DIREITOS HUMANOS E EMANCIPAÇÃO SOCIAL Alexandre Aguiar dos Santos* É o desenvolvimento do ser social que possibilita o surgimento de categorias essenciais para o entendimento da sociedade. O fundamento que distingue o ser social do mundo orgânico e inorgânico1 é o trabalho. Trabalho é aqui compreendido como a mediação do sujeito com a natureza, tendo como objetivo a satisfação das necessidades humanas. O trabalho no ser social se distingue da atividade no ser orgânico (por ex. as abelhas) pelo fato do ser humano ter a capacidade de antever as suas ações antes de realizá-las2. Trata-se da capacidade teleológica, em que o indivíduo atua de acordo com determinada finalidade previamente formulada. Este processo de mediação do ser humano com a natureza, na medida em que altera as condições naturais, altera também as condições sociais e humanas, realizando um movimento de constante superação das barreiras naturais para o desenvolvimento do ser social; para o incremento das forças produtivas; e para a constituição do ser social cada vez mais social, com o aumento da sociabilidade. Em síntese, ao modificar a natureza através do trabalho o ser social modifica a si próprio, tornando-se cada vez mais social sendo, porém, ineliminável a sua relação com o mundo orgânico e inorgânico. * Professor Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, doutorando em direito no Curso de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. 1 Na obra Para uma Ontologia do Ser Social, Lukács apresenta as categorias centrais da realidade social, abordando a relação entre o mundo inorgânico, orgânico e o ser social. Três esferas ontológicas da Humanidade inelimináveis. Contudo, na relação entre estas esferas ontológicas cada uma apresenta uma dinâmica própria e com especificidades singulares constituindo-se em complexidades distintas. 2 “Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio domínio. Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais, de trabalho. O estado em que o trabalhador se apresenta no mercado como vendedor de sua própria força de trabalho deixou para o fundo dos tempos primitivos o estado em que o trabalho humano não se desfez ainda de sua primeira forma instintiva. Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade”. (MARX, K. O capital, 1985. Vol I, p.149-150) 1 Esta mediação (o trabalho) exige a capacidade de antecipação na mente humana dos atos de modificação da natureza para a satisfação das necessidades humanas, portanto, é fundamental para o ser social o conhecimento da realidade. Esta antecipação dos atos na mente humana voltados para a transformação da natureza é chamada de intentio recta3. A intentio recta, definida por Lukács, é o conhecimento da realidade exterior ao indivíduo, neste sentido ela se apresenta como reflexo da realidade que lhe é exterior. No ato singular do trabalho a intentio recta está caracterizada pela realização de sua finalidade, mas no processo histórico são os meios de transformar a natureza que adquirem relevância no desenvolvimento da intentio recta. O domínio de determinados meios de transformação da natureza se constitui na base para o desenvolvimento da ciência. Conforme sintetiza Lessa, “o conhecimento requerido para a transformação do real no trabalho deve ser, em algum grau, reflexo do real e não reflexo da subjetividade individual: esse conhecimento poderá cumprir sua função social tanto melhor quanto mais desantropomorfizada for” (1997, p. 36). Mas o ser social não se reduz ao processo de mediação com a natureza. Na medida em que transforma a natureza o homem transforma a si próprio, desenvolvendo com maior intensidade as relações entre si num processo em que as interações sociais adquirem um caráter de orientação dos “atos cotidianos, com a mesma teleologia de cada indivíduo em cada momento com a mesma dureza das relações causais dadas, naturais” (LESSA, 1997, p. 40). Estas relações que tem como fundamento o Trabalho – mas não se reduzem a ele – apresentam-se como uma “segunda natureza”, complexos de relações sociais fundados no trabalho, mas distintos dele, Lukács define como intentio obliqua. Diferente daquela teleologia posta na transformação da natureza, a intentio obliqua apresenta-se como uma teleologia secundária, voltada a justificar e provocar nos homens determinadas condutas e práticas sociais mediadoras do processo de transformação da natureza e de transformação do próprio homem, auferindo sentido a vida dos indivíduos e a sua práxis social. Neste processo de afastamento das barreiras naturais desenvolve em grau crescente o papel das relações tipicamente sociais na 3 A definição da intentio recta e intentio obliqua é originalmente exposta por Nicolai Hartman e incorporada por Lukács. 2 formação do ser social que dão significação aos atos humanos na sua totalidade. Tratase de um processo em que se forma a visão de mundo predominante em determinado momento histórico e que dá sentido para a vida dos indivíduos. Este é um processo em que a subjetividade humana se coloca em maior grau, constituindo-se num conhecimento antropormofizado da realidade, ao contrário da intentio recta. Direito e Ideologia Dos complexos relativos à intentio obliqua inclui-se a ideologia que desempenha uma função social relevante na integração da visão de mundo dos homens e das suas relações sociais. Para Lukács a ideologia desempenha um papel de articulação das diferentes esferas do ser social. Trata-se de uma teleologia secundária – distinta da teleologia posta na mediação do homem com a natureza (teleologia primária) –, voltada para que os indivíduos se comportem de determinada maneira, diante das contradições dadas em determinado período histórico-social. Como Caracteriza Lessa, o desenvolvimento da sociabilidade é a crescente necessidade de respostas genéricas que permitam ao indivíduo não apenas compreender o mundo em que vive, mas também justificar a sua práxis cotidiana torná-la aceitável, natural, desejável. Essa função de fornecer tais respostas genéricas, (...) cabe a ideologia. (1997, p. 53). A ideologia como posição teleológica secundária (onde se inclui a esfera do direito) se constitui numa forma de elaboração ideal da realidade que é utilizada para orientar a prática cotidiana dos indivíduos indissociável do caráter antagônico da sociedade de classes, servindo como instrumento da luta social. Neste sentido, a ideologia como complexo social está vinculada a dinâmica das contradições sociais, podendo figurar como elemento de conservação de determinada ordem, interditando o processo de sociabilidade humana e sua emancipação, ou se constituindo como elemento de desenvolvimento da generidade humana. O surgimento da sociedade de classes e suas contradições exigem a complexificação da função social da ideologia, onde o complexo da ideologia também se complexifica. Além de conter uma função geral a ideologia passa a ter funções mais restritas. (LESSA, 1997, p. 54). Desta forma se verifica o surgimento de complexos 3 sociais específicos que tem como função regulamentar a práxis social de modo a tornar possível a reprodução da sociedade. O direito se constitui num destes complexos específicos em que se faz necessária a regulação social: “A complexificação social e o surgimento das classes em contradições antagônicas termina por dar origem a um complexo social particular com função social específica: regular juridicamente os conflitos sociais” (LESSA, 1997, 52). Como bem destaca Lukács, Somente quando a escravidão levou a cabo, na sociedade, a primeira divisão em classes, somente quando a circulação das mercadorias, o comércio, a usura, etc., introduziram, ao lado da relação entre escravo e patrão, também outros antagonismos sociais (credores e devedores, etc.), as controvérsias que daqui surgiram tiveram de ser regulamentadas socialmente e, na satisfação de tal necessidade, pouco a pouco surgiu a jurisdição conscientemente posta, não mais transmitida, tradicional. A história nos diz, além disso, que tais necessidades adquiriram, relativamente tarde, uma figura própria na divisão social do trabalho sob a forma de um estrato particular de juristas aos quais era exigido, como sua tarefa especial, a regulamentação deste complexo de problemas (LUKÁCS, 1986 b. p. 53). O complexo social do direito tem fornecido elementos importantes à constituição de uma visão de mundo em que, nas sociedades de classes, tem tornado “operativa” a práxis cotidiana dos indivíduos. Assim, o direito se apresenta como uma forma específica de ideologia (LESSA, 1997, p. 53). O direito como ideologia constituise também numa posição teleológica secundária, em que visa à persuasão de outros indivíduos para que ajam de determinada maneira, influenciando suas posições teleológicas primárias ou secundárias. Uma característica relevante da esfera jurídica é que ao lado de um direito posto (editado, positivado) que realmente é aplicado, existe na consciência social dos homens a “idéia de um direito não posto, não resultante de atos sociais, que deve valer como ideal para aquele positivo, o direito natural.” (LUKÁCS, 1986 b p. 54). Neste sentido, o caráter ideológico do direito está associado ao processo de integração da realidade jurídica com as demais esferas da vida. Evidentemente que esta integração e os conteúdos desse dever-ser modificam-se de acordo com os períodos históricos. O direito como “forma específica de ideologia” apresenta sua gênese na mudança qualitativa entre o comunismo primitivo – em que a regulação social se dava através do costume, da tradição e da solução prática dos conflitos – e a sociedade de 4 classes, em que os conflitos tornam-se estruturais e exigem a generalização dos instrumentos de solução. Desta forma, ocorre paulatinamente o desenvolvimento do complexo jurídico, adquirindo contornos especiais na medida em que se aprofunda a divisão social do trabalho, e determinados indivíduos passam a se ocupar da aplicação do direito. Direito e a divisão social do trabalho O ser social no processo de transformação da natureza e de transformação de sua própria natureza vai desenvolvendo de forma crescente a divisão do trabalho. Esta surge como uma necessidade social potencializadora da capacidade individual de trabalho, ampliando de forma significativa a produtividade social. Mesmo nos estágios mais primitivos das sociedades humanas a divisão do trabalho é expressão de regulamentação das atividades dos distintos indivíduos daquela sociedade. Esta divisão – que já implica em regulamentação dos distintos trabalhos – surge como uma necessidade decorrente da interação do homem com a natureza, e sua conseqüente divisão social do trabalho vai adquirindo relevância social crescente na medida em que incrementa a produção dos meios socialmente necessários, possibilitando em certo momento do desenvolvimento social a produção de um excedente a ser apropriado, de forma exclusiva, por um grupo específico de indivíduos integrantes da sociedade. Com o desenvolvimento da divisão social do trabalho, dos meios de produção e a crescente sociabilidade do ser social, combinado ao processo de apropriação do excedente produzido socialmente por um grupo restrito de indivíduos, origina a diferenciação social de maneira contraditória, combinando a crescente sociabilidade o surgimento das classes sociais antagônicas. Portanto a crescente sociabilidade decorrente da divisão social do trabalho na sociedade de classes implica em desenvolver de forma desigual os indivíduos integrantes de uma mesma sociedade, gerando um conjunto de contradições e conflitos que deverão ser equacionados internamente a totalidade social. Esta contradição no desenvolvimento do ser social tem um caráter estrutural na medida em que muitos complexos sociais estão geneticamente vinculados aos 5 conflitos decorrentes do antagonismo social das classes. A própria divisão social do trabalho terá este antagonismo como base objetiva de seu desenvolvimento posterior. As contradições decorrentes da crescente divisão social do trabalho e do surgimento das classes sociais exigem que a regulamentação social seja capaz de preservar a integridade socialmente contraditória das classes em conflito. Esta necessidade de regulação social vai possibilitar, do ponto de vista histórico, na divisão social do trabalho o surgimento de um grupo cujo mandato social é a regulação social de forma específica. Este grupo, cujo mandato social é a regulamentação dos conflitos, vai destacando socialmente na medida das crescentes necessidades sociais de regulamentação. O surgimento do direito pode ser compreendido sinteticamente como expressão das interações contraditórias de distintos complexos sociais como: a crescente divisão social do trabalho, que possibilita o surgimento das classes sociais, aumento da produtividade social do trabalho, e ampliação da sociabilidade humana. Da interação contraditória e desigual destes complexos integrantes da totalidade social surge a necessidade social de um grupo específico, dentro da divisão social do trabalho, para regulamentação dos conflitos sociais. Desta maneira, um estrato particular de pessoas se torna, neste caso, o portador social de um complexo específico produzido pelo desenvolvimento da divisão social do trabalho. E imediatamente se observa que, simultaneamente ao surgimento desta esfera jurídica na vida social, um grupo de pessoas recebe o mandato social de impor, através da força, os objetivos deste complexo (LUKÁCS, 1986 b, p. 52). Desta forma a divisão social do trabalho e o surgimento das classes sociais representam o momento predominante para o surgimento da esfera jurídica. O seu desenvolvimento ocorre de forma contraditória e desigual em que as formas de organização e estruturação se manifestam de acordo com as transformações na totalidade social. Na medida em que se a base sobre a qual surge o direito se diferencia – ampliando a divisão social do trabalho e aprofundando as contradições entre as classes sociais – é possível compreendermos o desenvolvimento da esfera jurídica nos distintos 6 momentos históricos da humanidade (modo de produção escravista antigo, medieval e capitalismo). Direito e classes sociais A esfera jurídica, edificada sobre as contradições estruturais do regime de classes, se desenvolve e se complexifica de forma contraditória onde os interesses da classe dominante exigem, mesmo que parcialmente, o reconhecimento de interesses das demais classes sociais. Ou seja, o direito, através do processo de homogenização da regulamentação social, buscará garantir a reprodução social segundo as melhores condições possíveis para satisfação dos interesses da classe dominante. Neste sentido, como sua expressão, o complexo jurídico pode manifestar a contradição entre os interesses globais de uma classe e os interesses de indivíduos que pertençam àquela mesma classe. Os interesses de uma classe são mais articulados do que a soma dos interesses individuais dos integrantes desta classe. O desenvolvimento da esfera jurídica fundamentado, em última instância, no antagonismo das classes sociais e nos conflitos daí decorrentes – mas que não restrito a isto – vai mediar conflitos decorrentes dos diferentes interesses sociais expressos nas diferenças internas e externas da classe dominante. Para concretizar os interesses particulares de uma classe sobre as demais, constituindo-se em classe dominante, esta “deve levar em conta as circunstâncias externas e internas, chegando aos mais variados compromissos quando se trata de organizar o direito” (LUKÁCS, 1986 b, p. 54). O complexo do direito caracteriza-se pela expressão dos interesses gerais em oposição aos interesses particulares sem, contudo, deixar no âmbito das contradições estruturais de ser um direito de classe, uma particularidade em si, como sugere Lukács: “A imposição intransigente do interesse global da classe dominante pode, perfeitamente, se encontrar em contradição com muitos interesses de pessoas que pertencem àquela mesma classe” (LUKÁCS, 1986 b, p.54). A contradição entre os interesses globais de uma classe e os membros integrantes da mesma é semelhante a contradição entre os interesses socialmente 7 dominantes e as demais classes sociais, na perspectiva de que a melhor forma de dominação é estabelecida no processo de integração das distintas classes na totalidade social em que, de forma prioritária, sejam mantidos os interesses dominantes. Pois a dominação será mais eficaz quanto menor o uso da violência e maior a utilização do complexo jurídico. O reflexo destas contradições no complexo jurídico e seu relativo caráter autônomo frente a outros complexos sociais indicam, preliminarmente, o caráter estruturalmente contraditório deste complexo, que através de imperativos abstratos busca validar atitudes singulares por meio de uma complexa divisão social do trabalho interna ao próprio complexo jurídico, sendo apresentada como um imperativo social geral (homogenizante). Lukács faz um alerta sobre a vinculação restrita da relação entre classes sociais e a esfera jurídica: Bastará estar consciente de tal complexidade das bases a fim de evitar tirar conseqüências apressadas, simplistas e esquemáticas do caráter de classe do direito. Mas, por mais diferenciados que sejam os conteúdos jurídicos na sua gênese e na sua vida concreta, a forma jurídica adquire uma homogeneidade própria somente no curso da história; quanto mais a vida social se faz social, tanto mais nítida e pura se torna tal homogeneidade. E, até nesta forma, mesmo quando se mira pelo seu lado formal, já se pode encontrar uma verdadeira contradição: de um lado, esta forma é rigorosamente geral, pois vem sempre subsumidos compactamente, sob uma mesma categoria, todos os casos que podem entrar em dado imperativo social. (...) Por outro lado, simultaneamente a esta tendência em direção à validade geral, há uma curiosa indiferença – também ela contraditória – a respeito das razões pelas quais os indivíduos singulares respeitam o imperativo contido no ordenamento jurídico que, a cada vez, é chamado a influenciar as posições teleológicas (problema do legalismo) (LUKÁCS, 1986 b, p. 54). Esse processo de autonomização da esfera jurídica que se articula com o desenvolvimento da sociabilidade, requer um desenvolvimento em que a sua gênese – a luta de classes – origina formas de regulamentação que extrapolam os limites exclusivos desta contradição estrutural da sociedade. O direito, sem jamais eliminar esta base objetiva de sua gênese, constitui-se em uma estrutura social que reflete o desenvolvimento das capacidades produtivas do trabalho, o recuo das barreiras naturais e o incremento da sociabilidade do ser social. 8 De acordo com Lukács para a compreensão deste complexo social é relevante o papel exercido pela posição teleológica dos indivíduos frente ao direito: “As leis e as sentenças, (...) não podem mais se limitar a vetar determinadas ações, para o direito os motivos das transgressões se tornam cada vez mais importantes e são fixados em formas jurídicas” (LUKÁCS, 1986 b, p. 55). O direito é uma forma específica de reflexo e reprodução na consciência daquilo que acontece de fato na vida econômica. O termo reconhecimento especifica, posteriormente, a peculiaridade desta reprodução colocando em primeiro plano o caráter não puramente teórico, contemplativo, mas antes de tudo prático. (...) O reconhecimento só pode ter um sentido real e racional no contexto prático, isto é, quando se enuncia como necessidade a reação a um fato que é reconhecido, quando nele estão contidas indagações de quais posições teleológicas os homens devam seguir ou, então como deve ser avaliado o fato em questão enquanto resultado das posições teleológicas. Este princípio se concretiza depois, posteriormente, com o adjetivo “oficial”. Deste modo, aparece socialmente definido com exatidão, o sujeito deste dever, justamente o Estado, cujo poder, determinado quanto ao conteúdo pela estrutura de classe, consiste, neste caso, em substância na posse do monopólio do juízo sobre os vários resultados da práxis humana, de forma a estabelecer se são lícitos ou proibidos, criminais, etc., e que fatos da vida social e de que modo eles têm relevância jurídica (LUKÁCS, 1986 b, p. 58). A esfera jurídica é um complexo que adquire relativa autonomia, por isso, é possível ser estudado e compreendido como complexo particular. O desenvolvimento desta autonomia relativa faz com que o direito cumpra a função social da regulamentação dentro da totalidade do ser social. Neste sentido, ocorrem movimentos contraditórios internos à esfera jurídica e na sua relação com os demais complexos singulares e com a totalidade social. Os Direitos Humanos e a particularidade burguesa Dentro das contradições inerentes ao complexo jurídico e a sua relação com os demais complexos sociais a questão dos Direitos Humanos se constitui numa busca de substantivação ampla do direito, na medida em que tais direitos são de interesse de toda humanidade, adquirindo um caráter de generidade fundamental para o ser social. Os direitos humanos, como todo o complexo singular do direito correspondente aos interesses da humanidade, estão permeados pelas contradições 9 estruturais da sociedade de classes. Estas contradições não excluem as “determinações reais que emergem do próprio sistema jurídico e afetam as atividades vitais de todos os indivíduos. (...) agem também, como determinantes poderosas no sistema global de interações complexas” (MÉSZÁROS, 1993, p. 208-209). Os direitos humanos representam conteúdos históricos sociais específicos de determinada sociedade. O fundamento dos direitos humanos a partir da compreensão da totalidade do ser social constitui a base para a formulação da crítica de Marx aos direitos do Homem decorrentes da Revolução Francesa. Marx parte da compreensão da totalidade social do processo da Revolução Francesa e a ascensão da ordem burguesa (MARX, 2000) para formular sua crítica a Declaração dos direitos do homem e do cidadão4. Essa crítica tem como fundamento a forma contraditória de estruturação e apresentação destes direitos pela classe dominante e pelo Estado, em que o interesse particular da classe dominante é apresentado como “interesse de todos”. A crítica de Marx é dirigida as construções teórico-ideológicas dos supostos “direitos dos homens” como racionalização a priori das estruturas de desigualdade e de dominação. Sua crítica tem o objetivo de demonstrar a precariedade de significação prática destas declarações. Nenhum dos chamados direito humanos ultrapassa, portanto, o egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em sua arbitrariedade privada e dissociado da comunidade. Longe de conceber o homem como um ser genérico, estes direitos, pelo contrário, fazem da própria vida genérica, da sociedade, um marco exterior aos indivíduos, uma limitação de sua independência primitiva. O único nexo que os mantém em coesão é a necessidade natural, a necessidade e o interesse particular, a conservação de suas propriedades e de suas individualidades egoístas (MARX, 2000, pgs. 35-37). Este processo em que o interesse particular de determinada classe é apresentado abstratamente como interesse de todos está vinculado ao processo de organização da superestrutura jurídica e política da sociedade de classes. Trata-se de um 4 Marx na obra “A questão judaica” utiliza como referência as versões de 1791 e 1795 da Declaration des droits de l´homme et du citoyen. 10 mecanismo em que o Estado como instrumento de dominação define as condições de funcionamento sociais adequadas à produção e reprodução da ordem. Nessa sociedade o “interesse de todos” é definido como funcionamento tranqüilo de uma ordem social que deixa intactos os interesses dominantes, e circunscreve as possibilidades de uma admissível mudança social nesta perspectiva. Observando como as coisas funcionam nesta sociedade, é tentador concluir que o “interesse de todos” é um conceito ideológico vazio, cuja função é a legitimação e perpetuação do sistema de dominação dado. Entretanto, concordar com esse ponto de vista significa ser aprisionado pela contradição que estabelece, permanentemente, um interesse particular contra outro e nega a possibilidade de escapar do círculo vicioso das determinações particulares (MÉSZÁROS, 1993, p. 214-215). O caráter desta particularidade é decorrente das condições objetivas de como a burguesia se constitui em classe dominante e sua incapacidade de tornar-se universal, convertendo-se num sistema de universalização das particularidades. Da condição de estamento do ancien régime a burguesia realiza uma automediação (de estamento em-si para estamento para-si) em uma classe em-si, na condição de classe dominante econômica e socialmente. Neste ponto, a burguesia é a particularidade par excelence: o antigo terceiro estado que se torna "estamento em si e para si" - o princípio dos estados, o "privilégio definido e limitado" (Engels), mediado através de sua negatividade (isto é, um tipo de privilégio parcial mediado por outros tipos de privilégio parcial) e universalizado como princípio fundamental dominante da sociedade e enquanto expropriação de todo privilégio para si (cf. a conversão da propriedade rural feudal em agricultura capitalista) - mas somente uma "classe em si" (MÉSZÁROS, 1993 p. 104). A gênese do complexo jurídico não é indiferente a estas características constituinte da particularidade burguesa. Assim, a esfera jurídica realiza a mediação desta particularidade com as demais classes sociais fundamentando de diferentes formas os interesses singulares da burguesia como pseudo-universais, na forma de imperativo social. O reconhecimento dos direitos humanos como categoria mais ampla das relações jurídicas, por estar associada ao interesse de toda a humanidade, adquire um conteúdo fundamental de legitimação de desta ordem social. Mesmo que a 11 concretização de tais direitos na sociedade capitalista seja tolerada apenas até o limite em que não questione os fundamentos de todo o sistema, os direitos humanos se constituem em uma das fontes de legitimação desta ordem social. A crítica ao caráter dos direitos humanos como expressão dos interesses particulares desta classe social – que busca legitimar-se como “interesses de todos” – necessita estabelecer os nexos entre os direitos humanos e as características do regime de classes. Na análise das estruturas antagônicas das classes sociais podemos identificar que o processo de superação da particularidade burguesa está vinculado às características estruturais do proletariado como única classe capaz de automediar-se de classe em si em classe para-si, portanto, como única classe que porta consigo as potencialidades concretas de universalização dos interesses de toda a sociedade. Do mesmo modo a burguesia não pode se transformar de classe em si em classe em si e para si, uma vez que seu modo de existência como classe em si privilegiada pressupõe necessariamente a preservação da subordinação estrutural do proletado à burguesia, dentro da ordem social vigente. Da mesma forma, o proletariado é uma classe em si e para si a p e n a s na medida em que é objetivamente capaz de estabelecer uma alternativa histórica viável à sua própria subordinação estrutural, bem como à necessidade de subordinar qualquer classe a qualquer outra. (A extinção das classes, naturalmente, dá um fim à subordinação estrutural necessária do indivíduo à classe, uma relação que é substituída pela unidade não contraditória entre a parte e o todo: o indivíduo social automediado) (MÉSZÁROS, 1993 p. 105). Neste sentido, podemos falar de direitos humanos que expressem a generidade humana, potencializando o processo de emancipação social. Da crítica dos direitos humanos da sociedade burguesa – em que os direitos humanos incorporam o interesse particular de determinada classe e o apresenta como interesse geral, da generidade humana – é possível encontrar-se o fundamento para uma formulação emancipatória dos direitos humanos. A fundamentação de uma alternativa a ordem social do capital não pode ignorar a questão dos direitos humanos. Esta alternativa “deve provar a sua superioridade face ao capitalismo precisamente ao superar as contradições da 12 parcialidade, liberando as energias reprimidas da realização humana de todos os indivíduos” (MÉSZÁROS, 1993, p. 213). A suplantação do interesse particular pela generidade humana está diretamente vinculada à condição de realização desta superação pelo proletariado. Para Marx, o proletariado é a única classe capaz de substituir a particularidade do interesse de uma classe pela universalização dos interesses de todos os indivíduos. O proletariado – como sujeito fundamental do processo de produção social – é a única classe capaz de realizar a mediação entre a particularidade e a universalidade, da classe em si para a classe para si, emancipando-se não apenas enquanto classe, mas abolindo as classes sociais, emancipando-se como humanidade. A questão dos direitos humanos, deste ponto de vista, adquire uma dimensão relevante, na medida em que na esfera das relações jurídicas a defesa dos interesses da humanidade em oposição aos interesses particulares de determinada classe são fundamentais para a construção do processo de emancipação social frente aos interesses do capital. É possível, de forma sintética, a indicação de três momentos distintos em que a questão dos direitos humanos pode ser analisada. Num primeiro momento, sob o metabolismo social do capital a questão dos direitos humanos deve estar orientada para a contraposição entre os interesses da humanidade e os interesses particulares de determinada classe. É fundamental a denúncia dos estreitos limites em que a ordem burguesa admite tais direitos. Num segundo momento, no processo de transição socialista os direitos humanos, “promovem o padrão que estipula que, no interesse da igualdade verdadeira, ‘o direito, ao invés de ser igual, teria de ser desigual’, de modo a discriminar positivamente em favor dos indivíduos necessitados, no sentido de compensar as contradições e desigualdades herdadas” (MÉSZÁROS, 1993, p. 217). E por fim, num terceiro momento, numa fase mais desenvolvida da sociedade comunista, ...quando houver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos a divisão do trabalho e, com ela, o contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito limite do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: 13 de cada qual segundo as suas capacidades; a cada qual segundo as suas necessidades (MARX, 2008, p. 7-8). Neste sentido, a aplicação de um padrão igual (Direito) torna-se obsoleto na medida em que “o desenvolvimento completo de um indivíduo de modo algum interfere na auto-realização dos outros como indivíduos verdadeiros” (MÉSZÁROS, 1993, p. 217). A emancipação social passa necessariamente pela emancipação individual e, portanto, pela emancipação humana. A guisa de conclusão, o complexo parcial do direito, integrante da superestrutura jurídica e política da sociedade, não se restringem a sua estrutura legal, no sentido normativo. Ao contrário esta esfera regulamentadora da sociedade deve ser compreendida como uma realidade singular (e parcial) do metabolismo social. Sua concretude refletida será possível na medida em que se relaciona com outros complexos parciais. Estes, por sua vez, formam articuladamente um complexo de complexidades, uma totalidade historicamente dada e dinâmica em que as interconexões entre os diferentes complexos parciais (estruturas sociais) passam a ser determinantes para a compreensão das funções de um complexo singular. Desta forma, uma compreensão substantiva do direito exige o entendimento de uma imbricada rede de conexões entre os diferentes complexos sociais, integrantes da totalidade social. As relações da superestrutura política e jurídica e a base material devem ser compreendidas como determinadas e determinantes, num processo de interrelacionamento íntimo e contínuo. Assim como as formas de consciência social e as formas de pensar individuais não podem ser expressões mecânicas da base material ou da estrutura econômica; mas mediadas através da superestrutura política e jurídica, correspondendo a estas no nível das idéias sem, contudo, ser idênticas a elas (MÉSZÁROS, 1993, p. 212). O caráter autônomo da esfera jurídica como complexo social não elimina suas relações e nexos com a divisão social do trabalho e o regime de classes. O processo de abstração homogenizante dos imperativos sociais da estrutura jurídica expressão o caráter pseudo universalizante da particularidade burguesa. Os direitos humanos como expressão mais ampla do complexo jurídico está vinculado as contradições da totalidade social representando, por uma lado, os limites 14 da particularidade burguesa que se impõe como “interesse de todos”, através de formulações abstratas e homogenizantes; e por outro, como expressão dos interesses de toda humanidade, capaz de eliminar a subordinação do indivíduo à classe articulando-se ao caráter automediador do proletariado como classe para si. Os direitos humanos, numa perspectiva emancipatória, articulase com a capacidade do proletariado de forjar uma alternativa histórica à sociedade de classes. Constitui-se numa importante fronteira desta alternativa histórica na medida em que opõe aos limites da particularidade burguesa – que tem interditado o desenvolvimento do ser social – os interesses de toda Humanidade – em que o interesse do individuo não exclui a realização dos interesses dos outros. Bibliografia citada. ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. 2ª. ed. São Paulo: Ensaio, 1991. LESSA, Sergio; A Onltologia de Lukács e a atualidade do marxismo. 2ª. ed. Maceió: EDUFAL, 1997. LUKÁCS, Giörgy; Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. 1ª. ed. São Paulo: Livraria editora ciências humanas, 1979. __________. Ontologia do ser social: O Trabalho. Tradução preparada por Ivo Tonet, Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Versão preliminar da obra, Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins, Darmstadt: Luchterhand, 1986. (a) __________. Ontologia do ser social: A reprodução. Tradução preparada por Sérgio Lessa, Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Versão preliminar da obra, Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins, Darmstadt: Luchterhand, 1986. (b) MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: Centauro editora, 2000. __________. Crítica ao Programa de Gotha. 1875. Disponível <http://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/index.htm> Acessado em: em 28/03/2008. MÉSZÁROS, István. Filosofia Ideologia e Ciência Social: ensaios de negação e afirmação. São Paulo: Ensaio. 1993. 15