O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA SUA
AVALIAÇÃO
O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA: PERSPECTIVAS
TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA SUA AVALIAÇÃO
William Zanete Bertolini
Universidade de São Paulo - USP
[email protected]
EIXO TEMÁTICO: EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA FÍSICA
RESUMO
O conceito de equilíbrio em geomorfologia comporta uma série de desafios, sobretudo com relação
à verificação de tal condição e aos parâmetros e indicadores necessários para avaliá-la. Tem sido
um conceito importante nos estudos geomorfológicos porque implica a consideração da dinâmica
atual e pretérita bem como a consideração dos fatores dessa dinâmica sob escalas de tempo e
espaço apropriadas. O propósito deste artigo é o de buscar e discutir algumas ideias e conceitos
envolvidos com a concepção de equilíbrio em sistemas geomorfológicos tropicais úmidos. E, a
partir daí, pensar sobre quais parâmetros poderiam servir para avaliar tal condição e como esses
parâmetros deveriam ser considerados do ponto de vista da sua organização metodológica.
Palavras chaves: Equilíbrio, Sistemas, Geomorfologia.
ABSTRACT
The concept of equilibrium in geomorphology comprises a series of challenges, especially with
regard to verification of such condition and the parameters and indicators needed to evaluate it. It
has been an important concept in geomorphological studies because it involves the consideration of
the present and former dynamic as well as consideration of the factors in this dynamic
under appropriated time and space scales. The purpose of this paper is to seek and discuss some
ideas and concepts involved with the the conception of equilibrium in humid tropical
geomorphological systems. Then, from there, think about what parameters could be used to
evaluate this condition and how these parameters should be considered from the point of view
of their methodological organization
Key-words: Equilibrium; Systems; Geomorphology.
INTRODUÇÃO
A noção de equilíbrio aplicada aos estudos do relevo não é recente e pode-se mesmo
remontar suas origens às ideias sobre o trabalho fluvial presentes em Leonardo Da Vinci (séculos
XV e XVI) e Domenico Guglielmini (século XVII). No entanto, tal conceito sofreu inúmeras
transformações e reinterpretações a partir de sua abordagem eminentemente geomorfológica feita
por Grove Karl Gilbert em 1877. Este se tornou um conceito de grande influência sobre o
desenvolvimento da ciência geomorfológica (MAYER, 1992; HUGGET, 2007).
A abordagem do equilíbrio geomorfológico que se disseminou e se tornou tradicional foi,
no entanto, a de Hack (1960) denominada de equilíbrio dinâmico e segundo a qual, em um sistema
33
REVISTA GEONORTE, Edição Especial, V. 1, N.4, p. 33 – 45, 2012.
O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA SUA
AVALIAÇÃO
geomorfológico, há um ajuste completo das suas variáveis internas às condições externas do meio.
Segundo Christofoletti (1979, p.57), “isso significa que as formas e os seus atributos apresentam
valores dimensionais de acordo com as influências exercidas pelo ambiente, que controla a
qualidade e a quantidade de matéria e energia a fluir pelo sistema”. Implícita a essa ideia está a de
que após certo tempo, o sistema geomorfológico alcança um estado de equilíbrio dinamicamente
estável (PHILLIPS, 1992a).
Howard (1988, p.49) afirma que a questão do equilíbrio em geomorfologia é controversa e
requer uma discussão cuidadosa tanto da definição operacional desse conceito quanto dos critérios
de avaliação do equilíbrio ou desequilíbrio nos sistemas naturais. Soma-se a isso, ainda, o fato de
que, muitas vezes, a seleção de variáveis internas e externas do sistema e seus métodos de
mensuração são determinados por um desejo (consciente ou inconsciente) de encontrar um
equilíbrio (HOWARD, 1988).
No Brasil, através de um simples levantamento bibliográfico, pode-se dizer que poucos são
os estudos que trataram de um suposto equilíbrio do relevo; de forma teórica ou experimental.
Christofoletti é uma exceção e talvez tenha sido quem mais se deteve sobre a noção de equilíbrio
na geomorfologia brasileira, influenciado sobretudo por Hack (1960; 1975), Wolman e Miller
(1960; 1974), Chorley e Kennedy (1971). Como estudos de caso, ele avaliou a condição de
equilíbrio de algumas bacias hidrográficas do Planalto de Poços de Caldas (MG) e da região norte
ocidental do Estado de São Paulo (CHRISTOFOLETTI, 1979). Como meio de avaliar o equilíbrio,
ele aplicou o modelo hortoniano em bacias hidrográficas de Poços de Caldas e a análise da
distribuição estatística e probabilística das formas no espaço, conforme as ideias de Leopold e
Langbein (1962), em São Paulo (CHRISTOFOLETTI, 1979). Segundo Christofoletti (1994), em
termos de matéria e energia no sistema terrestre, as transferências a elas relacionadas podem
ocorrer de maneira gradual ou abrupta e, conforme a intensidade e magnitude dos eventos, essas
transformações expressam-se na superfície terrestre através de mudanças nos grandes quadros
paisagísticos regionais.
Com a assimilação das ideias vindas da aplicação da teoria dos sistemas às geociências, a
geomorfologia incorporou e desenvolveu as noções referentes à energia, fluxos de massa,
tendências de equilíbrio, entropia e outras para compreender o comportamento do relevo (BAUER,
2006). Hugget (2007) afirma que no século XX, a aplicação das noções de complexidade e nãolinearidade aos sistemas geomorfológicos abriu uma linha de pesquisa interessante e fértil que
repousa sobre o princípio da avaliação da energia e dos materiais componentes do sistema.
Os trabalhos filiados ao princípio do equilíbrio dinâmico são os que, mais recentemente, têm feito
uso desses conceitos para a compreensão do comportamento do relevo de uma maneira integrada e
34
REVISTA GEONORTE, Edição Especial, V. 1, N.4, p. 33 – 45, 2012.
O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA SUA
AVALIAÇÃO
sistêmica. Se o equilíbrio dinâmico recebeu pouca atenção na época áurea da sua elaboração
(década de 1960) com o desenvolvimento das abordagens dos sistemas instáveis pela Física, esse
princípio parece ganhar novas possibilidades de contribuir para um entendimento integrado do
relevo no contexto ambiental. Abreu (2003, p.56) afirma que o princípio do equilíbrio dinâmico
parece ter certa coerência com os fatos observados e que seu teste deveria ser tentado com mais
frequência, ainda que, à primeira vista sua postura possa ser tida como discutível.
Não existe, contudo, consenso sobre a quais variáveis e suas grandezas se refere um suposto
balanço ou equilíbrio entre as forças modeladoras da superfície. Fala-se frequentemente em termos
de balanços de matéria (massa) e energia sem, contudo, haver proposições de aplicação disso à
compreensão do comportamento e evolução das formas.
O propósito deste artigo é o de buscar e discutir algumas noções envolvidas com a concepção de
equilíbrio no sistema geomorfológico. A partir daí, pensar sobre quais parâmetros poderiam servir
para avaliar tal condição e como esses parâmetros deveriam ser considerados no sistema relevo.
O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA
O estudo do equilíbrio em sistemas geomorfológicos tem como um de seus principais expoentes
John Hack (1960; 1975) que estudou o relevo do vale do Rio Shenandoah na região dos Apalaches
nos Estados Unidos. Hack levou em consideração as características da rede de drenagem e da
topografia. A concepção de equilíbrio preconizada por ele, denominada de equilíbrio dinâmico,
sustenta que o equilíbrio de uma paisagem é resultante de um estado de balanço entre forças que se
opõem de tal forma que elas operam sob taxas iguais e seus efeitos se cancelam mutuamente,
produzindo assim um estado estável (steady state) no qual a energia está continuamente entrando e
saindo do sistema (HACK, 1960). Segundo Hack (1960; 1975), o estado de equilíbrio dinâmico é
mantido pelo ajuste mútuo entre os processos de agradação e degradação do relevo. O estado de
equilíbrio dinâmico é caracterizado pelo balanço dos fluxos de matéria e energia que entram e saem
do sistema, o que equivale dizer que os processos morfogenéticos se encontram balanceados com
as
condições
características
do
meio
como,
por
exemplo,
a
resistência
litológica
(CHRISTOFOLETTI, 1973). Quando o sistema geomorfológico atinge o estado de equilíbrio
dinâmico há um ajustamento das formas ou geometria do relevo com a entrada e saída de energia e
matéria do sistema. Assim, o gradiente dos canais fluviais é ajustado à quantidade de água e carga e
à resistência do leito, de tal modo que o trabalho seja igualmente distribuído em todo o segmento
fluvial. E como há interdependência entre os elementos do sistema, qualquer alteração que se
processa em um dado local do rio é amplificada às demais partes da bacia (CHRISTOFOLETTI,
1973).
35
REVISTA GEONORTE, Edição Especial, V. 1, N.4, p. 33 – 45, 2012.
O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA SUA
AVALIAÇÃO
De acordo com Hack (1960), do ponto de vista metodológico, o estudo do equilíbrio dinâmico do
relevo é o estudo das relações areais, ou seja, como ocorrem no espaço, entre processos e formas
para a interpretação da sua história passada. Desse ponto de vista, a concepção de equilíbrio do
relevo é sistêmica. No entanto, tal abordagem não necessariamente soluciona ou coloca um ponto
final na questão de uma paisagem alcançar ou não o equilíbrio. Ela apenas apresenta a questão sob
determinada lente: a das inter-relações entre processos e formas. O desafio encontra-se em
identificar parâmetros (de processos e formas) e conseguir mensurá-los de modo que dêem conta de
afirmar a respeito de um suposto equilíbrio da paisagem.
O conceito de equilíbrio dinâmico de Hack afirma que se as taxas de erosão são uniformes em
determinada área configura-se, então, a condição de equilíbrio do relevo. Vale ressaltar que,
embora Hack diga que taxas iguais de erosão caracterizam um sistema geomorfológico em estado
de equilíbrio, ele reconhece também que a energia erosiva muda espacial e temporalmente e que o
relevo desenvolve-se segundo essas mudanças. Taxas iguais de erosão não significam que as
formas permaneçam imutáveis. Somente não mudarão se as taxas de soerguimento e erosão se
mantiverem constantes em uma área onde as rochas expostas à superfície e a cobertura pedológica
forem homogêneas. Reconhecendo o caráter anisotrópico da crosta terrestre, a concepção de
equilíbrio dinâmico ou steady state de Hack considera que as formas do relevo em equilíbrio
dinâmico diferem segundo os tipos de rocha.
O princípio proposto por Hack admite que o ajuste entre as forças modeladoras do relevo é atingido
como um todo entre as várias partes da mesma bacia de drenagem (CHRISTOFOLETTI, 1973,
p.20). Um aspecto interessante do princípio do equilíbrio dinâmico adotado por Hack é que o
equilíbrio pode ocorrer sob os mais variados panoramas topográficos. Portanto, o equilíbrio de
Hack não equivale ao estágio de senilidade do relevo identificado por Davis, em que “o relevo se
encontraria arrasado e a atuação dos agentes erosivos seria muito fraca tendo sua equivalência com
os processos de fornecimento de material (waste-supply) que ser mantida somente mediante taxas
muito baixas desses processos” (DAVIS, 1899, p.497). Davis (1899, p.489) afirma que a condição
de equilíbrio (grade) de um rio é alcançada por mudanças na relação entre sua carga e volume, que
se manifesta por mudanças muito lentas na declividade (slope).
Para Mackin (1948) grade é a condição de equilíbrio manifestada por cursos fluviais enquanto
agentes de transporte. Esse equilíbrio pode ser abordado de duas maneiras diferentes. A primeira
passa pelas relações entre declividade, descarga, forma do canal e granulometria da carga fluvial. A
segunda acontece em termos das transformações de energia. Mackin afirma que essas duas
abordagens deveriam ser tratadas separadamente. No entanto, na maioria dos artigos citados por ele
as duas abordagens ocorrem conjuntamente (MACKIN, 1948, p.465). A energia de um rio é
36
REVISTA GEONORTE, Edição Especial, V. 1, N.4, p. 33 – 45, 2012.
O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA SUA
AVALIAÇÃO
entendida como uma grandeza proporcional ao produto da massa pela diferença altimétrica entre
dois pontos quaisquer do canal. Segundo Mackin (1948) um dos principais atributos de um graded
rio é o balanço entre erosão e deposição, em uma clara associação ao princípio físico da ação e
reação.
A definição da condição de grade em termos desse balanço não pode focar-se em mudanças de
curto termo. A condição de grade é aplicável aos cursos fluviais em longo termo. Nesse sentido, e
considerando as relações entre velocidade do fluxo e carga fluvial, após certo tempo geológico a
carga fornecida ao rio é dependente não só da velocidade do canal, mas da litologia, relevo,
cobertura vegetal e processos erosivos operantes na bacia de drenagem (MACKIN, 1948).
O equilíbrio fluvial se manifesta a longo termo, e, a despeito das flutuações de curto termo, essa condição é
alcançada mediante uma equivalência entre tendências opostas no canal fluvial (MACKIN, 1948, p.476).
No entanto, o próprio Mackin afirma que “um rio em equilíbrio não é aquele que está incapacitado
de erodir seu próprio leito uma vez que toda sua energia é usada no transporte de sua carga”
(MACKIN, 1948, p.471) mesmo por que, como Kesseli já havia observado, a ideia de uma
corrasão nula, como proposta por Gilbert, é seriamente frágil dado que “enquanto a carga
permanecer em movimento, o leito precisa estar sob efeito de corrasão”, fato pelo qual uma
condição neutra de balanço é impossível (DURY, 1966, p.217).
A compreensão de equilíbrio no sistema geomorfológico, como exposto por Renwick (1992),
afirma que “uma forma em equilíbrio não é estática ou absolutamente estável, mas há uma
tendência dessa forma manter suas características relativamente estáveis (...) e retornar àquelas
características seguindo uma menor perturbação (menor esforço)” (RENWICK, 1992, p.267). Por
relativamente estáveis, entende-se, de acordo com Inkpen (2005), o estado de mudança progressiva
do sistema em torno de um estado flutuante médio.
Essa afirmação abre a discussão ao papel das forças e resistências do meio e aos fatores limites
(thresholds) do sistema, o que, atualmente, vai ao encontro das abordagens não lineares em
geomorfologia. Se, apesar das flutuações de curto termo, o sistema tende ao equilíbrio, a avaliação
dessa condição tem de passar necessariamente pelas restrições impostas pelo meio e seus fatores
limites.
Quanto à relação entre resistência e equilíbrio pode-se argumentar que tal relação passa pela
fragilidade do sistema. A análise de fragilidade constitui um meio indireto de se verificar a
resistência de um sistema e a sua predisposição a sofrer perturbações (instabilidades). A resistência
pode ser entendida como a habilidade do sistema de evitar, absorver ou minimizar suas respostas
frente às mudanças externas impostas (PHILLIPS, 2009). Na medida em que se estabelece o grau
de fragilidade de uma área ou sistema como baixo, intermediário ou alto avalia-se a probabilidade
37
REVISTA GEONORTE, Edição Especial, V. 1, N.4, p. 33 – 45, 2012.
O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA SUA
AVALIAÇÃO
desse sistema sofrer mudanças mediante a atuação média dos agentes e processos que ali atuam.
Assim é possível estabelecer uma relação entre a fragilidade, a resistência e o equilíbrio do relevo.
Os fatores limites (thresholds) de um sistema constituem o ponto ou o limiar que, uma vez
ultrapassado, leva o sistema a sofrer mudanças e a entrar em uma nova dinâmica. Conforme
Phillips (1992, p.224), dentro de uma perspectiva de balanço de massa em que são consideradas as
entradas, saídas e acúmulo de matéria, um fator limite pode ser expresso na forma de
força/resistência (F/R). Se F/R > 1 então o que ocorre é erosão e transporte de massa. Se F/R < 1
então o que ocorre é o acúmulo ou armazenamento da matéria. Aplicando-se esta ideia de fator
limite ao sistema geomorfológico poderia-se questionar o seguinte. Os fatores limites (a sua
ultrapassagem) marcariam o abandono de um estado de equilíbrio dinâmico ou dinamicamente
estável para um equilíbrio instável ou estariam contidos dentro de um estado flutuante médio do
equilíbrio dinâmico? A resposta a esta questão deve considerar a perspectiva temporal na avaliação
da condição do equilíbrio. Outra questão: na recorrente ausência de séries históricas de dados, a
avaliação da condição de equilíbrio pode ser pensada através de um modelo independente do
tempo? Baseado nos pressupostos do balanço de energia, Chorley (1962) afirma que sim.
AS NOÇÕES DE ENTROPIA E ENERGIA APLICADAS À CONDIÇÃO DE EQUILÍBRIO
EM GEOMORFOLOGIA
Um dos vieses pelo qual o equilíbrio é tratado no estudo do relevo é baseado na aplicação dos
conceitos de entropia, energia e massa. Phillips vê no que muitas vezes se chama de entropia da
paisagem (landscape entropy) um modo de se poder identificar as condições de estabilidade ou
instabilidade do sistema geomorfológico (PHILLIPS, 2006).
Embora sejam relativamente poucos os estudos que abordam o conceito de energia/entropia na
transformação e evolução do relevo (Leopold e Langbein, 1962; Zdenkovic e Scheidegger, 1989;
Moreira, Ferreira e Martins Junior, 2003; Nunes, Romão e Ferreira, 2008), em vários deles o
conceito de entropia aparece como um meio de se avaliar as transformações por que passam os
sistemas geomorfológicos. Nunes, Romão e Ferreira (2008) afirmam que a entropia pode ser
utilizada como uma ferramenta na compartimentação e análise de paisagens a partir de uma visão
sistêmica. O fato desse conceito se basear na distribuição de energia enquanto potencial de perda de
solos bem como deflagração e evolução de processos erosivos (Nunes, Romão e Ferreira, 2008)
torna-o um instrumento analítico interessante para a proposição e avaliação de modelos de
evolução/transformação do relevo.
38
REVISTA GEONORTE, Edição Especial, V. 1, N.4, p. 33 – 45, 2012.
O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA SUA
AVALIAÇÃO
No entanto, a mensuração da energia em um sistema como o geomorfológico não é tarefa simples.
Thorn e Welford (1994, p.691) afirmam que o presente estado da disciplina revela não somente a
dificuldade de se medir a energia no campo mas em estabelecer suas relações com as formas.
O conceito de entropia relaciona-se à disponibilidade de energia do sistema e à capacidade de
realizar trabalho. Segundo Máximo e Álvares (1993) a entropia é uma grandeza apropriada para
caracterizar o grau de desordem e de degradação da energia envolvidos nos processos irreversíveis.
Nesse sentido, parece ser de grande valia para a análise do estado de equilíbrio no sistema
geomorfológico já que o modelado terrestre é uma função da energia e trabalho dos agentes e
processos que nele atuam e o modelam.
A energia total disponível em um sistema pode ser descrita em relação à sua entropia (Leopold e
Langbein, 1962). Assim, quando há um aumento na entropia do sistema, proporcionado pela
atuação de uma força ou agente, há uma diminuição da energia disponível para ser convertida em
trabalho. Aplicado ao relevo, o aumento da entropia é relacionado a um estado de desordem
acompanhado pela diminuição da energia disponível no sistema para realizar trabalho. Nesse
sentido, e de acordo com a segunda lei da termodinâmica, o sistema geomorfológico estaria em
equilíbrio quando sua entropia fosse máxima e, portanto, sua energia útil mínima (Leopold e
Langbein, 1962; Zdenkovic e Scheidegger, 1989). Em uma visão davisiana, o estado de máxima
entropia do sistema geomorfológico aconteceria quando do aplainamento completo do relevo, em
conformidade com o nível de base de erosão (Nunes e Romão, 2008). Por meio dessa analogia é
possível entender que a medida de entropia do relevo, conforme apresentada por Leopold e
Langbein (1962), está vinculada à relação entre a quantidade de massa e a amplitude altimétrica do
relevo. Conforme Nunes e Romão (2008),
“as partículas de água e de sedimentos localizadas em determinadas posições altimétricas são atraídas pela
ação da gravidade (energia potencial) para posições de menor altimetria na paisagem, passando assim para
forma de energia cinética. Dessa forma, cada cota altimétrica possui uma determinada quantidade de energia
em função da altimetria, da forma das vertentes e do comprimento das mesmas”.
O sistema geomorfológico deve ser compreendido como um sistema dinâmico aberto e instável.
Dinâmico e aberto porque troca matéria e energia constantemente com o seu entorno. Instável ou
caótico porque as consequências dos processos são retroativas e não lineares (MURRAY e
FONSTAD, 2007; PHILLIPS, 1992a,b; 2006).
O fato de ser um sistema aberto implica que o relevo está continuamente recebendo inputs de
energia, sempre o afastando de um mínimo energético ou de equilíbrio. A condição de estabilidade
(steady state) é caracterizada nos sistemas abertos por uma produção de entropia mínima por
unidade de volume compatível com as restrições impostas pelo meio. Tal situação equivale ao
39
REVISTA GEONORTE, Edição Especial, V. 1, N.4, p. 33 – 45, 2012.
O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA SUA
AVALIAÇÃO
princípio do mínimo trabalho em que a dinâmica do sistema é mantida por uma entropia mínima
(Leopold e Langbein, 1962; Zdenkovic e Scheidegger, 1989). Dessa maneira, Leopold e Langbein
(1962) consideram que o equilíbrio não é atingido em um sistema como um todo, já que este está
continuamente sofrendo perturbações. Nessa perspectiva, do ponto de vista termodinâmico, o
sistema alcançaria um estado estável ou estacionário (steady state) na situação de balanço ou ajuste
de forças e não um estado de equilíbrio do ponto de vista termodinâmico.
A noção de que o sistema está continuamente sendo afastado de um estado de equilíbrio é um
aprimoramento da noção de equilíbrio estritamente baseada em uma equivalência entre energia e
trabalho, já contestada por Mackin (1948) em relação ao conceito de grade, conceito vinculado ao
equilíbrio de cursos fluviais. Segundo esse autor um rio em equilíbrio (graded river) não é, de
forma alguma, aquele que não tem capacidade de erodir seu próprio leito porque toda sua energia é
usada no transporte de sua carga ou porque toda a energia tenha sido empregada para escavar seu
vale (MACKIN, 1948, p.471).
Um rio em equilíbrio [graded river] é aquele no qual, após um período de anos, a declividade é
delicadamente ajustada a produzir, de acordo com a descarga existente e com as características do canal, a
velocidade necessária para o transporte da carga fornecida pela sua bacia de drenagem. O rio em equilíbrio é
um sistema em equilíbrio; sua característica diagnóstica é que qualquer mudança em qualquer dos fatores
atuantes no sistema causa um deslocamento do equilíbrio em uma direção que tenderá a ser absorvida
(MACKIN, 1948, p.471).
Leopold e Langbein (1962) afirmam que a ideia da segunda lei da Termodinâmica ao ser aplicada
ao sistema geomorfológico é a de que a entropia do sistema é uma função da distribuição e
disponibilidade de energia no sistema, e não uma função da sua energia total. A noção de energia
útil assume então importância na avaliação do equilíbrio do relevo. Esses autores lembram ainda
que no sistema geomorfológico a principal manifestação da energia se dá na forma de energia
mecânica e não energia térmica, como originalmente abordado na Termodinâmica.
QUESTÕES PARA SE AVANÇAR
Diversas têm sido as discussões em torno do conceito de equilíbrio em geomorfologia. Entretanto,
escassas têm sido as empreitadas para averiguar meios de validar uma definição do conceito e sua
verificabilidade. Meios, por exemplo, de se avaliar a disponibilidade e distribuição de energia útil
ou trabalho no sistema geomorfológico.
Existem muitos modos de se abordar a questão. É preciso saber fazer as perguntas certas para
alcançar respostas adequadas e cientificamente válidas. Nesse sentido, vale a pena lembrar que “as
concepções teóricas são fundamentais para as temáticas científicas, constituindo referenciais para a
40
REVISTA GEONORTE, Edição Especial, V. 1, N.4, p. 33 – 45, 2012.
O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA SUA
AVALIAÇÃO
formulação
de
problemas,
planejamento
das
pesquisas
e
interpretação
dos
dados”
(CHRISTOFOLETTI, 1989, p.15).
Quais parâmetros permitiriam avaliar a condição de equilíbrio/estabilidade do sistema
geomorfológico em termos da sua energia, materiais e dinâmica? Como considerá-los dentro da
perspectiva de retroação das forças e do efeito cumulativo dos processos que modelam a paisagem
ao longo do tempo? Como considerar o papel do escoamento superficial, independentemente da
ação fluvial, e das mudanças climáticas dentro de um modelo de avaliação da condição de
equilíbrio do relevo?
Em princípio, o significado do equilíbrio geomorfológico remete-se a um balanço entre duas ou
mais quantidades, forças ou componentes. No entanto, como o relevo é um sistema aberto e não
linear trata-se de uma relação entre duas ou mais variáveis do sistema com seu entorno e não
apenas no seu interior. Thorn e Welford (1994) chegam a afirmar que sistemas abertos são
inerentemente não equilibrados uma vez que estão sempre sofrendo a ação de inputs de energia
e/ou fluxos de massa. Mesmo se se considera o sistema como o mais amplo possível, além das
dificuldades de mensuração dos fluxos de massa e/ou energia, ainda assim haverá inter-relações
com algum entorno. A definição de sistema é, em certo sentido, sempre abstrata e aleatória. A
questão passa, portanto, pelas formas de se considerar a condição de equilíbrio de um sistema.
Trata-se de uma questão eminentemente metodológica em que, além de uma adequada
consideração da questão no tempo e no espaço, é preciso saber consorciar variáveis e parâmetros de
análise significativos com escalas compatíveis (CHURCH, 1996).
Questão-chave nesta empreitada é a que se refere à escala temporal na avaliação da condição de
equilíbrio. Na ausência de séries históricas de dados que permitam comparar o estado
morfodinâmico atual do relevo em relação ao(s) estado(s) morfodinâmico(s) pretérito(s) pode-se
adotar como premissa de avaliação da condição do equilíbrio os processos atualmente vigentes?
Evidentemente, como o relevo é uma herança da história geológica regional e local,
metodologicamente, é preciso considerar parâmetros que dêem conta de retroceder no tempo a fim
de, no mínimo, inferir a fisiologia pretérita da paisagem. Nesse sentido, uma pesquisa desta
natureza deve ir além de um simples diagnóstico das condições geomorfológicas atualmente
vigentes e considerar parâmetros que indiquem os processos pretéritos.
Em tese, a verificação da condição de equilíbrio/estabilidade do relevo se mostra como uma
ferramenta útil na avaliação da predisposição do sistema a sofrer perturbações. Phillips (2006)
afirma que a verificação de estabilidade de um sistema geomorfológico diz se ele está indo na
direção de um novo estado de equilíbrio após ultrapassar as suas condições limites ou se está
apenas apresentando uma resposta de instabilidade, nesse último caso, caracterizando-se como um
sistema em não-equilíbrio.
41
REVISTA GEONORTE, Edição Especial, V. 1, N.4, p. 33 – 45, 2012.
O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA SUA
AVALIAÇÃO
Dois modos tradicionais de análise nos estudos geomorfológicos parecem servir de base para
levantar e discutir parâmetros em torno da condição de equilíbrio do relevo. São eles: a análise
morfométrica e a análise morfodinâmica. A primeira serviria para avaliar os fatores morfogenéticos
responsáveis pela elaboração pretérita do relevo. Evidentemente, nesse aspecto deve-se levar em
consideração a história geológico-geomorfológica da área de estudo. A análise morfodinâmica
retrata as condições atuais dos processos vigentes de elaboração do modelado e permitiria, entre
outros aspectos, entender a natureza e a espacialização dos processos erosivos atuais e em
que medida esses processos são responsáveis pela perda de massa do sistema.
Na perspectiva da análise morfométrica destacam-se os cursos fluviais e as vertentes como
elementos de verificação. A declividade dos canais junto com a das vertentes dos vales
proporcionam o gradiente necessário para que haja o fluxo de água e se realize o transporte de
material no sistema fluvial (STRAHLER, 1977). As declividades dos canais e das vertentes devem,
portanto, apresentar uma correlação positiva no contexto de bacia. Em caso contrário, indicariam
um desequilíbrio no trabalho fluvial manifesto.
Na perspectiva da análise morfodinâmica destacam-se dois aspectos: a análise macroscópica das
feições erosivas e a estimativa da taxa de erosão e desnudação da bacia de drenagem. A avaliação
macroscópica das feições e processos erosivos estabelece relações com as fragilidades naturais do
meio e com seus fatores e limites de resitência. Todavia, é preciso considerar este aspecto no
contexto das atividades antrópicas e do uso e ocupação do solo. Quanto à taxa de erosão e
desnudação da bacia de drenagem, vale considerar que em ambiente tropical úmido o trabalho
erosivo e desnudacional proporcionado pela água líquida é o principal mecanismo de
transformação e esculturação do modelado. A mensuração da taxa de desnudação total (desnudação
mecânica ou erosão + desnudação química) dá uma ideia da quantidade de trabalho executado no
sistema via perda de massa.
O esboço deste modelo de análise da condição de equilíbrio aplicado ao contexto de bacia
hidrográfica é esquematizado na figura a seguir:
42
REVISTA GEONORTE, Edição Especial, V. 1, N.4, p. 33 – 45, 2012.
O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA SUA
AVALIAÇÃO
A aplicação do conceito de equilíbrio na análise do relevo comporta uma série de desafios,
sobretudo com relação à verificação de tal condição e aos parâmetros e indicadores necessários
para avaliá-la conforme a escala adequada. A escolha de parâmetros significativos para tal
avaliação é complexa porque na realidade existem muitas inter-relações, nem sempre bem
conhecidas, que podem se anular mutuamente. O que pode servir para a análise do equilíbrio em
uma área pode não servir em outra. O que parece oportuno é avaliar tal condição de acordo com
parâmetros gerais e reconhecidos de esculturação do relevo no contexto das características
específicas da área de estudo em questão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Abreu, Adilson A. de. 2003. A Teoria Geomorfológica e sua Edificação: Análise Crítica.
Revista Brasileira de Geomorfologia, ano 4, n.2. p.51-67.
Bauer, Bernard O. 2006. Geomorphology. In: Goudie, A. (org) Encyclopedia of Geomorphology.
p. 428-435.
Christofoletti, Antonio. 1973. As teorias geomorfológicas. Notícia Geomorfológica. 13(25);
Campinas: p.3-42.
Christofoletti, Antonio. 1989. O desenvolvimento teórico-analítico em geomorfologia: do Ciclo
de Erosão aos sistemas dissipativos. Geografia. Rio Claro, v.14 (28): p.15-30.
Church, Michael. 1996. Space, time and the mountain – how do we order what we see? The
scientific nature of geomorphology: proceedings of the 27th Binghamton Symposium in
Geomorphology. Edited by Bruce L. Rhoads and Colin E. Thorn. John Wiley & Sons Ltd.
Davis, William M. 1899. The Geographical Cycle. Geographical Journal. pp.481-504.
Dury, G.H. 1966. The concept of grade. In: G.H. Dury (editor). Essays in Geomorphology.
Elsevier, New York, NY. pp.211-233.
Guedes, I.C.; Etchebehere, M.L de C.; Morales, N.; Stevaux, J.C.; Santoni, G. de C. 2009. Análise
morfotectônica da bacia do rio Santo Anastácio, SP, através de parâmetros fluvio43
REVISTA GEONORTE, Edição Especial, V. 1, N.4, p. 33 – 45, 2012.
O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA SUA
AVALIAÇÃO
morfométricos e de registros paleossísmicos. Geociências, UNESP – São Paulo, v.28, n.4, p.247362.
Hugget, R. 2007. A history of the systems approach in geomorphology. Géomorphologie:
relief, processus, environnement, nº 2, p.145-158.
Inkpen, Rob. 2005. Science, Philosophy and Physical Geography. Routledge. USA/Canada.
Hack, J.T. 1960. Interpretation of erosional topography in humid temperate regions. American
Journal of Science, 258A, 80-97.
Hack, J.T. 1975. Dynamic equilibrium and landscape evolution. In: Melhorn, W.;Flemal, R.
(eds) Theories of Ladform Development (chapiter 5): Publications in Geomorphology. SUNY
Binghanton.
Leopold, L. B.; Langbein, W.B. 1962. The concept of entropy in landscape evolution.
Theoretical Papers in the Hydrologic and Geomorphic Sciences. 20p.
Mackin, H. 1948. Concept of graded river. Bulletin of the Geological Society of America. v. 59,
pp.463-612.
Máximo, Antônio.; Alvarenga, Beatriz. 1993. Curso de Física – volume 2. 3ª Ed. Editora Harbra
Ltda. São Paulo.
Moreira, Ceres V.; Ferreira, Omar C.; Martins Junior, Paulo P. 2003. Aplicação da
Termodinâmica para Avaliação do Equilíbrio das Redes Fluviais – a Bacia do Rio Santo
Antonio. Economia & Energia, n.36.
Nunes, Elizon D.; Romão, Patrícia. A.;. Ferreira, Nilson C. 2008. Otimização de Medidas de
Entropia da Paisagem Como Subsídio ao Planejamento Ambiental - Região de Goiânia -GO.
Boletim Goiano de Geografia, v. 28, n.2, p. 123-138.
Phillips, J.D. 1992a. The end of equilibrium? Geomorphology. 5, pp.195-201.
44
REVISTA GEONORTE, Edição Especial, V. 1, N.4, p. 33 – 45, 2012.
O CONCEITO DE EQUILÍBRIO EM GEOMORFOLOGIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA SUA
AVALIAÇÃO
Phillips, J.D. 1992b. Nonlinear dynamical systems in geomorphology: revolution or evolution?
Geomorphology. 5; pp.219-229.
Phillips, J.D. 2006. Deterministic chaos and historical geomorphology: a review and look
forward. Geormorphology, 76, pp.109-121.
Phillips, J.D. 2009. Changes, perturbations and responses in geomorphic systems. Progress in
Physiscal Geography 33 (1); pp.17-30.
Renwick, W. H. 1992. Equilibrium, disequilibrium and nonequilibrium landforms in the
landscape. Geomorphology, 5, pp.265-276.
Strahler, Arthur N. 1977. Geografía Física. 3ªed. Ediciones Omega S.A. Barcelona.
Thorn, C. E. 1982. Space and time in Geomorphology. London, George Allen & Unwin. 379 p.
45
REVISTA GEONORTE, Edição Especial, V. 1, N.4, p. 33 – 45, 2012.
Download

p.33-45 - Revista GEONORTE