2 – A BAIXADA DE JACAREPAGUÁ 2.1 – As Primeiras Ocupações Aparentemente, durante esses quatro séculos, a Barra da Tijuca parecia estar isolada e imune ao crescimento urbano do Rio de Janeiro, mas na verdade a região sempre foi uma zona de cultivo, de criação de gado, de atividades como a caça e a pesca e de lazer. “Em Jacarepaguá nós facilmente nos convenceremos de que os portugueses não eram apenas mestres inexcedíveis na arte das fortificações (...) Eles eram mestres também na escolha dos sítios melhores que existiam para bem morar, sobretudo para bem morar em repouso fora das cidades, desfrutando da natureza o que de melhor ela possuía. (...) E veja-se ainda, nesse particular, o acerto com que os parentes de Estácio de Sá e os que depois dele vieram logo escolheram para seus engenhos e suas fazendas os verdes vales e as planícies de Jacarepaguá, umas praieiras outras não, (...) como se de fato já dispusessem de aviões para descobri-los (...) Se essa é uma das características da vasta região sertaneja que Afonso Várzea denominou ‘a planície dos onze engenhos, por outro lado também se poderia dizer dela que sua história, até certo ponto, é a dos Sá parentes de Estácio e a dos juízes Teles de Meneses e dos Taquara seus herdeiros, que nela dispuseram de mais terras que os demais moradores.”2 2 História das Ruas do Rio, Brasil Gerson, Lacerda Editores, 2000, pág. 409. Documentos históricos mostram realmente, desde os primeiros anos da descoberta do sítio do Rio de Janeiro pelos portugueses, que toda a Baixada de Jacarepaguá, incluindo Barra da Tijuca era um lugar bastante conhecido e valorizado pelos colonizadores. A ocupação, em sua etapa inicial, correspondente aos séculos XVII e XVIII, ilustra a tendência geral das primeiras formas de exploração do país: grandes sesmarias, fazendas e engenhos foram sendo progressivamente fracionados por venda, herança, doações, aluguel. Uma vez ocupados o recôncavo e as planícies costeiras vai aumentando o interesse pelas terras de enclaves contíguos à periferia da cidade, ambos limitados por cadeias de relevo e com saídas para o mar – Jacarepaguá, a oeste do Rio, e, mais a norte, as terras entre as alturas da Pedra Branca e de Gericinó, coincidindo com conhecidos bairros de Bangu, Campo Grande, Paciência e Santa Cruz. Nos dois casos, o recebimento de glebas extensas com a condição de que se instalassem propriedades rurais serviu para instaurar a ordem colonial. Diversas formas de aluguel da terra acarretaram adiante certo aumento da população, em locais que passaram a ser atrativos por concentrarem diversidade de serviços e atividades profissionais e artesanais. De arraial a vilarejo, a paróquia, o bairro, o lento transformar destes locais fezse à sombra das figuras do senhor de engenho e do padre. As grandes propriedades, fossem de particulares ou de ordens religiosas, impulsionaram a instalação de núcleos de colonização de crescente complexidade: pousos de viajantes, capelas, vendas iam aos poucos tomando os contornos de povoados. Mas havia uma tensão profunda na maneira de relacionarem-se povoado e fazenda, esta sendo resistente a toda expansão daquele. O senhor de engenho ocupado em preservar e ampliar seus limites territoriais, e ao mesmo tempo querendo aproveitar-se das vantagens da vizinhança, logo entenderá que a proximidade do vilarejo é uma forma adicional de valorizar seu chão. Perto das localidades nascentes, as frações de terras atingiram preços sempre mais compensadores, permitindo uma expansão rumo a terras mais interiores. Já os padres que administravam as fazendas religiosas, a unidade das terras era fundamental, pois da sua produção dependiam a mesa, as obras e os cofres das ordens e irmandades. Procuravam também barrar a passagem aos pequenos e médios proprietários de modo a não tornar vulnerável a integridade de seus limites. Os beneditinos, instalados na Baixada de Jacarepaguá desde cerca de 1670, pagaram também sua cota de aborrecimentos devidos à cobiça de sua terras. Eles exploravam “fazendas de cultura” em Camorim, Vargem Grande e Vargem Pequena. Antecipando-se à abolição da escravatura, começariam, no século XIX, a arrendar partes de suas fazendas. Terminariam por desistir delas, em 1891, quando a venda de todas as terras e bens inauguraria um novo período da ocupação local. A cultura do açúcar, que acarretou maior dinamismo na vida urbana, reflete-se, no quadro rural, por uma quase total imobilidade, por um período de aparente adormecimento, de raros eventos, no qual os documentos que nos sobraram pouco indicam além da construção de benfeitorias e capelas. As distâncias, quase intransponíveis no século XVII pela precariedade de caminhos e meios de locomoção, ajudavam também a aumentar o isolamento das grandes fazendas. 2.2 – Os Caminhos e os Antigos Meios de Transporte Diferentemente da expansão dos demais bairros da cidade do Rio de Janeiro, a ocupação da Barra de Tijuca não começou, de forma contínua e ordenada através dos bairros litorâneos como Flamengo, Botafogo, Copacabana, Ipanema e Leblon, mas sim “por trás”, ou seja, por Jacarepaguá. Nas primeiras décadas do século XX, a cidade ainda engatinhava sobre as areias da Zona Sul. Poucas pessoas se arriscavam a viver próximo as praias de Ipanema e Leblon. Em Copacabana, as primeiras construções começavam a se desenvolver. As dificuldades impostas pela configuração geográfica do litoral do Rio de Janeiro, dificultava ainda mais a ocupação da Baixada de Jacarepaguá. O caminho para se chegar a Barra da Tijuca seria muito mais lento e longo. As primeiras edificações na Barra da Tijuca constituíam-se em hotéis de alta rotatividade, ou seja, motéis, além de chalés de veraneio. “Porém, precisando acentuar-se que enquanto a Barra se caracterizaria inicialmente (...) como um bairro de hotéis de alta rotatividade, já no Recreio o que predominaria seria mais o chalé familiar”.3 Estrada do Joá, antiga Chuá, Malta, 1908. A ocupação da região também ocorreu de forma diferenciada, pelas extremidades. Numa delas, como tentativa de prolongamento da Zona sul, foram lançados os 3 História das Ruas do Rio de Janeiro, Brasil Gerson, Rio de Janeiro: Brasiliana, 1965, p.314. loteamentos Jardim Oceânico e Tijucamar, tendo os empreendedores deste último construído, em 1939 a primeira ponte sobre a lagoa da Tijuca, na altura da Igreja de São Francisco de Paula, na Barra. Na outra extremidade, pelo loteamento do Recreio dos Bandeirantes, que resultou do desmembramento de duas grandes glebas de propriedade do inglês Joseph Wesley Finch, todos os três datando da década de 1930. As áreas alagadas da Baixada de Jacarepaguá sempre foram um empecilho para sua ocupação, além da dificuldade de acesso e trânsito na região. O acesso da população à praia, na extremidade do morro da Joatinga, só era possível por barco, pois a primeira das duas pontes hoje existentes sobre a lagoa da Tijuca foi construída em 1939, por particulares. A Barra se expandiu sobre quatro rodas e com asfalto no lugar de trilhos. As estradas foram surgindo ao longo dos séculos, lenta e preguiçosamente. Também foram difíceis e onerosas. Algumas delas foram decisivas para assinalar as mudanças, como a estrada Velha da Tijuca, que, partindo da Usina, na Zona Norte, impulsionou o crescimento do núcleo urbano do Alto da Boa Vista. O sítio, desde que o pintor da missão francesa Nicolas Antoine Taunay ali construiu sua cabana de pau-a-pique, se transformara em local de veraneio e hotéis. Dali a Barra seria atingida pela estrada de Furnas, que, partindo de sua retaguarda montanhosa, iria descer as encostas do maciço da Tijuca em direção ao Itanhangá. Estrada do Itanhangá, foto de Malta. O pintor austríaco Johan Moritz Rugendas, que veio ao Brasil acompanhando a expedição Langsdorff, deve ter percorrido este caminho, pois em sua obra publicada na Europa em 1835, no texto que acompanha 100 dos desenhos feitos no Brasil, relata: “Um pintor francês de talento, Sr. Taunay, construiu um pequeno corte em frente da cascata, sua agradável residência, onde moram hoje dois de seus filhos numa solidão e sossego dignos de inveja, gozando da abundância de maravilhas de que a natureza foi pródiga aí. Ao pé da Tijuca, do lado sul, existe um grande lago chamado Jacarepaguá; nele se jogam os regatos que descem das montanhas cujos rochedos e florestas se refletem em suas águas. Durante a maré alta enche-se o lago de água salgada, pois está ligado ao oceano por um estreito canal; a sudoeste é ele limitado pelo rochedo colossal da Gávea.” 4 Curioso também são as relações que tradicionais moradores da Zona Norte do Rio, principalmente da Tijuca tinham com a Barra. A Barra era território, quase que exclusivo dos “tijucanos”. Era lá que aconteciam os piqueniques familiares na praia, e era lá o local perfeito para se construir casas de veraneio. Talvez se pudesse dizer que a Barra foi uma invenção tijucana, embora, ao Primeiros ônibus no Recreio, foto de Malta. contrário do que possa parecer, o nome tijuca, que significa brejo ou lamaçal, mais comumente associado ao bairro da Zona Norte, teve origem na Baixada de Jacarepaguá. Entre os principais caminhos que facilitaram o acesso a região, estão a estrada Grajaú-Jacarepaguá, beneficiando os bairros ligados a Zona Norte e a Avenida Niemeyer, vindo da Zona Sul e custeada com recursos privados, oriundos da própria família de Conrado Niemeyer, proprietária de grandes parcelas de terras na região. Isto mostrava o desinteresse do governo, dos habitantes e dos setores econômicos em geral, de caminhar na direção das praias de São Conrado e Barra da Tijuca. 4 Viagem Pitoresca através do Brasil, Johan Moritz Rugendas, Ed. Itatiaia Ltda, 1989, pág. 30. Além da Niemeyer, veio também da Zona Sul, a Estrada da Gávea, atingindo São Conrado na altura das Canoas. Dali as duas partiam unidas, pelo morro do Joá, contornando a Pedra da Gávea e alcançando, finalmente à Barra junto ao canal que liga a Lagoa da Tijuca ao mar. Daquele local já com o nome de estrada da Barra, a via iria margeando o canal e as encostas do maciço da Tijuca até encontrar a do Pica-Pau, já no Itanhangá, na confluência com Furnas. Dali, finalmente todas as descidas de acesso à região se interligariam com Jacarepaguá e, portanto, com toda a área dos subúrbios e com as regiões de Guaratiba, Campo Grande e Santa Cruz através da estrada dos Bandeirantes. Apesar da lenta evolução em direção à Baixada de Jacarepaguá e Barra da Tijuca, obras de melhorias em seus acessos foram executadas, principalmente para escoar a produção agrícola da região e para transformar o local em um novo pólo de lazer. Os três primeiros núcleos iniciais de povoamento da região já necessitavam de uma infra-estrutura Auto-Estrada Lagoa Barra. decente. A partir dos anos 40, a expansão de residências na Barra vinha aumentando cada vez mais, e conseqüentemente, a preocupação em ampliar e modernizar os acessos. Mas foi a partir da década de 60, que o Estado resolveu intervir criando condições básicas para a conquista de mais uma fronteira da cidade, expandindo os empreendimentos imobiliários. “O aproveitamento dessa vasta área triangular que se estendia das montanhas ao mar numa frente de 20 quilômetros de dunas e praias, muitas vezes maior do que Copacabana, Ipanema e Leblon reunidos, passou a ser um desafio (...). Era preciso enfrentar o problema da conquista da Barra da Tijuca e da planície de Jacarepaguá em duas frentes: a realização de obras que criassem novas opções de acesso pela Zona Sul da cidade, restrito à avenida Niemeyer e à estrada do Joá, conjugadas à elaboração de um plano global de urbanização e ordenamento da ocupação daqueles amplos espaços, fatalidade histórica que o crescimento do Rio ao longo da orla praiana prenunciara e que um alastramento pioneiro e desordenado de moradias, favelas e comércio pela Barra da Tijuca transformava em realidade preocupante.” 5 A auto-estrada Lagoa-Barra fazia parte do projeto do Anel Viário do Estado da Guanabara e se integrava ao traçado da BR-101, Rio Santos, que na Barra coincide com a avenida das Américas. Iniciada e concluída na metade final dos anos de 1960, a auto-estrada partia da avenida Epitácio Pessoa, atravessava o túnel do morro Dois Irmãos e o bairro de São Conrado, até atingir a Barra após vencer o túnel do Pepino, passar pelo viaduto e o túnel do Joá e cruzar a ponte sobre o canal da Lagoa da Tijuca. Em sua totalidade a via se estendia por 10,5 quilômetros. A construção da autoestrada Lagoa-Barra, da Grajaú- Jacarepaguá, da Avenida Ayrton Senna (antes Via 11 e Alvorada) e os acessos a Prainha e Grumari, colaboraram para o avanço e expansão desta imensa planície chamada Baixada de Jacarepaguá. Na vertical a atual Av. Ayrton Senna, antiga Via 11. No capítulo seguinte deste trabalho – Evolução e Urbanização -, veremos mais detalhadamente todo o processo de urbanização e ocupação da região, elaborado pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa: O Plano Piloto da Baixada de Jacarepaguá. 5 Antevisão Urbana, Uma Visão Humana - Nair de Paula Soares e Rafael Rodrigues, Ed. PVDI Design, 1997, págs 14 e 15. 2.3 – Dinastias Locais no Período da Colônia – os Sá e os Correia de Sá No início, toda a região da Baixada de Jacarepaguá não tinha um dono, embora a rica diversidade de seres vivos. Índios, animais e vegetais conviviam com inteligência em simetria às leis da natureza. Essa harmonia ambiental cessou com o descobrimento do Brasil. O rei de Portugal passou a ser proprietário de tudo, com o poder de dividir o mundo descoberto entre os vassalos sem, contudo, perder a autoridade central e absoluta. Seus representantes no Brasil também tinham direito de doar em seu nome terras para a agricultura. Eram as chamadas sesmarias. Após a fundação da cidade do Rio de Janeiro em 1565, houve uma luta sangrenta para expulsar os franceses comandados por Nicolau Durand Villegagnon (1510-1575). Nessa guerra morreu o fundador da cidade Estácio de Sá (1520-1567). O seu tio Mem de Sá (1504-1572), o então governador-geral do Brasil, foi quem comandou a expulsão definitiva dos corsários franceses. Depois ele resolveu regressar para Salvador, a capital da colônia. Antes de embarcar nomeou outro sobrinho para governar o Rio de Janeiro: Salvador Correia de Sá (15471631). Salvador administrou a cidade de 1567 a 1598; com exceções dos períodos de 1573 a 1575 governado por Cristóvão de Barros e 1576 a 1577, por Antônio Salema. Logo que assumiu a capitania, Salvador doou sesmarias no Rio de Janeiro para portugueses que combateram os franceses durante a fundação da cidade. Jerônimo Fernandes e Julião Rangel de Macedo receberam, naquele ano de 1597, terras na futura região de Jacarepaguá e Barra da Tijuca. Salvador Correa de Sá Os primeiros sesmeiros, entretanto, não cultivaram os solos recebidos. Em 1594, os filhos do Governador Salvador Correia de Sá, Gonçalo Correia de Sá e Martim Correia de Sá, fizeram petição ao pai-governador para a concessão da sesmaria de Jacarepaguá para eles, alegando que, passados quase trinta anos, os antigos sesmeiros não tomaram posse da mesma. “... seus dois filhos, Gonçalo e Martim de Sá, vieram a ser os dois maiores latifundiários do Rio de Janeiro ao receberem, em 09 de setembro de 1594, toda a terra existente entre a restinga da Tijuca e Guaratiba. Estas sesmarias correspondiam, portanto, a toda a região hoje conhecida por Baixada de Jacarepaguá. Seus direitos foram confirmados, em 1597, por Felipe I, de Portugal, e os irmãos de comum acordo partilharam a propriedade. Tocou a Martim, que a passou para o filho Salvador Correia de Sá e Benevides, a área leste da lagoa de Camorim, onde foram construídos os engenhos da Tijuca, Nossa Senhora do Desterro e Nossa Senhora da Cabeça, correspondendo hoje as localidades de Itanhangá, Anil, Freguesia, Taquara, Cidade de Deus, Gardênia Azul e Barra da Tijuca. A parte de Gonçalo de Sá compreendia a área a oeste de Camorim até as terras dos padres da Companhia de Jesus, em Guaratiba e incluía o que hoje conhecemos por Vargem Grande, Vargem Pequena e Recreio dos Bandeirantes. A divisa entre as duas sesmarias seria uma linha entre a Pedra Branca e o rio Pavuna, acompanhando o curso deste até sua foz, e dali em linha reta até o mar.” 6 Martim Correia de Sá dedicou-se a política. Foi Governador do Rio de Janeiro em dois períodos: 1602 a 1608 e 1623 a 1632. Casou-se com a espanhola Maria Correia de Sá e Benevides. O primogênito dessa união foi Salvador Correia de Sá e Benevides, que iniciou a dinastia dos Viscondes de Asseca, de grande importância na história da região. 6 Arraial do Camorim - 1917 Conquistadores e povoadores do Rio de Janeiro, Elysio de Oliveira Belchior, 1965. Enquanto irmão Martim governava o Rio, Gonçalo ocupava a sua sesmaria. Construiu o Engenho do Camorim e arrendou boa parte das suas propriedades a terceiros. Assim, os domínios de Gonçalo se transformaram rapidamente em povoações, enquanto os de Martim até hoje têm grandes vestígios rurais. Outras posses seriam somadas ao patrimônio de Gonçalo de Sá: senhor de engenho na várzea de Jacarepaguá, receberia em 1602 e por duas vezes em 1603, chãos para casas e ruas na várzea do Rio de Janeiro, numa época em que seu irmão Martim era governador da cidade. Em suas terras do local então denominado Pirapitingui, hoje Camorim, limite com as terras do irmão, o proprietário mandou construir, em 1625, uma capela dedicada a São Gonçalo do Amarante. Esta forma, então corrente, de demonstrar fé e angariar prestígio, foi também empregada por Martim de Sá que, instituiu na igreja matriz de São Sebastião, no morro do Castelo, uma capela para Nossa Senhora da Cabeça, protetora também da capela do Engenho D’Água, sua principal propriedade em Jacarepaguá. Capela de São Gonçalo do Amarante Construída em 1625- Engenho do Camorim Gonçalo Correia de Sá casou-se com Dona Esperança da Costa. Dessa união nasceu a filha Vitória de Sá. Em 1628, chegou ao Rio de Janeiro o fidalgo espanhol Dom Luís Céspedes Xeria, que viajava desde Madri para Assunção, afim de assumir o cargo de governador do Paraguai. Céspedes foi hóspede oficial da cidade, pois, na época, Portugal e Espanha estavam unificados sobre a mesma coroa. No dia 21 de março de 1628, em grande festa na casa do então governador do Rio de Janeiro – Martim Correia de Sá, Céspedes casou-se com Vitória Correia de Sá, filha de Gonçalo e sobrinha de Martim. Como dote de casamento, Gonçalo doou parte de sua sesmaria de Jacarepaguá a Dom Luís Céspedes. Os irmãos Correia de Sá faleceram anos depois: Martim em 1632 e Gonçalo em 1634. Nesse mesmo ano de 1634, a mulher de Gonçalo, Dona Esperança, e a filha Vitória venderam a propriedade a Salvador Correia de Sá e Benevides, filho do falecido Martim. Dona Vitória, entretanto, não se desfez de tudo. Ela continuou com a parte que o marido recebera de seu pai como dote de casamento. Em 30 de Janeiro de 1667, Vitória de Sá, viúva e sem filhos, meses antes de falecer determina em seu testamento: “Declaro que as terras desde o rio Pavuna até o mar e correndo a costa até junto da Guaratiba, com seus montes, campos, restingas, lagoas e rios, são meus, que nomeio e instituo por herdeiro universal de todos os bens aqui nomeados e dos que adiante por alguma razão me pertença, ou seja herdeira ou restituição de minha alma, ao mosteiro de São Bento da inovação de Nossa Senhora de Monteserrat, desta cidade do Rio de Janeiro.” 7 Os beneditinos, estabelecidos no Rio desde 1589, criariam em suas terras na Baixada de Jacarepaguá algumas fazendas prósperas e notáveis, as já citadas propriedades de Camorim, Vargem Pequena e Vargem Grande. Ali, a criação de gado, o cultivo da mandioca e o preparo da farinha secundariam o cultivo da cana-de-açúcar. Assim o século XVII, marcado pelo sucesso da cultura açucareira, testemunha na formação de Jacarepaguá e Barra da Tijuca o domínio dividido entre os Sá e os beneditinos. 7 História das Ruas do Rio de Janeiro, Brasil Gerson, Rio de Janeiro: Brasiliana, 1965, p.530. 2.4 – A Planície dos Onze Engenhos Os chamados engenhos d’água, como os que fundaram os Sá, na atual Cidade de Deus no início da Avenida Ayrton Senna, foram considerados à sua época os mais avançados e produtivos. Neles a casa do engenho moía a cana usando a correnteza como força motriz. Construía-se um prédio na borda do rio sobre grandes pilares de tijolos, sendo o curso d’água regularizado pela construção de tanques e represas de modo que seu volume fosse sempre constante. A água punha em movimento rodas e engrenagens, permitindo que os grandes engenhos pudessem dar conta da trituração de 25 a trinta carros de cana por dia, cujo sumo era dirigido por canais para o edifício das caldeiras e fornalhas. Ali, em grandes vasos de cobre postos sobre a abóbada das fornalhas, o caldo era posto a cozinhar antes de ser metido em formas para coalhar. Após dois ou três dias o conteúdo endurecia e os chamados pães-de-açúcar eram postos então a purgar: selados com barro e sucessivamente umedecidos, o açúcar ia branqueando, de modo que o material mais superficial seria sempre mais claro que o do fundo, chamado açúcar mascavo. Depois de seco e pilado, o açúcar era encaixotado e conduzido ao comércio. Junto à terra, o trabalho incessante: havia que derrubar a mata no fim do inverno, queimar e limpar o terreno antes das chuvas; o plantio coincidia com a primavera e logo após vinham as tarefas de limpeza, de manutenção e obras de drenagem e irrigação, aproveitando o verão chuvoso da terra carioca. Reparos na maquinaria e os últimos cuidados com a plantação ocupariam o início do outono e, em maio ou junho, ocorriam o corte da cana e começava a produção do açúcar. Ao longo do século XVII, os engenhos dos senhores e dos padres foram dando nova forma à geografia local. O assentamento de índios mansos e escravos vindos da África permitiu obras e benfeitorias nas propriedades, além de garantir a comunicação permanente com outros pólos, mediante as melhorias realizadas em antigos caminhos e a abertura de novas estradas. Em 1710, cerca de 1000 homens franceses comandados por Duclerc, vieram do litoral de Guaratiba e desembarcaram rumo à cidade pela serra dos Três Rios. O espanto que deve ter causado à pacífica planície a passagem da tropa inimiga só não terá sido maior do que os danos causados à cidade. Tanto que em fins dos anos 700, os governantes ainda se preocupavam com a lembrança alarmante da invasão francesa. O marquês de Lavradio, por exemplo, por volta de 1777, fortifica a região, prevenindo-se de outras incursões contra a cidade – afinal neste ano uma armada espanhola tomaria Santa Catarina e eram constantes as lutas no Sul. Instalaram-se duas baterias entre a lagoa de Marapendi e o mar, outras duas no Alto da Boa Vista e Barra da Tijuca, e duas mais, denominadas Itapuã e Pontal, na praia de Sernambetiba, atual Recreio dos Bandeirantes. No caminho para o Engenho Novo (em terras pertencentes a Jacarepaguá), três baterias foram instaladas. Alguns destes sítios eram facilmente reconhecidos ainda em 1936. Magalhães Correia no seu Sertão Carioca menciona e desenha um antigo canhão de bronze, datado de 1775, que permanecia no ponto mais alto do caminho entre o Grajaú e Jacarepaguá. A prefeitura planejava aproveitá-lo numa área turística que não chegou a ser construída. Ilustra também o mesmo autor os canhões que ainda estavam à época nas areias do Pontal. Destes últimos, nenhuma notícia recente; dos da fortaleza dos Três Rios, sabe-se que desapareceram entre 1945 e 1950. Ao atravessar a planície rumo à serra do Grajaú e dali ao Centro do Rio, a força francesa não encontrou resistência e não teve, decerto, reclamações quanto ao abastecimento de víveres. Terra próspera, mas situada à margem dos domínios da cidade, os ecos do Centro não chegavam até ali, concretizando seu alheamento. Duas áreas adjacentes, a venda do Campinho (em Jacarepaguá) e Guaratiba, atuavam como intermediários nos contatos com outras áreas cariocas. Os portos a oeste, como Guaratiba e, mais tarde, Sepetiba, relacionavam-se preferencialmente com áreas da orla das baías de Sepetiba e ilha Grande, não sendo rotineiras as viagens em mar aberto, pelo litoral sul até a entrada da barra e daí aos portos do interior da Guanabara. Na transição do século XVII para o século XVIII teríamos as seguintes áreas de influência: - três propriedades dos beneditinos, em Camorim, Vargem Grande e Vargem Pequena; - a fazenda da Taquara; - a fazenda do Engenho d’Água; - o Engenho de Fora; - o Engenho Novo, correspondendo hoje à Colônia Juliano Moreira; - a Fazenda Rio Grande, hoje Condomínio Passaredo; - o Engenho da Serra, na região da Serra dos Três Rios; - o Engenho Velho da Taquara, atual localidade da Boiúna; - a Fazenda da Restinga, de descendentes do Sá, que deu origem à parte mais antiga da Barra da Tijuca. Daí a denominação de Planície dos Onze Engenhos, dada à Baixada de Jacarepaguá. Nas fases iniciais da ocupação, a Baixada de Jacarepaguá esteve entregue à sua própria sorte, praticamente isolada, tal era a distância e tantas as dificuldades que se interpunham entre a região e o centro urbano. Sua importância e prosperidade, decorrência dos anos ricos do cultivo da cana-de-açúcar, materializou-se nas residências e igrejas em torno das quais se concentrariam populações solidárias. No século XIX, o declínio da cana e a opção pelo cultivo do café alteram esta situação. Com o fim da escravidão, que sustentava a exploração da terra e a circulação de bens e indivíduos, a Baixada de Jacarepaguá testemunha o colapso das fazendas, assoreamento dos rios, aumento dos brejos, destruição de caminhos, conservando-se aqueles bens do passado protegidos, pelo isolamento, das descaracterizações aceleradas sofridas por outras partes da cidade. 2.5 – O Século XIX e as Fazendas de Café O século XIX, na história da Baixada de Jacarepaguá, corresponde a um período em que a região vai quebrando seu isolamento e tornando-se cada vez mais periferia do Rio de Janeiro, com a vinda da “Corte” em 1808. No início deste século, o café expandiu-se bastante na província do Rio de Janeiro. Em Jacarepaguá, por exemplo, foram criadas muitas fazendas para sua plantação, além de ser cultivado também nos solos férteis dos antigos engenhos de açúcar. As grandes propriedades locais no início do século XIX sem dúvida se ressentiram do declínio sofrido pelo cultivo da cana-de-açúcar. As lavras em Minas Gerais, por absorverem enormes contingentes de escravos, os tornavam mais caros, sendo prática reconhecida alugá-los para o trabalho nas minas, o que se refletiu também no declínio da produção agrícola. Além disto, a mão-de-obra escrava era a responsável, como vimos, pela manutenção de eficazes formas de beneficiamento da terra: limpar leitos e margens de rios, abrir diques e canais, aterrar sucessivas vezes áreas de inundação, recolher e quebrar pedras para obras etc. A subdivisão das grandes propriedades em fazendas e o posterior recorte destas, já nos fins deste século, em loteamentos e propriedades menores foi a forma dos proprietários obterem algum lucro com as terras que, com a produção em declínio, já começavam a custar muito em relação ao retorno que produziam. O café, que vinha se expandindo no Rio desde fins do século anterior, ocupou principalmente as terras altas, com destaque para as regiões do Itanhangá, estrada Velha de Jacarepaguá e morros da Freguesia, não se adaptando tão bem aos terrenos de baixada. As propriedades locais foram-se tornando, com o decorrer do século, menos auto-suficientes e especializadas que no século anterior. Agora se dedicavam igualmente a uma agricultura variada e à criação de animais. A sede, que até o século XVIII ainda fundia as noções de espaço de residência e unidade de produção, por vezes ligando-se diretamente a um engenho, ou casa de farinha, ou depósitos, passa cada vez mais a pertencer ao mundo privado do proprietário, abrindo apenas parte da planta ao convício social e sendo cada vez mais um espaço de lazer, de bem-estar, uma “residência de campo”, cercada por uma natureza domada, feita de pomares e jardins, abastecendo, muitas vezes, uma outra residência, que seria a principal, no Centro da cidade. A partir de cerca de 1810, surgirão na região as chamadas “situações”, terras dedicadas ao cultivo do café, onde não residiam, obrigatoriamente, os proprietários que delas retiravam lucros e produtos. Para os lados da Barra da Tijuca, além das chácaras e fazendas que ocuparam as partes mais altas da floresta atual, o café aclimatou-se no Itanhangá, na estrada do Pica-Pau, na Muzema, Rio das Pedras e Anil, sendo estes dois últimos pertencentes hoje à região de Jacarepaguá. Nos antigos limites dos beneditinos surgem novas propriedades na área de Curicica, Rio Pequeno, Rio Bonito, e nas vertentes que dão para Guaratiba. Em terras pertencentes a Jacarepaguá, tanto as velhas fazendas como as dos novos sitiantes passariam a exigir contatos no Centro do Rio que garantissem a comercialização de seus produtos. A oposição entre centro e roça vai-se construindo ao longo do século, com nítida desvantagem para a região, agora celeiro de outro local de onde se gerencia a produção. Um bom exemplo de propriedade que serve para abastecer uma residência urbana e tem seus excedentes vendidos no comércio é o das fazendas dos beneditinos, cuja produção estava comprometida com o sustento e as rendas da ordem, sediada no Centro da Cidade. Luccock, que no início do século XIX visitou a região, mostra-nos em seu livro: Notas para o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil/BeloHorizonte/Itatiaia/EDUSP/1975, um panorama de seus limites com Guaratiba. Por uma das trilhas que dali partiam, atravessando o alto dos morros até Campo Grande e Bangu, pôde ver o que chamou o “belo panorama da vila de Camborim ou Camorim e da planície que a circunda”. A expressão vila já nos demonstra, em inícios do século XIX, o sistema de redes de localidades que ainda hoje caracteriza a Baixada de Jacarepaguá. No entanto, não devia significar mais do que uma pequena população concentrada, composta de uns poucos sitiantes dos beneditinos, da venda e das habitações dos pescadores que labutavam nas lagoas. Em outra viagem, vindo de Guaratiba, que então contava quatro mil habitantes, Luccock veio dar em Vargem Grande, revelando-nos detalhes do caminho existente à época: árduo, íngreme, aproveitando em certas partes do percurso o leito seco dos rios, tornando-se em outras apenas uma trilha no meio da mata. Ao chegar ao “convento” dos beneditinos, o viajante elogia a acolhida hospitaleira: abundante ceia de peixe, ótimos leitos, economia, boa ordem e boa vontade. Os “muitos fiéis” que acorriam à missa são um indicador pouco controlável da densidade da população, mas a fartura de peixe a que todas as fontes se referem pode ter, de fato, contribuído para um aumento dos moradores e para sua melhor nutrição. As plantações de café e a criação de pastos arrasavam a Mata Atlântica da região. Ao longo dos séculos surgiram, na região da baixada, novas chácaras, fazendas e pequenas propriedades. As casas, como as dos beneditinos, são para passar temporadas, para meditar, para recuperar a saúde e para produzir um centro que se impunha – a Corte, que passava a incluir a baixada de Jacarepaguá. A abolição da escravatura daria início a um período de colapso nos cultivos e na manutenção das antigas vias navegáveis. Em conseqüência disto, toda a circulação passaria a ser feita pelos caminhos terrestres que seriam alargados e regularizados, mas ainda de barro, servindo à população que se adensava e que escolhia a região como local de residência. Eram, em sua maioria, profissionais liberais atuantes nos subúrbios, encorajados na escolha da nova moradia pelas facilidades recém-implantadas quanto aos transportes. Com eles aparecem pequenos comerciantes que se instalam na região, mudando-lhe a fisionomia de modo evidente na última década do século XIX. As alterações, que se concentraram ao longo das vias principais, atingem também áreas interiores. Em 5 de janeiro de 1891, os beneditinos, cheios de dívidas, venderam suas terras para Companhia Engenho Central de Jacarepaguá com capitais do Banco de Crédito Móvel, que acabaria por tornar-se o novo dono. Os arrendatários dos frades de São Bento tiveram seus direitos respeitados pelos novos proprietários, que passaram a cobrar-lhes aluguel, enquanto não se resolviam detalhes quanto à venda em conjunto. Neste intervalo, os moradores foram trazendo parentes e amigos que passaram a construir suas moradias nas vargens, se aproveitando do período de indecisão. Estes pequenos sitiantes garantiriam a importância da produção agro-pecuária característica do bairro e constituíram a Caixa Auxiliadora dos Lavradores de Jacarepaguá e Guaratiba. E, a fim de fazerem prevalecer os seus direitos, conseguiram que o banco lhes vendesse, em prestações, as terras que ocupavam como arrendatários. Em relação à Barra da Tijuca, a família Sá conservaria suas terras até 1876, em função do que estabelecia a ‘lei do morgadio’, que impedia a partilha de terras que constituíssem um patrimônio familiar, mantendo-o íntegro, mesmo em caso de sucessão hereditária, pela qual passavam ao filho mais velho, com exclusão de outros herdeiros, ainda que legítimos. Com a revogação da ‘lei do morgadio’, foi vendida pelos descendentes dos Sá, entre outras áreas, a correspondente à Fazenda da Restinga, que praticamente cobria a metade a leste do bairro da Barra da Tijuca. As glebas desmembradas da Fazenda da Restinga vieram mais recentemente a fazer parte do patrimônio da Carvalho Hosken – Engenharia e Construções. Nove anos depois, o Banco de Crédito Móvel repassou suas terras à Empresa Saneadora Territorial e Agrícola S.A., ainda hoje grande proprietária de terrenos na área. Aliás, essas terras sempre foram propriedades de poucos, até que elas fossem parceladas em lotes, a partir dos anos 70 do século XX. Pelo que se depreende da leitura de várias fontes, são poucos e quase sempre os mesmos os nomes que se vê associados a elas. No início foram os Sá, o Mosteiro de São Bento, depois os Telles de Menezes e finalmente os grandes proprietários de hoje: Carvalho Hosken, Pasquale Mauro e Tjong Hiong Oei (da empresa ESTA). Com todas estas linhagens sucessórias, a titulação das terras na Barra da Tijuca deu origem a várias ações judiciais que se arrastavam nos tribunais. A solução definitiva do poder judiciário para a questão fundiária coincidiu com a abertura da auto-estrada Lagoa-Barra no início da década de 70 do século XX, que veio trazer acesso efetivo e desimpedido à parte oriental da Baixada de Jacarepaguá. Vencer os obstáculos naturais implicou investimentos vultuosos em infraestrutura viária (túneis Dois Irmãos e do Pepino, elevado e túnel do Joá, ponte do Canal da Joatinga), que possibilitaram a ligação da Gávea e do Leblon com a Barra da Tijuca, como já vimos na seção 2.2, tornando-a o passo seguinte no prosseguimento do vetor da expansão urbana da Zona Sul do Rio de Janeiro.