Cinema mineiro floresce em festivais, mas não chega a circuito comercial1 Karla Monteiro Enviada especial a Belo Horizonte 26/01/2015 No final dos anos 90, o artista plástico e cineasta mineiro Cao Guimarães, 49, viajou pelo sertão do Brasil por dois meses. Fazia seu primeiro filme, “Fim do sem Fim”. Pelo caminho, encantou-se com a capacidade do brasileiro de reinventar para suprir a falta. Nascia aí a série “Gambiarras”, que ele fotografou entre 2001 e 2012. A estética das gambiarras encaixa-se como metáfora para o novo cinema de Minas Gerais. Sem dinheiro, sem indústria e sem mercado, os cineastas de lá tornaram-se pródigos na arte de inventar moda. Nos anos 1980, eclodiu em Minas a videoarte, capitaneada pelo videoartista Éder Santos. Nos 1990/2000, a geração de Cao Guimarães e Lucas Bambozzi, um híbrido de artes plásticas e cinema. E, agora, o “novo cinema mineiro”. A safra arrebanha prêmios internacionais e floresce com o empurrão de um edital público, o Filme em Minas, o primeiro dedicado ao audiovisual no Estado, e um festival, o de Tiradentes, hoje considerado um dos mais importantes do país (e que está acontecendo nesta semana). Mas, paradoxalmente, os longas não chegam ao circuito. “O público é influenciado pela TV. Por isso, tantas comédias”, diz o cineasta Sérgio Borges, 39, diretor de “Céus sobre os Ombros”, que custou R$ 150 mil, ganhou o Festival de Brasília de 2011 e está entre as produções mineiras que furaram o bloqueio. O filme estreou naquele ano com cinco cópias, no mesmo dia em que um capítulo da saga “Crepúsculo“ estreou com cerca de mil. 1 Matéria publicada em 26 jan. 2015, no caderno Ilustrada do jornal Folha de São Paulo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/01/1580264-‐cinema-‐mineiro-‐ floresce-‐em-‐festivais-‐mas-‐nao-‐chega-‐a-‐circuito-‐comercial.shtml>. Acesso em 27 jan. 2015. Segundo Sérgio, o cinema “made in Minas” é, para o bem e para o mal o cinema da falta: “Nunca tivemos a oportunidade de ser assistentes numa produção, porque nunca houve produção. Há menos forças nos seduzindo para o comercial”. A leva de diretores encontra-se entre 20 e 40 anos, se organiza em pequenas produtoras e trabalha com equipes enxutas. Os filmes são autorais, com marcada personalidade dos diretores, mas guardam semelhanças: elencos de não atores e o trânsito entre documentário, ficção e artes plásticas. BERLIM “Alguns de nós flerta com a videoarte”, diz Borges.” É um cinema que lança mão do real sem ser realismo alemão.” Para o cineasta carioca Bruno Safadi, frequentador da cena mineira, Belo Horizonte tornou-se uma espécie de Berlim nacional, pela postura alternativa: “Lá não tem cinema de mercado, ‘star system’. Isso faz com que o cinema mineiro tenha como traço uma liberdade narrativa, o que é muito saudável em arte”. André Novais, 30, Gabriel Martins, 26, Maurílio Martins, 36, e Thiago Macedo Correia, 30, formam o quarteto da Filmes de Plástico, produtora expoente do cinema contemporâneo. Em 2013, o curta “Pouco Mais de um Mês”, feito dentro de um quarto, ganhou menção honrosa na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. São pouco mais de cinco anos de estrada e prêmios nos principais festivais do mundo: ClermontFerrand, Roterdã, Toronto, Marselha. A Filmes de Plástico nasceu na periferia de Contagem, polo industrial da região metropolitana de Belo Horizonte. “Filmamos o lugar onde crescemos, e não a periferia como tema. Os filmes estão embebidos por uma vivência cotidiana”, diz Gabriel, “Tem uma aposta no naturalismo, na sinceridade. Os diálogos não são marcados pelo roteiro, embora haja roteiro.” FORMAS POSSÍVEIS. O longa “Ela Volta na Quinta” (2014) – vencedor do 10º Panorama Internacional Coisa de Cinema, do IndieLisboa e dos prêmios de melhor atriz e melhor ator coadjuvantes do Festival de Brasília – é o resumo da opera tocada pela Filmes de Plástico. Feito com orçamento de R$ 87 mil, transita de forma peculiar entre documentário e ficção. Para falar do tema família, o diretor, André Novais, escalou a própria para atuar, seus pais e o irmão. A obra encerra a 18º Mostra de Tiradentes neste sábado (31). “A limitação financeira ativa a criatividade. Não é sacrificar uma ideia. É encontrar uma forma possível de realizá-la Isto reflete na linguagem”, diz Thiago. “O fato de fazer sem grana virou virtude. Para nós, não valem regras”, completa Gabriel. Na sede da produtora Teia, uma casinha com quintal onde seis realizadores compartilham o teto, a cineasta Marília Rocha, 36, acaba de rodar “A Cidade Onde Envelheço”, aventuras de duas portuguesas que decidem abandonar Lisboa e viver em BH. “Estou em processo, é difícil dizer se o filme é um documentário ficcional ou uma ficção documental”, diz a diretora de “Aboio”, de 2005, feito com orçamento de R$ 150 mil, vencedor do É Tudo Verdade e exibido no MoMa. “É possível unir os filmes feito em Minas mais pelo festo de autoria, por não se conformar com padrões mercadológicos, do que pelos filmes”. MÁ NOTÍCIA A má notícia é que a maior parte da produção mineira atual só pode ser vista em festivais. Aos 29, também de Contagem, Affonso Uchoa levou os prêmios de melhor filme pela crítica e júri oficial do Festival de Tiradentes de 2014 com “A Vizinhança do Tigre”. Ovacionado pela crítica, não conseguiu ir para o circuito. “Pode-se questionar a bilheteria desses filmes, dizer que são filmes de festival, mas não se pode questionar a relevância para a cinematografia brasileira”, diz Tiago Mata Machado, 40, diretor de “Os Residentes”, lançado em 2011 no Festival de Berlim. Não me lembro de outro período em que tenham sido realizados tantos filmes relevantes no Estado”. Mata Machado não gosta da alcunha “novo cinema mineiro”: “Conhece a frase que o Nelson Rodrigues atribuía ao Otto Lara Resende? O mineiro só é solidário no câncer. Não dá para falar de cinema mineiro como se fala de cinema pernambucano. Não agimos em grupo”, diz. “Talvez uma das poucas características que tenhamos em comum seja: somos todos amadores de cinema. Fazemos porque amamos, com dinheiro ou sem”.