A Lagarada... A noite estava fresca, não fria, mas fresca e estranhamente escura. Não havia luz, pelo menos aquela intensidade e claridade com que estamos habituados a viver no nosso conturbado dia a dia. O silêncio que imperava era de ouro, os pássaros já há muito tinham ido dormir, mas nós não! Entramos na casa pela porta principal, uma porta larga, não muito alta, de madeira escura e puxadores de ferro. Fomos recebidos à porta, o dono da casa estendeu a mão direita e com um sorriso convidou-­‐nos a entrar. Entramos, à esquerda um tanque de água corredia, escorreita e muito fresca, um regador de chapa e um copo pousado. Não hesitei, o dia tinha sido quente e o trabalho da vindima cansativo. Bebi, e enquanto bebia não pude deixar de reparar no que a dois metros do chão estava, uma imponente ramada com uvas carnudas de dimensões gigantescas, comi uma, é verdade, comi e aqui me penitencio e confesso, eram divinais com um sabor doce e textura aveludadas, -­‐ Boas não são? Disse o nosso acompanhante, não fosse Homem corava! Olhei para o chão, um empedrado de lajes de granito, mais ao lado um carro de bois e um canastro. Mesmo ali à mão de semear ao lado do canastro uma eira. Dei meia dúzia de passos e abeirei-­‐me da mesma. Estava vazia, completamente vazia, o milho já estava recolhido no canastro, mas o despejo da mesma contrastava com a magnifica paisagem que desta se via. Meu deus, aquela paisagem, a mesma que Eça descreveu e cuja descrição não me atrevo a profanar. O nosso anfitrião explicava, explicava tudo, respondia às perguntas, e agora, agora que os meus olhos se haviam habituado à penumbra somente quebrada por aqueles candeeiros a petróleo compreendia o odor, aquele odor forte que sentia desde que entrei na casa. Era o cheiro a petróleo, sim, o mesmo que hoje faz mover o nosso mundo, aqui, cheirava bem! Eram três os candeeiros que no exterior junto à corte do gado iluminavam a noite. Descemos o empedrado que sempre nos acompanhou desde que na casa entramos e fomos encaminhados para a loja da casa. Deixei-­‐me ficar para trás, olhei para a esquerda, ali a não mais que meia dúzia de passos atrás da soleira onde repousavam os candeeiros as cortes dos animais. Teriam sido no passado, agora não! Agora restava o aspeto daquelas paredes verticais, retas, sinceras e honestas como as gentes de cá. Olhei para a direita, reparei mais uma vez na paisagem que se avistava do outro lado do douro, já todos desciam para a loja que do local onde me encontrava pouco distava. Abeirei-­‐me da porta olhei pela ultima vez para a direita, respirei fundo, ah este cheiro a petróleo, aqui sim faz sentido... e entrei! Na loja a claridade era maior, não porque houvesse eletricidade mas tão somente porque o espaço era menor que lá fora e havia o mesmo número de candeeiros, um à entrada da porta, sobre aquilo que me parecia uma mesa de A Lagarada... carpinteiro, um outro mais ao lado sobre uma pipa e lá ao fundo o terceiro mesmo junto ao lagar. O teto estaria a dois metros de altura, e as grossas vigas de madeira que suportavam o soalho do andar de cima quase tocavam na minha cabeça. Dei dois passos, algo me havia chamado a atenção lá ao fundo no lagar, a explicação decorria, senti uma sensação estranha ao pisar aquele chão. Que diabo, que chão estranho pensei e não pude deixar de me debruçar sobre ele. Passei-­‐lhe a mão! Um chão fresco, de tom cinza e muito liso. Uma superfície mole que não se desfazia com a mão e com o calcar mas parecia absorver liquido, pelo menos assim parecia, já que a gota que caía da caneca e barro branco e azul sob o tonel com vinagre não escorria mais de um palmo até desaparecer. Que material é este, pensei. Todos me olhavam, um individuo ali derreado com a mão no chão... em que figuras me meto! -­‐ É terra, terra comprimida disseram. Sorri, o mesmíssimo sorriso de miúdo que todos nós já fizemos quando fomos apanhados com a cara cheia de chocolate. Levantei-­‐me e respirei fundo, aqui o cheiro a petróleo era ainda mais intenso. Passei ao largo do proprietário e finalmente cheguei ao lagar. Não era um lagar grande, meeiro de altura e pouco mais de comprimento. A beleza daquele lagar não estava apenas nas pedras de granito entrecortadas e firmemente encaixadas, nem tão pouco no chão de pedra polido que denotava anos e anos de vigoroso trabalho. O que me havia chamado à atenção era uma grossa viga de madeira com mais de dois braços de diâmetro que pendia de um encaixe de pedra no lado esquerdo da parede e atravessava todo o lagar. Talhado de forma soberba esse encaixe apenas rivalizava com aquilo que me parecia uma mó encrustada num caibro que saía da viga do outro lado do lagar. Que figura vou fazer eu de novo, lembro-­‐me de pensar, mas não, agora não, duas vezes já chega e a noite ainda agora começou! Recuei três passos, quase caindo nos cestos de verga quase do meu tamanho que junto à lagareta se encontravam. Encostei-­‐me à parede e esperei pela explicação! Finalmente chegou, tratava-­‐se de uma prensa de vara, uma peça quase única, digna do melhor museu vinícola que, com mais de dois séculos de vida aqui ainda serve o seu propósito. Subimos as escadas e entramos na cozinha, agora já via bem, impressionante o que acontece aos nossos olhos quando nos habituamos à penumbra, conseguimos ver ainda mais e melhor! Passado um pequeno lancil, por trás de um grande armário chegamos a um tear que se encontra pousado mesmo ao lado de uma máquina de costura e dum ferro de brasas. Em três passos chego ao interior da cozinha, mesas de madeira e bancos largos e comprido cabendo lado a lado em cada um deles mais de quatro pessoas. Aqui come-­‐se assim, não há lugares individuais, partilha-­‐se o espaço agora ainda menos escuro e com um cheiro diferente de todos os outros. Nem mais, agora que me havia deslocado meia dúzia de passos até à lareira que se encontrava acesa e de onde se ouvia o assobio de duas panelas de ferro das quais emanava um odor magnífico consegui sentar-­‐me na espreguiçadeira que a ladeava. Próximo da espreguiçadeira um candeeiro a petróleo. Dali via tudo! O forno com a cruz em cima, os presuntos e enchidos pendurados, a broa de milho sobre as três mesas que ocupavam a cozinha e o odor, o odor da ceia que ia comer daí a pouco. O Cheiro do petróleo já não o sentia, na garganta apenas aquele ligeiro amargo sêco A Lagarada... que me disseram depois ser do petróleo. Fui para a mesa, sobre ela uma toalha aos quadrados de pano branco e vermelho com guardanapos a combinar e dois singelos copos iguais. Dois copos por prato, estes de barro azul e branco próximos de duas mãos cheias de azeitonas cuidadosamente despejadas numa tigela de barro castanho que fazia par com uma outra, onde, num banho de azeite e vinagre repousava uma cebola cortada. Olhei em frente, ali estava aquela parede escura feita de pedras de granito toscamente cortadas que separavam a cozinha da sala de jantar. Não me atrevi a levantar e, dali mesmo olhei através das janelas na sala de jantar por cima daquela arca castanha e escura a mesma paisagem que do exterior da casa havia visto. A paisagem era dali ainda mais bela e emoldurada naquela janela ladeada por cortinados de linho. Baixei os olhos, respirei fundo e meditei, aqui o tempo ainda não passou, o tempo parou e ainda bem que assim foi! Quando acordei deste meu tolhimento a ceia estava a ser servida por duas jovens devidamente trajadas e que em nada destoavam do espaço envolvente. Olhei novamente para aquela lareira, para a parede, para a janela e para a porta entreaberta por onde havíamos entrado. Era hora de ceia e após esta teríamos a lagarada e tudo mais que houvesse! 
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