Notas de estudo de Manuel Hurtado, s.j. Modelos da Redenção – Salvação I. A existência histórica de Jesus e as suas intenções diante da sua morte (relação entre vida e morte de Jesus): • QUESTÃO 1 : Por que Jesus morreu? Historicamente, porque ele ameaçava o poder (judeu e romano). O pretexto (ou álibi) da condenação e morte de Jesus é a blasfêmia e a ameaça de rebelião contra o imperador. Mas o NT vai mais longe do que esse aspecto político e afirma a salvação universal como fruto do ato de autodoação de Deus em seu único Filho. • QUESTÃO 2 : Como Jesus compreendeu a sua própria morte? Dos relatos da paixão podem ser tirados ao menos três pontos: 1 – Jesus compreende que devia morrer de uma maneira violenta (mas esta compreensão é progressiva com certeza, senão seria difícil explicar a sua pregação do Reino e a necessidade de se converter hoje). Cf. W. Kasper, Jesus el Cristo, capítulo sobre a cruz, p. 181 na trad. francesa. 2 – Jesus aceita plenamente a sua morte. 3 – E Jesus aceita a sua morte como uma espécie de necessidade deste mundo das trevas que não pode acolhê-lo1. • QUESTÃO 3 : Conhecia antes o alcance salvífico, ou foi acréscimo feito pelos evangelistas, à luz do Mistério Pascal, e do Cristo ressuscitado? Resposta A / Perspectiva ESCATOLÓGICA: morte como inauguração do “Reino de Deus”? Verdadeiramente: Mc 14 – “Em verdade, vos digo, não mais beberei do fruto da videira até o dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deus”. Jesus compreende sua morte como um ponto de passagem obrigatório para a inauguração do Reino. Veja: 1 – A morte de Jesus autoriza a vinda do Espírito: Jo 16 – “é vosso interesse que eu vá; porque se não vou, o Paráclito não virá para vós; mas se vou, eu vo-lo enviarei.” (+ Jo 7,39) 2 – A vinda do Espírito permite em nós o cumprimento da vontade do Pai (= o Reino) : Jo 3 – “quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus.” Cf. W. Kasper, Jésus le Christ, 177. A. Schweizer também vai nesse sentido 2. O’Collins : o valor redentor de sua morte não depende somente da intenções (humanas) do Jesus histórico e da consciência pré-pacal do alcance de sua Paixão. O Pai e o Espírito também estão no trabalho, para além do que Jesus somente pode entrever antes da Paixão. Resposta B / Perspectiva SOTERIOLÓGICA: morte como “salvação para a humanidade inteira”? [ Kasper : ] - Certamente, a exegese atribui ao “por nós” e ao “por muitos” de Jesus o valor de acréscimo póspascal (Kasper). Podemos todavia ater-nos a três pontos para defender a ideia de que jesus sabia que morrendo, salvaria todos os homens: 1. à luz da fé de Israel de Jésus : o “pequeno resto” salvando o povo, depois o “justo” redentor, enfim o “Servo sofredor” de Is 53 (4° canto: “são nossos pecados que ele carrega”) 2. sua morte está ligada à inauguração do Reino, por isso ao Senhorio de Deus, e por isso à Salvação (Cf. A/) 3. sua morte está ligada à sua vida mesma, que foi toda doada aos outros. Recapitulando sua vida, sua morte toma então este valor, mas alcança ao absoluto3. 1 Provas: o sinal da purificação do Templo. O vinho novo que Jesus beberá no Reino. A pregação do Reino cuja vinda está acompanhada de tribulações. A última Ceia mostra que Jesus tinha de alguma maneira antecipado ou intuído a sua morte. (Este debate está presente sobre tudo em Léon-Dufour, Pesch, Schürmann, etc.) 2 Cf. KASPER, Jésus le Christ, 173. -1- Notas de estudo de Manuel Hurtado, s.j. - CCL : É necessário manter o seguinte paradoxo: 1. Deus nao veio sobre a terra unicamente para morrer. O Mistério Pascal não é um negócio entre Deus e Deus, em que os interventores humanos não seriam senao fantoches. Os homens são responsáveis da morte do Cristo. 2. e no entanto, é jesus que “dá sua vida”. (Jo 10,18 : “Minha vida, ninguém a toma, sou eu que a dou”) para conciliar os dois aspectos, lembremos da MISSÃO de Jesus4 : RESTABELECER OS HOMENS NA COMUNHÃO (DE VONTADE) COM O PAI E ENTRE ELES. Toda sua vida é orientada nesse sentido (i.e. o REINO), ao ponto que (HUB=Balthasar) afirma que sua Pessoa e sua missão coincidem. Esta missão suscita a animosidade. Ela põe em causa a primazia do Templo (saduceus), da Lei (fariseus), da nação (zelotas), do poder político (romanos). Jesus coloca os homens diante de uma alternativa (João: um julgamento): receber o Reino de Deus como uma criança, ou matar, ele, Jesus. Jesus o sabe perfeitamente e decide todavia prosseguir sua missao até o fim. Fazendo isso, tem consciência que misteriosamente, esse sacrifício de sua vida será fecundo e obterá a salvação a todos os homens. “Sua morte obediente é por isso o resumo, a essência e o coroamente incomparável de toda obra de Jesus. O significado de salvação de Jesus não por isso limitado exclusivamente à sua morte. Mas a morte de Jesus a coloca em plena luz e a torna definitiva” (Kasper, op. cite, 181). II. Os diferentes modelos de Salvação Rm 7,17-20 : Nao sou mais eu que realizo a ação, mas o pecado que habita em mim. Ga 2,20 : Não sou mais eu que vivo, mas o Cristo que vive em mim. 1 – a redenção como LIBERTAÇÃO e Triunfo. O mal, mais forte que o homem, é vencido por Deus. (O Cordeiro Vencedor do Apocalipse) - Mt 6,13 : “livra-nos do Mal” - Jo 1 : “o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo...” - Rm 8 : “os sofrimentos do tempo presente... A criação em suspenso espera a revelação dos filhos de Deus [e, submete, espera] ela também libertada da servidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus ...” (Toda a passagem) - Gl 4,1-7 : “escravos”, “submetidos aos elementos do mundo” … - 1 Pd 1,18-19 : “Sabeis que não é por nada de corruptível, prata ou ouro, que fostes resgatados da vã conduta herdada de vossos pais, mas por um sangue precioso…” A morte e a ressurreição do Cristo são consideradas como triunfos sobre o pecado e seu poder. A vitória de Jesus não indica a abolição do sofrimento, mas sua “transformação” em instrumento de redenção. O NT nos mostra uma “tensão” entre a salvação operada pelo Cristo e a situação concreta na qual vivemos (pecado e morte) Limites: - falar de “vitória” diante do sofrimento do mundo é indecente. Recuperar a distinção de Bultmann entre o “já” e o “ainda não”. - a ideia do Cristo guerreiro vitorioso pode fazer de nós expectadores passivos desta vistoria. Porém, temos nossa responsabilidade (1 Tes 5,6-8, 1 Cor 5,8, …). 2 – A Redenção como SATISFAÇÃO VICÁRIA, Sacrifício expiatório. (O Cordeiro imolado, que tira o pecado do mundo) - Escritura: todos os textos que falam do “sangue do Cristo derramado por nós” (Ceia: Mc 14, 1Co15, etc…) Através de sua morte, o Cristo expia nossos pecados, se oferece em sacrifício e realiza uma Aliança nova com o Pai. Esse sacrifício é holocausto, i.e. consumação total do animal, que dá sua vida / no sentido amplo, é uma obediência na vida, que pode levar até à morte. O objetivo é reencontrar a comunhão com Deus, agradecendo-o, pedindo perdão, louvando-o. A morte do Cristo se situa por isso na perspectiva da Aliança. A O modelo (jurídico) de ANSELMO (satisfação vicária / divinis) - 4 momentos (Cf. KASPER, op. cite, 330s): 1 – a imposição do pena: o pecado ofende Deus (noção jurídica, que o assimila ao roubo, por ex.). A reparação exige não somente a restituição completa, mas algo mais (o preço da dor) 2 – o homem pecador não é capaz de satisfazer Deus plenamente, com suas próprias forças e obras. 3 KASPER, Jésus le Christ, 180 : "Jesus é em sua vida e em sua morte o homem para os outros. Este ser-para-o-outros constitui sua essência mais profunda, porque é aí que o amor de Deus torna-se pessoa para os homens". 4 W. KASPER, Jésus le Christ, 165: "O ser de Jesus como Filho é inseparável de sua missão e de seu ministério. Ele é a presença de Deus para os outros. Cristologia essencial e cristologia funcional não podem ser separadas uma da outra ; elas se condicionam. Sua função, sua existência para Deus e para os outros é ao mesmo tempo sua essência; inversamente, a cristologia da função implica uma cristologia de essência". -2- Notas de estudo de Manuel Hurtado, s.j. 3 – A satisfação é necessária ao cumprimento do desígnio de Deus sobre o homem. Deus não pode aceitar ter criado o homem em vão. Esta necessidade é idêntica à gratuidade mesma de seu desígnio de amor e graça. 4 – Só um Deus-homem pode realizar a satisfação que salvará o homem. Daí a necessidade da Encarnação. > O modelo de Anselmo é JURIDICO. Modelo de SATISFAÇÃO, mas no sentido de REPARAÇÃO (da desordem do pecado): uma justiça COMUTATIVA (reparadora) e não VINDICATIVA. > Esse modelo será retomado por Tomás de Aquino, que prefere utilizar o termo “reparação” mais que satisfação (restaura a humanidade inteira, retorno, restauração. Restitui ao mundo seu sentido, não à Deus sua honra… !), e não lhe atribui senão uma conveniência (convinha que Deus agisse assim). Ele serár retomado por Trento, no Decreto sobre a Justificação. B O modelo Sacrificial: René GIRARD diz que é ultrapassado hoje. No entanto o termo é escriturístico e nao pode ser abandonado. SESBOUÉ explica então que devemos compreende-lo num sentido descendente: é Deus que faz tudo, e torna sagrados os homens. Limites: positivo – leva a sério a culpabilidade humana / negativo – Deus aparece ainda como sanguinário, terrível… uma má interpretação do NT. Satisfação volta a uma “reparação” feita a Deus. 3 – A Redenção como SUBSTITUIÇÃO, ou mais atual, REPRESENTAÇÃO ou SOLIDARIEDADE. (O sumo sacerdote) - Hb 2,17-18 : “Assim, ele tornou-se em tudo semelhante a seus irmãos, a fim de tornar-se em suas relações com Deus um sumo sacerdote misericordioso e fiel, para expiar os pecados do povo. Devido ao fato de que ele mesmo sofreu a provação, é capaz de vir em socorro àqueles que são provados.” - 2 Cor 5,21 : “Aquele que nao conheceu o pecado, Ele o fez pecado por nós, afim de que nele nos tornemos justiça de Deus.” - Lc 22,19 et Mc 14,24 : “Isso é meu corpo entregue por vós” ; “Isso é meu sangue, derramado pela multidão” [o por – hyper – tem três sentidos: a) por nossa causa b) em nosso favor c) em nosso lugar] = a “substituição vicária”, dos manuais do séc. XX. O termo representação é preferível, menos passivo. “solidariedade”5 ou mesmo “representação vicária” é mais atual, leva em conta o pressuposto fundamental que a Criação é “em Cristo”, sempre, e antes mesmo do pecado. Daí sua plena solidariedade conosco, cujo ápice foi sua morte para nos libertar do pecado e da morte. A representação nos torna pessoalmente presente, esse não é caso da substituição (=substituto, similar, imitação) que pelo contrário nos substitui. Mais, ela justifica nossa participação na Redenção: através da Páscoa de Cristo, foi vencido o pecado, fonte de nossa escravidão, e é re-aberto um espaço de liberdade para o homem para que no amor dos irmãos possamos verdadeiramente colaborar na obra de salvação do Cristo. À luz do Mistério Pascal, o mistério do sofrimento encontra sentido: ele é participação naquele do Cristo, e caminho para a Vida (Col 1,24 e 2 Cor 4,7-12). H.U. VON BALTHASAR de certo modo, com a Stellvertretung toma este caminho, mas não reduzindo o termo à sua simples conotação de reparação moral: ele recusa excluir o horizonte da condenação e da punição (a cólera divina). 4 – A Redenção como AMOR TRANSFORMANTE, MISERICÓRDIA. (O Bom Pastor que dá sua vida por suas ovelhas) - 1 Jo 4 : “Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor. O amor de Deus foi manifestado por nós no que Deus enviou seu Filho único no mundo, afim de que vivamos por ele. E esse amor consiste, não no ponto que nos amamos a Deus, mas que ele nos amou e enviou seu Filho como vítima expiatória por nossos pecados. Ninguém jamais viu a Deus; se nos amamos uns aos outros, Deus permanece em nós, e seu amor é perfeito em nós, ...”. - Jo 3,16 : “Deus amou tanto o mundo…” - Tt 3,4s : “Mas, quando a bondade de Deus nosso Salvador e seu amor pelos homens foi manifestado, fomos salvos, não por causa das obras de justiça que fizemos, mas segundo sua misericórdia, pelo batismo de regeneração e renovação do Espírito Santo…” - Rm 5 : “a prova de que Deus nos ama, é que o Cristo, quando éramos ainda pecadores, morreu por nós.” / Gl 2 : “o Filho de Deus me amou e se entregou por mim…” - Lc 15 : os três perdidos: a dracma (valor do homem, a ovelha (unicidade de cada homem para Deus), o filho pródigo (filialidade como síntese). Esse modelo recapitula 1 (Libertação), 2 (Satisfação-Sacrifício) e 3 (Substituição) porque o Amor liberta (1), se sacrifica (2), transforma do interior (3). O dom total de si, até à morte, por amor. A iniciativa é plenamente divina e pode realizar uma nova Aliança, fundada sobre a gratuidade do Amor divino (Jr 31), e do amor entre os irmãos (1 Jn 4,11). Esse poder do amor de Deus é igualmente “retroativo”, englobando todos os que morrem sem o Cristo. O Cristo é mediador universal porque seu amor é universal. Bento XVI: o amor é chave de compreensão de toda Revelação (Cf. DCE). No mundo futuro, nós veremos Deus face a face, como Ele é, em toda sua beleza, “Beleza de toda beleza” (Aug). O’Collins… 5 BALTHASAR recusa esse termo, que empobrece o pro-nobis. Condena o hábito teológico moderno de não tomar os termos bíblicos, e assim empobrecer enormemente a riqueza do dado revelado. -3-