vinicius de moraes
organização, prefácio e notas Eucanaã Ferraz
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sumário
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prefácio
vinicius, o homem de jazz, por eucanaã ferraz 9
PARTE 1
jazz jazz
O jazz: sua origem 36
O nascimento
do spiritual 66
Nouvelle-Orléans:
Eh, là-bas! 75
I thought I heard
Buddy Bolden shout... 88
PARTE 3
Tarde de jazz 90
jazz & a américa
O que é jazz 94
Jazz panorama —
Prefácio 98
Crepúsculo em New York 122
Um blues para Bessie 102
Desert hot springs 126
Baladistas americanos 104
História passional,
Hollywood, Califórnia 130
Blues para Emmett Louis Till 136
Olhe aqui, Mr. Buster 140
PARTE 2
jazz & cinema
O ônibus Greyhound
atravessa o Novo México 144
Não são muitas
as “sensações de 1945” 108
Jam session 112
Foi muito Oscar demais 116
cronologia 146
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referências 150
crédito das imagens 151
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I
No princípio do século xvii — ou para ser mais exato,
no ano de 1619 — um fato aconteceu que iria determinar paralelamente uma das mais vergonhosas manchas e um dos mais genuínos padrões de arte que um
país pode ter: procedente da África, o primeiro navio
negreiro aportava em solo norte-americano.
Muitos se lhe deveriam seguir. Ao longo do século
xviii, cerca de 20 mil escravos negros seriam despejados anualmente nas plantações de tabaco, açúcar e
arroz. Senhor da terra por direito de precedência, o índio não queria se deixar escravizar pelo invasor branco
que dele se aproximava com a Bíblia na mão esquerda e espingarda na direita. Escalpos sangrentos iam
marcando as trilhas de penetração, erigindo cruzes
em torno das quais brilhariam mais tarde as grandes
folhas verdes de fumo.
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Mas eram precisos braços para a lavoura. Diante
da resistência até a morte do pele-vermelha, o homem
branco, em sua malícia, não hesitou em recorrer àquele que lhe parecia — e era — o mais indefeso dos seres, em sua inocente liberdade: o negro africano.
Com a expansão progressiva da indústria têxtil,
o algodão veio substituir o tabaco no interesse dos
plantadores sulistas. A terra e o clima eram propícios
e os teares europeus tinham uma fome insaciável da
rama bruta, com que vestir a classe média do Velho
Continente. O século xix vê nascer uma das mais fabulosas indústrias norte-americanas. As plantações
se estendiam da Virgínia ao Texas, absorvendo a lavoura menor e deixando para trás o pequeno agricultor falido, aquele que iria transformando, à medida, no
poor white, também chamado de white trash: 1 o hillbilly2
das terras erosadas, largadas pela ganância crescente
da “supremacia branca”.
Nessas plantações imensas, num dramático contraste de cores, os escravos negros trabalhavam de sol a sol.
Era tudo uma bem dolorosa história. Primeiro, o
arrancamento violento ao solo natal, à comunidade
primitiva, à vida selvagem mais livre, já começando a
apontar através da necessidade os caminhos de uma
cultura própria.
Depois, a travessia dentro de porões apertados e
infectos, os espancamentos constantes, a morte lenta
por moléstia ou por melancolia.
Não era de surpreender que sofressem tantas doenças
e morressem de tal modo, diz um cronista da época. Tinham largado a costa da África aos 7 de maio, estavam
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1 A expressão, traduzida literalmente
como “lixo branco”, nomeia de modo
depreciativo pessoas desfavorecidas
social e economicamente.
2 O termo, que pode soar pejorativo,
serve para designar indivíduos pouco
instruídos e de modos simples,
que vivem em regiões rurais e
montanhosas dos Estados Unidos.
O equivalente em português do Brasil
seria “caipira”.
Esquema de navio
negreiro, em que se
podem ver homens
enfileirados como
peças estáticas.
A mão de obra
escrava africana
foi o principal
motor da economia
agrária americana.
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no mar havia dezessete dias e nada menos de 55 já tinham
sido atirados fora, que tinham morrido de disenteria e outros males nesse curto espaço de tempo, apesar de terem
deixado a costa em perfeita saúde. Verdade, muitos dos
sobreviventes jaziam por ali na última prostração e num
estado de imundície e miséria de não se poder olhar. 3
A humilhação maior vinha mais tarde, nas partilhas e leilões em praça pública. O comprador branco
chegava e apalpava a carne negra e nua, examinava as
gengivas ao escravo. Tratava-se de uma coisa, não de
um ser humano. Os anúncios falam uma linguagem
mais eloquente:
“Uma família tão valiosa… como nunca se viu, consistindo em um cozinheiro de cerca de 35 anos, sua
filha de catorze e um filho parecendo oito. O lote poderá ser em conjunto ou em parte, como satisfizer ao
comprador.”4
Na plantação, praticamente todos os direitos lhes
eram negados. Sua função era transformar o ouro
branco em amarelo, com que aumentar o poderio de
seus senhores. Era-lhes vedado aprender a ler e a
escrever. Sua ração era uma cuia de milho indiano. O
valor das mulheres media-se por sua capacidade para
procriar. O amo era o dono absoluto. Pelo menos é o
que diz o bispo Meade, 5 da Virgínia, em seu livro de
sermões recomendado aos pastores brancos que pregavam aos escravos:
3 Na primeira versão do texto
(ver referências no fim deste
volume), Vinicius dá a fonte
da citação: “Cit. por L. Huberman,
em We, the People”.
4 Idem.
5 William Meade (1789-1862).
6 L. Huberman, op. cit.
7 Situada no sudeste dos Estados
Unidos, Black Belt era a região
em que se concentrava
o maior número de habitantes
afro-americanos.
[…] não considerais, eu vos digo, que as faltas cometidas
contra vossos amos são faltas contra Deus, Ele Próprio,
que a eles mandou em Seu lugar e que espera que proce-
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dais para com eles como o faríeis para com Ele próprio…
Eu vos digo que vossos amos são os representantes de
Deus e que se estiverdes em falta com eles Deus vos há
de punir severamente no outro mundo… 6
Chamavam-se Tom, Jim, John, ou um nome hebreu
qualquer, tirado à Bíblia. O sobrenome? Às vezes o
nome da plantação, ou o do próprio patrão. Desde a sua
chegada, o negro é o mais ofendido e mais humilhado
dos habitantes da América. Hoje, muitos anos depois
de abolida a escravidão, cerca de 5 milhões numa população total de 15 milhões acumulam-se dentro desse
tenebroso crescente sulista a que chamam Black Belt,7
vítimas constantes do desprezo e da ferocidade de uma
classe perfeitamente desumana. Entre 1882 e 1946, um
número de 3425 negros deveriam sofrer morte violenta
na mão dos linchadores brancos, com a mais completa aquiescência da Justiça, a não ser em dois ou três
casos em que os culpados sofreram pequenas penalidades. A carne negra pendeu, sangrou, queimou, enlouqueceu na Geórgia, no Alabama, no Mississippi, no
Texas, na Louisiana, no Tennessee.
Depois disso, é de estranhar que o negro norte-americano cante blues?
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II
Sim, aos escravos negros era vedado aprender a ler e
escrever. Somente mais tarde alguns escravos liberados poderiam estudar a língua que aprendiam a falar
através dos textos sacros. Provisoriamente, tudo lhes
era negado, até o direito de falar durante o trabalho.
Quer dizer, tudo menos uma coisa: podiam cantar à
vontade. Na realidade, os senhores até gostavam que
cantassem. Falar, isso não podiam. Mas que cantassem, desde que cantar lhes tirava o pensamento de
malfeitorias e revoltas.
Assim é que os negros puseram-se a cantar durante o trabalho nas plantações. De início eram cantos nativos da pátria longínqua, os ritmos instintivos
de sua música — a única coisa de que o conquistador branco não os pudera privar. Essa era a herança
africana que traziam ao serem depositados em solo
americano. Possuíam já os rudimentos de uma cultura
musical, de vez que todas as atividades na comunidade africana giravam em torno da música. Tinham seus
instrumentos básicos, sobretudo as caixas de ritmo.
Mesmo instrumento mais complexo, como a marimba,
não lhes era estranho. Harmonizavam seus batuques
com vozes corais e tinham neles o gênio da dança.
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Proibidos de falar, cantavam. Cantando começaram
a se comunicar uns com os outros. Todo um código vocal nasceu dessa limitação da necessidade de falar, hoje
perdido, mas cuja história chega até nós. Foi este um dos
primeiros sinais da revolta que nunca mais abandonaria
o povo negro nos Estados Unidos. Quanta conversa de
amor, quanta senha de aviso, quanto plano de fuga não
deve ter corrido a pauta invisível estendida sobre o algodoal em flor! Que poder de inflexões novas não se devem
ter acrescentado à voz crestada de sofrimento e revolta,
nos solos, duetos e coros campestres!
Até que os primeiros rudimentos de inglês fossem
absorvidos, todos esses cantos processavam-se em
dialetos africanos. Trata-se da primeira transformação
operada pela música africana em terra americana. Os
escravos aplicam todos os seus conhecimentos vocais
e melódicos, e sua habilidade para criar música, para um
uso social. Tiram toda a vantagem da única liberdade que
lhes é concedida: a de cantar. Quando começam a aprender inglês, já estão de posse de todo um processo de articulação vocal, africano na base, mas começando a criar
uma estrutura diferente. As articulações e os ritmos já
serão mais alongados, mais plangentes, mais surdos, de
acordo com as distâncias vocais a vencer; por outro lado,
as sustentações se suspenderão por mais tempo como
para acentuar e transmitir melhor a mensagem cantada.
Nada mais natural que, ao aprenderem inglês no texto
dos hinos sacros, apliquem imediatamente o cabedal
africano em processo de transformação à interpretação
vocal desses cantos de igreja.
A única possibilidade de evasão que possuem, a música, vem se unir a uma, talvez, mais forte ainda: a religião.
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O Céu é para eles tudo o que há de livre e belo, e Deus,
o pai a um tempo severo e bom que lhes falta na terra.
Posto que mais simples que a pompa católica, o cerimonial das seitas protestantes empresta-lhes esse senso de
grandeza de que carecem em suas tristes vidas. O cristianismo imposto transforma-se para eles numa coisa de
beleza e música. A história sacra fornece-lhes heróis de
que precisavam para engrandecer a própria miséria. Em
suas bocas os frios hinos presbiterianos mudam-se em
eloquentes clamores espirituais. Espirituais: é bem a palavra. Esse é o nascimento do spiritual, a transformação
negra dos hinos religiosos do Ocidente, a transferência
da contextura africana para a música séria e monótona do
protestantismo. Aos poucos as plantações se começam a
encher de coros religiosos, mas os hinos atrás deles são
irreconhecíveis. Desde já o senso de ouvido do homem
negro é mais apurado que o do homem ocidental, apesar
de muitos séculos de cultura que a este sobrelevam. A
dinâmica rítmica é muito mais acentuada, e, sem comparação, mais perfeita — donde uma captação mais rápida e
orgânica do compasso. Sua escala natural, a pentatônica
— ou de cinco notas —, facilmente se adaptaria às injunções da escala diatônica ocidental, cobrindo a variedade resultante com uma facilidade que atinge as raias
da criação. O negro está no seu elemento, e ao cantar
pela primeira vez em inglês planta as raízes de uma nova
forma de música, e certamente, a única forma de música
considerável nos Estados Unidos: o jazz.
Temos pois o primeiro elemento da formação do jazz:
o spiritual, manifestação caracterizadamente coletiva.
Essa consideração é importante em face do que vem depois. A esse elemento se vem juntar um outro: o work46
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song, a canção de trabalho, forma também coletiva de
expressão vocal. O fato é que, frequentemente, durante
a labuta diária, tinham os escravos que se haver com trabalhos que exigiam esforço de grupo, e ao se aplicarem
em tais trabalhos, procuravam facilitá-lo por meio de articulações vocais com uma referência musical qualquer
obediente ao próprio ritmo do trabalho em progresso.
Teriam assim ritmos de carregar e descarregar — formas
musicais de caráter eminentemente social.
A maioria desses spirituals e work-songs são anônimos e adquirem um número infinito de variações de
passarem de boca a boca, de plantação a plantação.
Em breve, todo o Sul negro canta spirituals. Mas se o
spiritual satisfaz um anseio social — o de comunicação
coletiva —, não empresta ao escravo triste e revoltado
contra a própria miséria uma voz com que minorar sua
tragédia individual. À noite, sentado à beira de sua choça, não serão os apelos de Deus — O Lord! — que apaziguarão no seu peito a sede de amor, de vida e de liberdade que o castiga mais e mais. Com o passar do tempo, a
compreensão das coisas abre caminhos novos no seu
pensamento e sua revolta torna-se mais aguda e pronta.
Assim é que ele se põe a cantar só, não mais sobre as
coisas do céu, mas sobre as da terra; não mais sobre o
seu amor e temor a Deus, mas sobre o seu temor e desamor ao senhor branco que o escraviza; não mais hinos,
mas doestos sentidos nos quais, de improviso, conta
fatos de sua tristeza, de seu cotidiano, de suas esperanças, de seu labor, de seu amor à mulher que o tem preso.
O negro canta para si mesmo, mas ao fazê-lo, exprime
melhor o elemento positivo recôndito em sua tristeza: a
revolta. Assim nasce o blues: manifestação individual,
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Três escravos
abissínios
(c. 1860). “Desde
a sua chegada,
o negro é o mais
ofendido e mais
humilhado
dos habitantes
da América”,
assevera Vinicius.
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ao contrário do spiritual, que atende à necessidade de
comunicação em massa. O blues, segundo elemento
na criação do jazz — e certamente o mais importante —,
parece manifestar mais vivamente que qualquer outra
forma jazzística o anseio de libertação que possui o
povo negro nos Estados Unidos. Já tivemos ocasião de
notar frequentes vezes, no curso de alguns anos e nas
principais cidades norte-americanas, o efeito do blues
sobre os frequentadores de um nightclub qualquer. A
orquestra toca um swing ou um número de dixieland, ou
uma peça de bop: está tudo muito bem; os cats (ou fãs
de jazz) têm os seus kicks (prazer particular provocado
pela música do jazz) e se entregam fisicamente aos ritmos em execução, com as expressões faciais, meneios
característicos, compassos com os pés, as mãos e a
cabeça, que identificam imediatamente o cultor ou o
amador; ou se interiorizam na fria tensão dos mais sofisticados, dos mais intelectualizados, os que creem no
jazz como uma religião e se deixam estar em suas mesas absolutamente impenetráveis, tendo os seus kicks
em silêncio, os extáticos e estáticos, os cold ones, os
participantes da deletéria corrente moderna de vida e
filosofia que vem de Kierkegaard e Kafka, até Malraux,
Sartre, Malaparte e seus novos discípulos, os criadores de nevroses, os fundadores de revistas que se
chamam Neurotica, Death Magazine, Furioso, e inúmeras
outras a exsudar o mesmo odor de morte.
Mas de repente a orquestra ataca os primeiros acordes de um blues, a atmosfera muda. Todos ouvem e se
concentram. Sente-se a evocação em todas as faces,
e o mistério da ligação do homem às suas origens, a
dor de sua rebeldia, a vontade de se libertar, de ser, de
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crescer, a poesia lancinante que só a linguagem da música soube exprimir para o ser privado dos seus mais
ínfimos direitos, menos o de cantar. Cabe citar aqui o
que o Minor Hall, famoso baterista negro de Nova Orleans, que começou com Buddy Bolden e hoje integra a
orquestra de Kid Ory, disse a Marili Ertegun: “O blues
me faz sentir assim como se eu quisesse subir ao topo
de um edifício de vinte andares e… me atirar de cabeça”.
Pois tal é a importância do blues para o negro norte-americano: a sua mais articulada voz.
O que é o blues? Como dissemos, a voz individual
do negro dando forma a sua tragédia íntima. Musicalmente se pode dizer que é a melodia básica do jazz. A
importância do blues primitivo na caracterização do
conceito do jazz vem adquirindo cada dia maior relevo
para os que estudam a forma dialeticamente, dentro
da sua evolução e partindo do geral para o particular.
É no blues que o negro começa a empregar consistentemente os elementos novos de sua criação, os valores
melódicos resultantes de sua adaptação à nova pátria.
Sua tristeza, sempre presente, empresta à forma esse
elemento que a faz tão interessante: a blue note. A blue
note, na frase característica do blues, outra coisa não
é senão a bemolização de certas notas da escala, o
seu abaixamento de meio-tom (geralmente a terceira e a sétima). Como tais notas são empregadas no
blues tanto naturais quanto bemóis, frequentemente
uma entonação diferente aparece entre elas, um “desvio” de modulação, se é que podemos dizer assim, que
empresta à frase um valor ligeiramente dissonante
com relação ao seu tom próprio. Este é o elemento
característico do blues, embora não possa tampouco
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defini-lo. A definição do blues tem consistentemente
escapado a seus melhores críticos e teóricos, pois a
verdade é que se o blues é forma do jazz geralmente
composta de três frases de quatro compassos cada
uma — o chamado twelve-bar blues — ou blues a doze
compassos — na qual incute a blue note —, por outro
lado nenhuma rigidez existe na interpretação do blues
que possa permitir a fixação de um conceito definidor. O blues cantado, e mesmo executado, tem fugido
frequentemente às limitações do compasso, fluindo
para fora da divisão da pauta. Qualquer tentativa de
definição parece prender a frase melódica ao conceito
diatônico da escala (dó-ré-mi-etc.), quando a sua verdadeira interpretação é fundamentalmente não diatônica. A interpretação diatônica do blues implica a sua
dulcificação, cria o elemento sweet que permitiu o efeminamento do jazz e a sua comercialização. A interpretação não diatônica aproveitando melodicamente
os intervalos, diminuindo ou aumentando a frequência
de modulação entre as notas, bluificando certas entonações, libertando-se da obrigação tonal, exercendo
um ritmo próprio, cria o elemento hot que é o sangue
do jazz. Os verdadeiros intérpretes do blues sempre
fizeram da frase melódica o que quiseram, emprestando-lhe novas sutilezas de tempo, novas variações de
acentuação, novos valores tonais. Daí se pode dizer
que o blues, como de resto todas as outras formas do
jazz, é a voz por trás dele, seja ela a voz humana ou o
seu prolongamento instrumental.
Essa diferença entre o jazz hot e o jazz sweet é da
maior importância na caracterização da forma, e nada
tem a ver com a pauta musical. Jazz é interpretação.
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Se colocarmos a mesma pauta musical diante de um
Duke Ellington e um Guy Lombardo, o produto resultante será diferente como a água e o vinho. Duke Ellington,
apesar de seguir a pauta, dará a cada elemento de sua
orquestra essa liberdade de criação sem a qual o jazz
não existe. Tocará hot. Guy Lombardo escorregará sobre a pauta obediente à anotação diatônica, incapaz de
aproveitar-se desses múltiplos elementos que existem
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Família de escravos,
pertencentes a
Benjamin W. Fosdick,
em Savannah, cidade
localizada no
estado americano da
Geórgia (1854).
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8 Grupos de prisioneiros
acorrentados uns aos outros
para realizar trabalhos
pesados. A punição era comum
sobretudo no Sul dos Estados
Unidos. Sua prática foi abolida
no país em 1955.
misteriosamente entre cada nota, entre cada compasso,
entre cada beat ou tempo, entre cada instrumento, entre esse grupo de instrumentos e um instrumento, entre
aquele grupo de instrumentos e aquele outro grupo de
instrumentos, entre o líder, sua dinâmica própria, sua
atuação, seu modo de ser, e o grupo ou orquestra que
o suporta. Num, o jazz tem dignidade. No outro, é uma
das formas mais indignas que jamais existiram, pois é o
aproveitamento comercial de elemento mais afirmativo
da revolta de um povo.
Mas tudo isso faz parte do desenvolvimento posterior
do jazz. Nesses obscuros inícios, o escravo-negro ao
cantar blues nada mais fazia que dar forma aos seus anseios individuais, criando uma mitologia diversa daquela
legada pelos spirituals. O rio, escoadouro do seu labor,
passou a ser um elemento poético importante na improvisação dos versos, bem como tudo o que com ele se relacionava. Os trens e barcos, sempre passando, fixavam-se
como uma forma simbólica de evasão, de libertação. As
prisões, as famigeradas chain gangs, 8 viriam posteriormente fornecer um poderoso corpo de imagens à lírica
do blues. Os cantos de prisão constituem um importante
fator folclórico nesse entrelaçamento de formas que, à
medida, foram estruturando a música do povo negro nos
Estados Unidos e propiciando o aparecimento do jazz.
O blues consta geralmente de uma frase em quatro
compassos que se repete, na qual o cantor expõe o objeto
ou motivo da sua canção, contrastando com uma frase final, também em quatro compassos, onde estabelece uma
resposta ou conclusão à premissa inicial. A repetição
da primeira frase deve-se à necessidade de tempo para
pensar a conclusão final, de vez que o blues primitivo era
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improvisado pelo cantador. Este é o blues típico a doze
compassos. Tomemos um exemplo conhecido:
I hate to see/ that evening sun/ go down…
I hate to see/ that evening sun/ go down…
Cause my baby/ she done left/ this town… etc.
Mas a verdade é que o blues não se prende necessariamente à forma em doze compassos. A plasticidade
da linha dá margem ao cantor para grandes distensões.
Daí a riqueza da forma e o seu extraordinário poder fecundante. O boogie-woogie, por exemplo, cuja criação
formal atribui-se ao pianista Jimmy Yancey, outra coisa
não é senão uma adaptação dançável do blues primitivo.
O caso é que nas festas negras, onde à medida foi surgindo uma liberdade maior, para não dizer libertinagem,
o blues deixou de ser música capaz de libertar a energia,
a tensão, a carga sexual contida nos corpos — mesmo
em se tratando de dança individual. Para expandir essa
energia necessitava ritmo. E tal foi a grande inteligência
de Yancey, de criar com a mão esquerda no teclado, sem
fugir ao páthos especial do blues, uma nova forma que
permitisse aos corpos se desincorporarem, por assim
dizer: darem alforria ao desejo escravizado dentro deles.
O blues teve grandes intérpretes. Como não queremos aqui nos estender em considerações sobre as individualidades do jazz, reservando-nos mais tarde para
um estudo particularizado da forma do qual este artigo
é apenas o início, limitar-nos-emos a citar o nome da incomparável Ma Rainey, a verdadeira genitora do blues e
que legaria o melhor do seu poder interpretativo à grande Bessie Smith — esta, sem dúvida, a mais completa
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9 A troca de “the” por “de” é uma
tentativa de representar o inglês
vernáculo norte-americano. Trata­
‑se de fazer a escrita se aproximar
da pronúncia (não se trata, porém,
de uma transcrição fonética).
Experiências como essa têm
uma longa tradição na literatura
americana e mesmo inglesa,
buscando-se, então, reproduzir
variações linguísticas influenciadas
pela posição social, meio, idade,
entre outros fatores.
cantora de jazz até hoje aparecida, com especialidade
de blues; e ao famoso Huddie Ledbetter — o “Leadbelly”
como é vulgarmente conhecido —, figura cujo passado
constitui hoje uma legenda entre o seu povo, criador e
cantor de folclore e blues, intérprete sem-par, que nos
longos anos de encarceramento teve em sua música o
maior dos consolos. Ainda recentemente o seu “Good
Night, Irene”, criado na prisão, constituiu impressionante sucesso de venda nos Estados Unidos, comparável
aos maiores hits da música popular americana. Mas de
seus números o mais pungente é indubitavelmente o
“Midnight Special”, também criado no cárcere, e que traduz todo o anseio de liberdade dos prisioneiros — pois
outra coisa não é o “Midnight Special” senão o trem da
meia-noite, que deu origem a uma curiosa superstição
entre os prisioneiros: a luz de sua locomotiva, ao iluminar à passagem uma das celas, constitui um bom augúrio para o encarcerado.
Let de Midnight Special
Shine its light on me
O let de Midnight Special
Shine its ever lovin light on me…9
No campo do spiritual, o número de bons intérpretes
é ainda maior que no blues. A forma tem sido inclusive
cultivada por grandes cantores de formação clássica,
como Marian Anderson e Paul Robeson. Mas não é nestes que o spiritual ou o blues podem ser recuperados em
sua pureza primitiva — é antes na interpretação de cantoras como Sister Ernestine Washington e Mahalia Jackson
ou de grupos como os Georgia Peach. Isso sem falar em
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intérpretes e grupos tipicamente populares, sacerdotes,
cegos e mendigos, que em sua peregrinação chegaram
a criar fama e dos quais existem hoje boas gravações —
gravações estas que fazem a delícia dos puristas do jazz.
“blind” lemon jefferson é um exemplo característico
desse tipo de cantor popular, e seus blues são considerados um dos pratos raros que o jazz pode oferecer.
spirituals, blues, work-songs, prison-songs, hollers —
todas essas formas, saídas umas das outras, vivem à
base de um fenômeno que iria acontecer mais tarde e
que daria criação ao jazz tal como ele é entendido nos
dias que correm: seu encontro com outras músicas,
de outras procedências, numa cidade situada perto do
golfo do méxico, à margem do grande mississippi — a
cidade de nova Orleans.
página ao lado
sensualidade
e páthos:
billie holiday
(c. 1930).
paul robeson,
citado por
vinicius como
um cantor
de spiritual
de formação
clássica.
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