; e fase de habituação. Em meio ao fracasso da ideologia e do modelo de
governo da URSS, a exportação da democracia também foi encontrando seu respaldo por parte de
outros acadêmicos e cientistas americanos, retomando as variáveis internas e externas mencionadas
por Farer (1996).
Em recente trabalho, Castro Santos (2010b) questiona até que ponto as variáveis externas –
cooperação técnica ou cultural, ajuda condicionada, bloqueios econômicos, sanções, uso da força,
etc. – influenciariam a construção de democracias. Com a onda de transições políticas advindas dos
regimes comunistas, os estímulos externos tornaram-se proeminentes e surgiram novos estudos
alertando para o peso de tais variáveis nos processos de exportação democrática.
Laurence Whitehead (2005), outro expoente da literatura, atenta-se ao fato de que, nas
intervenções ocidentais no Afeganistão em 2001 e no Iraque em 2003, as variáveis externas tiveram
uma influência jamais vista em outro tipo de jornada estratégica. Aos EUA seria razoável observar o
regime interno de ambos os países e as dinâmicas internacionais, as quais, sem dúvidas, deixaram
uma marca indelével naquelas regiões após as invasões.
Em linhas gerais, o legado teórico da democracia hegemônica foi sendo congregado à política
externa norte-americana, sendo que, no pós-Guerra Fria, houve uma intensificação e passou-se a
incorporá-lo às bases de segurança do país. Progressivamente, a tradição liberal foi adquirindo um
novo contorno até culminar na literatura de exportação dos modelos democráticos. Por ora, viu-se
como os intelectuais analisam essas perspectivas, basta observar como a mesma doutrina também
esteve presente nas tomadas de decisão de “Bush Pai”, Clinton e “Bush Filho”.
EXPORTAÇÃO DA DEMOCRACIA E INTERVENÇÃO MILITAR: DE “BUSH PAI” A “BUSH FILHO”
Retomando o corpo conceitual-teórico central do trabalho que ora se apresenta, Castro
Santos (2010b, p. 17-18) resume satisfatoriamente como ele reincide sobre os policy-makers:
Este é um respaldo acadêmico de grande importância para os formuladores
das doutrinas de política externa americana do pós-guerra fria. Eles
precisam acreditar e convencer a sociedade americana que as intervenções
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militares dos Estados Unidos, mesmo que unilaterais, são eficazes no que
diz respeito à promoção da democracia. Eles dirão isso em várias ocasiões,
de várias maneiras e em vários discursos. A promoção da democracia trará
paz, estabilidade e segurança para o mundo e para os Estados Unidos e
estará na base da doutrina de política externa de seus governantes.
George Herbert Bush assumiu o governo norte-americano em 1989 e ficou no cargo até 1992.
Logo após a queda do Muro de Berlim, o mundo passava por uma reconfiguração geopolítica
gigantesca que caracterizou um período conturbado, uma vez que nem mesmo “Bush Pai” sabia
como articular o papel de seu país no cenário internacional. Contudo, foi o primeiro presidente a
aglutinar democracia e segurança na agenda de política externa. Em um discurso nos meados do seu
mandato, disse que a liberdade e os direitos humanos haviam encontrado um lar, os EUA, onde
sempre estiveram os fundadores do pensamento liberal.
Praticamente todas as assistências realizadas pelos norte-americanos neste período se
circunscreveram a Israel, Egito e alguns pequenos países da América Central, todos parceiros de
longa data. Além dos mesmos, o destaque ficou por conta da Guerra do Golfo. Em resposta à
invasão do Kuwait em 1990 pelo Iraque, EUA, Grã-Bretanha, URSS, França e outros países
formaram uma coalisão internacional que, em pouco tempo, realizou um ataque massivo contra os
combatentes iraquianos e tiveram sucesso na Operação Tempestade no Deserto (CAMERON, 2005).
A administração de “Bush Pai” encontrou uma série de problemas: fracasso dos países
soviéticos, desastre humanitário da Somália, unificação da Alemanha e tragédia na antiga Iugoslávia.
Posteriormente, no ano eleitoral de 1992, o presidente se absteve sobre a questão dos Bálcãs,
colocando ainda mais dúvidas quanto ao futuro político a desenvolver por parte de seu país. Não
mudou muito sua agenda de política exterior e, talvez, a falta de uma “mão firme” custou a sua
reeleição.
O traço mais marcante de suas políticas evidenciou-se na negação de cortar gastos militares,
gerando a aprovação da instauração de um grupo de burocratas para fomentar o desenvolvimento da
produção de armas, munições e afins. Conforme se viu no relatório Defense Policy Guidelines do
Pentágono no final de mandato, os EUA deveriam fazer de tudo para manter o status de
superpotência e prevenir a emergência de outro rival regional ou poder global. E quais seriam as
bases desse discurso? A fusão entre democracia e segurança, as quais ficaram assentadas no
governo seguinte.
William Jefferson Clinton ganhou as eleições contra George H. Bush e ficou no posto até o
ano de 2000. Logo que assumiu o governo, aderiu a cinco prioridades: restituir o crescimento
econômico, aumentar a importância do livre mercado, ajudar no desenvolvimento de outros países,
demonstrar a liderança dos EUA ao redor do mundo e promover a democracia na Rússia e alhures.
Assim como denota Fraser Cameron (2005, p. 19), seus três objetivos políticos primordiais eram
promover a democracia, a prosperidade e aumentar a segurança. Se “Bush Pai” havia iniciado o
pragmatismo do dilema “democracia-segurança”, Bill Clinton ratificou seus alicerces.
Como reflexo de seu antecessor, encontrou variados problemas nas questões do Haiti,
Somália e Bálcãs. Clinton desempenhou um importante papel nos conflitos da Bósnia e do Kosovo,
na redução da ameaça norte-coreana e na reaproximação com a China; além de promover a paz no
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Oriente Médio, nos Andes e no Leste Africano. Contudo, foi severamente criticado por ter uma
diplomacia “band aid”, com a qual perdeu a oportunidade de criar e gerir uma nova ordem
internacional (HYLAND, 1999 apud CAMERON, 2005).
Retomando a questão da Somália, seu governo não teve sucesso e adquiriu uma experiência
humilhante, nos dizeres da comunidade internacional. Clinton quis transformar sua política de
assistência humanitária em processo de nation-building (construção de Estados) através da
exportação da democracia e da estabilidade política. Cravou o legado do presidente da busca pela
paz – peacemaking – e foi severamente criticado por Condoleezza Rice, dizendo que seu governo
fora ilusório e extremamente multilateral. A futura Secretária de Estado de “Bush Filho” completou
dizendo que a política de Clinton deveria ter sido mais truculenta e muscular.
George W. Bush adquiriu uma política mais “absolutista” e governou entre 2001 e 2008. Logo
no começo do governo, disse que não continuaria com o processo de paz no Oriente Médio,
suspenderia os diálogos com a Coreia do Norte e não enviaria mais tropas para os Bálcãs. Finalizou
seus discursos iniciais assim: “Kyoto está morto” (CAMERON, 2005). De maneira geral, “Bush Filho”
propôs uma política externa mais dura e inflexível com os adversários em potencial dos norteamericanos.
Nos primeiros seis meses no cargo, rejeitou um grande número de tratados internacionais e
deixou a impressão de que, se os EUA não estavam lidando deliberadamente com o isolacionismo,
estavam conformados com tal situação. Thomas Friedman, critico de “Bush Filho”, escreveu no The
New York Times em junho de 2001 que o presidente estava passando a mensagem de que os norteamericanos não acreditavam em regras, mas sim no poder (CAMERON, 2005, p. 31). O que antes
parecia apenas uma ideia incipiente, tomou forma com os atentados terroristas de 11 de Setembro de
2001. A partir desses acontecimentos, os EUA caminharam ao encontro de uma política externa
agressiva, ativa, forte e realista.
“Bush Filho”, juntamente com sua equipe de política externa – Colin Powell, Condoleezza
Rice, Donald Rumsfeld e Dick Cheney –, aceitara as premissas liberais propostas ainda por Woodrow
Wilson no início do século XX de que cabia aos EUA difundir seus valores e interesses nacionais ao
redor do mundo. De tal posto, as ideias do seu governo esboçaram-se em cinco proposições de
argumento hegemônico (ALARCON, 2012, p. 108):
1) O mundo é um lugar perigoso, mais parecido com o estado de natureza
hobbesiano do que com a paz perpétua de Imannuel Kant. Bush e os
Vulcans [Powell, Rice, Rumsfeld e Cheney] tinham noção de que o fim da
União Soviética era algo positivo, mas que este acontecimento não diminuía
o perigo dos mísseis, do terrorismo, da China como uma grande
competidora e, inclusive, Rice tinha uma posição contrária à romantização
da Rússia, que ainda era uma ameaça para o Ocidente e seus aliados.
2) A política mundial é levada a cabo por Estados-nação com interesses
próprios.
3) O poder, e especialmente o poder militar, é ainda extremamente
importante no mundo globalizado. O poder, de acordo com o argumento
hegemonista é tanto capacidade quanto vontade de usá-lo.
4) Acordos multilaterais e instituições não são nem essenciais nem
necessárias para conduzir aos interesses estadunidenses. Na visão de
Bush, papeis e acordos não criariam um mundo melhor porque os Estados
10
párias, que são os que querem atacar os Estados Unidos, não seguem
esses acordos multilaterais.
5) Os Estados Unidos são uma grande potência única e os outros países
sabem disso. Querem liberdade, prosperidade e paz, e quem quer que se
oponha a isso é um tirano.
O então presidente enraizava a universalidade dos princípios democráticos e a colocava ao
encontro da segurança e dos interesses norte-americanos. Foi a partir do atentado terrorista em 2001
que “Bush Filho” aglutinou os discursos sobre democracia e segurança, as quais seriam usadas,
meses depois, em suas intervenções internacionais tendo como via-mestra o uso da força.
“Continuidade e mudança” foram as palavras de Condoleezza Rice para descrever o mundo pós 11
de Setembro (TEIXEIRA, 2010).
O estudo quantitativo realizado por Castro Santos (2010a) já elucidado na introdução do
presente artigo traz um resumo geral da relação entre democracia e segurança na política externa
norte-americana do pós-Guerra Fria. Analisando cerca de 100 discursos de presidentes e 320 de
Secretários de Estado norte-americanos após a derrocada da URSS, a autora reconhece claramente
o que se denomina de “missão americana” perante o mundo, a qual é formada por três princípios
gerais: os valores da democracia liberal ocidental são universais, ou seja, todos os povos do mundo
desejam tornar-se democráticos; as democracias não lutam entre si, portanto exportar democracia
significa promover a paz mundial ligada à segurança global; e a promoção da democracia torna o
mundo mais benéfico para os EUA, ligando-a aos seus interesses nacionais. Destarte, “[...] os
americanos estão imbuídos de uma missão perante a humanidade: trazer-lhes liberdade e
democracia” (CASTRO SANTOS, 2010a, p. 160).
Todos os três ex-presidentes encontraram dificuldades de estratégia na política externa do
país no período. Por sua vez, “Bush Filho” aceitou a tese de que o poder militar resolveria os
problemas e definiu a estratégia principal de defesa pela exportação de democracia através do uso
da força, haja vista que o antídoto para o terrorismo seria a democracia, propriamente dita. Em suas
palavras, as democracias substituem os ressentimentos com esperança, respeito de direitos civis e
ajudam na luta contra o terror. Logo, todo passo ao encontro da liberdade no mundo faz dos EUA um
país mais seguro (BUSH, State of the Union, 2006 apud CASTRO SANTOS, 2010a, p. 177).
“Bush Pai”, Bill Clinton e “Bush Filho” recorreram à democracia, liberdade e expansão dos
valores norte-americanos para justificarem suas ações bem ou mal empregadas. O legado liberal,
bem como as doutrinas democráticas, continuaram ocupando lugar de destaque nesta agenda que
ficou mais sólida ainda com o governo que se iniciou em 2001. A onda de atentados incluiu de
maneira integral a exportação da democracia pelo uso da força, se necessário, e o imperativo de
ação militar contra Estados ditos terroristas. No dia 07 de Outubro de 2001, os EUA lançaram sua
campanha para eliminar a Al-Qaeda do Afeganistão e encontrar Osama Bin Laden. O que começou
com um alvo único e central, acabou por transcender para abordagens de segurança, administração
civil, democratização e humanitarismo. Muito mais do que a reconstrução da governança para os
afegãos, os norte-americanos entraram em uma batalha sem fim considerada exemplo malogrado de
imposição de regime.
11
A INTERVENÇÃO ARMADA NORTE-AMERICANA NO AFEGANISTÃO (2001- 2008): UM
EXEMPLO DE “FIRC” FRACASSADO
A história dos afegãos é marcada por conquistas estrangeiras. A região foi invadida por povos
arianos, pelos Impérios Persa e Medo, por árabes, turcos e mongóis. Mais recentemente, a partir de
1973, após a deposição do rei Mohammed Zahir Shah, o qual ficou no poder por quase quarenta
anos, o traço marcante do país foi a instabilidade política. Em 1979, a URSS interveio nos territórios e
os EUA começaram a injetar dinheiro e armamento nos grupos fundamentalistas muçulmanos das
montanhas. Posteriormente, já em 2000, o Taliban, conhecido movimento sunita e nacionalista,
detinha o controle de 95% do Afeganistão (ALARCON, 2009).
Os Geneva Accords de 1989 estipularam que a URSS deveria retirar todas as suas tropas do
país, sobrevindo a anarquia e o início de uma guerra civil. Por meio Agência Central de Inteligência
(CIA, em inglês), os norte-americanos canalizaram armas e suportes para os combatentes
“mujahideen” juntamente com Grã-Bretanha, Arábia Saudita e Paquistão ainda no período de invasão
soviética. Como consequência, esses grupos deram origem ao Taliban em 1994, o qual tomou a
capital Kabul em 1996 e mais da metade de todo território ao norte quatro anos mais tarde. Depois de
haver mais de cinquenta mil mortes e milhares de refugiados que se dirigiram para o vizinho
Paquistão no ano de 1995, não havia segurança, direito e lei no Afeganistão (GOSSMAN, 2001). O
grupo que fora financiado pelos EUA era, agora, seu principal desafio.
Em anos anteriores já havia uma política norte-americana voltada para o Oriente Médio e o
Sudoeste Asiático. Dwight Eisenhower, Richard Nixon, Jimmy Carter e Ronald Reagan, presidentes
durante o período da Guerra Fria, tentaram, em distintos níveis, manter boas relações com os países
da região, sem descuidarem, obviamente, das possíveis ameaças dos fundamentalistas islâmicos. O
que antes era feito com base no diálogo, diplomacia e interesses dos Estados, caiu por terra com os
atentados terroristas em 2001. Os ataques mataram quase três mil pessoas, feriram o legado norteamericano, ratificaram a “Doutrina Bush” e abriram caminho para a “Guerra ao Terror”.
A principal diferença advinda do 11 de Setembro residiu na percepção dos EUA de que a
balança de poder não era mais a dinâmica do Oriente Médio e do Sudoeste Asiático. O terrorismo
estava em todo lugar e fugia da centralidade do poder estatal (KUNIHOLM, 2002). Tornara-se
“internacional” e, como consequência, a figura do Estado enquanto soberano perante todas as suas
fronteiras entrou em ceticismo. Deste modo, o Afeganistão virou exemplo mais importante de Estado
Falido em pleno século XXI, uma vez que, em decorrência do passado conturbado, não apresentava
um governo eficaz e nem mesmo o controle sobre todos os seus territórios.
Com Osama Bin Laden, responsável pelos ataques do 11 de setembro, estavam postos os
motivos para uma invasão armada no Afeganistão por parte do governo de “Bush Filho”. Em uma
manobra extremamente rápida e sem muita discussão, em resposta aos ataques do World Trade
Center e do Pentágono, os EUA enviaram a Operação Liberdade Duradoura (OEF, em inglês) à
região ainda em 2001 (DOBBINS, 2003) com o objetivo central de eliminar o comandante da
organização Al-Qaeda.
O Afeganistão tornou-se arena antiterrorismo, exemplo de Estado Falido e palco de
exportação da democracia. Consolidava-se, de tal sorte, uma nova doutrina presidencial que trazia
12
consigo todo ideário liberal e doutrina política historicamente comprovada nos EUA, a “Doutrina
Bush”, a qual possuía quatro características centrais, sejam elas:
1) Crença na importância do aparato doméstico na determinação da política externa e
julgamento de que era tempo de mudanças na política interna;
2) Adoção da guerra preventiva contra novas ameaças;
3) Utilização do unilateralismo quando necessário; e.
4) Senso de que a paz e a estabilidade mundiais necessitavam da primazia política dos
EUA.
No documento National Security Strategy of the US de 2002 existe uma menção clara a
respeito da liberdade, democracia e livre mercado serem benefícios para o mundo em sua totalidade.
O então presidente George W. Bush imaginava um mundo pacífico além da guerra ao terror
construído pelos próprios norte-americanos (BRUNI, 2001 apud JERVIS, 2003, p. 368). As políticas
unilaterais de seu governo agiram de uma maneira dual, pois, ao mesmo tempo em que colocava
dúvidas para com os países aliados, servia como instrumento para confirmar e ratificar o legado da
política externa nacional.
Após um período de quase trinta dias, passado o episódio do ataque terrorista, “Bush Filho”
ordenou a ação de sua política para a intervenção direta no Afeganistão. A OEF foi colocada em
prática em um momento de relativa dúvida e descrença quanto ao objetivo primordial dos EUA
(ALARCON, 2012): Deveriam apenas capturar Bin Laden? Destruir a Al-Qaeda? Acabar com o
Taliban? Assegurar a estabilidade dos afegãos?
Logo em Novembro do mesmo ano as notícias tornaram-se animadoras. O Taliban foi caindo
progressivamente e a Aliança do Norte, composta pelas etnias tadjique, uzbeque e hazara e
comandada pelos EUA, tomou algumas cidades, dentre elas a capital Kabul. Dentro do comando de
Estado do presidente “Bush Filho” havia duas posições distintas quanto ao futuro do Afeganistão: um
primeiro grupo, liderado por Colin Powell, acreditava que um mecanismo de peacekeeping era vital
para assegurar a segurança no país; já outro, comandado pelo próprio presidente, assegurava que as
tropas norte-americanas não deveriam se envolver nestas temáticas.
Aparentemente, a segunda visão foi vencedora, pois os EUA se embasaram somente no
objetivo modesto de criar um regime representativo cuja estrutura seria positivamente aumentada
com os processos políticos afegãos (DOBBINS, 2003). Todavia, o envio da Força Internacional de
Assistência para Segurança (ISAF, em inglês) e o Acordo Provisório para o Reestabelecimento de
Governo Permanente no Afeganistão decorrentes da Conferência de Bonn em Dezembro de 2001
pareciam ir além do esperado pelo presidente, o qual tinha em mente uma vitória rápida por parte dos
aliados.
Os Acordos de Bonn estabeleceram a democratização do Afeganistão como alvo principal,
uma vez que as forças norte-americanas e da Aliança do Norte teriam papel central nesta jornada.
Além disso, criaram um governo que representava vários grupos étnicos no país e que era designado
para dirimir tensões entre os mesmos. No preâmbulo de Bonn, ficaram nítidas as necessidades de
reconciliação nacional por meio da “[...] estabilização e da promoção dos direitos humanos no país,
levando-se em consideração o direito do povo afegão de determinar o seu próprio futuro político de
13
acordo com os princípios do Islã, da democracia, do pluralismo e da justiça social” (ALARCON, 2009,
p. 31).
A ISAF, por seu turno, possuía influência direta dos valores e ideais ocidentais, inclusive
sobre democracia. Seu comando foi passado para a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN) em 2003 e desde então ficou responsável por garantir a segurança no Afeganistão e auxiliar
na sua reconstrução. É salutar observar que o objetivo estrito da ISAF não era a construção da
democracia, mas sim, e somente, da segurança. Todavia, acabou por abrir seu leque quanto à sua
atuação, abrangendo as seguintes responsabilidades: amparar as operações de assistência
humanitária; auxiliar em programas de melhoria de vida da população; assessorar o treinamento de
um novo Exército Nacional Afegão; desarmar grupos ilegais; agir em conjunto com as Equipes de
Reconstrução Provincial (PRT, em inglês); dentre inúmeras outras.
Embora a “Doutrina Bush” no Afeganistão desejara uma intervenção armada rápida, realista,
efetiva e previsível, o futuro remodelou as intuições iniciais. Como analisa Seth Jones (2009 apud
ALARCON, 2012, p. 122), com a proposta de ingerir o menos possível nas questões internas dos
afegãos, os EUA “arruinaram as chances de desenvolver a governança no país [...]”. Além do mais, a
invasão por meio do uso da força no Afeganistão mostrou duas limitações da política externa norteamericana: primeiro, que construir países (nation-building) é mais complexo do que destruí-los e,
segundo, que ela necessita da cooperação com terceiros Estados para alcançarem seus ideais
(JERVIS, 2003).
Visto isto e corroborando a tradição liberal, as conceitualizações de democracia e a doutrina
de política externa dos EUA, o Afeganistão tornou-se o exemplo clássico de fracasso de imposição de
regime por forças externas, ou seja, modelo catastrófico de FIRC. Para tanto, Alexander Downes
(2011) distingue dois tipos desta nomenclatura: FIRC de restauração e de estabelecimento de um
novo líder. No estudo de caso aqui trabalhado, os EUA basearam-se na segunda concepção, haja
vista que tinha, inicialmente, somente o objetivo de ajudar na construção de um novo regime
representativo de governo e colocar um condutor afegão no poder.
Os FIRC se caracterizam pela intervenção de um Estado sobre outro, impondo um conjunto
de instituições, convertendo atores domésticos, instalando democracias – especificamente no
Afeganistão – e provocando ocupações militares. Diferentemente do FIRC de restauração, a do novo
líder está delimitada ao empoderamento de um novo governante, sendo Iraque e Afeganistão os dois
exemplos primordiais desta tipologia. Além do mais, o traço mais marcante da visão de Downes
(2011) reside na sua ponderação e, talvez, ceticismo em relação ao estabelecimento da nova
liderança. Para o autor, pode haver dificuldade de autoridade e controle por parte desta pessoa,
levantes sociais contra tropas estrangeiras, conflitos que antes não existiam e, em determinados
momentos, sinais de guerra civil.
As visões mais recentes a respeito das intervenções norte-americanas pós 1990 acreditam
que elas só tiveram sucesso na liberalização de determinados países, pois os FIRC receberam pouco
benefício democrático e não conseguiram fortalecer a transição de regime, propriamente dito. No
Afeganistão, parece ser nítido que os EUA não deram destaque às variáveis domésticas e, em
grande medida, isso foi responsável pela sua derrota de ideais impostos ao país.
14
No que concerne à “Doutrina Bush” e posterior “Guerra ao Terror”, o intuito inicial de capturar
Bin Laden e/ou exterminar a organização terrorista Al-Qaeda, acabou por concluir-se em fracasso de
imposição de regime, sendo este detentor das características centrais de todos os aspectos teóricos
trabalhados no presente artigo. Com a OEF, ISAF e Acordos de Bonn, o Afeganistão entrou no rol de
desafios de segurança, democracia, direitos humanos e administração civil para com o governo de
“Bush Filho”. Conforme destaca Dobbins (2003, p. 146), houve pouco progresso na criação de
instituições democráticas e a escassa assistência econômica e militar internacional não permitiu ao
governo afegão estender seu poder ao longo dos territórios nacionais.
O cenário atual em meio à presidência de Barack Obama continua a apontar para uma série
de incertezas. Entretanto, na cronologia que se iniciou em 2001 e foi até 2008 no final do mandato de
George W. Bush, retira-se uma conclusão imprescindível: o retrato de uma guerra que tinha como
meta inicial durar alguns dias ou semanas e acabou por perdurar durante dois mandatos
governamentais elucida para a tentativa de se estabelecer um novo governo no Afeganistão sem
deixar em segundo plano o Excepcionalismo Americano, a exportação da democracia liberal e os
ideais da “missão americana” vinculados à sua agenda de segurança. O erro de cálculo foi visível e,
ao final, o que realmente estava em jogo era o velho e conhecido discurso dos presidentes norteamericanos, desta vez incrustado na política realista e míope de “Bush Filho”.
CONCLUSÃO
Na concepção de Melvyn Leffler (2005), existe maior continuidade do que mudança na
política externa norte-americana após os atentados do 11 de Setembro. Embora a “Doutrina Bush”
tenha apresentado várias nuances distintas, o legado histórico de acadêmicos, pesquisadores e
tomadores de decisão, de acordo com o autor, permaneceu intacto. Em outros termos, o que
começou com Louis Hartz (1955) ainda no princípio da Guerra Fria tornou-se traço marcante no
período posterior ao conflito e, além do mais, na invasão do Afeganistão no começo do século XXI.
Observou-se, ao longo da estruturação do presente artigo, como o ideário liberal e as
concepções teóricas de democracia estão presentes na prática governamental dos policy-makers
norte-americanos. A cronologia que se iniciou ainda com a menção da inserção internacional dos
EUA após a Primeira Guerra Mundial, passando para o conflito bipolar e posteriormente ao caráter
embrionário de relativa unipolaridade na década de noventa, teve como aspectos centrais as relações
existentes entre democracia e segurança. Seja em “Bush Pai”, Bill Clinton ou “Bush Filho”, as suas
políticas externas carregaram uma imensidão de valores, ideais e princípios considerados
moralmente aceitáveis.
Cumpre destacar que a democracia e sua exportação perpassaram todas as opiniões aqui
retratadas. Desde o sufrágio universal de Hartz (1955), a negação de espírito revolucionário de
Packeham (1973), a visão minimalista de Schumpeter (1943), o espírito procedimentalista de Dahl
(1996; 2009) e até a defesa da liderança norte-americana de Diamond (1992) e Farer (2996), o que
fora desenvolvido pela literatura hegemônica durante os últimos sessenta anos ainda perpassa o
itinerário da política externa dos EUA. A ligação com segurança ficou mais nítida no momento em que
15
se recapitularam alguns traços marcantes e indefinições no que tange às intervenções internacionais
dos governos iniciados em 1989 e estendidos até 2008.
Nesse patamar, uma breve análise mais profunda sobre a “Doutrina Bush” e a posterior
“Guerra ao Terror” não poderiam fugir do debate, haja vista que o episódio do 11 de Setembro
transformou a percepção de ameaça, chocou a vulnerabilidade norte-americana e trouxe um
sentimento de culpa, indignação e responsabilidade ao seu mandato (LEFFLER, 2005). Portanto, tal
data reviveu uma história norte-americana, na qual, quando existe uma grande ameaça, apelasse
para os ideais do país. A percepção de um inimigo em potencial age de maneira diretamente
proporcional ao aumento dos valores dos EUA baseados na tão comentada relação “democraciasegurança”.
E quais foram as lições aprendidas com o fracasso de FIRC de imposição de novo líder no
Afeganistão? Comparado com outras intervenções estabelecidas pelo uso da força, tal país situa-se
em outro patamar, pois não recebeu o mesmo nível de recursos financeiros da OTAN. Em partes,
houve um imenso erro estratégico na Era Bush. Talvez, se o presidente e sua equipe tivessem
planejado com maior tempo a invasão ou até mesmo estabelecido como meta inicial, além da captura
de Bin Laden, um processo de peacekeeping e de fomento à democratização, a história não seria a
mesma. Mesmo se não fosse um sucesso, não seria uma total derrocada.
Nos bastidores do Afeganistão sempre existiu um eco reivindicando a salvaguarda do país
por meio da liberdade, democracia e livre mercado. A captura do Taliban ou até mesmo a eliminação
da Al-Qaeda não se legitimaram em finalidades essenciais, sendo transpassados pela centralidade
da exportação da democracia, assim como denota Castro Santos e Ulysses Teixeira (2011, p. 22): “A
democracia era a ferramenta essencial para derrotar o terrorismo”.
A tradição liberal clássica, as premissas teóricas democráticas e a forte nexo existente entre
segurança e exportação da democracia apareceram como características fundamentais da
intervenção externa e realizada através do uso da força por parte dos norte-americanos no
Afeganistão. Em pleno governo Obama e com a progressiva retirada de tropas estrangeiras do país,
não podemos dizer que realmente há paz naqueles territórios. A geografia complexa, a existência da
cultura e religião islâmicas, a insatisfação popular e a obrigatoriedade em se estabelecer diálogos
com países adjacentes, em especial o Paquistão, colocaram imensos obstáculos para o expresidente George W. Bush. Este, por sua vez, incompatibilizou discurso e prática. Queria, realmente,
exportar a democracia para alhures, mas se conteve, a priori, com a ira de perseguir e matar Bin
Laden.
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