A consciência feminina através da literatura: uma análise da obra O vale da paixão, de Lídia Jorge Claudia Carvalho1 Cristina Markowski1 Rodrigo Santos de Oliveira2 Resumo O presente artigo tem por objetivo analisar a consciência feminina através do romance O vale da paixão, da escritora portuguesa Lídia Jorge. A Literatura, assim como o teatro, a pintura, a dança, etc., é uma expressão viva das sociedades e, a partir dela podemos perceber elementos fundamentais de como se estruturavam estes grupos sociais, através da visão de cada autor. O romance, O vale da paixão é um exemplo disto, no qual notamos a leitura da autora, através de suas personagens principais (mãe e filha) em torno do feminismo. A obra é um reflexo de um período conturbado da história de Portugal, momento em que a ditadura salazarista havia sido recentemente derrubada, na Revolução dos Cravos em 1974 e, junto com a ascensão da democracia lusitana, novos setores ganharam espaço político, além de questões relativas ao gênero e à sexualidade entrarem na pauta das discussões sociais. Palavras-chave: Literatura; gênero; mulher; igualdade; expressão 1. A evolução da participação da mulher No ocidente a participação social da mulher nas mais variadas esferas da sociedade (política, econômica e cultural) é um fenômeno recente. Até pouco tempo atrás constituições dos países ocidentais creditavam à mulher o caráter jurídico de uma criança e a sua tutela passava do poder do pai ao marido.3 Contudo, a consciência de sua discriminação e o seu caráter secundário imposto pelas sociedades, podia ser percebido através da literatura e da poesia do século XIX. Nesta época, podemos perceber alguns registros de romances e poesias escritos por mulheres, sendo as poesias a forma de maior expressão. Neste período, raramente observavase alguma crítica aos padrões e se existissem seriam muito discretas, pois para serem aceitas, as mulheres, não poderiam discordar do sistema vigente. Merece destaque a segunda metade do século XIX, quando surgiram as conquistas da ciência positivista que refutavam a existência de Deus, pois se destruída essa imagem, destruía-se também a ameaça de castigo 1 Discentes em Letras – Licenciatura Plena. ULBRA – Campus Guaíba. Professor Orientador, ULBRA – Campus Guaíba 3 No Brasil apenas na Constituição de 1937 a mulher deixou de ter este tipo de caráter jurídico e apenas na Constituição de 1946 definiu-se com clareza a mulher enquanto indivíduo independente de tutelas patriarcais. 2 pelo pecado do sexo, no pós-vida, porque no universo das novas idéias céu e inferno também não existiriam. Um exemplo emblemático são os romances da escritora inglesa Jane Austen (Orgulho e preconceito, Emma, Razão e sensibilidade, etc.). A obra da autora apresenta, aos leitores, como era o caráter discriminatório entre homens e mulheres na Inglaterra do século XIX.4 No século XX ocorreu a grande revolução feminina, na qual as mulheres a partir de suas lutas e reivindicações conquistaram um caráter de igualdade social frente aos homens. Embora, até hoje combatam para ter uma real igualdade no tocante à salários, empregos e posição social com os homens. Neste século as mulheres foram às ruas em busca de trabalho e melhores condições para realiza-lo. Lutaram contra o preconceito e as discriminações, mostrando que em nada perdiam para os homens. A maior prova da capacidade feminina ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, nos Estados Unidos e na Inglaterra. Enquanto os homens eram convocados para combater na Europa e na Ásia, as mulheres assumiram seus lugares nas indústrias e nas fábricas. Comprovaram serem tão importantes no esforço de guerra5, que esses governos reconheceram o seu papel fundamental. Mas, não foi apenas a guerra que auxiliaram a conquistar e sim a própria consciência enquanto capazes de ocupar qualquer posição. No Brasil, os anos 60 e 70 foram o marco definitivo para a conquista da verdadeira identidade feminina. Este período foi marcado pela conquista da modernidade, da democracia, do desenvolvimento, do acesso a todos à educação e as mulheres foram à faculdade, aqui começou a metamorfose cultural. Outro fator determinante nos anos 80/90 foi o fácil acesso ao anticoncepcional, liberando, definitivamente, as mulheres para os prazeres do sexo e levando-as a verem o mundo sob outro ponto de vista. As mulheres passaram a escrever suas reivindicações, aquelas que foram reprimidas por muitos séculos. O amor dava lugar aos 4 O que chama a atenção é que a Inglaterra, junto com a França, eram os países considerados mais liberais, no que se refere aos direitos das mulheres neste período. Imagine o que restava às outras sociedades menos desenvolvidas... 5 O assim denominado “esforço de guerra” era o conjunto de ações civis e militares para a produção de suprimentos para as tropas que combatiam no front. O aparato logístico produzido pelo esforço de guerra foi o grande diferencial que permitiu a vitória aliada sobre os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). questionamentos existenciais, ao ludismo, às fantasias, à metafísica, à redescoberta de mitos, ao binômio amor e sexo, cujo ponto de interseção era o erotismo.6 Em Portugal, este movimento de conscientização feminina eclodiu a partir de 1974, com a Revolução dos Cravos, que colocou fim a ditadura salazarista.7 Com a redemocratização do país surgiram muitos escritores e dentre eles Lídia Jorge, jovem escritora que contribuiu, de forma literária, com essa revolução dando voz à personagem feminina e permitindo que esta criasse suas próprias diretrizes, reafirmando sua condição de mulher capaz de viver uma vida digna e construir , desta forma, a verdadeira identidade feminina. Lídia Jorge Nasceu no Algarve em 1946. Seu primeiro romance, O dia dos prodígios (1980) foi celebrado como um grande acontecimento literário a excepcional qualidade da nova literatura portuguesa do pós-ditadura. Entre as suas obras distinguem-se O cais das merendas (1982) e Notícia da cidade silvestre (1984), ambos distinguidos com o Prêmio Literário do Município de Lisboa e O jardim sem limites (1995), ganhador do Prêmio Bordallo de Literatura da Casa da Imprensa. O romance, O vale da Paixão foi lançado em 1998 e possui todos os elementos que tornaram Lídia Jorge uma das principais escritoras portuguesas da atualidade. 2. O Vale da Paixão8 Na obra podemos observar a trajetória marcante de duas mulheres, mãe e filha. A primeira é personagem antagonista e apesar de não fazer uso relevante da voz, consegue, através de suas ações, transitar de forma notável pelo romance, já a segunda é personagem protagonista e utiliza-se não só da voz, como também da escrita, além disso é narradora e seu discurso oscila entre a primeira e a terceira pessoa. 6 Não apenas no Brasil, como aponta Maria Remédios: “O feminismo e a crítica feminista, do modo que ressurgem no final dos anos 60 e no início dos 70, na Europa e nos Estados Unidos, contestam sistemas de pensamento que se apóiem em princípios inquestionáveis sobre os quais se pode construir uma hierarquia de significações. Questionando a bipolaridade homem-mulher, o feminismo começa a reavaliar as leis básicas dos sistemas patriarcais e chega a atitude de autonomia”. REMÉDIOS, Maria Luíza Ritzel. O despertar de Eva: gênero e identidade na ficção de língua portuguesa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 7. 7 O período ditatorial português (1922-1974) ficou conhecido por salazarismo, devido ao nome de seu primeiro ditador, Manuel do Oliveira Salazar. 8 JORGE, Lídia. O vale da paixão. Lisboa: Publicações do Quixote, 1998. 2.1 Análise da obra Francisco Dias mora em São Sebastião de Valmares com seus seis filhos. Walter, o mais jovem, o trotamundos, inútil desenhador de pássaros, segundo o pai , não segue o mesmo destino dos irmãos. Engravida Maria Ema e segue pelo mundo como soldado, movido pelo espírito aventureiro, deixando seu legado para Custódio, o filho mais velho e coxo, que casa-se com Maria Ema e assume a sobrinha/filha. Esta cresce na casa de forma indiferente, e apesar da semelhança com o pai é obrigada a chamá-lo de tio. Quando estava com dez anos, em 1963, Walter regressa à casa de Valmares e visita a filha/sobrinha em seu quarto em uma noite de chuva, noite esta que ficou gravada em sua memória. Ela mostrou o revólver dele que guardava embaixo do colchão, ele a levou até o espelho e ficaram vendo suas semelhanças. Walter nesta noite falava sobre a dívida que tinha com ela, tentando se desculpar pela ausência, porém o tempo passa e Walter, o trotamundos, continuava a viajar e mandava cartas para a família e estas sempre eram acompanhadas pelo desenho de pássaros. Maria Ema guardava todos e estes ajudaram a compor um álbum que a filha/sobrinha acreditava ser uma das heranças de seu pai/tio. Maria Ema apesar de casada com Custódio e mãe de dois filhos dele, ainda demonstrava interesse por Walter e não conseguiu esconder a felicidade quando soube que ele regressaria, aliás todos na casa perceberam sua mudança de comportamento. Com o decorrer dos anos filhos de Francisco Dias também foram embora, ficando na casa apenas Custódio, o filho mais velho, o coxo que tinha dificuldades para se locomover. A filha/sobrinha cresce e nela cresce a angústia pela falta que sente do pai/tio e por tudo que ele naquela noite de chuva representava para ela. Em uma das partidas de Walter, Maria Ema cai em depressão e precisa da ajuda de um médico, o Dr. Dalila. Este envolve-se com a filha/sobrinha e acaba por libertá-la da casa de Valmares. Com a morte dele, outros vieram e preencheram em sua vida o vazio deixado por Walter e pela própria mãe. Francisco Dias, já com idade avançada, sofre com o descaso dos outros filhos que não retornam para cuidar dos seus interesses, porém estes passam a escrever para o pai e traziam notícias do trotamundos. A filha/sobrinha resolve procurar o pai/tio na tentativa de resgatar sua verdadeira herança, ou seja, a construção de sua identidade. Então escreve três narrativas a partir daquela noite, com o intuito de vingar-se dele, “O Pintador de pássaros”, “A charrete do Diabo” e o “Soldadinho fornicador” e consegue magoá-lo. Walter morre e deixa para a filha a sua manta, a manta regressa à casa de Valmares e a filha a enterra como se só agora conseguisse recuperar a identidade. Esta obra tem enfoque peculiar na condição feminina, destacando a questão da identidade. A narradora ganha destaque como protagonista, no entanto, não possui nome, é uma pessoa sem identidade e é exatamente a busca por esta identidade que a faz transgredir no tempo. A evolução destas duas mulheres ocorre de forma distinta no decorrer do romance, pois Maria Ema, a mãe, apesar de apresentar identidade esconde-se atrás de um passado mal resolvido comprometendo, desta forma, o ciclo de sua existência. Maria Ema sofre de amor, um amor não vivido e eternizado na presença de uma filha. A mulher foi e será para todo o sempre um ser apaixonado, capaz de reprimir seus desejos em prol do bem comum, nesse caso a família, foi isso que levou Maria Ema a sufocar o desejo que possuía em viver com Walter. Contudo, por mais que tentasse disfarçar era notável a transformação em seu semblante quando este retornava a casa de Valmares. Custódio, então, avança para ela, para os ombros despidos de Maria Ema, e diz que a temperatura está baixa. Diz mais, diz que ainda é cedo, que Walter ainda não está a caminho. Estaria se viesse de barco, mas vem de avião. (p. 102) E ela, como toda mulher, não só era capaz de reprimir como também seria capaz de largar tudo para viver uma vida nova cheia de emoções com seu amor. Maria Ema usava da sedução para tentar chamar a atenção de Walter, porém não era correspondida e desta forma ia crescendo em seu peito uma angústia pela não concretização de seu amor. Seu maior manifesto foi quando caiu em depressão profunda em mais uma das partidas do trotamundos. Mas Maria Ema ficava deitada, não queria que abrissem as janelas. Quando se deslocava, fazia-o aos supetões, não queria comer, não queria caminhar. Queria comportar-se de outro modo, mas não podia. (p. 147) Maria Ema deixava que o seu sofrimento transbordasse, era preciso sentir aquela dor, como se somente desta forma fosse possível sublimar esse sentimento tão voraz. E, ainda assim, precisava ouvir o julgamento dos demais moradores da casa de Valmares. Lembro-me da noite em que a encontraram com uma corda na mão, a sair da cavalariça , fascinada, a olhar para o tronco da nespeira. Francisco Dias gritava – Deixem-na matar-se! Mas Custódio começou a fazer telefonemas para vários consultórios, até que encontrou, na própria residência, um médico a quem chamavam Dr. Dalila . (p.147) Na medida em que Maria Ema ia recobrando as forças, tomava consciência da mudança drástica no comportamento da filha, e sem demora percebe o que está acontecendo. [...] A filha de Walter começou a chegar a casa, de roupa amarrotada e livros desfeitos, juntamente com o Dr. Dalila, e quando Custódio se punha a narrar os progressos de sua mulher, Maria Ema soerguia-se na cama e não tirava os olhos da filha, não retirava os olhos do médico. (p. 152) Somente a partir desses acontecimentos é que podemos observar que a personagem de Maria Ema cria voz e passa a articular de forma a dissuadir a intencionalidade da filha. Em altos gritos, disse que ela era a cara tinta e escarrada de Walter Dias, viciosa e depravada como ele, falsa e mentirosa como ele, traidora e inclinada ao mal como ele. Agora compreendia por que razão ela tanto gostava de montar a Charrete do Diabo, quando criança. Custósio Dias apertou-lhe os pulsos em fúria, os filhos aproximaram-se estupefactos perante a algazarra que nunca tinham suposto acontecer na casa onde habitava o silêncio de sua mãe. (p. 153) A mãe, apesar de manter um relacionamento fleumático com a filha, tenta de todas as maneiras mudar-lhe o destino. Onde fostes? Por onde andastes? Passados dias, Maria Ema chamou a filha de Walter e explicou, aos gritos, quem era o Dr. Dalila – um bêbado, um relaxado. Maria Ema agora pedia protecção para a filha, mas ela ficava-lhe tão fora do alcance, tão rápida, tão sonegada, que só pedido a alguém que estivesse por cima das janelas e das telhas e fosse mais veloz do que o carro do Dr. Dalila. (p. 155) Maria Ema não teve sucesso em suas investidas, a filha continuava a se encontrar com Dr. Dalila e depois vieram outros, nos quais ela tentava encontrar, em cada um, um pouco do pai e da mãe que lhe foram sempre ausentes. No que diz respeito à protagonista, podemos observar que a filha de Walter é rejeitada por todos os moradores da casa de Valmares e cresce de forma indiferente. Seu conflito é inegável e começa em sua concepção, pois é filha de um acaso do destino e sendo filha , muito semelhante com o pai, é tida como sobrinha e sendo sobrinha é tida como filha, o que desencadeia uma vida tumultuada em busca da identidade. E tinha conhecimento de que em todos documentos de identificação havia uma mentira, mas ela colaborava com a mentira, porque da ambiguidade surgiam acontecimentos férteis e calorosos como se nascessem de verdades. (p. 20) Assim, a filha de Walter, ao contrário de sua mãe, luta de forma incessante até formar a própria identidade, partindo sempre da herança deixada pelo pai/tio e debruçando-se na lembrança da noite em que ele a visitara, para a partir dessas lembranças construir sua própria história, pois só assim poderá tornar-se uma mulher absoluta e respeitada por todos. Além da rejeição por parte da mãe, conta com a ausência do pai e este resolve visitá-la em uma noite chuvosa com o propósito de ganhar o perdão pelos anos de ausência. Sei muito bem que te troquei pela Índia, e afinal a Índia não te merecia, nem a viagem para lá e para cá te merecia. Compreendes? E aí ela ficou tão surpreendida que não podia falar nem pensar que fosse o que fosse, presa que estava de perplexidade. Parecia-lhe impossível que Walter Dias, vindo de tão longe, tivesse entrado no seu quarto de sapatos na mão como um assaltante, e fosse afinal para lhe pedir desculpa por um facto que ela guardava para si mesma como uma dádiva. (p. 15) É nesta noite que a filha mostra ao pai o revólver dele que guarda embaixo do colchão, a fim de protegê-la dos perigos da noite e também o álbum de pássaros desenhados por ele em sua vida errante, sem poder esquecer da presença dele eternizada dentro do guardaroupas. E ela teria enumerado peça a peça, a mochila, as botas, as polainas, a farda, o capote, o bivaque, o cantil, o lenço e o cinturão, o que fora suficiente para Walter ter ficado inteiro dentro do roupeiro. A filha dormia a uns metros da farda, separada da vista pela porta opaca. Mas a filha sabia onde estava a chave e para que servia. Enfiava-a na ranhura, rodava-a e o corpo do soldado aparecia. (p. 38) Essa era a única maneira de prender o trotamundos perto dela e preencher minimamente um pedacinho da lacuna deixada por ele. Os desenhos de pássaros, feitos por Walter, desempenhavam papel importante para o crescimento da filha, pois neles ela concentrava o ideal de liberdade. Cada desenho recebido representava não só a liberdade como também o regresso de Walter à casa de Valmares, assim como a manta, a mesma manta em que ela fora concebida, aquela que servia de assento na charrete, aquela que partia e regressava com Walter, aquela onde ele desenhava os pássaros e também vivia suas paixões. As fotografias têm a intenção de registrar momentos, para que não esqueçamos de maneira alguma deles, e a filha de Walter possui uma única fotografia em que aparece apenas ela e o pai, apesar da mãe estar junto e não poder participar daquele momento único em que eles, realmente, pareciam ser uma família. A fotografia era de tamanho postal, cor castanha, e nela a criança encontrava-se ao colo de Walter, amparados ambos pelos braços duma cadeira de espalda, mas Maria Ema escondia-se para que ninguém soubesse onde se encontrava. (p. 32) A filha de Walter já conta com quinze anos e as crises de identidade aparecem com freqüência fazendo-a sentir-se culpada por existir. Porque ela deveria ter-se desfeito de mim, para ser ela mesma, durante a vida de mulher que merecia ter tido, mas não se desfez. Não soube, não tinha como nem com quê. (p. 135) Sua vida toma rumos diferentes quando começa o relacionamento com Dr. Dalila e foi com ele que tomou o gosto pela escrita, uma forma perene de concretizar seu pensamentos e seus ideais, para que mais tarde Walter soubesse. Os filhos de Francisco Dias que já não moram mais em Valmares e raramente escrevem para o pai, porém todas as cartas trazem notícias criticando o comportamento do trotamundos. Sua filha ouve calada, no entanto, não acredita serem verdadeiras todas aquelas palavras venenosas. Anos mais tarde , quando já estava com trinta anos é que percebeu o quanto a figura do pai, ausente, lhe fazia mal. Na crueldade dos trinta anos, ela queria que Walter nunca tivesse aparecido a preencher o dia glorioso de sessenta e três, a perturbar a paz do coxo, a incendiar o decurso de Maria Ema, por se encontrar já definitivamente morto. (p. 210) Apesar de amá-lo, a filha queria livrar-se dele, antes ainda, queria que ele sofresse por todos aqueles anos que ela viveu a sua sombra. Para isso escreveu três narrativas – O pintador de pássaros, A charrete do diabo, O soldadinho fornicador e sai a procura de Walter. E eles se encontram, um encontro frio e sem afetividade. Ela entrega a ele os maços de papel contendo as narrativas e na medida em que Walter vai lendo vai tomando consciência do passado, é como se tivesse um espelho nas mãos. Quanto mais lia mais crescia o ódio pela filha. Walter morre e dez meses após a filha recebe sua única herança, a manta, aquela mesma manta que continha partes da vida dela e dele. Ela própria enterra a manta, como se estivesse enterrando o próprio pai, aquele pai ausente que viveu presente em sua consciência desde a noite chuvosa de 1963. E é desta maneira que Lídia Jorge no Vale da Paixão, traz à luz questões pertinentes a vida feminina, mostrando a trajetória de duas mulheres que evoluem, no que diz respeito a identidade feminina, de maneira oposta. Todos nós temos um nome e é assim que somos identificados pelo resto de nossas vidas, nosso nome é a nossa maior marca, desde os primórdios as pessoas são identificadas dessa maneira. Nossas personagens já divergem na questão do nome. Maria Ema, mulher com nome e sobrenome apoia-se no poder da sedução e não consegue atingir seu alvo. Vive uma vida de mentiras, pois não é feliz na condição em que se encontra, todavia em nenhum momento luta pelo seu ideal, não obstante, precisamos destacar que ela foi uma mulher corajosa, pois, na casa onde vivia, era criticada por suas atitudes sedutoras observadas por todos e nunca abandonou este recurso. Quanto a sua filha, a personagem protagonista e narradora, não sabemos o nome, transita pela obra sem deixar sua marca. Opõe-se ao silêncio da mãe e desde criança filtra os acontecimentos de sua a vida a fim de encontrar sua verdadeira identidade. Para isso, além da expressão oral, marcante para as mulheres daquela época, utiliza de forma relevante a escrita, condição que foi negada a mulher durante muitos séculos. Lídia Jorge nesse amálgama de ficção e realidade mostra o quanto a mulher evoluiu no tempo, tempo esse que ainda hoje é permeado por conquistas femininas. Referências Bibliográficas FERREIRA, Silvia Lúcia; NASCIMETO, Enilda Rosendo (org). Imagens da mulher na cultura contemporânea. Salvador: NEIM/UFBA, 2002. HORTA, Maria de Lourdes Ferrari. Uma mulher portuguesa, com certeza: paisagem com mulher e mar ao fundo, de Teolinda Gersão. Porto Alegre: PUCRS, 2000. (dissertação de mestrado em Letras). JORGE, Lídia. O vale da paixão. Lisboa: Publicações do Quixote, 1998. REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. O romance português contemporâneo. Santa Maria: Edições UFSM, 1986. ____________. O despertar de Eva: gênero e identidade na ficção de língua portuguesa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.