19/09/2005 Koellreutter ressuscita, um dias após a morte, no Festival Cultura Parece mentira, mas o músico alemão brasileiro japonês indiano baiano carioca e paulista que acompanhou a música brasileira durante grande parte do século 20 morreu na terça-feira passada. Na verdade, já o tínhamos perdido há 4 anos para o mal de Alzheimer, quando sua empregada há 28, a paraibana Áurea Trajano da Silva, ganhou outro filhinho, como ela dizia. Entretanto, a exemplo do que escreveu Lya Luft quando da morte de sua mãe (que também partira antes da morte, vítima da mesma doença), enquanto o corpo de Koellreutter estava por aqui, nós, filhos da vanguarda, tínhamos a ilusão do pai vivo. Koellreutter morreu. Fui jurado do Festival Cultura que acabou na quarta-feira com a vitória da canção "Contabilidade". Gilberto Gil, astro e ministro, aplaudido de pé no início do programa, foi impedido de discursar ao final, na entrega do prêmio de primeiro lugar. O resultado provocou a maior vaia que já presenciei. Maior do que a que a vitória de Arrigo Barnabé recebeu também num Festival da TV Cultura: o público, então, dividira-se entre vaias e aplausos, o que é mais consagrador do que apenas aplausos para um artista de vanguarda. Eu era um dos vocalistas da banda de Arrigo, que emprega em suas composições a técnica de vanguarda inventada por Schoenberg, o tal dodecafonismo. Foi Koellreutter quem a introduziu no Brasil nacionalista de Villa-Lobos. Tanto nacionalismo como dodecafonismo eram vertentes da vanguarda européia nos primeiros 70 anos do século 20. No Brasil, foram inimigos mortais. Koellreutter morreu. Estudei em diversas ocasiões com K. Acostumei-me a anotar o seu nome apenas com a inicial. Não houve outro K na minha vida. Ele foi um dos meus professores mais importantes e queridos. A primeira vez, num festival de férias em Petrópolis. Com mais ou menos 18 anos, escrevi para K solicitando uma bolsa de estudos pela razão óbvia de não poder pagar a taxa do festival. Numa carta confessional, expus o que acreditava serem minhas qualidades como compositor e minhas deficiências como músico. A concessão da bolsa foi uma das minhas alegrias de estudante. Com o tempo, descobri que ajudar músicos jovens era uma das características do professor. Koellreutter morreu. Uma vez, fomos juntos de ônibus para o festival de férias de Campos do Jordão. Perguntei-lhe, durante a viagem, porque havia finalmente se radicado no Brasil. "Porque o povo é gentil", respondeu. Ele experimentou minha "gentileza" numa aula em que lhe apontei sua vaidade. Surpreso, disse humildemente que nunca se vira dessa maneira, mas que valeria a pena pensar no assunto. Em outra oportunidade, manifestei nojo por um motivo musical que eu mesmo compusera, por seu caráter popular. Na época, meus ideais estéticos estavam muito mais impregnados pela vanguarda do que estão Koellreutter morreu. Uma vez, fomos juntos de ônibus para o festival de férias de Campos do Jordão. Perguntei-lhe, durante a viagem, porque havia finalmente se radicado no Brasil. "Porque o povo é gentil", respondeu. Ele experimentou minha "gentileza" numa aula em que lhe apontei sua vaidade. Surpreso, disse humildemente que nunca se vira dessa maneira, mas que valeria a pena pensar no assunto. Em outra oportunidade, manifestei nojo por um motivo musical que eu mesmo compusera, por seu caráter popular. Na época, meus ideais estéticos estavam muito mais impregnados pela vanguarda do que estão hoje. K disse que gostava do motivo justamente pelo sabor popular. Econômico nos elogios, ele declarava abertamente quando considerava um aluno talentoso. Em algumas poucas ocasiões, usufruí da segurança fundamental para um jovem iniciante em qualquer área profissional: o apoio e a generosidade de um mestre admirado pelo aluno. Koellreutter morreu. O Festival Cultura teve um júri paulista, com apenas dois cariocas durante as eliminatórias e semifinais, e um na final. São Paulo foi a cidade que mais absorveu a vanguarda européia. A Vanguarda Paulistana é ... daqui. A música que conquistou o terceiro lugar era carioca. As duas primeiras, tipicamente paulistas e crias da vanguarda: "Achou", de Dante Ozzetti e Luiz Tatit (do grupo Rumo), a preferida do público, e "Contabilidade", de Danilo Moraes e Ricardo Teperman, que não o empolgou. Danilo é filho de Wandi Doratiotto, do grupo Premê. Rumo e Premê foram expoentes da Vanguarda Paulistana. Wandi trabalha na TV Cultura como apresentador. Depois do resultado, fãs de "Achou" gritaram marmelada. Eu sou parceiro de Luiz Tatit em uma canção. Durante a votação do júri, nós não pensávamos em quem eram os autores, de onde eram, se o resultado agradaria o público, se ajudaria ou comprometeria o futuro do festival, como programa de TV. A discussão era sobre o mérito artístico, embora este seja um tema praticamente impossível de se discutir. É curioso e interessante, nesses tempos de corrupções impensáveis, que se pense que uma decisão absolutamente límpida pudesse ser mais uma maracutaia. É bom que Jobim, o juiz, conceda direito de defesa plena aos petistas: pior do que a dúvida do crime impune é a do castigo injusto. A decisão do júri foi resultado de uma discussão acalorada, franca e democrática. K teria orgulho. Koellreutter morreu. Entre discussões, votamos três vezes e em todas deu "Contabilidade", a música mais inovadora do festival, com seu inabitual compasso 5/4 soando leve e espontâneo, o dueto vocal estranhamente caipira e a letra esquisita. Não deu samba, maxixe, valsa brasileira, maracatu, baião ou qualquer outro ritmo nacional. Mesmo sem querer, acertamos em relação ao subtítulo do festival, "a nova música do Brasil". Esse subtítulo ... antiquado por ser vanguardista: um dos organizadores contou-me que um jovem na platéia conjeturou que o subtítulo tivesse sido criado por um velho. Eu, que também não o aprovara, propus que trocassem, se houver um Festival Cultura número dois, para "a verdadeira música do Brasil", uma provocação que sugere que a música que toca no rádio e na TV não seja a verdadeira música brasileira. Quando o resultado começou a aparecer na votação, comentei que ele fazia jus à "nova música de São Paulo", errando o subtítulo. Meu ato falho foi prontamente apontado pelo único carioca no júri, o crítico de O Globo, Hugo Sukman. Cometer atos falhos reveladores não é privilégio de José "eu sou Inocêncio" Dirceu. Achei graça. K também acharia: era uma típica situação em que seu humor se manifestaria. Vejo e ouço sua risada. Koellreutter morreu. Conheci Théo de Barros, de "Disparada", e a cantora Joyce e, além de Quando o resultado começou a aparecer na votação, comentei que ele fazia jus à "nova música de São Paulo", errando o subtítulo. Meu ato falho foi prontamente apontado pelo único carioca no júri, o crítico de O Globo, Hugo Sukman. Cometer atos falhos reveladores não é privilégio de José "eu sou Inocêncio" Dirceu. Achei graça. K também acharia: era uma típica situação em que seu humor se manifestaria. Vejo e ouço sua risada. Koellreutter morreu. Conheci Théo de Barros, de "Disparada", e a cantora Joyce e, além de Sukman, outros escritores e críticos como Carlos Calado, Ricardo Alexandre, Mauro Dias, Daniel Piza e Pedro Alexandre Sanchez, todos jurados nas sete semanas do festival. Gente direta e bem humorada. K agradecia a seus críticos e até a seus inimigos. Dizia que o estimulavam a ser melhor. Ao final, quando a vaia rebentou, um dos organizadores, revoltado por termos frustrado o público, o que ele previra, atacou-nos: "essa decisão foi um vômito intelectualóide!" O pacífico Pedro Alexandre Sanchez o conteve com firmeza: "respeite este júri". K teria saboreado todo o conflito. Principalmente a vaia. Koellreutter morreu. Tranqüilo com a decisão, restava-me uma preocupação que, na verdade, não tinha a ver comigo: se teria sido correto aceitar a inscrição de um filho de funcionário da Cultura. Solano Ribeiro, o pai dos festivais da Record, respondeu que Chico, Caetano, Gil, Nara, Edu etc. eram todos funcionários da TV Record. Solano, que mantém uns olhos brilhantes e a voz jovem, é também o pai do Festival Cultura. Mas na final, o DNA do júri era de vanguarda: além de mim, estavam Carlos Rennó e Eduardo Gudin (dois outros parceiros de Arrigo), Lívio Tragtenberg, Wilson Sukorski, Jean Garfunkel e ... um Pignatari (Dante) e um Duprat (Rudá)! A vanguarda européia acabou na década de 70. Hoje eu não brigaria com meu motivo popular. Gostei de "Achou" e, entre outras, de "Guri de Acampamento" uma melodramática canção "sertaneja" riograndense do sul (e meio petista, meio MST), pela qual briguei numa semifinal ao lado de outros filhos da vanguarda. Perdemos. Na final, alguns de nós quiseram o empate de "Contabilidade" e "Achou" no primeiro lugar. Também não colou. O letrista de "Achou", Luiz Tatit, continua moderno, mas gosta da fluência das melodias que falam. E põe suas letras preciosas e precisas em melodias simples e bem arquitetadas, como essa de Dante Ozzetti. A vanguarda só-cerebral morreu. Koellreutter não morreu. Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros. E-mail: [email protected]