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Tropa de Elite: uma (auto) crítica antiproibicionista
No 19 de Dezembro de 2007 chegamos à AMRIGS (Associação Médica do Rio
Grande do Sul), para acompanhar o debate sobre este famoso filme (promovido pelo
NPF, Núcleo de Psiquiatras em Formação). Nisso, pensávamos em uma matéria para o
blog, uma espécie de "Dossiê Tropa de Elite"; ou coisa do gênero. Algo que ajudasse a
explorar o filme de acordo com o que nós entendemos de antiproibicionismo.
Chegamos um pouco atrasados para o debate, pegando o final da fala da Dra.
Olga Falceto, no momento em que esta assumia suas críticas sobre as possíveis
impressões que o filme passaria aos telespectadores de um certo Brasil - você sabe, o
Brasil segundo o qual "o negócio é entrar na favela e matar todo mundo mesmo". Falou
que gostaria de ter visto algo sobre o futuro do Capitão Nascimento pós-BOPE, falando
do desdobramento de seus sofrimentos psíquicos, como stress pós-traumáticos (e que
fim isso teria levado). Colocou alguns dados coerentes, como as perdas de vida devido
aos acidentes de trânsito E aquelas "relacionadas ao tráfico". Comparando esses dois
tipos de perdas, para além do perfil de vítimas (jovens e homens), "em geral o problema
que estas vítimas têm em comum são a desesperança e o álcool e outras drogas, nessa
ordem; já que na minha opinião, ninguém que tenha esperanças enche a cara ou se
emboleta sistematicamente". Ficou claro que ela estava diferenciando o uso do abuso, o
que em debates sobre drogas já é algo difícil de se ouvir. Mesmo que parecesse uma
generalização dos casos de abuso como podendo possuir uma causa única (no caso,
desesperança), gostamos bastante do pouco que ouvimos. Sua trabalho como terapeuta
de família foi colocado como exemplo de sua atuação no ramo da prevenção enquanto
"promoção de situações que promovam a esperança". Entretanto Olga não entraria em
um debate sobre alternativas às políticas de drogas existentes - aliás este tema não foi
diretamente abordado, ficando várias vezes em aberto, e também não tivemos a
perspicácia de intervir.
Enquanto a aplaudíamos, ficamos sabendo por nossos informantes que, antes de
Olga, também o Dr. Juarez Guedes Cruz havia iniciado os trabalhos daquela noite, em
uma fala cujo tom destoou dos demais debatedores(as): ele havia deixado claro que,
para ele, o negócio era reprimir mesmo; e destinou o valioso tempo deste debate para
confabular a respeito de como otimizar a repressão, como melhor intervir em favelas
etc. Sofrível. Olhando por outro ponto de vista, a fala de Juarez havia sido bastante rica:
afinal, ele estava oferecendo às pessoas presentes, mesmo sem querer, um exemplo
prático daquilo que seria muito discutido naquela noite como resultado "negativo" do
filme, isto é: quando as pessoas que já tem este tipo de opinião (favorável a intervenções
militares), acabam encontrando no filme referenciais e legitimações estéticas. Acabam
usando o filme para justificar suas vontades belicistas. Tropa de Elite, com efeito, deu
de presente uma estética à repressão - e o aumento na procura pela caveira do BOPE,
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nos estúdios de tatuagens, é uma parte irrelevante disso, se levarmos em conta o deleite
que os editores de muitos periódicos como revista Veja tiveram, dedicando boas páginas
centrais para exaltar o Capitão Nascimento enquanto uma espécie de herói.
O próximo debatedor era o cineasta e professor de cinema Carlos Gerbase (a
saber, também ex-membro da excelente banda gaúcha Os Replicantes):
Carlos Gerbase (cineasta)
Gerbase abriu sua ótima fala anunciando que iria fazer uma análise do filme em
dois aspectos: primeiramente do ponto de vista cinematográfico, e logo após, do ponto
de vista “ético". Nos interessou principalmente o ponto de vista ético, é claro; mas em
sua fala Gerbase tratou de associar uma coisa à outra: a produção do filme, a construção
do personagem, tudo está (inevitavelmente) ligado aos pressupostos da direção (e do
roteirista Rodrigo Pimentel); por isso em muitos momentos foram-se construindo já
algumas questões ao roteirista ali presente, pautando o debate de maneira muito
interessante.
O cineasta lembra das críticas sobre partes do filme em que ele "peca pela
generalização", mas faz uma defesa do ponto de vista da produção, apontando que o
filme não tinha mesmo a proposta de ser reflexivo, já que isto desembocaria num ritmo
“lento, chato”. Para ele, o filme foi provocativo ao grande público principalmente por
ser um filme de ação. Este ritmo é o que "um filme precisa ter para atingir o grande
público" - "se o filme fosse um filme 'cabeça', acho que nós não estaríamos aqui hoje".
Quanto ao personagem principal, chamou a atenção à dramaturgia e à construção
do personagem Capitão Nascimento enquanto "um herói treinado para matar, mas
extremamente humano": ele está longe de ser um Charles Bronson, como lembrou
Gerbase. Ele “é o fodão do Bope”, mas têm síndrome do pânico quando entra na favela.
Este seria um ponto em favor do filme, com personagens mais verossímeis, humanos, o
que favoreceria uma identificação do público.
Ao falar sobre o roteiro, diz que ele consegue contrabalançar “esperança e
medo", trazendo ao filme elementos de suspense. O ritmo do filme é colocado sobre o
espectador. Estes aspectos de acordo com Gerbase foram justamente os que
funcionaram para “sacudir um debate”, na sociedade em geral. Afinal, o universo no
qual a história se desenrola é velho conhecido do cinema brasileiro: é o mesmo de
Cidade de Deus. Mas Cidade de Deus é feito a partir do ponto de vista das pessoas que
estão envolvidas na periferia, na pequena venda de drogas (assim como o documentário
Falcão). O filme Tropa de Elite teria pautado algo novo: “discutir a questão do tráfico
do ponto de vista de quem combate o tráfico, e mata traficantes”.
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A partir destes apontamentos, Gerbase colocou em pauta a questão ética,
lembrando que toda obra de arte sempre traz consigo discussões do âmbito da ética,
inegavelmente. Quando se trata de um filme, é realmente muito difícil separar certas
coisas, como “o que é o filme, e o que é a percepção sobre este filme”; “o que é o filme,
e qual é a maneira com a qual o filme foi vendido”; e “o que é que o filme vai
representar para um público X, e o que é que ele vai representar para um público Y”.
Então lembrou o exemplo de Leni Riefenstahl, cineasta que inaugurou a relação
estética X política no cinema, quando filmou alguns congressos do partido de Hitler,
bem como as olimpíadas que ocorreram em Berlim, nos idos de 1936. Leni, direta ou
indiretamente, conscientemente ou não, fez parte da construção da imagem que
acompanhou a ascenção de Hitler. Gerbase quis dizer que as discussões éticas às vezes
estão imbricadas com a discussão cinematográfica, e que elas vão além do filme, da
peça produzida. Disse que não estava exatamente querendo comparar os filmes de
Riefenstahl com Tropa de Elite em suas implicações éticas (embora, para nós, naquele
momento essa comparação parecesse oportuna).
Lembrou então das chamadas do cartaz. Existem duas: “Missão dada, missão
cumprida”, e “Uma guerra tem muitas versões. Esta é a verdadeira”. Sobre o
"missão dada, missão cumprida", coloca em questão justamente a ausência de diálogo
entre os efetivos da repressão, dentro da hierarquia militar. Na nossa opinião, a
desumanização do efetivo do BOPE, que é um pressuposto das ações militares de um
modo geral, adquirem um sentido específico numa guerra contraditória: numa visão
fechada, qualquer pessoa envolvida pode ser o bode expiatório do momento. Mas
Gerbase diz que não gostou principalmente da frase sobre "versão verdadeira",
principalmente porque o filme peca pela simplificação em várias cenas, e que isto é uma
coisa gritante. É uma frase que "tenta tornar o filme em algo que ele não é; (pois) ele
não é um retrato fiel sobre as implicações do tráfico". Não se trata de uma versão
verdadeira, mas sim de uma versão diferente daquelas já colocadas no cenário do
cinema brasileiro - a versão de quem está lá (na favela) "defendendo a sociedade",
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porque afinal de contas, favoráveis à guerra aos pobres ou não, "nós pagamos os
salários" do BOPE. Vale lembrar que a ética que gira em torno do ofício de efetivos
policiais já é velha conhecida dos antiproibicionistas, porque afinal, eles são obrigados a
cumprir uma lei esquizofrênica, inconstitucional.
Denúncias à parte, Gerbase estava falando mais sobre a simplificação que o
filme aborda, em algumas pontas, como com os políticos corruptos na mesa do bar ou
com o "pessoal das ONG’s", a idéia de corrupção é colocada ali sem nuances,
estereotipada ao extremo. Isto, aliado ao slogan de "versão verdadeira" sobre a Guerra
às Drogas, não teria como não pautar muitas das críticas feitas ao filme...
Rodrigo Pimentel (roteirista)
Rodrigo começou falando das impressões que o filme causou, e das críticas
sobre as implicações éticas. Após debater um pouco sobre o episódio das cópias piratas,
e de puxar algumas das coisas que Gerbase havia apontado (aproveitando para dizer que
o filme queria trazer, entre outras, a questão sobre uma "legalização das drogas"),
começou a construir sua (excelente) linha de defesa argumentativa. Inseriu Tropa de
Elite, junto dos documentários Notícias de uma Guerra Particular e Ônibus 174,
como parte de uma "interessante trilogia para se entender a realidade do Rio de
Janeiro e a violência urbana". Estes dois outros filmes, segundo Rodrigo,
"defenderiam", a ele e ao produtor Zé Padilha, "das acusações de fascistas" sobre os
produtores de Tropa de Elite. Para quem não assistiu nenhum dos outros dois filmes,
nós recomendamos. Mas de início, não colou: uma coisa é uma coisa, e outra coisa é
outra coisa; estávamos lá para debater Tropa de Elite e não qualquer outro filme da
dupla. Aliás, era justamente por saber o que essa dupla produziu antes de Tropa de Elite,
que uma pessoa de bom senso, na nossa opinião, deveria ficar intrigada ao assistir este
filme. Achamos que este debate contribuiu em muito para resolver tais intrigas.
Citou então alguns desdobramentos deste debate em nível nacional, como a
proposta de algumas pessoas para que o filme fosse censurado por fazer "apologia" ou
"incentivo à (idéia de) tortura". A resposta de Rodrigo a estas críticas, segundo o
próprio, teria sido a de indagar, aos que haviam defendido isso, se eles teriam torturado
alguém após assistir o filme. Ou seja, mais ou menos o que nós costumamos dizer em
resposta às pessoas que nos acusam de apologia ao uso de drogas: você foi fumar
maconha depois de olhar para esta camiseta? Rodrigo diz que isso é contradição, pois
segundo esta crítica, "para a massa o filme é ruim", mas para ela "que seria uma
intelectual", "o filme é bom". Esta crítica demonstraria uma incerteza, portanto, sobre o
que é que o filme significaria para algumas pessoas que se filiam contrários aos direitos
humanos (aquelas que acham que a solução é mesmo a guerra); portanto estas seriam
críticas "um tanto elitistas" ao filme, e que esta alusão à censura, por recortes de
público, seriam comparáveis aos movimentos ditatoriais de Ministérios da Cultura como
o de Mussolini.
Rodrigo reconhece que o filme peca pelo simplismo. Afinal, como é de se
esperar, um filme não pode mesmo tratar de todos os aspectos que levanta, sob o risco
de perder o foco. "Confesso: fomos simplistas na política, fomos simplistas na
universidade", "rotulamos boa parte dos universitários do Rio de Janeiro como
imbecis; que não são imbecis, com certeza". Disse que, em alguns debates que
ocorreram em universidades, as principais críticas eram sobre a simplificação do papel
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das ONG's, bem como das pessoas que usam drogas. Rodrigo cita a parte do filme em
que o Cap. Nascimento, "na ignorância dele", pega pelos cabelos um jovem
abordado com flagrante de droga e brada "você é o culpado de tudo isso aqui". Diz:
"É lógico que esta é uma visão muito simplista, porque o culpado por tudo aquilo é o
desemprego, a desigualdade social, corrupção policial, impunidade.. e aquele garoto
ali também tem a sua parcela de culpa - eu não sei se de 10, de 8, de 50 ou de 99%,
mas na visão simplista do personagem Capitão Nascimento, aquele garoto era o
culpado pela violência do Rio de Janeiro".
Sim, as fotos foram tiradas de um celular.
Sobre as pessoas que viram no filme um retrato fiel da realidade, o roteirista diz
que é conveniente que certas pessoas não achem o filme simplista - pelo contrário: é
normal achar completa uma visão com a qual já concordamos, e que é muitas vezes um
ponto de vista "conservador". Tropa de Elite é um filme dirigido para este público.
Como exemplo, Rodrigo citou a matéria da revista Veja, que diz algo como:
"finalmente, um filme que coloca todos nos seus devidos lugares: traficante é traficante,
viciado é criminoso e policial honesto é policial honesto". Isso é a função principal
deste filme, ao nosso ver: servir de termômetro para medição da cultura local sobre
compreensão da violência urbana. Vide o fenômeno da idolatria ao Capitão Nascimento,
que somente no Brasil poderia ser visto como um herói - pois para platéias americanas,
espanholas, inglesas ou francesas, segundo o roteirista, ele é identificado como
criminoso ou como psicopata. "No Rio de Janeiro, Brasil, uma enquete feita no dia
seguinte à Polícia Militar ter matado dezenove pessoas no Complexo do Alemão", disse
Rodrigo, com evidências de execução (chacina), "colocava 90% da população como
favorável às intervenções militares na favela".
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A corrupção policial surge com os policiais?
"Só neste ano (2007), temos 300 policiais presos no Rio por envolvimento com o
narcotráfico". A polícia do Rio de Janeiro é a que mais mata, e os índices de
criminalidade os que mais aumentam (em contraste com São Paulo, onde a polícia mata
cada vez menos e os índices vêm diminuindo). "Então, a polícia do Rio de Janeiro é
aquilo ali mesmo, e o filme talvez tenha aliviado um pouco". O mesmo valeria para a
truculência das ações, que segundo Pimentel, foram atenuadas se comparadas com a
realidade: "eu não mostrei no filme nenhuma operação policial onde se matou dezenove
pessoas", "então, o filme pega leve na questão da violência policial".
Como resposta às colocações do Gerbase, Pimentel diz que na minissérie
televisiva baseada no filme, ainda a ser rodada em 2008, a idéia será justamente
contornar estes pontos fracos; "ir aos bastidores", "sair um pouco da favela e ir pro
gabinete do chefe de polícia", "pro gabinete do deputado - porque eu vou dizer uma
coisa pra vocês: no governo Garotinho, por exemplo, todos os comandantes dos
batalhões da polícia do Rio de Janeiro - todos, os quarenta batalhões -, todos, com a
exceção do comandante do BOPE, eram indicados por deputados estaduais". O papo
então, segundo Rodrigo, era mais ou menos o seguinte:
Deputado: Coronel, o Sr. quer comandar o batalhão?
Coronel: Quero, sim senhor.
Deputado: Então. Seis mil por mês.
Isso em época de lançamento do livro Elite da Tropa. Após a CPI que trouxe
dados como estes, Rodrigo lembra que todos os candidatos à prefeitura do Rio de
Janeiro tiveram como ponto de campanha a "despolitização das polícias militar e civil"
e "proibição de que deputados da base do governo indicassem comandantes e
delegados". E porquê diabos um deputado estadual iria querer indicar um comandante?
Bem, "um deputado que quer um batalhão, só pode ser pra fazer coisa errada"; "pra
pegar dinheiro de roubo a bancos, dinheiro do narcotráfico, pra repassar pra
campanha".
Então, embora possa servir para pensar o cotidiano de batalhões em vários
estados brasileiros, o filme seria voltado para o universo da polícia do Rio de Janeiro,
motivo pelo qual algumas polícias militares de outros estados reagiram negativamente
ao assistir o filme. Já os policiais corruptos do Rio de Janeiro que teriam assistido o
filme, segundo Rodrigo, gostaram. Gostaram porque viam ali, na estrutura da
corrupção, que a corrupção que praticavam estava legitimada: "então os policiais viam
que se o deputado cobra do coronel , o coronel cobra do capitão, que me cobra, e o
soldado vai ter que cobrar de alguém". Mas Pimentel não menciona a prática deliberada
do alicate, como se diz aqui no sul, ou seja, a cobrança de parte dos lucros nas bocas de
fumo, de policiais para os ditos "traficantes", para manutenção de suas atividades.
Podemos perguntar: será que todos os policiais que visitam as bocas para pegar a
sua parte (e elas são visitadas cotidianamente), estariam praticando a extorsão como
mero resultado de pressões de comandantes, de deputados? Acreditamos que não
haveriam deputados suficientes para tanto. Por mais que confabulemos a respeito, dá pra
afirmar que a extorsão é com certeza uma prática tentadora. Como que descrevendo um
sintoma menos grave, Pimentel diz ser uma prática comum no Rio de Janeiro, policiais
pararem carros para pedir dinheiro.
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E a todas estas, o tráfico se realimenta. Aqui também não é diferente: a cada
boca que "estouram", lançando nos jornais as fotos de apreensões (e de agentes do
DENARC em poses heróicas), em pouquíssimo tempo já estarão ali outros soldados do
tráfico trabalhando. Assim, como diz o policial federal Francisco Tavares em seu ótimo
artigo a favor de uma legalização das drogas, "a polícia finge que previne e reprime o
tráfico, o judiciário finge que faz justiça, e todos vamos pra casa com a sensação do
dever cumprido."
Achávamos naquele ponto do debate que, ainda que tivesse exposto
problematizações interessantes e condizentes com o que esperávamos, Rodrigo Pimentel
não havia respondido às tais implicações éticas. Justamente pela qualidade do debate e
de sua fala, é que esperávamos uma maior sinceridade em assumir a proposta do projeto
deste filme. As críticas, mais ou menos brandas, de certa forma apontavam para a
questão: a quem serve a estética da repressão fornecida por Tropa de Elite?
Pois esta estética do BOPE pode servir, sim, aos antiproibicionistas, para
discutirmos a necessidade de novas políticas de drogas, não mais baseadas na
intervenção policialesca e na proibição. Talvez nós não estivéssemos preparados a uma
provocação tão sofisticada como a do filme, que coloca de certa forma os soldados dos
batalhões lado a lado com os soldados do tráfico, naquilo que eles recebem de uma
violência estrutural, prevista em lei, diante da qual um indivíduo isolado pouco poderá
intervir. Aí, se insere a importância do surgimento de grupos antiproibicionistas no
Brasil, em suas várias vias de atuação e debates, bem como das Marchas da
Maconha, que são resultado direto da organização política de pessoas que usam
drogas. Estes grupos, em toda sua diversidade, estão comunicando à sociedade
brasileira que há muito mais a perceber sobre usos de drogas do que aquilo que os
arautos da repressão costumam comunicar.
Políticas de Segurança, políticas de drogas
Rodrigo ressalta: o Caveirão é posterior ao filme. O filme se passa em 1997, e o
blindado só entrou para os batalhões em 2002, governo de Benedita da Silva (PT). "Em
primeiro lugar, eu sou contra o símbolo do caveirão. Sou contra a caveira, sou contra
aquela cor preta, acho que poderia ser outra. Mas todo batalhão de operações
especiais têm um veículo blindado. Los Angeles tem, Nova Iorque tem. Mas eu tenho
que dizer aqui que, depois que o Caveirão começou a ser usado, diminuiu o número de
pessoas mortas entre os batalhões que o usavam, porque diminui a letalidade do
traficante, que não atira no veículo, diminui a letalidade da polícia, que não precisa
dar 550 tiros, dá só 10, e diminui o número de balas perdidas. As intervenções estão
matando menos, policiais estão morrendo menos. Nas invasões às favelas - e o termo é
militar mesmo, porque é uma guerra, então se invade porque é vista como território do
inimigo -, ou para contenção de conflitos como bloqueio de estradas por cinqüenta,
sessenta pessoas armadas, o Caveirão é essencial. O BOPE é essencial. Mas o que eu
sou mais contra mesmo é uma política de segurança pública que só se mantenha
tendo como foco a invasão a favelas, morte de jovens... Isso é que eu acho errado."
Sobre a mentalidade gerada a partir destas invasões, é o que já comentamos
aqui: as bocas de fumo não desaparecem após uma "invasão bem-sucedida". Rodrigo
diz que na época em que visitava o Vigário Geral quase diariamente, como Capitão do
BOPE, consultou seu comandante para que não mais fizessem nenhuma ação por lá,
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depois que tomou conhecimento de que havia uma lista de 480 jovens, à disposição do
chefe do tráfico naquele local, à espera para serem soldados na venda de drogas. Isso ele
descobriu ao ler uma entrevista do traficante Flávio Negão ao jornalista Zuenir
Ventura, para o livro Cidade Partida: "Zuenir, eu sou capitalista. Eu não posso
empregar sessenta pessoas porque senão minha firma quebra. Então, eu só emprego
dezoito". Quatrocentos e oitenta jovens estavam à espera. Assim que saíam, os presos
ou os mortos, outros entravam. E o que é mais importante: entravam no mesmo lugar.
"Nas nossas operações em Vigário Geral, quando eram boas, a gente matava pelo
menos uma pessoa; a contagem de corpos.. porque é assim mesmo viu, numa linguagem
de guerra a gente fala em contagem de corpos. Então depois que eu vi a lista eu falei
'não vou mais, pô'...".
O tráfico se reproduz, e isso não se dá por causa de falhas na aplicação das
políticas de segurança adotadas: se dá por causa das próprias políticas. É uma falha
estrutural. Quando fala sobre o documentário Falcões, o roteirista de Tropa de Elite
lembra que, entrevistando os pequenos vendedores de drogas de todo o Brasil, 20% dos
mesmos ingressavam no tráfico para poder alimentar as famílias com as quais moravam,
e os outros 80%, pela sedução da compra do tênis da moda, do celular - a sedução de
uma sociedade de consumo. Este consumo em específico, para o roteirista, está ligado a
uma necessidade de auto-estima: "Eles sobrevivem sem isso. Mas eles querem ter isso".
São as brechas sociais nas quais a ilegalidade constitui parte importante de seu
território. Importante dizer, também, que existem mais motivos para o ingresso no
tráfico, para além da situação de pobreza ou desigualdade social. Como aponta a
antropóloga Alba Zaluar, relacionar pobreza com violência costuma ser um dos
primeiros erros de alguns pesquisadores da violência urbana.
"Então, hoje, o que funciona para combater a violência em grandes zonas
urbanas é a inserção de jovens em políticas sociais.. sejam recreativas, esportivas... é o
que funciona. O que é que tá sendo feito em São Paulo, na Colômbia? É isso. Na
Colômbia, têm bibliotecas... naquela favela do teleférico, eles têm vinte e cinco times de
basquete, patrocinados pela prefeitura local. É isso o que funciona. O combate tem que
existir? Eventualmente, senão o Estado sequer chega lá. Mas o combate não funciona.
O que funciona são essas políticas. O policial não é burro, ele sabe disso. Mas o
policial é só um elemento executor da política de segurança pública."
Talvez, aqui Rodrigo tenha tocado em um termo incorreto, pois não se trataria
tanto de uma "maior" ou "menor" inteligência. O que nos importa dizer aqui é que
nem todos os policiais são meros "executores da lei", pois na prática traduzem as
leis de acordo com suas próprias moralidades e visões de mundo. Alguns
transmutam leis em rituais de humilhação, concebendo às suas fardas um poder que se
confunde entre o poder de legisladores e executores. Podemos dizer que há uma questão
estrutural, da condição a que estes agentes executores (policiais) são colocados diante
da sociedade que cobra a fiscalização de leis impraticáveis - mas isto não livra a classe
de uma parcela de culpa sobre a guerra - não sabemos se de 10, de 8, de 50 ou de 99%.
Mas voltemos ao debate. Rodrigo traz mais uma vez o contexo carioca:
"Independente da orientação política do estado do Rio de Janeiro, seja PMDB, seja PT
ou PDT, há vinte anos a gente faz a mesma coisa: invadir favelas e matar traficantes. A
diferença esteve no governo Brizola, que construiu muitas escolas e proibiu a polícia de
entrar em favela". Rodrigo diz que após o governo de Brizola, houve uma sucessão de
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governadores oriundos de partidos considerados de 'esquerda' e 'direita', todos eles com
propostas para a área de segurança pública pautadas na defesa dos Direitos Humanos,
contando com acessória de antropólogos (caso de Benedita da Silva, que contava com
Luiz Eduardo Soares), mas mesmo assim, houve como que uma sedução destes gestores
por discursos que priorizavam a intervenção militar, o enfrentamento, ao invés da
inclusão social.
Comparando com exemplos como os de Nova Iorque, com a tal política de
Tolerância Zero, ele ressaltou que o grande foco não eram as intervenções policiais.
Caminhões com pistas de skate eram transportados à noite para as periferias da cidade.
Onde os caminhões eram colocados, onde as festas eram promovidas na periferia, com o
dinheiro da prefeitura, os índices de homicídio iam a zero. Mas o que chega ao país (ou
melhor, o que a grande mídia quer enxergar) sobre a Tolerância Zero de Nova Iorque é
tão somente a imagem de uma polícia ostensiva. E, é claro, sempre é bom lembrar que
esta política não acabou com o comércio ou uso de drogas tornadas ilícitas em Nova
Iorque. Somente sofisticaram-se as redes.
Perguntas e respostas (debate final)
De início, uma questão interessante: a medicalização no efetivo do BOPE.
Rodrigo responde que muitos policiais tomavam boletas mesmo (ele próprio usou por
alguns meses); sendo que os que tomam regularmente medicamentos prescritos ou
consultam a Psiquiatria recebem o apelido de "tarja preta". Há um estigma aí, que
associa a masculinidade exaltada nos treinamentos, e que acaba resultando em repulsas
à procura de assistência psicológica ou psiquiátrica. Em outras palavras, quanto maior a
idéia de macheza, maior a vergonha de pedir conselhos a um trabalhador da Saúde. Os
pesadelos recorrentes no filme são fatos do cotidiano do efetivo (não só do BOPE); e
geralmente não são coisas compartilhadas entre os soldados. Os suicídios entre policiais
no Rio de Janeiro estão acima da média em nível nacional. Existem dois tipos de
suicídio relacionados a este sofrimento psíquico: o suicídio nos alojamentos do quartel
ou na casa do policial, e o suicídio durante o combate. "Eu tenho certeza que o tenente
Neto, esse personagem que na verdade foi inspirado num tenente chamado Vega, que
era um colega do batalhão; eu tenho absoluta certeza que ele cometeu suicídio". "Em
São Paulo, um policial que mata alguém é retirado durante sessenta dias, no Rio de
Janeiro fizeram uma proposta dessas e.. enfim, se fizessem isso iria ficar sem
policiamento, porque geralmente quando matam pessoas é uma equipe, cinco pessoas,
você iria ter aí sete ou oito mil policiais afastados".
Uma outra pergunta foi feita sobre a classificação do filme para o público
(restrição por idade). Mais uma vez pensando na realidade do Rio de Janeiro, Rodrigo
respondeu citando uma pesquisa focada em crianças na faixa de dez, doze anos. Grande
maioria delas responderam "sim" à pergunta "você já viu um cadáver?". Rodrigo quis
dizer que a realidade que estas populações vivenciam é às vezes muito pior do que
aquela mostrada no filme; que crianças de dez ou doze anos poderiam sim, ver o filme
sem problemas. "Com certeza eles fariam uma dissociação, mas ao menos entenderiam
o universo do filme. Talvez aqui, mostrar para sua filha no Rio Grande do Sul, talvez
choque ela. Mas para uma criança do Rio de Janeiro..."
Sobre os colegas do BOPE e a permanência no batalhão, Rodrigo aproveita para
dizer que muitos capitães de sua época acabaram migrando para o estudo em Ciências
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Sociais (incluindo ele próprio, que fez mestrado em sociologia urbana). "A totalidade
dos policiais não bebiam nem fumavam". "Maioria deles passaram por concursos
públicos, mas como forma de fuga", "ninguém suportou por mais de dez anos". "80%
são divorciados". Disse que uma boa política de segurança pública seria proibir a
permanência no BOPE por mais de cinco anos. Todos têm curso exterior; "o BOPE é
possivelmente o melhor batalhão para intervenções urbanas do mundo, e digo isso
assim, não é que nós tenhamos que nos vangloriar". "Mas aquela coisa que pode
parecer boba, da caveira, do desenho da caveira e da faca, o fardamento, as músicas,
os ritos de passagem, aquilo lá é o BOPE. Se tirarem aquilo, o BOPE acaba. Aquilo é a
blindagem do BOPE contra a corrupção, porque lá o centro de todo treinamento é a
auto estima do policial, é o orgulho, e isso funciona como uma blindagem para a
corrupção. Eu já vi gente largar outros empregos pra trabalhar no BOPE e ganhar
muito menos, eu já vi gente largar casamento para permanecer no BOPE. Então isso,
por mais louco que possa parecer, a gente não pode tirar. Se tirar isso, o BOPE
acaba".
Uma pergunta idiota foi feita. Aliás, várias. Gente perguntando sobre tráfico de
órgãos, coisas inacreditáveis, surreais. Mas Rodrigo acabou respondendo coisas
diferentes daquelas que haviam sido perguntadas, para o bem de nossos ouvidos.
Discorreu durante um bom tempo sobre a impunidade da violência ser um mandato
policial, ou seja, um documento que ninguém vê mas que está sendo avaliado e
assinado pela sociedade. "Policiais têm permissão para matar, são inocentados pelos
tribunais e a sociedade acha tudo correto". "Essa mentalidade já está infelizmente
influenciando nossos policiais, e perdurará por pelo menos vinte anos, mais pessoas
que surgirão achando que a saída é a truculência. E não é. Talvez por
desconhecimento, talvez por não conseguir enxergar nada além de outras
possibilidades..." Achamos que faltou aí, talvez, uma pergunta sobre o papel da grande
mídia na adoção desta mentalidade de truculência, na promoção de uma "sociedade
nervosa", para usar a descrição de Rodrigo sobre a cidade do Rio de Janeiro (e que,
sabemos, se aplica a muitas outras).
Carlos Gerbase aproveitou para questionar: com toda esta clareza no
posicionamento ético do roteirista, porque é que não se pensou em ter, no filme, uma
passagem de abertura assim como aquela que existe no livro Elite da Tropa? No livro, o
prefácio prepara o leitor, contextualiza para poder entender o ponto de vista daquele
debate. No filme, as primeiras cenas já são de intervenção, de combate, e ainda
favorecendo uma identificação do capitão com o público. Porquê não se pensou nisso?
A Dra. Olga também aproveitou para dizer que havia pensado que o filme criticava a
violência policial, mas quando assistiu ao filme, julgou que ele naturalizava essa
violência. "Estou maravilhada de ver o que o Pimentel está nos dizendo aqui
claramente sobre a violência policial. O filme está obviamente mostrando que aquilo
ali é um absurdo, aquela tortura. Mas, será que nós estamos tão acostumados com a
violência que aquilo parece normal?". Gerbase arrematou: "Pimentel, mas a reação que
nós, que eu e a Olga temos aqui, não é a reação que a massa tem. O que você acha?".
Pimentel contou algo que Zé Padilha havia dito a ele: "Este filme deveria vir
acompanhado de uma bula". "A impressão que o início do filme passa, com aquela
coisa toda, de os fins justificam os meios, e aquela superposição da caveira piscando,
ali foi avassalador. Aí o filme parece um filme pró-violência, e gente, eu juro por
deus, ele não é. A gente errou no dedo. A gente errou no dedo".
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Este erro têm surtido efeitos concretos. Mesmo assumindo que a corrupção já
parte disso, e que a apologia e o incentivo às intervenções de guerra são questões
estruturais; mesmo levando em conta que esta apologia à truculência, cometida por
revistas como a Veja e jornais como Zero Hora, estão além do caráter de um ou outro
policial, sabemos que, ultimamente, mesmo em Porto Alegre a estética do Tropa de
Elite têm pautado a construção de uma certa identidade de grupo, entre os
policiais que "trabalham" na repressão.
policiamento ostensivo na beira do rio Guaíba: cinco brigadianos (e quatro cavalos) sendo mantidos pelo
contribuinte para cumprir uma lei medieval, ineficaz e estúpida.
Temos recebido muitos relatos de intervenções e operações contando com
práticas de humilhação, agressões verbais e físicas, tortura e descumprimento da lei:
agentes abordam pessoas que usam drogas, mas não fazem o Termo Circunstanciado na
hora e no local do flagrante, como a lei determina que seja feito. Ao invés disso, estas
operações têm tido como desfecho pessoas sendo algemadas, tratadas com brutalidade e
levadas à delegacia (o que a lei não preconiza), muitas (não sabendo se defender ou não
vendo onde denunciar), caindo na interpretação como traficantes. A todas estas, não é
raro observar uma equipe de reportagem da RBS registrando tais operações,
naturalizando a violência como algo desejável, para produzir as notícias que
funcionarão como propaganda pró-guerra, e que alimentarão esta mesma idéia "fascista"
entre a população; fomentando um pânico moral que resultará na cobrança por mais
repressão, e no entendimento destas alternativas como sendo as únicas políticas
possíveis. É como se os editores praticamente assinassem e determinassem Ordens de
Serviço para os brigadianos e agentes do DENARC em geral - da mesma forma que
fizeram em 2006, quando produziram a criminalização da Marcha da Maconha. Na
capital carioca, segundo o próprio Rodrigo já há casos de reportagens que acompanham
as execuções através de fotos quadro-a-quadro: se vê o "traficante" deitando fuzil no
chão; logo após, ele está desarmado e na outra foto ele já está morto. O que faz com
que jornais vejam nisso imagens de "interesse público"? Hoje, parece ser impossível
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dissociar esta truculência crescente entre os "elementos executores" da lei, da estética
fornecida pelo filme Tropa de Elite - e são as próprias pessoas abordadas por estes tipos
de policiais que o dizem.
Trata-se, porém, muito mais de evidenciar o crescente incentivo às práticas
violentas como sendo soluções viáveis, do que meramente culpar o filme pela forma que
ele está sendo interpretado. A repressão é anterior ao filme, e a apologia diária à
violência nas páginas policiais é muito mais abrangente do que a apologia que teria sido
cometida por Tropa de Elite. Cabe a nós, que não concordamos com o viés da punição e
da tortura (em políticas que deveriam ser de acolhimento e de inclusão social),
ampliarmos o foco de nossas críticas, questionando nestes debates o surgimento dos
defensores da violência e a eficácia de suas propostas, bem como testar sua capacidade
de ir além da mera vontade de julgar e punir.
Futuros debates para 2008:
Para a série televisiva, que terá doze episódios e irá ao ar provavelmente no mês
de Outubro deste ano, Rodrigo promete que haverá uma dedicação especial à cada uma
destas temáticas que o filme sugere, agora podendo ir mais a fundo. O Capitão
Nascimento, dentro deste universo, já terá se desiludido com o batalhão, se tornando um
burocrata da Segurança Pública (trabalhando em uma Secretaria de Segurança Pública).
A série se passará dez anos após o contexto do filme Tropa de Elite, e como o roteirista
bem observa, "o mais interessante disso tudo vai ser notar que, em dez anos, nada
mudou no Rio de Janeiro".
Princípio Ativo
por uma nova política de drogas.
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Tropa de Elite: uma (auto) crítica antiproibicionista