Tiago Tondinelli. Algumas considerações sobre o princípio da individuação.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA INDIVIDUAÇÃO
SOME CONSIDERATIONS ABOUT THE PRINCIPLE OF THE INDIVIDUATION
Tiago Tondinelli*
RESUMO:
O texto trata das idéias de Duns Scotus, quando estuda a fundação da
individualidade humana. Este pensador seguiu algumas idéias de Santo Tomás de
Aquino, mas foi contra o tomismo, principalmente, devido à consideração unívoca
da matéria como determinante do ser individual. Duns propôs que havia elementos
simples, as formalidades, responsáveis pelas possibilidades de uma pessoa
durante sua vida: esses elementos são os realmente responsáveis pela
individualidade, e essa afirmação determina que uma pessoa não é criada pelo
fundamento material, nem por entidades formais.
PALAVRAS-CHAVE: Duns Scotus; individualidade; possibilidades.
ABSTRACT:
The text is about the principal ideas of Duns Scotus, when he studies the
foundation of the individuality. This thinker followed some ideas of Saint Thomas,
but he was against the Thomism, principally, because of the univocal consideration
of the material as the determination of the individual being. Duns purposed that
there are simple elements, called “formalitates”, responsible by the possibilities of a
person during its life: these elements are the real responsibles for the individuality,
and this affirmation determines that a person is neither created by the material
foundation, nor by the formal entities.
KEY-WORDS: Duns Scotus; individuality; possibilities.
O Princípio da Individuação não é somente um tema específico de debate
que ocorrera em um período de tempo, a saber, na Idade Média, ao contrário, este
tema invade a própria noção de entendimento da relação existencial entre o
homem e o meio no qual vive bem como suas perspectivas para o futuro.
*
Professor de Direito da UNIFIL e da Faculdade Dom Bosco; Advogado; Doutor em Filosofia Medieval,
Mestre em Letras e Especialista em Filosofia Moderna.
Revista Eletrônica de Ciências Empresariais. Ano 4, número 07, Julho a Dezembro de 2010. ISSN:
1983-0599
Tiago Tondinelli. Algumas considerações sobre o princípio da individuação.
A relação, portanto, do tema “individuação” é de extrema importância para
a concepção do homem medieval e também do sujeito moderno em vários
sentidos.
A dificuldade de exposição quantitativa do tema leva à necessidade de se
estabelecer um corte epistemológico acerca dos debatedores em especial. Para
isso, portanto, irei, neste escrito, referir-me a algumas noções de Duns Scotus
acerca da individuação o que contribuirá, também, para o entendimento do debate
que o mesmo travara com o pensamento árabe e com a perspectiva tomista sobre
tal tema.
A querela inicia-se, certamente, com Aristóteles que, na Metafísica, deixou
em aberto a questão da individuação ora atribuindo ao conceito de forma a
responsabilidade da individuação ora tendendo para um certo valor especial à
matéria no processo de compreensão acidental do indivíduo.
É certo, contudo, que o Estagirita nos deixou uma noção de substância
que é composta pelos chamados “seis caracteres clássicos” que, de certa forma,
foram oriundos da noção pitagórica de substância: 1 - non esse in subjecto, 2 suspicere contrarium, 3 -
non susceptivus maius et minus,
4 - non habere
contrarium, 5 - determinare hoc aliquod e 6 – univoce praedicare.
A primeira característica refere-se ao aspecto essencial da substância no
sentido de que ela não é um elemento “posto” dentro (in) do sujeito, mas, ao
contrário, é elemento fundamental para o sentido existencial particular; a segunda
mostra a característica de toda substância de poder ser sujeito de contrários, ou
seja, um homem pode ser alto ou baixo, grande ou pequeno, feio o bonito etc; a
terceira mostra a inexistência de qualquer gradação na substância; a quarta nos
conduz para a não presença de contrários na estrutura ‘singular’ (singulariter et
simpliciter) da substância; a quinta é a característica nuclear da substância, ou
seja, ser o predicado suficiente para a determinação de certo elemento em
particular; a sexta leva-nos à noção de que a substância é unívoca, a saber, seu
enunciado pode ser dado, quando universal, a vários elementos diferentes sem,
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com isso, gerar repugnância (como ocorre, por exemplo, com “homem” que estaria
substancialmente em vários indivíduos comumente).
Duns Scotus estudará, em especial, essas duas últimas características da
substância para tentar solver o problema da individuação, a saber, tratará da
singularidade da substância no sentido de definir determinado indivíduo
(determinare hoc aliquod) e, também, a aparente característica unívoca da
substância quando tomada no sentido comum ou universal.
Sobre este tema, os textos principais serão, certamente, a segunda parte
da Ordinatio (dist. 3) e o Comentário de Scotus à Metafísica de Aristóteles (livro
sétimo).
Segundo Peter King, Sondag, Richard Cross e Anthony Voss, Scotus
parte da dupla consideração do que chama de “instantes de natureza”. Este tema
fora, posteriormente, atacado por Guilherme de Ockham em sua teoria nominalista
e, neste sentido, fora justamente posto em xeque pela mentalidade franciscana de
tendência nominal já na decadência da Escolástica.
Apesar de Ulmann ter dito que a decadência do pensamento medieval e a
ascensão do Iluminismo teriam sido oriundas diretamente do nominalismo antiscotista de Ockham e outros, é certo que as críticas apresentadas principalmente
quanto ao principio da individuação pela mentalidade franciscana não tinham
como principal intuito dar asas para quaisquer movimentos anti-cristãos e de
caráter palaciano como fora infelizmente ocorrer pouco depois.
Scotus encontra-se diante da concepção tomista de individuação
diretamente oriunda de algumas propostas de Avicena acerca do tema.
Antes de adentrarmos na Ordinatio e no Comentário de Scotus à
Metafísica de Aristóteles, é certo que devamos apresentar singelamente estas
duas tendências que influenciaram o Doutor Sutil.
Avicena, em sua Lógica, ao entrar no ocidente no século XIII a partir da
Escola de Toledo bem como do “caminho aberto” gerado pela obra Fons Vitae e
também pelo Liber de Causis, tinha uma concepção que Richard Cross chama
veladamente de “médio realismo” no sentido de que, para ele, a natureza teria um
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ser essencial independente e que ao somar-se com certas contingências ensejaria
o aparecimento de conceitos universais específicos ou de elementos individuais
próprios.
Em outras palavras, seguindo ainda as explicações dadas por Richard
Cross sobre este tema, o ser da natureza diante de acidentes externos tornar-se ia
“ser individual” e, por outro lado, quando apreendido pelo intelecto tonar-se-ia
“universal”. Neste sentido, o universal seria o somatório indispensável entre uma
forma essencial e uma certa acidentalidade intelectual que “criaria o seu ser
universal” na mente humana.
Luís Alberto de Boni nos lembra que esta concepção de universal via
Avicena não é necessariamente de origem aristotélica como aparentemente a
relação ‘físico-conceitual’ nos mostraria, mas, diferente disso, é uma posição
aristotélica neoplatonizada já que a leitura aristotélica feita pelo árabe é
posicionada claramente pelo viés de Alexandre de Afrodisia bem como pela noção
de hierarquia procliana que culminou no ser Supremo gerador de tudo e na noção
de emanação e retorno.
Santo Tomás de Aquino, tomando uma perspectiva do Aristóteles
traduzido por Guilherme de Moerbecke, irá, logo depois, propor a sua noção de
individuação já mais centrada no conceito nominalista com fundamento claro no
processo de abstracção defendido pelo Estagirita.
Contudo, o Doutor Angélico, criando as terminologias: “ex in-rem”, “ex
ante-rem” e “ex post-rem”, tentará justificar a individuação como sendo um
procedimento
dependente
exclusivamente
da
relação
forma-matéria
e
“particularmente” da matéria especificamente quantificada (materia signata).
Para Tomás, ao dizermos “homem” não estamos tomando como ponto de
inflexão uma entidade necessariamente real, mas, certamente, estamos falando
de um conceito criado pela mente humana, mas que, de certa forma, detém uma
realidade extra-mental (no sentido platônico) já que é, em última instância, criação
da mente divina. Assim, um conceito universal pelo ponto de vista do indivíduo
que o “concebe” (ex parte) é “post rem”, pois, após a observação do grupo, o
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sujeito vem a estabelecê-lo em sua mente. Contudo, se, por um lado, os
universais são “post rem” (após a coisa) é certo que os mesmos são concebidos
como oriundos da mente divina e, pelo ponto de vista do Criador (ex parte), são
justamente conceitos “ante rem”, já que, antes de existirem, já tinham sido, como
idéias, pensados por Deus.
Esta diferenciação levará o Doutor Angélico a discutir a questão da
individuação. Assim, na Suma Teológica, Santo Tomás nos leva à posição de que
todos os homens seriam oriundos de uma mesma forma e, tomados pelo ponto de
vista material (ex materia), acabariam por configurarem-se como indivíduos.
Por esta perspectiva, a diferença entre os indivíduos seria meramente
constituída pela “quantidade” da matéria que lhe coube, no sentido de que a
matéria “assinalada” lhe daria a correspondência específica dependentemente da
forma comum anterior.
Uma análise mais apurada desta noção tomista de individuação leva,
certamente, ao que podemos chamar de crise de suficiência. Se, por um lado, a
princípio de individuação oriundo da matéria parece ser suficiente em alguns
casos (parcialiter), em outros, contudo, o mesmo entra em declínio sério
justamente por se tratar de indivíduos muito complexos (como os homens em
especial) e, outras vezes, em contradição clara com a noção de eternidade da
alma e individualidade da criação em relação a todo ser criado.
Scotus e o pensamento franciscano em geral entram em embate com esta
posição tomista, tratando da “defesa da alma necessariamente individual” para
cada um dos sujeitos que são criados por Deus.
Não é possível que a diferença entre indivíduos seja simplesmente
construída por uma circunstância material ou por qualquer tipo de elemento
acidental.
Neste sentido, Scotus, no Comentário à Metafísica de Aristóteles, indagase acerca da questão da divisão individual: se, por um lado, posso facilmente
dividir uma pedra criando duas sem, com isso, alterar a noção inicial de pedra, por
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outro, não posso dividir uma árvore em duas (de forma física) e criar duas árvores
“inteiramente concretas” como resultado.
Ora, a individuação não poderia simplesmente ficar presa em uma
questão de unidade “quantitativa” ou “extensiva” o que nos obriga a pensar em
uma própria mudança ou percepção de vários “sentidos” correspondendo a
diferentes espécies de unidade o que nos leva justamente ao conceito pitagórico e
órfico de “uno”.
Scotus, então, em primeiro lugar, ataca a tentativa de alguns pensadores
de atribuir à unidade à dupla negação.
Por esta teoria, tal qual defendia Henrique de Gant, a individualidade é
simplesmente o resultado da negação da multiplicidade externa e da identidade
específica, no sentido de que só podemos ter noção de um indivíduo como
diferente do outro se pensarmos no mesmo destituído de todos os elementos que
lhe são atribuídos exteriormente bem como de seus aspectos próprios e
particulares.
O resultado dessa dupla negação analítica seria justamente o que lhe é
particularmente próprio o que, em outras palavras, não pode ser “conceituado
positivamente”. Para Henrique de Gant, o que somos individualmente não é um
atributo que é simplesmente predicado, mas é o que resta de uma contínua (e
constante) retirada de elementos em comum.
Scotus critica esta proposta da dupla negação dizendo que, apesar do
processo de análise de Gant não ser tão absurd$o, já que o próprio Boécio tratava
do tema ao estudar a diferença entre abstração e composição, por detrás desse
procedimento de dupla negação, está uma potência positiva que assim procede
indicando todo o projeto de construção analítica então ensejado. Ora, se há uma
prévia potência positiva comum que movimenta o intelecto no procedimento de
negação, então, é certo que a negação é secundária no processo de
entendimento da individuação.
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Em segundo lugar, Scotus ataca tanto a noção da individuação como
oriunda da matéria quanto a variação da mesma que atribui não à matéria “em
sentido geral”, mas justamente a uma parte da matéria em sentido quantitativo.
Para ambas, as respostas detêm o mesmo fundamento, a saber, que as
substâncias não podem ser a causa da individualidade se fossem acidentes já
que, como acidentes, são tomadas de forma desproporcional e imprevisível.
A quantidade de matéria modifica-se continuamente por mero novo
acréscimo enquanto a matéria em sentido geral detém simultaneamente
contrários, ambas são características que não se aplicam à substância que, como
comentei no começo do texto, apesar de poder “ser susceptível de contrários” não
os “detém realmente” (non habere contrarium autem est susceptivus contrarium).
Em terceiro lugar, Scotus entra em oposição à teoria que atribui à
individuação ao elemento em ato no sentido de que apenas o que está em ato
seria justamente suficiente para gerar a individuação.
Como resposta, o Doutor Sutil lembra que, se fosse assim, Sócrates e
Platão que não mais existem no mundo teriam que ser considerados iguais e
perderiam a individualidade, coisa, aliás, absurda já que é certo que os mesmos
continuam detendo a individualidade mesmo não mais inexistindo.
Scotus, então, busca compreender como se dá esta individuação se a
mesma não viria nem da matéria, nem da quantidade de matéria, nem do
composto e nem do elemento em ato e presente no fenômeno. A busca, primeiro,
lhe leva a negar que a individualidade seja simplesmente uma “forma” do indivíduo
pelo fato de que, apesar da forma não ser acidental (já que o próprio Aristóteles,
muitas vezes, relacionavam como sinônimos a forma e a substância), ela ainda
depende da noção de unidade pelo viés da causalidade do fenômeno no sentido
de que a forma só é compreensível quando concretizada no composto
(compositum) com a matéria. Ora, a individualidade não pode depender do
composto que, em última instância, também lhe é acidental.
Então, como não sendo forma, não sendo matéria, não sendo unidade ou
multiplicidade, o Doutor Sutil passa a considerar a individualidade como oriunda
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de uma outra entidade que o professor Paulo Faintanin em artigo na revista
Aquinate traduz como “potência positiva” ou “entidade positiva” e que Anthony
Voss prefere considerar como “entidade positiva concretizada como ato último”.
Duns Scotus, na Ordinatio, vai dizer que é “o isto” ou o “este” da coisa o que, em
língua portuguesa, convencionou-se usar a variante latina “haeceidade” sendo
“haec” o pronome demonstrativo latino tornado, neste caso, uma espécie de
entidade.
O entendimento do termo nos obriga a estudar a “condição modal” do
pensamento scotista pela leitura do Prof. Sondag sobre o tema.
A consideração da obra de Scotus sobre a individualidade parte da
percepção de duas instâncias de natureza, sendo que, na primeira, percebe-se
que há uma “unidade” para o universal bem como uma “unidade para o singular”
enquanto, na segunda, considera-se que o universal está “de certo modo” nas
coisas e também no intelecto (extra mente e in mente).
Pela primeira instância da natureza, Scotus sustenta que há uma unidade
“específica” menor do que a unidade ‘numérica’. Por unidade numérica, Scotus
refere-se àquela “unidade primeira” que estaria mais próxima do indivíduo
simplesmente considerado como ser concreto e corresponderia à composição
unitária matéria e forma presente diferentemente em cada indivíduo em particular;
a unidade específica relacionaria-se à “espécie” que pertence determinado
indivíduo, a saber, a unidade presente no universal.
Pela primeira unidade, por exemplo, refere-se ao “este Sócrates” e a
segunda é a da “a humanidade”.
Diferente da perspectiva nominalista, Scotus não crê que esta segunda
unidade seja meramente um conceito mental criado aleatoriamente (alias) e sem
uma realidade extra-mental. Ao contrário, o Doutor Sutil irá criticar esta teoria
dizendo que o nominalismo dá um poder quase divino ao homem atribuindo-lhe a
capacidade de, por exemplo, criar e manipular conceitos como bem entender
gerando uma ‘nova realidade’ que lhe interesse e também que acabe igualando
conceitos mentais claramente diversos na realidade, como, por exemplo,
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considerar o universal “homem” (que detém claras correspondências com
indivíduos reais) como semellhante ao universal “fada” (que inexiste na realidade
ou extra-mentalmente).
Scotus
é partidário de um realismo “crítico”, nas palavras de Hannah
Arendt, que defende a individualidade humana e as escolhas livres e é neste
caminho que o scotista irá defender a necessidade de uma “realidade extramental” para os universais.
É ainda no Comentário que
Scotus aponta os motivos pelos quais a
unidade específica (da espécie - umiversal) deve realmente existir: primeiro,
porque a semelhança tem que se dar sempre com seres reais (assim, se há
semelhança entre espécies elas, de algum modo, devem existir); segundo, porque
há diferença entre as dessemelhanças, ou seja, é claro que não se pode dizer que
a diferença entre um homem e uma linha seja igual à de um homem em relação a
outro; terceiro, porque os contrários só são possíveis se houver qualidades reais
que lhes sejam contrapostas e, em quinto lugar, porque ser e uno sempre são
convertíveis, ou seja, há uma mútua relação existencial entre a unidade e a
existência.
Nesse ponto, então, Scotus terá que mostrar como tal unidade específica
ou universal é possível como existindo extra-mentalmente.
Para isso, ele irá propor que a unidade “específica” é menor do que a
numérica e, com nos explica Sondag, isto não no sentido quantitativo, mas,
justamente, pelo aspecto ontológico, já que a unidade numérica é mais própria e
suficiente, pois concretiza o indivíduo detendo virtualmente todos os modos de ser
essenciais do mesmo.
Assim, Scotus nos leva à interessantes comparações: por um lado, a
unidade específica, em comparação com a unidade genérica, acrescenta a esta
última características diferenciais, ou seja, o gênero animal recebe certas
determinações que provêm justamente das espécie que lhes são atribuídas como
a espécie humana, contudo, por outro lado, uma espécie, em relação às outras
espécies do mesmo gênero, não é suficiente para conter todas estas, no sentido
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de que “genericamente considerada”, uma espécie não pode integralmente definir
a outra de forma virtual ou atual.
Ademais, se, por um lado, o homem acrescenta certas qualidades
especiais ao gênero animal, por outro, a espécie humana não detém, em si
mesma, elementos suficientes para gerar uma sólida e completa compreensão de
todo o gênero animal ao qual pertence.
Diante desta situação, Scotus busca, pois, no indivíduo, a saber, na
unidade numérica como ato existencial último, a condição para o real
entendimento da diferença tanto entre os indivíduos da mesma espécie quanto
entre as próprias espécies como acima consideradas. O indivíduo, com existência
concreta própria e particular, é o que conteria as condições “concentradas” para o
entendimento da própria espécie ao qual depende no sentido de que, como
comenta Màrio Ferreira dos Santos, a concretude do indivíduo, segundo Scotus, já
detém ainda que virtualmente a unidade específica e, de certa forma, a própria
unidade genérica. É o indivíduo, portanto, e somente ele, que se atribui os “modos
de ser”, diferenciando-se existencialmente e dando sentido existencial para a
espécie e para o gênero em particular.
Scotus, na Ordinatio, sustenta que “se perguntássemos se esse princípio
de individuação que está necessariamente em cada particular” é uma forma,
matéria ou composto, a resposta seria a de que ele melhor corresponde a uma
entidade positiva, fonte “incidental” das outras unidades e que, diferente da
relação entre as espécies na qual uma espécie não é suficiente para o
entendimento da outra do mesmo gênero, entre os indivíduos, pode-se afirmar que
um deles, em sua essência substancial, conteria a suficiência para o entendimento
de toda a sua espécie.
A humanidade, então, é um modo de ser de cada um dos homens e esta
está subordinada à liberdade destes e não o contrário como muitas leituras
indevidas do tema na pós-modernidade têm conduzido.
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Ora, é neste momento que partimos para a “segunda instância da
natureza” que, segundo Richard Cross, corresponde ao “duplo modo de ser do
universal”.
O universal, portanto, existe extra-mentalmente como “virtualmente”
presente na essência substancial da unidade numérica (como modo de ser da
haeceidade) e, simultaneamente, no fenômeno existencial do indivíduo, o
universal “é” em todos os seres que pertencem a um mesmo grupo ou espécie.
Enquanto a primeira posição é mais de caráter conceitual, a segunda,
certamente, se dá no sentido existencial e realmente pleno e isso indica, ainda
que tomado de forma semelhante a alguns conceitos de unidade de Avicena, os
universais existem como “segunda natureza” (secundum quid) e são entendidos
de forma composta.
Todavia, diferente de Avicena, este entendimento simultâneo e composto
do universal não implica que ele seja mero conceito, ao contrário, mostra que,
como segunda natureza, o universal existe realmente segundo “modos de existir”
diversos, todos eles, aliás, oriundos da entidade positiva pura defendida por
Scotus: a haeceidade.
Então, a questão da individualidade, em Scotus, assume um ponto capital
e mais alto possível no edifício teórico da filosofia cristã já que suas críticas ao
nominalismo bem como ao realismo radical o levam a um posicionamento, ainda
que tardio, estruturalmente suficiente para a concepção do universal como
“realidade” no fenômeno individualmente considerado.
Se a “socracidade” existe, ela o é justamente “no” e “pelo” indivíduo
Sócrates e esta transição de cunho fenomenológico vai muito além da mera
concepção de causalidade no sentido logicista em que a causa é mera entidaderesultado de um processo sistemático.
Não é à toa, certamente, que Duns Scotus, no debate sobre o Primeiro
Princípio, comenta que o efeito em relação à causa eficiente divina não é somente
uma partícula qualquer, mas é o objeto que só existe por ser justamente “amado”
pelo seu criador...
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BIBLIOGRAFIA
DE BONI, Luis Alberto. Textos de Filosofia Medieval. EDIPUCRS, 1999.
DE BONI, Luis Alberto. Traduções e Comentários Sobre Duns Scotus. Revista
Veritas, EDIPUCRS, 2007.
SONDAG, R. Le Principe d’individuation. Vrin, 1968.
CROSS, Richard. Duns Scotus. In The Cambridge Companion to Scotus, 1990.
VOSS, Antonie. The Philosophy of John Scotus. Edinburgh University Press. 1988.
DUNS SCOTUS. Obra Latina Completa. Disponível em: <www.latinlibrary.com>.
Acesso em: 01 de novembro de 2011.
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