UNIR Universidade Federal de Rondônia Caminhadas de universitários de origem popular UNIR UNIR Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão. O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores. Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Inês Sousa Organização da Coleção: Monique Batista Carvalho Francisco Marcelo da Silva Dalcio Marinho Gonçalves Aline Pacheco Santana Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ Coordenação: Claudio Bastos Anna Paula Felix Iannini Thiago Maioli Azevedo C183 Caminhadas de universitários de origem popular : UNIR / organizado por Ana Inês Souza, Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009. 88 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular) Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. ISBN: 978-85-89669-49-8 1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I. Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. V. Universidade Federal de Rondônia. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII. Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. CDD: 378.81 Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares Organizadores Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Inês Sousa UNIR Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ Rio de Janeiro - 2009 Coleção Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministério da Educação Fernando Haddad Ministro Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD André Luiz de Figueiredo Lázaro Autores Alemmar Ferreira da Fonseca Alexandre Aparecido da Silva Néres Ana Gleice Costa da Silva Ana Paula A. de O. Moura Carla Caroline da Silva Nunes Secretário Carlos Henrique Teixeira Armênio Bello Schmidt Franciane Farel da Silva Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI Francinei Ferreira da Silva Leonor Franco de Araújo Coordenação Geral de Diversidade – CGD Geicyane Morais dos Santos Helena Pereira Leite Janaína Ferreira de Lima Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares Jorge Luiz Barbosa Jailson de Souza e Silva Coordenação Geral Márcio Secco Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UNIR Juliana Rocha Monteiro Leandro Corrêia Luciana Colares da Silva Lucinéia Miranda Sanches Luiz Gonzaga Junior Marilene Pinheiro Craveiro Patrícia dos Santos Lima Regilane Lacerda Gonçalves Rosemari Nazaré da Silva Paz Universidade Federal de Rondônia Rosimeire Ferreira do Nascimento Sales Conceição de Melo Nogueira José Januário de Oliveira Amaral Suelen da Costa Silva Reitor Terezinha Andrade da Costa Maria Ivonete Barbosa Tamboril Vice-Reitora Josélia Gomes Neves Pró-Reitora de Cultura, Extensão e Assuntos Estudantis Walkyria Rodrigues Ramos Prefácio A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental. A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma intensa e sistemática esses objetivos. Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e, por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas. Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou, inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS, UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os estados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC, UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar, UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB. Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma, ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de 1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao menos 35 bolsistas. práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição, ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais. Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19 publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor prestígio social. Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais justa e uma humanidade cada dia mais plena. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Ministério da Educação Observatório de Favelas do Rio de Janeiro Sumário Apresentação Márcio Secco ........................................................................................................ 9 Caminhada Alemmar Ferreira da Fonseca ............................................................................ 11 Tendo que aprender Alexandre Aparecido da Silva Néres ................................................................. 13 A saga de uma estudante de origem popular Ana Gleice Costa da Silva ................................................................................. 15 Uma das caras do Brasil Ana Paula A. de O. Moura .................................................................................. 19 Retratos de uma vida acadêmica Carla Caroline da Silva Nunes .......................................................................... 21 Eu sou um estudante de origem popular - minha vida, meus estudos Carlos Henrique Teixeira ................................................................................... 23 A trajetória da vida escolar de uma “estudante universitária de origem popular” (EUOP) Franciane Farel da Silva .................................................................................... 25 Início de um história Francinei Ferreira da Silva................................................................................ 29 Mais que uma mudança, a realização dos meus sonhos... Geicyane Morais dos Santos .............................................................................. 31 É preciso saber viver Helena Pereira Leite ........................................................................................... 34 Minha trajetória Janaína Ferreira de Lima ................................................................................... 36 Trajetória escolar de aluno de origem popular Juliana Rocha Monteiro ..................................................................................... 39 Caminhada rumo a universidade Leandro Corrêia .................................................................................................. 41 Minha caminhada Luciana Colares da Silva ................................................................................... 45 Estudar na federal? Porque não!!! Basta querer e acreditar Lucinéia Miranda Sanches ................................................................................ 48 Muito mais que um sonho Luiz Gonzaga Junior ........................................................................................... 52 Caminhada Marilene Pinheiro Craveiro ............................................................................... 54 Nuances de mim Patrícia dos Santos Lima .................................................................................... 57 Mudanças imagináveis... Regilane Lacerda Gonçalves ............................................................................. 63 Juntando minhas conexões Rosemari Nazaré da Silva Paz ........................................................................... 65 Minhas caminhadas Rosimeire Ferreira do Nascimento .................................................................... 67 A conquista esperada! Sales Conceição de Melo Nogueira .................................................................. 69 Especial Suelen da Costa Silva ......................................................................................... 74 A busca Terezinha Andrade da Costa .............................................................................. 78 Nada é por acaso... tudo está escrito Walkyria Rodrigues Ramos ................................................................................ 81 Apresentação O programa Conexões de Saberes iniciou na Universidade Federal de Rondônia em 2006. Apresentou-se, desde o seu aparecimento, como a principal política de permanência de estudantes em nossa instituição. Neste livro aparecem as trajetórias de 25 alunos bolsistas. Apesar de estes ensaios serem escritos a partir da vivência subjetiva de cada autor, esta obra não deve ser tomada como uma simples coletânea de histórias de vida. Estes ensaios não devem ser lidos como relatos individuais, e sim como recortes de uma trajetória comum a praticamente todos os estudantes universitários de origem popular. As histórias da Ana, do Sales, da Alemmar, do Leandro... são aqui apresentadas como memórias de uma mesma existência, que junto a tantas outras que apareceram na primeira edição do Caminhadas, e junto a todas aquelas que sequer foram escritas ou publicadas, formam uma unidade, que é o conjunto de referências a partir do qual é possível afirmarmos a identidade dos estudantes de origem popular. A Universidade não conhece seus estudantes, e os estudantes não conhecem a Universidade. O programa Conexões de Saberes que propõe um diálogo entre saber científico e saberes populares visa justamente promover o reconhecimento de dois lugares que devem ser vistos como diferentes, mas que devem ao mesmo tempo interagir. O conhecimento acadêmico geralmente está colocado como mais certo, mais verdadeiro, mais rigoroso, mais universal e objetivo, contrastando com o saber popular, marcado pela particularidade e subjetividade. A afirmação do saber acadêmico como melhor frente a outras formas anula o aluno, tornando suas experiências algo menos importante, ou em certos momentos estas experiências podem ainda aparecer como obstáculos ao aprendizado da forma certa de se fazer experiências. O saber acadêmico, por ser “impessoal”, percebe a todos como iguais em capacidade intelectual, o que a princípio bastaria para garantir o progresso da ciência pela formação das novas gerações de estudantes. A Universidade aparece a muitos dos estudantes que publicam seus ensaios nesta coleção como um sonho distante, quase irrealizável. Muitos relatam que não sabiam exatamente o que iriam encontrar quando realizassem seu sonho. O meio acadêmico aparece ao estudante de origem popular como algo de difícil acesso. “É um mundo novo”, nas palavras de um dos autores. A dissociação entre as realidades acadêmica e popular gera ao mesmo tempo uma dissociação da auto-imagem dos alunos. Ao entrar no espaço acadêmico os alunos de origem popular tendem a buscar uma identificação com os que habitam este mundo dos sonhos. Esta identificação geralmente ocorre pela negação de sua condição popular. No duelo dos mundos a Universidade se impõe! Quem perde é o estudante, que se afasta de sua comunidade e nem sempre consegue penetrar no espaço acadêmico. Universidade Federal de Rondônia 9 Nestes ensaios a marca foi a liberdade. Nenhum dos estudantes foi forçado a seguir métodos específicos, nem escolas, mas tão somente a forma que percebiam como mais adequada para apresentarem sua trajetória. A rememoração e a afirmação da história de cada um destes estudantes tem como principal objetivo para nós a construção de uma identidade que possibilite a transformação do ambiente universitário. Márcio Secco Caminhada Alemmar Ferreira da Fonseca * Olá, meu nome é Alemmar Ferreira da Fonseca, nasci em 10 de julho de 1967, na cidade de Nova Olinda do Norte, Amazonas. Filha de uma ex-lavadeira, agora funcionária pública e, um pai que eu amo, mas, que por circunstâncias de sua doença se tornou mendigo e já não o vejo há algum tempo. Em minha infância conversava bastante conosco e nos fazia ver a necessidade de estudarmos, pois ele não teve a oportunidade de continuar seus estudos e não pôde realizar seus sonhos e teve que se contentar com o que lhe ofereceram: um cargo na coletoria. Minha mãe estudou até a quarta série, com esse estudo chegou a ser professora em sua cidade, com o casamento tudo ficou diferente, as coisas ficaram difíceis, meu pai começou a beber e a fugir de casa, o que resultou em sua condição atual. Comecei a estudar aos 3 anos de idade num grupo escolar na cidade de Axini no Amazonas com a professora Linduina, segundo me contam eu logo acompanhei a turma e aprendi a ler e escrever, foram alguns meses, até viajarmos para outra cidade. Em 1975 comecei o ensino fundamental, na escola Padre Chiquinho, na quinta série passei para a Escola Estudo e Trabalho, nessa escola desisti após sofrer um acidente na aula de educação física, daí em diante não faço nem um tipo de atividade física. Essa escola não aparece em meu histórico escolar porque lá perderam os meus documentos, passei muitos anos esperando que a secretaria resolvesse a situação, o que não aconteceu. Dez anos depois já em 1995, resolvi fazer o supletivo modular, pois nele eu faria meu horário e poderia ir esporadicamente pegar explicações com o professor na escola, foi ótimo para mim que tinha quatro filhos e ninguém com quem deixá-los, fazia e vendia artesanatos e trabalhos manuais para sustentá-los. Em seis meses fiz de quinta à oitava série, em 1996 concluí o ensino médio no supletivo multi seriado da escola Getulio Vargas, então usei a frase que quando ouço me faz refletir o quanto sou ignorante: “acabei meus estudos.” Nunca casei, amasiei-me três vezes, a ultima já dura 6 anos, essa pessoa é casada lá no nordeste, sua esposa é bem sucedida e de tanto ouvir isso resolvi estudar e buscar fazer o melhor que puder em tudo que for fazer. Fiz alguns cursos na área em que trabalhava, um dia entrei no correio e era o último dia das inscrições para o vestibular, me inscrevi, comecei a estudar, porém, não me parecia suficiente, encontrei na rua um panfleto anunciando uma revisão de matéria para o vestibular, fui lá, me matriculei, então me faltou tempo para freqüentar. * Graduando em Letras Espanhol. Universidade Federal de Rondônia 11 Pedi demissão do emprego, apostei em mim e passei no vestibular, no curso de Letras Espanhol, pensei em não cursar, não tinha renda para permanecer na universidade. Foi quando Jeová me abriu outra janela, montei uma lanchonete que toquei até o terceiro período, quando um dia li no mural que estavam selecionando bolsistas para o Programa Conexões de Saberes foi a salvação, vi ai chance de dedicar mais tempo à minha formação e desenvolver projetos de ações afirmativas dentro da minha comunidade, e quem sabe ajudando algumas pessoas que como eu não tinham esperança de se graduar, mostrando que isso não necessariamente é privilégio de ricos. Quero atuar onde for preciso, e,quando não estiver apta em qualquer assunto, sentirei prazer em pesquisar fazendo o possível para ser útil na comunidade onde vivo. 12 Caminhadas de universitários de origem popular Tendo que aprender Alexandre Aparecido da Silva Néres * Meu nome é Alexandre Aparecido da Silva Néres, tenho 21 anos, nasci no dia 05, do mês de maio, do ano de 1985, natural de Porto Velho-RO. Aos 2 anos de idade fui morar com meus avós e logo tive que sair de Porto Velho. Fui com eles para Boa Vista, capital de Roraima, mas em um prazo de tempo muito curto, tivemos que ir para outra cidade, e assim mudamos para Goiânia. Pelo que posso dizer, foi o começo de minha trajetória, lá entrei no pré-escolar e por estarmos muito longe de nossa família procuramos ir para um local mais perto, e mais uma vez, nós nos mudamos, só que dessa vez para o estado de Rondônia, na cidade de Vilhena. Vilhena fica mais perto de Porto velho, onde meus outros familiares moravam. Minha mãeavó decidiu que ali, talvez, nós fixaríamos residência. Em Vilhena estudei a 1ª e 2ª série do ensino fundamental, no período da tarde. Lá tive bons colegas de rua, jogava bola, tomava banho de rio, entrava nas casas abandonadas apenas para ver o que tinha dentro. A molecada adorava quando achava bolsa, carteira, tudo era uma alegria. Nessa época, minha mãe-avó trabalhava numa pizzaria, ia quase todos os dias, mais ou menos as 18:00. Eu ficava em casa, sozinho, boa parte da noite, enquanto minha mãe provia nosso sustento. Éramos apenas, minha mãe e eu. Depois conheci um dos homens mais formidáveis do mundo, sujeito simples, tranqüilo, de alegria contagiante. Seu nome: José Leal Ciqueira. Entrou na nossa família, e logo que eu vi, era ele quem eu queria que fosse meu pai. Naquele momento estava tudo certo, tinha um pai, o qual não era qualquer um, era o pai que todo filho gostaria de ter quando se tem certo problema. Como naquelas horas que você tenta colar aquela “pipa”, pois, ele chega, pega na sua mão e mostra: “Meu filho é assim que se faz”. Nunca chegou a levantar a mão para me bater e sempre estava de braços abertos para me dar carinho. Esse é meu pai! Papai trabalhava muito no garimpo de cassiterita, se não estou enganado era na Bolívia. E novamente, só que dessa vez, minha mãe e também meu pai decidiram, trocamos de cidade. Fomos para o Mato Grosso, morar no interior, numa cidadezinha chamada Pontes e Lacerda. Lá estudei da 3ª à 5ª série, meus pais trabalhavam na escola onde eu estudava, meu pai era vigilante e mamãe vendia iogurte. E com esse dinheiro e com o salário do meu pai, tivemos condições para comprar uma casa. Em todas as nossas viagens, não tínhamos casa própria. Enfim, o sonho de minha mãe foi realizado. Ela comprou uma casa em Cuiabá, onde completei meu ensino fundamental. * Graduando em Letras - Espanhol pela UNIR Universidade Federal de Rondônia 13 Boa parte da minha vida foi indo e vindo de uma cidade para outra. Logo, universidade para mim, era um sonho distante, pois achava que seria muito difícil eu conseguir entrar em uma Universidade Federal, pois, que chances teria eu, CONTRA OS FILHOS DA CLASSE MÉDIA ALTA? Os quais possuem toda estrutura para galgarem os melhores lugares nas universidades. Porém, como um gigante, atravessei todas as barreiras, e também contando com a sorte, hoje estou na tão sonhada universidade. E vejo que, com dedicação, tenho capacidade de fazer qualquer curso. O Conexões de Saberes dá possibilidades a muitos jovens como eu, fazendo com que permaneçam em seus cursos e ainda mais, tentarem mestrado e doutorado, mostrando que tudo é possível, porque o que eu percebo é que, falta visão e perspectiva de um futuro promissor. 14 Caminhadas de universitários de origem popular A saga de uma estudante de origem popular Ana Gleice Costa da Silva * Vou pedir licença pra contar a minha história Como uma estudante tem suas perdas e suas glórias... Minha história inicia-se no dia oito de setembro de 1985, sou a segunda filha de cinco irmãos: Anatécia, Ana Gleice que sou eu, Alan, Anacele e Ana Kássia. Comecei a freqüentar a escola com três anos de idade, na época meus pais eram autônomos, trabalhavam em uma lanchonete que servia refeições, às margens da BR-364, minha mãe cuidava da cozinha e atendia ao público, meu pai fazia as compras repondo o estoque e de certa forma era nosso motorista. Tínhamos que acordar às três da manhã, sorte que tínhamos carro próprio, não era muito bom ter que tomar banho nesse horário, mas meu pai fazia o possível para tornar tudo divertido. Quando chegávamos a lanchonete, minha mãe arrumava um colchão no chão e voltávamos a dormir, às vezes quando nos atrasávamos meu pai fazia feira com a gente dormindo no carro, à tarde íamos à escola. Quando completei quatro anos meu pai adotou um menino, era o sonho de ele ter um filho, nós estudávamos em escolas particulares. Eu e minha irmã estudávamos no SESI e meu irmão na Santa Marcelina uma escola de freiras. Meus pais eram ocupadíssimos, mas todo domingo após o meio dia eles se dedicavam totalmente a nós. No SESI cursei o pré I, pré II e pré III, a mensalidade da escola estava ficando acima do orçamento, eu e o Alan fomos estudar no Antônio Ferreira, uma escola municipal e minha irmã foi pra escola Rio Branco que é estadual, ambas tinham ótima reputação. Um fato muito interessante que me recordo quando entrei na escola aconteceu no segundo dia de aula, meu pai é semi-analfabeto e minha mãe cuidava da lanchonete, na hora da matrícula meu pai cometeu um equívoco, me inscreveu na segunda série. Considerando-se a minha idade eu iria para a alfabetização (eu tinha cinco anos), a professora me pediu pra ler uma historinha e eu não sabia ler, ela ficou surpresa e eu apavorada, começando a chorar. Entra na sala a diretora, psicóloga e mais algumas mulheres, perguntaram minha idade, e chegaram à conclusão de que eu estava na série errada. Levaram-me aos prantos para a sala de alfabetização, eu com medo que meu pai brigasse, quase não soltava * Graduanda em Química pela UNIR Universidade Federal de Rondônia 15 a barra da saia da supervisora, até chamarem meu irmão que estudava na sala e depois de conversarem muito comigo me convenceram a entrar e estudar. Na hora da saída falaram com meu pai e explicaram toda situação. Durante o período da tarde eu e minha irmã freqüentávamos o balé no teatro municipal, era o sonho do meu pai que nos tornássemos bailarinas, como a mensalidade também se tornou muito cara, tivemos que abandonar. Minha mãe estava ficando doente pelo esforço grande que fazia, teve sérios problemas de coluna, a partir desse fato muita coisa começou a mudar. Começamos ir à escola de ônibus, minha irmã tinha que nos deixar na escola e depois ir estudar para que meu pai pudesse ficar ajudando minha mãe na lanchonete. No início detestávamos, estávamos acostumados a andar sempre de carro, mas era até divertido ir para a escola de ônibus, pelo caminho tinha muitas árvores frutíferas, e esse era um de nossos lanches, meu irmão subia em pé de manga, de jambo, de castanholas, de ingá, e eu ficava segurando o nosso material escolar e olhando para ver se alguém aparecia, e quando os donos apareciam era uma correria só, nossa bolsa era uma sacola de supermercado e não tínhamos vergonha, outro fato engraçado de minha infância de que me recordo foi quando estávamos na segunda série, as coisas ainda estavam difíceis, meu irmão inventou de fazer robôs de sucata para vender na escola, diariamente durante o nosso percurso juntávamos fio de telefone, brinquedos velhos e qualquer tipo de matéria-prima para a construção dos robôs, em uma de nossas coletas ao retornar da escola, avistamos em uma lixeira um monte de fios de telefone todos coloridos e sem muito pensar metemos a mão para pegá-los, a lixeira ficava em frente a um pequeno condomínio, uma das moradoras nos avistou e chamou-nos para sua casa, chegando lá, a senhora da casa nos ofereceu uma bandeja de cachorro quente e refrigerantes (imaginava ela que estávamos catando comida no lixo e ficou com pena), o mais legal é que ainda comprou um de nossos robôs. Estudei na escola Antônio Ferreira até a quinta série, foram anos divertidos, a média da escola era sete, para mim só servia se eu tirasse de oito para cima, sempre adorei quando nas reuniões de pais e mestres, minha mãe olhava meu boletim e ficava muito orgulhosa, o único problema era o fato de gostar de conversar durante as aulas. Quando estava na primeira série nasceu a terceira filha, Anacele, senti muito ciúme dela afinal eu era a caçula e agora ela tinha tomado o meu lugar assim eu imaginava, o engraçado era que minha mãe tomava anticoncepcional e engravidou, após o parto minha mãe fez uma laqueadura, a partir daí iniciou-se o tempo mais difícil que passamos, os médicos diziam para minha mãe que se ela quisesse ver os filhos crescerem deveria parar de trabalhar, por que sua coluna estava muito debilitada, lembro que nessa época mudamos de bairro, fomos morar na zona leste da cidade, em um bairro pouco habitado (tinha mais mato que casas), chamado de Mariana, assim que a Anacele nasceu mamãe tinha que sair pedindo mamão pelas casas do bairro para poder fazer vitamina para minha irmã e muitas vezes ela ouvia “não”, diziam que as frutas eram para as galinhas, até que encontrou emprego de faxineira em uma escola (apesar de todos os médicos dizerem que ela não devia nem sonhar em trabalhar), meu pai ficou desempregado, não consegui manter o ritmo da lanchonete sem minha mãe, eu e meu irmão para economizar as passagens de ônibus passávamos pela frente ou por baixa da roleta. Quatro anos após a laqueadura, mamãe engravidou da quarta filha, Ana Kássia, quase entrou em desespero devido as nossas condições financeiras. Graças a Deus meu pai encontrou um emprego e minha mãe ganhou todo o enxoval de minha irmã, depois que 16 Caminhadas de universitários de origem popular acabou o resguardo minha mãe teve que voltar a trabalhar, carregava com ela Anacele e deixava a bebê conosco, minha irmã teve que estudar no período da manhã e eu no período da tarde, para cuidar do bebê. Eu gostava de estudar pela manhã, a experiência de estudar a tarde era horrível. Eu só tinha dez anos e tinha que cuidar de um bebê. O bom era que ela não era muito chorona. Isso começou a afetar os estudos, eu comecei a faltar às aulas, por que às vezes minha irmã se atrasava e eu só poderia sair após ela chegar. Meu rendimento foi caindo, minha mãe percebeu e conversou com a vizinha para que ela desse um apoio, a partir daí tudo foi se ajeitando. Após a quinta série minha mãe me transferiu para uma escola mais próxima de casa. Dava para ir de bicicleta. Era uma instituição filantrópica, uma escola de freiras chamada Marcelo Candia. Só se entrava por seleção e eu fui uma das selecionadas. O material didático era muito caro, mais como meus pais eram velhos conhecidos das freiras, eu ganhei todo o material. Foi a escola que mais gostei, devido a estrutura e ao ensino. Meus pais conseguiram emprego na escola e praticamente a família toda estava de alguma maneira relacionada com a mesma. Fiquei na escola durante três anos, porque só havia o ensino fundamental, o único grande problema era que minha mãe continuava a ser faxineira e isso só prejudicava cada vez mais sua coluna. Durante esse período minha mãe estudava a noite e com muito sacrifício terminou o magistério, foi nessa escola que me apaixonei por Ciências, futuramente por Biologia, tudo devido a uma professora que tive de Ciências chamada Cláudia. Quando fiz quinze anos minha mãe me propôs uma festinha ou uma viagem para a casa da minha avó que mora em Manaus, eu preferi a viagem por que sairia mais em conta, acabei ganhando duas festas surpresa, uma na escola outra realizada por vizinhos (uma festa realizada com trinta reais, e pode ter certeza a melhor que já tive). Quando cheguei a Manaus, estudei em uma escola estadual Maria da Luz Calderaro, não era o mesmo ritmo do colégio das irmãs, não tinha com quem apostar quem tirasse a nota mais alta como fazia em minhas escolas anteriores. A maioria só queria tirar a média que agora era seis. Eu acabei ficando desmotivada, apenas me interessava matérias que ninguém gosta como Biologia, Química, Física e Matemática. Passei um ano em Manaus, devido a problemas familiares, fui obrigada a voltar. Retornando, fui matriculada na escola Getúlio Vargas. Essa acabou com meu interesse estudantil, os meus professores faltavam muito, minhas matérias preferidas eram levadas “a pagode”, quase não tinha aula e eu entrei no ritmo de estudar só para passar. Quando finalizei o terceiro ano recebi uma medalha de aluna nota dez, e nem sei por que! Se a escola soubesse do meu histórico escolar saberia que eu não era nem um terço do que havia sido. Nessa época fazia um curso de informática com duração de um ano em uma instituição para pessoas de origem popular. O nome era Centro Salesiano do Menor. É uma instituição que oferece cursos profissionalizantes. Fiz seis meses de datilografia e um ano de informática. Quando prestei vestibular pela primeira vez fui influenciada por esse curso, e me inscrevi para informática. Por ser meu primeiro vestibular até que alcancei uma boa pontuação. Teria passado para outro curso. Terminado o ano letivo e o curso de informática, pensei em ficar em casa de papo para o ar, mas minha mãe precisava de uma ajudante. Minha mãe não trabalhava mais como faxineira. Conversou com a diretora da escola e apresentou toda sua problemática relacionada à coluna, e a irmã tentou aposentá-la, porém não houve êxito. Então ofereceu a cantina da escola para que minha mãe trabalhasse, não é tão pesado como fazer faxina, mas deveria pagar um aluguel. Fui ajudá-la nessa Universidade Federal de Rondônia 17 empreitada. A escola só funciona em dois horários. Como meu sonho era ser bióloga, resolvi que iria fazer um novo vestibular. Sabia que precisava estudar mais, os cursinhos prévestibulares eram muito caros e ainda tinha o transporte. Então propus à irmã Carmen, diretora do colégio, que me deixasse assistir as aulas do terceiro ano que fora implantado. Devido a minha boa conduta de ex-aluna ela me recebeu muito bem, então fiquei como ouvinte. Estudava durante a manhã, ajudava minha mãe na hora do recreio que era a hora mais crítica, e no período da tarde. Me inscrevi no vestibular, mas não em biologia, que era o curso que eu queria fazer, pois havia um problema: o curso era em período integral. me inscrevi para Química que era uma paixão de segundo plano, devido ao incentivo de minha mãe. Fiz o vestibular e fui aprovada. Estou me descobrindo cada vez mais e me apaixonando pelo curso. Logo poderei contribuir financeiramente em casa e dar um pouco de descanso para meus pais. A universidade não era bem o que eu imaginava, um sentimento de decepção me envolveu. Descobri que passar no vestibular não era a parte mais difícil. A pior parte é tentar permanecer e concluir o curso. Eu participo de um grupo de universitários chamado UNA (Universitários em ação), e a primeira ação do grupo foi montar um curso pré-vestibular comunitário em nossa comunidade. Estou lecionando Química e na universidade sou bolsista do Programa Conexão de Saberes. O projeto é muito bonito e se preocupa tanto com a entrada quanto a permanência de estudantes de origem popular na universidade. O projeto proporciona uma troca de conhecimento popular com o conhecimento científico, fazendo este enlace e isso o torna tão bonito. Já havia participado de alguns movimentos, pastoral da juventude, mas nada que despertasse tanto o interesse pela luta do meu povo como o Conexões. Meus irmãos e meus pais ainda estão na escola Marcelo Cândia, apenas minha irmã Anatécia reside em Manaus. Ela está na UFAM, concluindo o curso de Letras Português. Depois de passar por tanta coisa e que com certeza temos muito a passar, nunca demos desgostos a nossos pais, todo sofrimento e alegrias que tive contribuiram para formar o caráter que tenho. Não serei uma bailarina como queria meu pai, mas com certeza terá muito orgulho de ter uma Química bem conceituada, uma ótima profissional, feliz e realizada. Essa história não é para causar tristeza ou lágrimas em ninguém. Tudo que busco é incentivar os leitores para que sintam força para sempre levantar das quedas da vida, porque sempre vale a pena, sempre há uma luz no fim do túnel. E ESSE É APENAS O COMEÇO DA MINHA SAGA ESTUDANTIL... 18 Caminhadas de universitários de origem popular Uma das caras do Brasil Ana Paula Ascuí de Oliveira Moura * Assim como a maioria dos alunos de origem popular encontrei algumas dificuldades no decorrer dos meus estudos e desde muito cedo a palavra NÃO passou a fazer parte da minha vida. Sou a caçula de uma família de cinco filhos, onde quatro são mulheres. Nasci e vivi até meus dezoito anos no município de Guajará Mirim, fui crida pela minha mãe e pelos meus avós. Atualmente tenho vinte e um anos e posso dizer que tive uma boa infância. Nessa fase era destaque nas minhas turmas por apresentar facilidade em aprender. Ingressei na primeira série do ensino fundamental lendo e escrevendo muito bem. Recordo que foi nesse período que conheci o que é o medo de perder alguém, quando tinha seis anos minha mãe foi operada do coração, uma cirurgia muito delicada, sofri muito e ainda sofro ao imaginar o que seria de mim e dos meus irmãos se ela tivesse morrido. A partir da quinta série passei a não ser mais uma aluna exemplar, porém continuei tendo responsabilidade e isso era reconhecido pelos professores. Na quinta série aprendi o que era gazetar aula, adorava esportes e sempre fugia para assistir aos jogos escolares, devo esse amor a um professor de educação física que amava o que fazia e sempre conseguia contagiar quem estava a seu lado. Infelizmente nem todos eram iguais a ele. Nessa série deparei-me com uma realidade totalmente diferente da que tinha tido até então. A maioria dos meus professores não ensinava nada, não possuíam domínio sobre a turma, era um horror! Na sétima e oitava séries as coisas pioraram, diante dessa situação percebi que para passar no vestibular teria que mudar de escola, continuar na que eu estava representava um erro, talvez irremediável. Dos meus irmãos eu sempre fui a mais decidida e a mais estudiosa. Cresci com a certeza de que iria cursar uma universidade, é esse objetivo que me move até hoje e que me fez ganhar a confiança da minha família. No ano de 2001, já no ensino médio, mudei para outra escola, também pública, com o intuito de fazer magistério, porém no ano em que iria começar o curso, o mesmo foi extinto. Essa nova escola possuía uma ótima reputação, era mais estruturada e organizada, a maioria dos alunos eram de classe média alta. Os professores tinham uma preocupação especial com o colegial e o motivo dessa preocupação era o vestibular. Eles eram muito exigentes, a maioria queria trabalho digitado e se esqueciam que numa sala de quase quarenta alunos apenas dois possuíam computador. Ficava revoltada com essa exigência, não entendia como um docente poderia cobrar de um aluno o que ele não tinha, nem poderia ter. A escola possuía um laboratório de informática e era quase proibida a entrada de alunos. * Graduanda em em Espanhol pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 19 Nessa nova escola não era permitido tirar fotocópia. Nesse ano comecei a receber uma pequena pensão do meu pai e com esse dinheiro comprei com muito sacrifício todos os livros em suaves prestações. Sofria para estudar matérias como Física, Matemática e Química, mas adorava estudar Literatura e por ela deixei de lado os esportes. Passei para o segundo ano, sempre pensando no vestibular. Um certo dia resolvi fazer um curso de inglês, adorava o idioma, fiz um semestre sem muitas dificuldades para pagar, no segundo não foi tão fácil assim, acabei saindo do curso. Como eu era uma aluna aplicada, a dona do curso deu-me uma bolsa por um semestre. Quando o prazo da bolsa acabou tive que sair porque não tinha condições financeiras para continuar. Esse curso foi muito importante na minha vida, através dele desenvolvi o interesse por idiomas. Entrei para o terceiro ano, este foi o ano mais louco da minha vida, tantas decisões, tantas dúvidas. Comecei a estudar e ler muito, não fiz cursinho, estudei sozinha. Às vezes, ia para a casa de um amigo estudar com ele e com outro colega. Nossa turma tinha quase quarenta alunos e somente três passaram no vestibular da Unir, e um deles sou eu. O momento mais difícil desse período foi escolher o curso. Muitas pessoas ao saberem de minha escolha ficavam decepcionadas e diziam que eu tinha potencial para coisa melhor, que Letras não dava dinheiro. Existe um enorme preconceito com quem escolhe cursar Letras, as pessoas acreditam que quem faz esse curso não teve a chance de fazer outro, o que no meu caso não é verdade. Esse curso realmente não era o que eu gostaria de fazer, porém foi o que eu escolhi dentro de várias possibilidades. Amo o meu curso, não sei se me dará dinheiro ou fama, somente tenho a certeza de que sairei da Universidade Federal de Rondônia com o meu diploma na mão e com o objetivo de ser uma das melhores profissionais na minha área. No dia 19 de janeiro de 2004, vim para Porto Velho com duas malas, duas caixas de livros e muito medo. Durante os seis primeiros meses fiquei hospedada na casa de uma amiga, cuja mãe é minha madrinha. No segundo semestre desse mesmo ano, minhas aulas na Universidade começaram e passei a morar sozinha, meu pai começou a me ajudar e minha mãe passou a sustentar duas casas, a minha e a dela. Sofri com a saudade, com a distância e com as dificuldades financeiras. Muitas vezes pensei em desistir do curso, isso não aconteceu graças ao apoio que sempre tive dos meus amigos e da minha família, e que hoje tenho do Conexões. Ter ingressado no Programa Conexões de Saberes me fez ver que assim como eu muitas pessoas também possuem dificuldades em se manter na universidade, e algumas com problemas muitos maiores que os meus. Passei a enxergar melhor o que está ao meu redor, refletir sobre minha origem e rever meus conceitos. Ações afirmativas como essas devem ser criadas e ampliadas a todas as universidades, alcançando cada vez mais alunos de origem popular, pois acredito que começa pela educação a solução para as desigualdades tão presentes em nossa sociedade. 20 Caminhadas de universitários de origem popular Retratos de uma vida acadêmica Carla Caroline da Silva Nunes * Tenho 20 anos, sou brasileira, e me chamo Carla Caroline da Silva Nunes e quero compartilhar a minha história que é igual à de muitos que são como eu estudantes de origem popular. Tive altos e baixos em minha vida antes de ingressar na tão esperada e sonhada universidade. Onde estou no 5º período do curso de Ciências Biológicas na Universidade Federal de Rondônia. Meus Pais Antes de começar meu relato sinto que é necessário falar sobre a pessoa mais importante da minha vida e que me ensinou tudo o que era necessário para eu encarar este mundo tão perverso e cheio de desigualdades: minha mãe. Ela nasceu na cidade de São Luiz no estado do Maranhão, e foi criada pela avó, pois perdeu sua mãe muito cedo. Por condições financeiras não teve oportunidades de estudar. Pode concluir somente o ensino primário (estudou até a 4a série), pois precisava trabalhar pra ajudar no sustento da casa. Era um trabalho muito difícil, ela saía de madrugada e só voltava à noite, o que ela fazia? Quebrava babaçu que é uma fruta bastante comum no nordeste, deste extraía o óleo que é usado para a venda. Mas foi quando trabalhava como empregada doméstica que sua vida tomou um novo rumo. Sua patroa viria para uma cidade bem distante dali chamada Porto Velho. Minha mãe nunca havia se afastado da sua avó e mal sabia que essa seria a última vez que a veria com vida. Mas parece que o seu destino estava ali naquela cidade, pois este foi o lugar aonde ela viria constituir uma família. Sim, pois foi aqui que ela conheceu meu pai. Ah, meu pai... o que falar sobre ele. Bem meu pai se separou da minha mãe quando eu tinha apenas 4 anos de idade e desde então nunca se preocupou com o que realmente acontecia comigo, pois sua atual mulher não permitia que ele me desse muita atenção, e ele nunca deu muita importância para o que acontecia comigo. Quando nasci Eu nasci no dia 5 de julho de 1986 sou a filha caçula e sempre tive incentivos em relação aos meus estudos. Minha mãe me ensinou que o estudo abre muitos horizontes que era o único caminho para se ter um futuro melhor (e eu nunca duvidei disso), e tentava com todas as suas forças e investimentos garantir que nada me faltasse. Como ela não teve oportunidade de estudar, queria que comigo fosse diferente e graças a Deus foi, pois sou a primeira da família a entrar em uma universidade. * Graduanda em Ciências Biológicas pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 21 Vida escolar Eu sempre estudei em escola pública, com exceção do prézinho e a 1ª série que fiz em escolinhas particulares do meu bairro. Conheço de perto as condições precárias do nosso sistema de ensino básico e agora do ensino superior. Estudei da segunda à quarta série na escola Herbert de Alencar. Ficava perto da minha casa, possuía uma ótima infra-estrutura e professores capacitados, pois era particular e acabara de passar a ser estadual. Existiam alguns professores federais na escola, que continuavam a dar aula mesmo durante as greves que eram bastante comuns. A partir da quinta até oitava série eu fui estudar em uma escola municipal longe da minha casa e comecei a precisar de condução. Minha mãe sempre arcou com todas as minhas despesas escolares. Meu pai ajudava com menos da metade do valor que era usado para comprar as cartelas dos meus passes escolares. Ele sempre mostrou certo descaso pela minha educação. Pouco procurava saber se faltava algo em minha casa. Porém com uma mãe guerreira como a minha pouco me importava a ajuda do meu pai. Fiz o meu ensino médio na escola Castelo Branco. Aí foi dureza! A escola já tinha a tradição de todo ano ter greve, e as aulas só acabavam em janeiro. O primeiro e o segundo anos foram tranqüilos, mas no terceiro ano, que era o “Terceirão”, pois era a preparação para o vestibular da única federal que existe no estado, o meu professor de Física só chegou no meio do ano e deu a matéria de qualquer jeito, por não ter tido uma base boa em Ciências Exatas. Bem antes de chegar ao terceirão já pensava em fazer algo ligado à Biologia, mas, na verdade o meu sonho profissional só será realizado quando eu estiver cursando medicina, que é um curso de alto nível, onde infelizmente estudantes de origem popular ainda são raros. Qual será a fonte do problema? Uma pergunta que ficará sem resposta. É triste reconhecer que por não ter uma boa base no ensino público não estou apta a me inscrever em cursos de prestígio social e maior concorrência. Pelo fato de as universidades públicas do Brasil não estarem abertas às comunidades populares, por essa mentalidade errada que tive, sempre pensei que se não fizesse um cursinho pré-vestibular privado não passaria no vestibular. Fiz minha mãe desembolsar 110 reais por mês para pagar o meu cursinho. Mas hoje eu sei que não é um cursinho e nem quanto ele custa que faz com que você seja aprovado em um vestibular ou qualquer outra prova, e sim sua capacidade e força de vontade. Por isso hoje junto com o Conexões de Saberes luto pela implantação de cursinhos pré-vestibulares e quero contribuir ajudando estudantes de origem popular a terem acesso e permanência na universidade da minha cidade. Contando com projetos de ações afirmativas como o Conexões de Saberes, que vem tentando fazer com que as universidades brasileiras sejam para o povo e pelo o povo, sei que a missão de chegar à universidade já foi cumprida, pois hoje sou uma universitária, sei que permanecer ali é uma tarefa árdua, porém a caminhada está só começando... 22 Caminhadas de universitários de origem popular Eu sou um estudante de origem popular minha vida, meus estudos Carlos Henrique Teixeira * Meu nome é Carlos Henrique Teixeira, e nasci na cidade de Humaitá, no estado do Amazonas, no dia três de julho de 1986. Aos dois anos de idade meu pai abandonou minha mãe deixando para trás dois filhos, eu e minha irmã. Aos meus quatro anos, nos mudamos para Porto Velho, Rondônia, e passamos a morar com minha avó materna, uma mulher batalhadora, que então passou a custear minha vida e meus estudos. Morávamos em uma casa humilde em um bairro típico de periferia, onde iniciei minha vida escolar aos sete anos. No começo foi difícil, mas graças aos incentivos por parte da minha mãe, Dona Eliana e da minha avó, Dona Sebastiana, duas mulheres que tiveram uma vida sofrida e pouca escolaridade, mas que tinham a consciência da importância da escola para uma pessoa. Elas me passaram isso da melhor maneira possível, e não tive dificuldades de aprendizagem nas séries iniciais do antigo primeiro grau, pois passei a estudar para ser alguém na vida e poder retribuir à minha família tudo que fizeram por mim. Aos doze anos vi minha avó morrer, e vi também, surgir uma nova fase na minha vida. Minha mãe passou a trabalhar como doméstica para nos sustentar. Foi um período complicado, marcado por perturbações, mas depois minha mãe teve mais uma criança, que trouxe alegrias às nossas vidas. Agora éramos quatro, eu mamãe e minhas duas irmãs. Continuei meus estudos sempre em escolas públicas próximas de casa, e terminei em 2001 o ensino fundamental, e mesmo sendo em uma instituição de ensino periférica muito criticada, acreditei que o aluno faz a escola e dela recebi a base necessária para seguir em frente. Em 2002, comecei ensino médio na escola Marcos Freire, onde estudei por dois anos procurando sempre aprender o máximo possível para não reprovar e terminar logo os meus estudos. Nesse intervalo de tempo passei a trabalhar em horta, estudando no período da manhã e trabalhando à tarde, para ajudar em casa. No ano de 2004 me transferi para Escola Marcelo Cândia, visando à conclusão da terceira série do ensino médio. Continuei trabalhando, porém agora comecei a dar maior atenção ao vestibular. Chegar à universidade era um sonho que foi evoluindo continuamente, no decorrer da minha vida. Nessa última escola, tive apoio e incentivo necessário para prestar meu primeiro vestibular. Não foi possível fazer um curso pré-vestibular, mas confiei em tudo que aprendi, e passei para Matemática na Universidade Federal de Rondônia. Trabalhar com os números e com raciocínio lógico sempre me fascinou, e Matemática era a matéria onde conseguia as maiores notas. * Graduando em Matemática pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 23 Em 2006 comecei o curso, e em virtude dele saí da horta, com isso passei a enfrentar dificuldades em termos de transporte tendo que faltar várias aulas. Mas com ajuda da minha mãe e de amigos consegui contornar essa crise, passei então a dar aulas de reforço adquirindo certa “estabilidade”. No mesmo ano por iniciativa da diretora da Escola Marcelo Cândia, Irmã Carmem, surge um grupo de universitários, comprometidos em realizar ações voltadas para Zona Leste de Porto Velho, lugar onde moro. Como uma das nossas primeiras ações, vi nascer um curso pré-vestibular comunitário, do qual participo ajudando na coordenação, assim como ministrando aulas de matemática. Hoje estou aqui escrevendo este ensaio. Continuo morando no Ulisses Guimarães, um bairro da Zona Leste, com minha mãe e minhas duas irmãs sendo que a mais velha, a Leda, também já está na faculdade. Estou no quarto período de Matemática, tenho muitos sonhos e projetos para realizar, e tenho principalmente, muito orgulho de ser um estudante universitário de origem popular e de ter chegado até aqui. 24 Caminhadas de universitários de origem popular A trajetória da vida escolar de uma “estudante universitária de origem popular” (EUOP) Franciane Farel da Silva * Meu nome é Franciane Farel da Silva, tenho 19 anos de idade e curso Pedagogia na Universidade Federal de Rondônia, mas para chegar onde estou preciso contar como tudo começou. Meu pai Francisco Xavier da Silva 42 anos e minha mãe Eudalina Farel da Silva 38 anos, se conheceram, se apaixonaram e namoraram, isso há uns 20 anos atrás, logo me conceberam então nasci no dia 9 de maio de 1987 na maternidade Dr. Cláudio Fialho no município de Guajará-Mirim interior de Rondônia. Depois que nasci o romance não deu certo, pois meu pai era um simples funcionário de uma loja, assim não teve condições financeiras para construir um lar, seu desejo era levar minha mãe para morar com ele na casa de sua mãe Marina (in memorian), mamãe não aceitou assim cada um foi viver sua vida. Depois de 01 ano e 08 meses que nasci, mamãe conheceu o Luiz que hoje é o meu querido paizinho. Me refiro assim a ele porque o considero e gosto muito dele como se ele fosse meu próprio pai. Resolveram então se casar e foram morar numa casa alugada em GuajaráMirim mesmo. Nesta época ele era funcionário dos Correios, coincidência ou não, ele trabalhava junto com o meu pai que já estava em melhores condições e já havia casado também. No ano de 1990, meus pais (Luiz e Eudalina), resolveram vir morar em Porto Velho, pois meu pai (Luiz) havia sido aprovado no concurso do Ministério Público do Estado para vigilante, assim viemos para cá e fomos morar em uma casa alugada. Estavam começando tudo de novo e as coisas não estavam fáceis, mas mesmo assim, em 1991 quando eu estava com 4 anos de idade, me matricularam em uma escola particular chamada Centro Educacional Peter Pan, onde comecei a estudar o pré-I. Eu não estava acostumada a viver longe da minha avozinha Vitorina então pedi para voltar para Guajará-Mirim pra ficar com ela. Vovó trabalhava em uma escola chamada Irmã Maria Celeste, nessa escola havia a Creche Moranguinho, um lugar muito lindo e aconchegante onde em 1992 fiz o pré-II com 5 anos, tenho ótimas lembranças dessa escolinha, me recordo até da professora a quem eu chamava de tia Rosa. Ela foi a melhor professora que tive até hoje, era muito atenciosa, carinhosa e dedicada. Aprendi muito com ela. Em 1993, meus pais já estavam bem estabilizados, então mamãe me trouxe de volta para Porto Velho, onde fiz a alfabetização na mesma escola, Peter Pan. Sinceramente não tenho boas lembranças deste ano, a professora era exigente, e com isso se tornava muito chata. Eu nem entendia o que ela falava direito, pois era espanhola e até me chamava de * Graduanda em Pedagogia pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 25 Franción. Neste mesmo ano muitas coisas aconteceram. Meu pai (Luiz) saia bem cedo para trabalhar, e eu também estudava pela manhã. Algumas vezes mamãe me levava na escola que era bem perto de casa, mas para chegar lá tinha que atravessar uma avenida muito movimentada. Certo dia eu tive que ir sozinha para a escola e ao atravessar a rua não olhei para os lados, e um carro que vinha em alta velocidade freou praticamente em cima de mim. Caí no chão de susto. Só me lembro que tinha 3 tios meus no ponto de ônibus, um deles me viu, veio me ajudar e me levou até a porta da escola. Levei um choque muito grande, fiquei paralisada, não conseguia nem falar. Quando me recuperei falei para a diretora o que havia acontecido e resolveram me levar para casa. Mamãe ficou muito assustada e até me deu umas broncas por não ter tido atenção ao atravessar a rua. Minha avó logo ficou sabendo do acontecido e também ficou preocupada comigo, conversou com meus pais que entraram em consenso e resolveram que eu devia ir morar com vovó em Guajará-Mirim, pois lá eu iria pra escola junto com ela e não havia tanto perigo. Já em 1994 quando tinha 7 anos de idade comecei a fazer a 1ª série do ensino fundamental na escola Irmã Maria Celeste, onde minha avó trabalhava. Eu era muito inteligente e esforçada, a professora gostava muito de mim, e sempre me dava muito mais atenção do que aos outros alunos, e eles reclamavam disso. Era eu quem sempre ganhava os bombons deliciosos que a professora levava para quem fizesse todas as atividades certinhas, para quem se comportasse e para quem respondesse todas as perguntas durante as aulas. Fiz a 2ª série na mesma escola em 1995. Eu tinha 8 anos, continuei muito inteligente e esforçada, isso chamou a atenção da professora que resolveu me mudar de sala e me colocar em uma sala onde a turma era mais comportada. Até tinha uma outra Franciane lá também que era inteligente igual a mim. Em 1996, quando tinha 9 anos, fiz a 3ª série na escola Irmã Maria Celeste até o mês de setembro, pois vovó se aposentou e resolveu se mudar para Porto Velho. Então fui concluir a 3ª série no Peter Pan. Foi difícil chegar quase no fim do ano e continuar estudando, principalmente porque não conhecia a professora e os 5 alunos da sala, mas deu tudo certo o nome da professora era Regina. Tinha 15 anos. Por isso achei bem legal e diferente, pois estava acostumada sempre com professoras mais velhas. Regina era meio maluquinha, gostava de cantar, contar histórias e fazer brincadeiras na sala de aula. Os colegas de sala também eram legais e me receberam muito bem. No ano seguinte fiz a 4ª série na mesma escola, foi bem legal tive 3 professoras e só tinha 4 alunos na sala. Lembro-me ainda hoje das coisas que aprendi lá. Já em 1998, para mim o ano mais esperado, fui para o ginásio de 5ª a 8ª série. No ano anterior havia sido inaugurada uma grande Escola Estadual, o João Bento da Costa. Essa escola estava sendo muita elogiada, pois era a maior do estado. Ela tinha umas 45 salas, e era de dois andares. Então minha mãe tratou logo de fazer minha matrícula lá, mas para conseguir uma vaga no JBC como todos chamavam, precisei fazer uma entrevista com o diretor, pois havia muita gente querendo uma vaga. Graças a Deus passei na entrevista e consegui minha vaga na escola. Lá permaneci estudando da 5ª série até o 3º ano do ensino médio, logo no 1º dia de aula da 5ª série me surpreendi muito, pois havia mais de 40 alunos na sala de aula e eu não estava acostumada com isso. Havia uns alunos grandes com até 15 anos de idade, e eu tinha só 10 aninhos. Mas foi muito bom, eu me dei bem. Neste ano não fiquei para recuperação em nenhuma matéria e só tirava notas boas em Matemática, pois a professora era a Elizabeth, 26 Caminhadas de universitários de origem popular uma professora muito inteligente e atenciosa. Sempre que eu tinha dúvidas ela estava pronta pra me ajudar, então fui aprovada e passei de ano. A 6ª série foi melhor ainda, alguns colegas que tinham estudado comigo no ano anterior estavam na minha sala, então já nos conhecíamos e um ajudava o outro. Na 7ª série eu estava com 13 anos, isso no ano de 2000. Sempre fui uma aluna dedicada e fazia todos os trabalhos e atividades, sempre sozinha. Não havia quem me ajudasse, pois morava com vovó e ela sabia bem pouco. Com isso alguns colegas gostavam de colar as minhas atividades e até na hora das provas ficavam olhando para minha prova. Falavam que eu era muito inteligente. Tudo o que eu fazia estava certo, mais não era bem assim, eu também tinha algumas dificuldades. Neste ano também passei em todas as matérias e fui aprovada para a 8ª série. A 8ª série foi um ano muito bom, neste ano tivemos aula de Português com o Profº Nazareno que é um cara muito legal, digo isso porque ele nos ajudou muito, mas depois falarei mais dele. No ano seguinte em 2002, eu fui para o 1º ano do 2º grau. Esse ano foi bom apesar de ter sido meio conturbado para mim, pois estava passando por alguns problemas familiares que me afetaram um pouco, ao ponto de eu ser reprovada em Português no fim do ano. Lembro-me que fiquei desesperada e chorei muito, mas nem tudo estava perdido, pois na escola no fim de todas as provas do final do ano os professores faziam uma Reunião do Conselho, em que analisavam o caso de cada aluno que havia reprovado e esse Conselho foi a minha salvação, pois todos os professores já me conheciam e sabiam que eu sempre fui dedicada. Com exceção da disciplina de Português, eu tinha notas boas em todas as outras naquele ano, e nos outros também. Com isso entraram num consenso e resolveram me dar uma chance. Minha maior felicidade foi quando minha mãe foi na escola pegar o Boletim e fazer minha matrícula. Eu estava como aprovada no 1o ano, isso foi demais! O 2º ano pra mim significou muito, pois eu já estava me preparando para o vestibular da UNIR. Estudava muito, mas mesmo assim fiquei para recuperação em Matemática no 2º semestre. Tive que estudar muito para alcançar uma boa nota. Enfim consegui e com muito êxito fui aprovada para o 3º ano que seria o último. No 3º ano fiz o famoso terceirão que é a preparação para o vestibular, principalmente o da UNIR, onde todos desejam entrar. Tenho ótimas lembranças deste ano, principalmente dos professores que eram muito exigentes, mas hoje vejo que era para o nosso bem, pois se eles não tivessem pegado no pé, hoje a maioria de nós não estaria na Universidade. O professor de Português era mais uma vez o Nazareno. Com ele aprendi muito bem a fazer redação, pois toda vez que ele nos pedia para redigir sobre diversos temas, ao fazer a correção riscava a folha toda e ainda escrevia uns recadinhos abusados no final. Lembro disso com muito prazer porque foram os recadinhos dele que me ajudaram na redação para o Vestibular. O professor de Matemática se chamava Neizinho, era um professor bem jovem e bonito. Isso chamava a atenção das alunas, e apesar de ser muito inteligente era meio doido, isso no bom sentido. Acho que nunca o esquecerei, pois foi ele quem me deu a notícia de que eu havia sido aprovada no Vestibular da UNIR. A matéria de História Geral e Regional era dada pelo professor Tadeu, um gordinho muito bacana. Tenho certeza que pra sempre vou lembrar dele. Em suas aulas ele nem utilizava livro, pois já o tinha todo na cabeça. Isso era incrível! O professor de Geografia Geral e Regional era o meu querido professor Arimateia, um Universidade Federal de Rondônia 27 professor muito bom que me ajudou muito! Esse ano estudei mais do que nunca. Estudava pela manhã com umas amigas, a tarde ia para a escola e a noite ainda fazia um cursinho prévestibular, que com muito esforço meus pais conseguiram pagar. Aos sábados e domingos nada de passeio como era antes, eu só estudava muito! Concluí o ensino médio em 2004, no fim do mesmo ano fiz o meu 1º vestibular da Universidade Federal de Rondônia para Pedagogia e graças ao meu bom Deus e meu próprio esforço consegui ser aprovada nas duas fases. Em 2005 comecei a estudar na famosa UNIR. Tudo era novidade. Mas sinceramente esperava mais da universidade. No começo de 2006 quando eu estava no 3º período, me inscrevi para o Programa Conexões de Saberes e fui selecionada. Hoje estou no 5º período de Pedagogia e estou muito satisfeita com o curso e com o programa, pois além de ser beneficiada com a bolsa ainda tenho a chance de trabalhar com as comunidades populares e cada vez mais ampliar meus conhecimentos para uma melhor formação acadêmica. 28 Caminhadas de universitários de origem popular Início de um história Francinei Ferreira da Silva * Eu me chamo Francinei Ferreira da Silva, nasci em Porto Velho, no Estado de Rondônia. Minha família possui herança negra e indígena, no entanto meu pai é um típico nordestino. Nascido no estado do Ceará, estudou em escola Salesiana e concluiu seus estudos. Já minha mãe nasceu no estado do Acre, é filha de uma seringueira cabocla e de índio. Nunca freqüentou a escola. Meus pais sempre incentivaram todos os seus oito filhos a estudarem, pois, tinham plena consciência de que os estudos eram a garantia de um futuro promissor. Logo quando entrei na escola, foi justamente no ano em que meus pais se separaram. Minha mãe retornou para o estado do Acre, e conseqüentemente meu pai assumiu a responsabilidade de criar e educar os filhos. Esse foi sem dúvida uns dos momentos mais difíceis para mim, pois, chegou a comprometer meu rendimento escolar. Até mesmo por que a professora na época era muito tradicional, ela dividia a sala de aula em duas partes, do lado direito sentavam os alunos que sabiam ler, e do lado esquerdo as crianças que não dominavam a leitura. Contudo, certo dia a professora escreveu algumas palavras no quadro negro, e cada aluno era chamado para fazer a leitura destas palavras. Quando chegou a minha vez, consegui ler todas as palavras. Por isso no dia seguinte passei a sentar no lado direito da sala de aula. Essa situação era horrível! Assim meu desempenho escolar cada vez mais foi evoluindo positivamente no decorrer das séries seguintes. Quando eu estava na quarta série, a escola passava por algumas mudanças, pois no ano seguinte teríamos um número maior de disciplinas, e os alunos teriam que se adaptar a essa nova etapa. Aconteceu algo inovador na escola. Duas professoras se reuniram e planejaram uma aula de orientação sexual, aplicando ainda o método tradicional de separar meninos e meninas em salas diferentes para a aula. Mas valeu a pena ouvir as informações, que na época não eram esclarecidas. Quando passei para o antigo ginásio fiquei muito feliz, pois finalmente iríamos ter a disciplina de Educação Física que seria prática com recreação em três dias da semana com jogos e exercícios físicos. Mas, nem tudo era só alegria. Logo no primeiro dia de aula prática o professor pediu que formássemos uma fila e aconteceu que eu e mais duas alunas não estávamos com o tênis adequado para a aula, e por isso o professor pediu que nos retirássemos da quadra para aguardar o término da aula, para respondermos à chamada. Mas, apesar desse fato constrangedor, quem mais sofria eram os portadores de deficiência física, que iam para aula prática, mas não participavam de nenhum momento da aula, mas ficavam sentados nos bancos observando as atividades até o final da aula. * Graduanda em Pedagogia pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 29 Ainda nessa época acontecia no país um grande debate sobre a possibilidade de mudar a forma de governo da época. Más enquanto não acontecia o plebiscito, na escola, os alunos negros sofriam muita discriminação por parte dos outros alunos que faziam vários comentários, de que o tempo da escravidão ia voltar, e que todos os negros só serviriam para atender aos pedidos dos brancos e do rei. Foi sem dúvida uma época muito difícil. Quando passei para a oitava série fui transferida para outra escola pública, foi o pior ano letivo que tive na minha vida escolar, começando pela estrutura da escola que na época era bastante precária. O acontecimento mais válido foi o festival folclórico da escola, que só foi realizado graças ao esforço do professor de Língua Portuguesa que nos ensinou a dança do maracatu. O sucesso foi tão grande que até hoje o professor expõe a história dessa dança folclórica pela cidade. Posso afirmar com muito orgulho que poder estudar para me formar professora foi a melhor fase de minha vida escolar. Eu tive um ensino de primeira. Logo no primeiro ano de estudo comecei o estágio de observação em uma escola pública, e durante um mês tive que fazer anotações do cotidiano de sala de aula e dos funcionários da escola. No segundo e terceiro ano realizei os estágios de participação e regência. Foram os mais marcantes, pois já poderia participar ativamente das aulas. Finalmente concluí o ensino médio e não fiz o vestibular logo em seguida, pois tinha a necessidade de trabalhar. Preparei vários currículos e levei as escolas privadas, e durante dois anos não consegui nenhuma vaga para trabalhar. No ano de mil novecentos e noventa e nove, a campanha da fraternidade da igreja católica se referia a educação. Foi então que surgiu a idéia de formar uma turma de educação de jovens e adultos, e fui voluntária nesse projeto por dois anos. Depois de um bom tempo nessa mesma igreja, me tornei aluna no curso pré-vestibular comunicação, e durante nove meses de estudos nasceu a grande oportunidade de ingressar na Universidade pública, onde hoje curso Pedagogia. No terceiro período fiz inscrição para o programa Conexões Saberes, e fui selecionada. Fiquei feliz, pois essa é uma oportunidade que veio para contribuir para minha permanência na Universidade e ampliar meus conhecimentos. O programa Conexões de Saberes é uma forma de ação afirmativa que tem como alvo estudantes de origem popular, e que oferece bolsa para que desenvolvam atividades de extensão junto às comunidades, para estreitar os laços entre saber científico e o saber popular. 30 Caminhadas de universitários de origem popular Mais que uma mudança, a realização dos meus sonhos... Geicyane Morais dos Santos * Meu nome é Geicyane Morais dos Santos, nasci na cidade do interior do Amazonas chamada Humaitá. Pacata, conservadora e muito aconchegante, porém com poucas oportunidades para os jovens que lá residem. Na data de 08/02/1987 minha mãe após sofrer durante os nove meses de gravidez por ter contraído a malária, uma doença muito comum no interior do Amazonas, que se não cuidada pode matar, me deu à luz. Por conseqüência também nasci com malária. O diagnóstico do médico, ao ver-me, foi que eu não sobreviveria. Porém, por um milagre de Deus, como diz a minha avó materna, estou aqui para narrar minha história que apesar de difícil é muito interessante. Minha mãe chama-se Maria Inês de Jesus Campos de Morais. Seu pai foi soldado da borracha e sua mãe trabalhava na roça de variados tipos de grãos. Ambos eram analfabetos, porém já existia a consciência do valor da educação. Minha mãe, uma mulher batalhadora que me serve como um grande exemplo, pois, apesar de todas as dificuldades encontradas, estudou e após ter três filhos e um casamento frustrado que durou mal sucedidos 15 anos, passou no vestibular da Universidade Federal do Amazonas para o curso de Pedagogia. Hoje ela é especializada em Psicopedagogia e professora concursada do estado do Amazonas. Já meu pai Ottonerson Rodrigues dos Santos é analfabeto e foi garimpeiro de ouro durante muito tempo. Hoje segue a profissão de pedreiro na cidade de Porto Velho-RO. Em Humaitá cursei até o segundo ano do ensino médio. No ano de 1993, comecei a estudar na alfabetização da Escola Estadual Cândida Areal Solto. Lembro-me nitidamente do meu deslumbramento pela minha sala de aula, pois ela tinha desenhos lindíssimos na parede do fundo. No horário do recreio, antes de sairmos para merendar, cantávamos essa musiquinha que até hoje não me sai da memória. Era assim: Meu lanchinho, Meu lanchinho, Vou comer, Vou comer, Pra ficar fortinho, Pra ficar fortinho e crescer E crescer. * Graduanda em Letras pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 31 Minha professora chamava-se Tereza, e com sua ternura fez com que eu me encantasse ainda mais pela escola, o que foi fundamental para toda minha vida escolar. Acredito que a partir daquele momento tive vontade de ser professora. Além de minha mãe que também exerce essa profissão, estudei nessa escola todo meu primário. A matéria que mais gostava e na qual sempre obtive boas notas foi Língua Portuguesa. Com onze anos de idade mudei de escola, passei a estudar na Escola Estadual Dom Bosco, onde concluí o ensino fundamental. Novamente deparei-me com um corpo docente muito bom. Aos quinze anos de idade começava o ensino médio na Escola Estadual Álvaro Maia. Até então havia sido uma boa aluna, com boas notas, nunca havia tirado notas vermelhas, e nem ficado de recuperação. A única matéria em relação a qual nunca tive muita afinidade foi Matemática. Já nessa época, meus pais estavam separados havia alguns anos, e minha mãe criava sozinha, com muitas dificuldades, a mim e a meus dois irmãos. Em 2004 mudei para Porto Velho, capital de Rondônia, que fica a 200 k de distância de minha querida cidade, deixando para trás minha família e meus amigos. Estando aqui em Porto Velho as dificuldades foram inevitáveis, pois é uma realidade totalmente diferente. Concluí o ensino Médio na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Jonh Kennedy. Nessa escola encontrei inúmeras dificuldades, tais como: notas baixas, fiquei de recuperação em Matemática e me sentia rejeitada pois a turma que eu estudava já tinha todo um histórico juntos. Nesse período iniciou um cursinho pré-vestibular comunitário na Igreja São Cristóvão. A partir daí comecei a estudar pela manhã o terceiro ano, no qual não reprovei, mas também não tirei muito proveito, e à noite, fazia o cursinho pré-vestibular, que em compensação, foi muito proveitoso. Lembro-me que tinha uma amiga que estudava no terceiro ano comigo e se inscreveu para o mesmo curso que eu, Letras-Português e todos sem exceções acreditávamos com convicção que ela iria passar no vestibular e eu, como era considerada uma aluna fraca, obviamente não passaria. No entanto, essa situação fez com que me esforçasse ainda mais para poder prestar o vestibular com mais confiança. Quando realizei a primeira etapa, ao sair da sala tive a certeza que estava na segunda etapa, a qual, em minha opinião, seria mais complicada. Quando terminei a prova discursiva fiquei decepcionada, pois não havia gostado de uma das quatro redações que havia redigido, e para completar minha agonia, encontrei com aquela minha amiga que estava a sorrir e disse que a prova estava muito fácil. Naquele momento invadiu-me uma tristeza profunda, afinal tinha me esforçado tanto para não conseguir! Passaram-se dois dias após ter saído o resultado final do vestibular quando fui visitar minha amiga para lhe dar os parabéns, pois acreditava que ela havia passado, e também para fazer um currículo no seu computador para poder correr atrás de emprego. Mas ao chegar em sua casa tive uma grande surpresa quando ela me disse que estava muito feliz, e que quase não acreditava que eu havia passado e ela não. Aquele foi um dos dias mais felizes da minha vida, porque eu finalmente iria ser alguém. Mas logo no primeiro período senti o peso de estar cursando uma faculdade, as dificuldades financeiras foram cada vez se agravando mais, afinal moro de favor na casa de um primo (Waldiney). Não conseguia arranjar emprego por falta de cursos como informática, por falta de experiência, e por não ter disponibilidade para trabalhar em tempo integral, pois meu curso é no período da tarde. Cheguei ao ponto extremo de querer desistir e voltar para casa de minha mãe e nunca mais passar necessidades como 32 Caminhadas de universitários de origem popular estava passando. Foi quando fui à Assistência Social da Universidade e expliquei minha situação. Passei a trabalhar na qualidade de voluntária da universidade para ganhar os vales transportes e o almoço. Quando surgiram as inscrições para o Programa Conexões de Saberes visualizei a chance de me manter na universidade e a oportunidade para aquelas pessoas que também estão desacreditadas e que têm o potencial para entrar em uma universidade federal. Agora faltam apenas dois anos para que eu conclua meu curso e ao terminar pretendo exercer minha profissão de professora na minha cidade. Apesar de jovem aprendi que não devo desanimar por mais que alguém tente me derrubar, pois as dificuldades estão aí para serem vencidas. Universidade Federal de Rondônia 33 É preciso saber viver Helena Pereira Leite * “Quem espera que a vida seja feita de ilusão, pode ate ficar maluco ou morrer na solidão é preciso ter cuidado para mais tarde não sofrer é preciso saber viver.” Roberto e Erasmo Carlos Meu nome é Helena Pereira Leite nasci no município de Tarauacá, no estado do Acre, no dia 18/10/1983, sendo a mais nova de uma família de oito filhos, eu e meu irmão Heleno fomos os únicos a nascerem em um hospital. Heleno veio a falecer aos sete meses de vida por conta de uma pneumonia. Quando tinha ainda cinco anos, meus pais mudaram para o município de Porto Velho, no estado de Rondônia, em busca de uma vida melhor. No início morávamos com uma amiga de meus pais, mas logo fomos morar no bairro Ulisses Guimarães, que fica um tanto afastado do centro da cidade. Na época, o bairro se encontrava em face de ocupação com poucas casas. Apesar de algumas privações posso dizer que tive uma infância maravilhosa, pois aprendi com meus pais muitos valores. Mesmo trabalhando o dia inteiro, souberam educar a mim e a meus irmãos muito bem. Eu ficava sob os cuidados de meus irmãos Célio e Biana, que eram um pouco mais velhos. Nós fazíamos nossas tarefas de casa e íamos brincar na rua com nossos colegas, com os quais aprontávamos de tudo, mas é claro que eram apenas coisas saudáveis. Comecei a estudar aos sete anos na escola Marcos Freire na qual fiz a primeira e segunda série tendo reprovado no primeiro ano por conta do nervosismo no teste de leitura, como minha mãe não deixou que eu refizesse o teste tive que repetir o ano. Na terceira série tive que ir para escola São Francisco de Assis, pois havíamos nos mudado para uma outra casa a qual fica próxima da escola, nessa estudei até a quarta série. A quinta série, fiz na escola Jorge Teixeira como tive de ir morar com minha irmã, no bairro Agenor de Carvalho, para cuidar de minha sobrinha, para que ela pudesse trabalhar, fui estudar na escola Orlando Freire onde fiz a sexta e sétima série. Terminei o ensino fundamental na escola Jorge Teixeira, pois minha irmã estava trabalhando em uma padaria na casa de meus pais, devido a ausência do ensino regular no período noturno fiz o ensino supletivo para não perder o ano escolar. * Graduanda em Biologia pela UNIR. 34 Caminhadas de universitários de origem popular Como estava trabalhando e em meu bairro não havia o ensino médio regular no período noturno tive que ir estudar no centro da cidade, na escola Castelo Branco, tendo que enfrentar uma hora de viagem de ônibus tanto na ida quanto na volta. Nesta época meu desempenho caiu muito, pois como acordava cedo e ia deitar tarde ficava mais dormindo do que acordada em sala da aula. No segundo ano do ensino médio voltei a morar com meus pais e deixei de trabalhar. Tudo teria sido muito bom se eu não tivesse por infantilidade ido morar com um rapaz que havia conhecido na escola. Terminei o segundo ano e tive que parar, pois depois de dois meses morando com esse rapaz engravidei, e assim parei de estudar. Mesmo depois que tive meu filho não tinha com quem deixá-lo para poder estudar, fiquei apenas pouco mais de dois anos com o pai de meu filho e voltei a morar com meus pais. Mas meu filho só fez crescer em mim a vontade de cursar o ensino superior e ser alguém na vida. Eu sempre fui muito incentivada por meus professores a fazer uma faculdade. Voltei à casa de meus pais, retomando os estudos, iniciando um novo ciclo de vida na escola Marcelo Cândia, uma instituição filantrópica das irmãs Marcelinas, sem dúvida uma das melhores do estado. Nessa escola fiz grandes amigos entre os quais, meus professores de Química e Língua Portuguesa (Roberto e Eunice), sem esquecer é claro da irmã Carmem, que junto com esses professores estava sempre disposta a ajudar seus alunos a realizarem seus objetivos. Na escola Rio Branco, freqüentei o cursinho pré-vestibular Juntos Pra Unir, onde também encontrei bons amigos. Como passava o dia inteiro na escola, foi muito bom o cursinho ser oferecido no período da noite. Estudei muito e fui aprovada no curso de Ciências Biológicas na Universidade Federal de Rondônia. Este foi só o princípio de minhas realizações estudantis. Pretendo seguir em frente e enriquecer ainda mais meu currículo profissional e pessoal. No momento estou ministrando aulas de Biologia em um cursinho pré-vestibular comunitário que é oferecido por um grupo de universitários que moram na zona leste da cidade e colaboradores. Este grupo nasceu graças á uma reunião convocada pela irmã Carmem que queria que os acadêmicos dos bairros próximos à escola Marcelo Cândia se reunissem e convivessem dividindo seus problemas e assim se ajudassem. Este grupo chegou à conclusão de que poderiam fazer mais e assim nasceu o prévestibular ROCA (resgatando o ontem para conquistar o amanhã). Há no grupo responsável pelo cursinho, o UNA, muita amizade e respeito entre os integrantes que dividem seus problemas e procuram ajudar como podem os amigos. Foi assim que ficamos sabendo do Conexões, um soube e avisou a todos os outros da seleção para projeto que só veio somar ao nosso projeto de cursinho pré-vestibular, o ROCA. Foram selecionados para o Conexões sete integrantes do UNA, sendo que continuam seis pois um acabou passando em um concurso público. O Conexões é um dos projetos mais audaciosos que já conheci já que este não está voltado a elite acadêmica e sim para os que chegaram à universidade tendo que ultrapassar vários obstáculos como a falta de igualdade na preparação para o vestibular. Espero que o Conexões consiga atingir todos os seus objetivos e se isso acontecer vou passar a acreditar que este país ainda tem jeito. Dedico meu esforço diário a todos que de alguma forma contribuíram na minha caminhada em busca de meus sonhos, principalmente aos meus pais, professores e amigos. Peço perdão ao meu filho por não dedicar o tempo necessário a ele, mais sei que irá entender que o que faço é para que no futuro possa haver oportunidades diferentes e melhores para ele. Universidade Federal de Rondônia 35 Minha trajetória Janaína Ferreira de Lima * Lembro de uma foto minha juntamente com outros alunos em uma exposição cultural na escola SESI, mas o que mais me chama a atenção naquela foto é a lancheira marrom dos “ursinhos carinhosos” que seguro firmemente em minha mão. Isso me faz lembrar que fui aluna destaque entre as turmas de alfabetização por ter criado uma história em forma de desenho, hoje não lembro que desenho fiz, mas lembro de ter ganhado uma lancheira que até então não havia tido, pelo fato de não precisar levar lanche para a escola, pois minha mãe trabalhava como merendeira, o que facilitava na hora de repetir o lanche no recreio. Estudei no SESI durante quatro anos porque os filhos de funcionários recebiam descontos nas mensalidades e até mesmo bolsa integral e teria continuado nessa escola se minha mãe não tivesse sido demitida, Passamos a freqüentar uma escola pública bem próximo da minha casa, lá era tudo muito diferente, as instalações físicas do prédio, os alunos, os professores, enfim, a regalia que usufruíamos antes não mais tínhamos à disposição. Na escola atual não havia sequer uma quadra para a Educação Física. Lembro que brincávamos de queima e pula tábua em um espaço de areia ao redor da escola. Tínhamos sim um parquinho bem do ladinho da escola, mas eram poucos os momentos de lazer ali naquele local. Por ser bem pequeno não cabia a grande quantidade de alunos, por isso tínhamos que revezar. Não demorou muito para me acostumar com a nova escola, já havia chegado à primeira série praticamente alfabetizada. Então não encontrei dificuldades nas séries seguintes. No ano em que cursei a quarta série contrai uma doença típica da região denominada malária. Faltei uma semana de prova, além de ter que ouvir a minha turma me chamando o tempo todo de “magricela”. Naquela turma todos sem exceção tinham um apelido e o meu mudou, porque havia emagrecido em torno de uns três quilos. Na semana seguinte tive que fazer as provas sozinha em uma sala com um professor substituto, felizmente fui aprovada em todas as disciplinas. A escola onde cursei meu primário não possuía o ginásio, então novamente tive que mudar de escola. Fui para o Petrônio Barcelos, uma outra escola pública, que também ficava próxima a minha casa. Acredito não ter dado muito trabalho para meus pais neste período, apesar do fato de ter ficado em uma das turmas onde só havia alunos um ou dois anos mais velhos do que eu, e um pouco mais bagunceiros que os das outras turmas. Consegui um bom rendimento nesse 5º ano. A escola promovia eventos culturais, como torneios, festas, feiras culturais. Os * Graduanda em Pedagogia pela UNIR. 36 Caminhadas de universitários de origem popular alunos da 8a série às vezes promoviam discoteca, para arrecadar fundos para formatura. Com certeza todos gostavam muito da idéia, ainda mais pelo fato de que os professores liberavam os alunos nos dois últimos tempos de aula. A escola tinha uma biblioteca que eu visitava algumas vezes para emprestar livros de literatura, até hoje tenho a lista de livros que li no decorrer desses quatro anos. Foram muitos livros pára-didáticos, devo isso a uma querida amiga, que desde o colegial me incentivou a ler. Fui tomando gosto pela leitura, e quando já tínhamos lido os poucos livros da biblioteca da escola, passamos a nos dirigir à biblioteca municipal e até nas lojas do Sebo onde procurávamos livros baratos e interessantes. Recordo-me que na oitava série a maior parte dos alunos ao bater o sinal para o intervalo, corriam para a fila do refeitório, pois o lanche era muito bem preparado, mas muitas vezes não podíamos repetir pois era pouco. A diretora administrava bem aquela escola. No ano 2000 já havia sido instalado o laboratório de informática, onde passávamos uma boa parte dos horários vagos aprendendo a manusear um pouco o computador. Neste último ano fizemos uma formatura bem simples, realizada no refeitório da escola. Não tínhamos muito dinheiro, então fomos nós, alunos, que cuidamos dos preparativos para a festa, enfeitamos o refeitório e servíamos os convidados. A escola nos ajudou na medida do possível. Enfim saí daquela escola e até hoje me orgulho de ter estudado ali. A diretora da escola ainda tentou nos ajudar, pedindo vagas nas escolas de nível médio mais próximas do bairro, porém todas já estavam lotadas. Meu querido pai teve que se dirigir até a secretaria de educação para ver qual a possibilidade de conseguir uma vaga em uma escola de ensino médio. Eu ainda fui a umas duas escolas, mas acabei me matriculando em uma escola distante da minha casa, perto do centro. Mas já sabia que estudaria ali apenas por um ano. No ano de 2002 novamente mudei de escola, passei a estudar na escola Rio Branco, onde cursei o 2º e 3º colegial. No 2º ano conheci uma menina da minha turma que fazia parte do projeto Agente Jovem. Ela me disse como era feito o trabalho com a comunidade, eu me interessei e desde então passei a ser uma Agente Jovem. Deixei de fazer parte do projeto assim que terminei o terceiro ano. Tenho certeza que aprendi muito durante o tempo que ali estive, e sou muito grata por tudo. Foi somente no terceiro bimestre que comecei a me interessar pelo tão temido vestibular. Nesse período já havia começado a dar aulas para crianças de 6 a 8 anos na escola dominical de minha igreja, o que me ajudou na escolha do curso, pois me identifiquei com a área. Fiz minha inscrição, apesar de meu pai ter me dito que seria melhor fazer somente no ano seguinte. Acho que estava com medo de jogar dinheiro fora. Não tirei boas notas no último bimestre do colegial, pois estava me dedicando ao vestibular, mas em compensação passei na primeira fase em um dos vestibulares mais concorridos, pois naquele ano havia sido feita a unificação de duas outras faculdades particulares em um mesmo vestibular. Passei a estudar com mais dedicação para a segunda fase. Agradeço as aulas do cursinho Pré-vestibular comunitário da igreja de Nossa das Graças, pois foi ali que tive oportunidade de obter mais informações para fazer a segunda fase, porque na primeira havia estudado em casa. O resultado da segunda fase do vestibular já havia sido divulgado informava o noticiário da TV. Chuviscava naquela manhã, mas mesmo assim minha amiga foi pessoalmente me dizer que tanto ela como eu tínhamos passado, e ali na calçada debaixo da chuva nos abraçamos e festejamos a nossa vitória. Meus pais ficaram muito orgulhosos, afinal eu seria a primeira da família a ingressar em uma universidade. Passado o obstáculo de ingressar em uma universidade pública, não sabia eu Universidade Federal de Rondônia 37 que ainda teria que passar muitos outros. Meu pai é motorista, portanto não têm condições de bancar meus gastos com livros, fotocópias, transporte, pois sustenta uma casa com nove pessoas, sendo que das cinco apenas duas de minhas irmãs trabalham para ajudar a pagar as dívidas. No segundo semestre recorri à assistência estudantil e passei a ser beneficiada com o auxilio transporte, mas como o auxílio não era concedido para os seis meses ficava muitas vezes sem tirar cópias para poder continuar freqüentando as aulas para não reprovar por falta. Mas sabia que as aulas estavam rendendo pouco. Quando ouvi falar do Programa Conexões de Saberes percebi que era minha chance de poder continuar freqüentando a universidade, pois já pensava em desistir do curso para poder trabalhar em período integral. Hoje faço parte do Conexões de Saberes, recebo uma bolsa mensal, que com certeza deixa meu pai mais sossegado que eu. O programa além de me ajudar financeiramente nos capacita para ajudar pessoas que assim como eu precisam ter acesso e permanecer dentro de uma universidade pública. Agradeço a meu fiel amigo Deus, à minha linda família, meus amigos, por todo amor e incentivo e também aos meus queridos professores que contribuíram na minha caminhada. 38 Caminhadas de universitários de origem popular Trajetória escolar de aluno de origem popular Juliana Rocha Monteiro * Sou Juliana Rocha Monteiro, natural do estado do Ceará, nascida em 31 de julho de 1986, solteira, e moro com meus pais. Morei no Ceará até os meus 10 anos de idade e foi lá que iniciei minha vida escolar, no Centro Educacional Lírios dos Vales, localizado no bairro João XXIII, bairro no qual eu morava. Em 1995 eu e minha família chegamos para morar em Porto Velho. O impacto foi grande, tudo era diferente do que eu estava acostumada: o vocábulo, as estruturas das casas (eu nunca tinha visto uma casa de madeira). Em março do mesmo ano iniciei o ano letivo na minha nova escola: Escola Estadual de Ensino Fundamental Prof.ª Flora Calheiros Cotrin, localizada no bairro Esperança da Comunidade, bairro que moro até hoje. Mas não foi tão fácil assim, as dificuldades surgiram logo no início para conseguir uma vaga. A dificuldade se dá pelo fato da concorrência ser muito grande, pois a escola era a única no bairro para atender também os bairros vizinhos, ou seja, a demanda de alunos era maior que a oferta de vagas. Ingressando na escola não cessaram as dificuldades: enfrentamos problemas como a falta de professores (problema que continua até hoje), não contávamos com recursos pedagógicos e ainda tínhamos professores que ministravam duas ou mais disciplinas. Mas apesar de tudo isso, lembro-me dos momentos bons vividos na escola, das amizades feitas que muitas delas cultivo até hoje, dos professores sempre atenciosos comigo, afinal sempre fui uma boa aluna! Adorava a minha escola, todo mundo compartilhava da mesma condição, não tinha o sentimento de superioridade entre as pessoas, sentimento esse percebido entre os alunos da minha segunda escola: Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio John Kennedy. Estudei na Escola Flora Calheiros da 2ª até a 8ª série apenas, pois esta escola não oferecia o ensino médio. Em 2002 tive que me transferir para a Escola John Kennedy, a opção por essa escola foi por ela ser a única que oferece o ensino médio pela manhã, o que me possibilitaria fazer curso no Centro do Menor Salesiano, instituição que oferece cursos profissionalizantes para alunos de comunidades populares, proporcionando uma formação profissional, religiosa e social. Durante todo o ano de 2002 o meu tempo era dividido entre a escola e o Centro do Menor, neste ano estava cursando o 1º ano do ensino médio, e já começava a minha antipatia pela escola, antipatia essa que durou ao longo dos três anos que estudei no John Kennedy. No ano de 2003 estava no 2º ano e através do Centro do Menor consegui um estágio nas Centrais Elétricas de Rondônia - CERON, onde fiquei estagiando durante um ano e quatro meses. Era escola de manhã e trabalho à tarde, essa era a divisão do meu tempo, mais * Graduanda em Ciências Sociais pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 39 que divisão era a minha motivação, mais o trabalho do que a escola, confesso. Afinal vivi experiências maravilhosas, marcantes eu diria, marcas que me acompanharão pelo resto da minha vida, pois são experiências profissionais, vivências emocionais, amigos inesquecíveis e lembranças que não poderão ser apagadas. Mas irei voltar a relatar a minha trajetória escolar, que é o fio condutor desse ensaio: eis que chega 2004, o ano da decisão. Estava no 3º ano e com ele vinha o temido vestibular e a difícil decisão pela escolha do curso, essa decisão torna-se mais difícil quando não se pode optar pelo curso tão sonhado, como é o meu caso. Desde pequena desejei cursar Jornalismo, mas como o campus de Porto-Velho não oferecia o curso e não teria condições financeiras de me manter numa instituição privada, o sonho foi adiado. Tive que optar por outro curso já que não pretendia deixar de ingressar no ensino superior. Como desejava entrar na UNIR teria que escolher entre os cursos que ela oferecia no turno da noite, isso me possibilitaria estudar e trabalhar. Entre as ofertas da UNIR (Administração, Economia, Direito, Contábeis) nenhuma me interessava. Foi quando próximo às inscrições um amigo me disse que iria “abrir” um novo curso na UNIR, em 2004 seria o 1° vestibular para o curso de Ciências Sociais. Foi por falta de opção, por ser novo e os outros cursos não me interessarem que decidi prestar vestibular para Ciências Sociais. Depois das duas etapas do vestibular, consegui ser aprovada. Em 2005 iniciei na universidade Federal de Rondônia, na primeira semana de aula não me faltou vontade de desistir, só não fiz isso porque não sou de desistir fácil. Nos primeiros dias de adaptação foi complicado, cada professor que entrava dava um nó na minha cabeça, tive dificuldades de assimilar os conteúdos, não tive base que me fortalecesse para entrar na universidade. Apesar das dificuldades, continuo firme no curso e estou participando do Programa Conexões de Saberes, que está proporcionando para mim, estudante de origem popular e para os demais bolsistas, uma oportunidade de permanência na universidade para que possamos concluir a graduação com uma maior qualificação, para nos tornarmos protagonistas da nossa própria história, e atuantes em nosso espaço de origem. Hoje estou no 4° período de Ciências Sociais e posso dizer com certeza que amo o que faço e a cada dia sinto-me realizada. 40 Caminhadas de universitários de origem popular Caminhada rumo a universidade Leandro Corrêia * A família Uma família simples, tradicionalista e rural. Assim era a minha família que com o passar do tempo e das transformações da sociedade foi se remodelando de acordo com as necessidades que encontraram. Meu pai, Leucir Antônio Correia, sempre foi o patriarca da casa. Barriga-Verde e agricultor por natureza, veio de uma família humilde e teve apenas a 4a série do ensino fundamental. Minha mãe, Lenir Bernardes da Silva Correia, filha de um pernambucano com uma mineira, e nascida no Paraná, sempre trabalhou na roça, e estudou até a 2a série, também do ensino fundamental. Eles se casaram em 1978 e tiveram três filhos: a primogênita Liliane, nascida em 1979; eu, nascido em 1982 e a caçula Letícia, que nasceu dois anos depois de mim. Todos os três filhos nasceram no mesmo local, o hospital Bom Jesus em Toledo-PR. Em busca de uma vida melhor, no final de 1984, saímos do Paraná em direção ao norte do Brasil. A nossa meta sempre foi ir para o estado de Rondônia, um lugar novo, cheio de oportunidade e muita terra para quem quer trabalhar, assim pensávamos. Durante a viagem, chegamos a morar em dois Estados provisoriamente, no Mato Grosso morando na cidade de Rondonópolis, e no Amazonas morando na cidade de Humaitá. Quando chegamos a Rondônia fomos morar primeiro na cidade de Vilhena, no sul do estado, depois migramos para a cidade de Espigão do Oeste, e finalmente nos estabilizamos na capital Porto Velho. A vida não é fácil, principalmente para as pessoas humildes. Ao chegarmos a Porto Velho, meu pai não conseguia emprego em lugar algum, pois além de ter uma escolaridade baixa, ele só sabia dirigir e trabalhar na roça, um currículo nada invejável. Mas meu pai sempre foi um homem otimista e persistente, e nessas condições ele tinha que ser mais ainda. Depois de muita peleja, ele reencontrou um amigo que também veio do Paraná e já estava morando em Porto Velho um bom tempo. Ele trabalhava com conserto de eletrodomésticos e chamou meu pai para trabalhar com ele. Com o passar do tempo meu pai já sabia o ofício tanto quanto ele ou até melhor, então decidiu trabalhar por conta própria, não em um lugar fixo, mas como um consertador de eletrodomésticos ambulante, onde saia de casa em casa perguntando, ou gritando na rua sempre a mesma frase: “Consertam-se eletrodomésticos: fogão, geladeira, ferro, ventilador etc...”. Com esforço e economizando, conseguimos comprar uma casa de madeira no bairro Ulisses Guimarães, um dos lugares mais afastado do centro da cidade, periferia da periferia. * Graduando em Educação Física pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 41 Hoje os filhos cresceram, minhas irmãs trabalham como vendedoras em uma loja de roupas, minha mãe trabalha como zeladora de uma loja de eletrodomésticos, meu pai trocou a casa que tínhamos por um sítio onde trabalha e passa a maior parte do seu tempo, e eu, antes de estar no Conexões, fazia alguns bicos como dar aulas de reforço para ajudar nas despezas do meu curso. A minha família é a base do meu caráter e da minha personalidade. Sempre me ensinaram na prática a ser perseverante, otimista e humilde, fazendo com que eu acreditasse em mim e nas coisas que posso fazer. A escola Quando comecei a estudar, no ano de 1991, já sabia ler e escrever, minha irmã Liliane já havia me ensinado e por isso não tive nenhuma dificuldade. A primeira escola que estudei, era no bairro vizinho, pois, não tinha vaga na escola do bairro onde morávamos. Era uma caminhada de meia hora, mas a distância não me incomodava, a euforia de estar indo finalmente para a escola era maior. Essa escola se chama Marcos de Barros Freire, e fiquei estudando nela até 4a série do ensino fundamental. Sempre fui um dos melhores da sala, principalmente na disciplina de Matemática. Nessa escola havia um momento que uns gostavam e outros odiavam, era a hora cívica, aonde no início da aula todos iam para o pátio atear a bandeira e cantar o hino Nacional e o de Rondônia. Eu era um dos que gostavam. Na 5a série, meu pai conseguiu me matricular na escola Jorge Teixeira de Oliveira, que fica no bairro onde moramos. Nela permaneci até a conclusão do ensino fundamental. Ela não era tão diferente da outra, a não ser pela distância, é claro! Quando estava na 7a série, comecei a freqüentar a PJ (Pastoral da Juventude), um grupo de jovens da comunidade da qual eu participo, a comunidade São Francisco de Assis. A PJ me ajudou bastante, principalmente em não me envolver com a marginalização e as drogas, realidade vivida e sentida pelas pessoas do bairro onde moro. Hoje, a maioria dos meus amigos de infância estão presos no Urso Branco ou estão mortos. Em 1998 concluí o ensino fundamental, me lembro que foi a maior alegria, sabendo que ia para um outro nível o ensino médio, a expectativa foi grande. No ensino médio fui estudar, graças ao esforço do meu pai, na escola pública de maior prestígio do Estado na época, a escola Rio Branco. Nela havia ar-condicionado, televisores, videocassetes e até interfones em todas as salas, o quadro profissional também era melhor do que as outras escolas que eu já tinha estudado. Mas foi nesse ambiente que eu tive o meu pior desempenho escolar. As pessoas também eram diferentes, metidas e orgulhosas, uma classe com a qual não estava acostumado a lidar. Essa escola fica no centro da cidade, eu tinha que pegar ônibus e demorava em média uma hora a viagem, esse também foi um problema, pois, nessa época só meu pai estava trabalhando e algumas vezes não tinha dinheiro para a passagem e muito menos para comprar os materiais que os professores pediam, assim acabei me desestimulando e reprovando pela primeira vez, no 3º ano do ensino médio. Voltei a estudar no ano seguinte na escola Marcos de Barros Freire, aquela mesma que iniciei os meus estudos, passando com êxito desta vez. Os amigos Os meus amigos tiveram uma contribuição significativa em minha vida, sempre me ajudando quando precisei. 42 Caminhadas de universitários de origem popular Tive vários amigos nesses vinte e quatro anos de vida. Uns passaram como uma foguete, outros permaneceram um bom tempo depois se foram e, ainda tem aqueles que estão no meu dia a dia. Dos amigos que passaram por mim e se foram, vale salientar um dos muitos motivos que hoje eles não estão presentes, a marginalidade. Essa é uma realidade comum nas periferias de Porto Velho, e que infelizmente, as autoridades competentes fecham os olhos para os fatos. Os que eu posso chamar de melhores amigos são os que até hoje permanecem em minha vida, de uma forma ou de outra, sempre me dando apoio nos momentos difíceis e acreditando em mim. Nós não podemos nos isolar, precisamos de pessoas ao nosso lado para nos incentivar e ajudar percorre esse caminho cheio de obstáculos. Existe um ditado que diz: “Quem caminha sozinho pode até chegar mais rápido, mas quem vai acompanhado, com certeza vai mais longe”. O caminho do vestibular Depois que terminei o ensino médio, o foco das minhas atenções se voltou para o vestibular. Por intermédio de um amigo, fiquei sabendo da inscrição de um pré-vestibular comunitário chamado Amigos, da Paróquia Nossa Senhora das Graças, o primeiro prévestibular comunitário do Estado. Apesar do pré-vestibular ser de graça, havia um custo com o transporte e material de estudo, mas nada que impedisse de estudar e estudar bem para o vestibular. Fiz minha inscrição do vestibular com a ajuda de uma rifa que o próprio cursinho realizou em prol dos alunos, me escrevendo assim para o curso de Medicina no ano de 2003. No dia da prova objetiva estava doente, mas mesmo assim fui fazê-la e quando saí da sala já tinha certeza de não ter passado. Não desisti, só fiquei um pouco decepcionado, mas com o apoio e incentivo que recebi das pessoas que passaram fiquei mais animado e comecei de novo. Fiz mais uma vez o pré-vestibular comunitário e ainda formei junto com alguns amigos um grupo de estudos. Desta vez me dediquei mais, fiz simulado, assistir fitas de vídeo-documentário, perdi sono e tudo mais. Então, no ano de 2004 fiz outra vez a inscrição para o vestibular, desta vez para o curso de Educação Física e no dia 23 de dezembro de mesmo ano, recebi a notícia que tinha passado. Agora era um universitário. A Universidade No primeiro semestre de 2005 comecei a estudar, e é claro que ainda estava naquele momento onde tudo é alegria, tudo é festa. Mas logo me deparei com a realidade. O custo para se manter na universidade, apesar de ser federal, é alto. A estrutura da universidade também me decepcionou muito, falta de livros, material para o próprio curso, alimentação ruim e cara, até local para estudar com calma é difícil encontrar. Outro fator que me desagradou foi a falta de interesse dos alunos em querer mudar essa situação, um conformismo absurdo. Neste período, no bairro onde moro, eu e alguns amigos começamos a nos encontrar para falar das nossas dificuldades e experiências na universidade, e com o passar do tempo, vimos que poderíamos estar desempenhando alguma ação para o nosso próprio bairro enquanto universitários. Deste anseio nasceu o grupo U N A – universitários em ação, que é um grupo de universitários que trabalha o lado social da própria comunidade. A primeira ação do U N A foi a criação de um pré-vestibular comunitário. Universidade Federal de Rondônia 43 Em meados do ano de 2006, o Programa Conexões de Saberes chegou a UNIR, e caiu como uma luva para muita gente, inclusive para mim. Além de receber uma bolsa para ajuda de custo na universidade e fortalecer o conhecimento, o bolsista ainda desenvolve trabalhos sociais, se encaixando com o projeto que já participo. O sonho continua! Meu nome é Leandro Correia, tenho 24 anos, moro no bairro Ulisses Guimarães, periferia da cidade de Porto Velho, faço o 5° período de Educação Física na Universidade Federal de Rondônia – UNIR, participo da pastoral da juventude da Arquidiocese de Porto Velho, faço parte da Comissão Justiça e Paz – CJP, sou membro fundador do grupo U N A e sou bolsista do Programa Conexões de Saberes. Agradeço primeiramente a Deus, pela oportunidade de estar escrevendo este pequeno relato, e a todos que me ajudaram em sua composição, seja, participando dos fatos relatados ou me ajudando na sua elaboração escrita. 44 Caminhadas de universitários de origem popular Minha caminhada Luciana Colares da Silva * Antes de começar a lhe dizer a história da minha vida, vou lhes apresentar algumas pessoas que são importantes, que marcaram minha vida, que não posso deixar de lembrar!!!!!! Durante anos tive uma vida tranqüila, meus avós paternos me amavam, meus tios cuidavam de mim, por falar nisso vou lhe dizer os nomes destas pessoas que são muito importantes pra mim: Meu avô e também meu ídolo se chamava Francisco Ismael da Silva, aprendi a amá-lo e até hoje sinto saudades suas, sempre que lembro dele começo a chorar, pois foi um avô extraordinário ao qual devo meu respeito, o meu caráter e a minha vida; Minha avó Francisca Cila de Sousa Silva cuidou e mim assim que voltei da maternidade, e me acostumei a chamá-la de MÃE. Em meu relato irei usar este substantivo para designála. Ela também é muito especial pra mim, me deu muito apoio quando ingressei na universidade. Hoje ela tem 66 anos, esbanja vitalidade, gosta de sorrir e é a pessoa mais importante da minha vida no momento; e... Tem também meus tios paternos: o mais velho que se chama Antônio Luciano de Sousa Silva é uma pessoa muito “gente fina”, quando precisei sempre me deu apoio; tem também o meu tio Jose Audisio de Sousa Silva, ele me chama de Colares, e sempre diz que queria que eu fosse a filha dele, e diz uma frase mais ou menos assim: “Essa Colares!!!! Quando ela chegou lá em casa em uma caixinha de sapato, sabia que seria uma pessoa especial”; Tenho outro tio que se chama Jose Tarso de Sousa Silva, ele é uma pessoa muito engraçada, gosta de chamar a atenção e tem outras inúmeras qualidades; e por último o meu tio Francisco, ele tem inúmeras qualidades, e também muitos defeitos, mas tenho um enorme carinho e gratidão por ele, minha mãe costuma dizer que ele me carregava no colo todo o tempo até os 5 anos. E ainda... meus irmãos: o Junior e o Joás . Minha trajetória se resume aqui!!!!! Relatarei a minha história começando pelo relacionamento dos meus pais, mostrando assim a minha luta pela vida desde o ventre da minha mãe. Chamo-me Luciana Colares da Silva, tenho 19 anos, nasci em Rondônia, meu pai biológico chama-se Jose de Sousa Silva e minha mãe biológica chama-se Orfa Colares. Meus pais não tinham a intenção de me querer naquele momento, começaram a errar logo que houve a relação sem prevenção. Logo foi inútil a minha chegada, minha mãe biológica tentou acabar com a evolução do meu crescimento interrompendo a gravidez com remédios, chás de todos os tipos, por não saber como assumir a responsabilidade. * Graduanda em Educação Física pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 45 Tentava fugir e só encontrou uma saída: “me abortar”. Meu pai não se interessava, se eu iria nascer ou se iria morrer, pra ele tudo acabaria da mesma forma. Mas meu avô paterno disse que não deixaria que isto acontecesse, e que se fosse preciso cuidaria de mim. Ele cumpriu sua palavra e assim começou minha história de vida. Meu pai biológico tem 3 filhos e se casou com uma pessoa de coração enorme em relação a qual tenho enorme carinho e respeito. Minha mãe biológica tem também 3 filhas e é uma pessoa amarga, por ter uma vida conturbada e problemática. Não tenho nenhum relacionamento com eles, são dois estranhos comigo. Aos 3 anos comecei minha vida escolar entrando no jardim de infância em uma escola particular. Morava também em um bairro melhor estruturado do que o que estou hoje, mas não durou muito tempo. Tive que sair, pois começaram a surgir muitos problemas econômicos, então fui para uma escola comunitária perto da minha casa, onde estudei até a 3ª série. Nesta escola conheci muitas pessoas das quais lembro até hoje, porém os problemas continuaram aumentando. Meu avô ficou muito doente e tivemos que vender a casa, foi necessário comprar outra em um bairro na periferia da capital e lá fui criada dos 4 anos até os dias atuais. Minha infância foi repleta de fatos tristes, mas também de fatos alegres. Brinquei muito com a minha amiga Walkyria que é também bolsista do CONEXÕES, éramos da igreja e sempre tivemos uma harmonia e uma cumplicidade muito grande, apesar de nossas diferenças. Em 8 de julho de 1998 meu avô, por quem eu tinha um eterno carinho, faleceu devido a inúmeras doenças que ao decorrer de sua vida adquirira. Todas as pessoas em minha casa sentiram o óbito do meu avô, principalmente eu, minha mãe, minha prima e o meu tio. Neste momento começou a verdadeira dificuldade, pois não contávamos com isto. Logo que ocorreu este fato tudo se complicou, eu não tinha mais ajuda financeira pra continuar os meus estudos, minha mãe na época tinha 58 anos, ela não trabalhava e nem era aposentada. Meu tio não trabalhava e minha prima ainda tinha ajuda do pai dela; começava o tempo das “vacas raquíticas”. Quando aconteceu isso meu pensamento era de largar os estudos e começar a trabalhar para ajudar nas despesas da casa, mas isso não aconteceu devido à minha força de vontade e da minha mãe. Ao entrar em 1997, na Escola Estadual João Bento da Costa percebi que ali permaneceria por muito tempo. Lá fiz diversas amizades, com as quais tenho contato até hoje, algumas amigas marcaram muito minha vida como a Edna, a Tânia, a Sabrina, a Ramalha e a Laudiléia; esta foi a que mais me incentivou, afirmando que eu tinha capacidade e que por mais que viessem os contratempos, eu sairia vitoriosa. Alguns professores não confiavam na minha capacidade e nem me davam apoio, por eu ser extrovertida. Mas em nenhum momento negaram ajuda, sempre que pedia explicação eles me ajudavam, e os funcionários da escola e todos as pessoas que conviviam comigo gostavam de mim. Mas, quando recebi o resultado do vestibular, pude olhá-los e dizer: “CONSEGUI”. Nessa escola foi implantado um programa de curso pré-vestibular junto ao 3º ano do ensino médio, com o objetivo de promover um grande fluxo de estudantes de escola pública à Universidade Federal de Rondônia. No ano de 2004 estudei e resolvi prestar o vestibular para Educação Física e tive a oportunidade de ingressar nesta universidade, é lá onde estou aprendendo e vivendo minha vida acadêmica. Quando ingressei na UNIR, me deparei com diversos problemas, pois ao querer estudar não imaginava que teria tantos custos. Minha mãe disse que tentaria me ajudar no que ela pudesse, mas sua ajuda não adiantava muito. 46 Caminhadas de universitários de origem popular Minha vida acadêmica começou a sair dos meus planos, não havia muitas chances de continuar com o curso, minha chance era conseguir um estágio remunerado, mas não tive muita sorte. Em um belo dia quando estava passando pelo corredor da universidade olhei para o mural e vi um informativo onde dizia que abriria vagas para ser bolsista de um Programa com o nome Conexões de Saberes, e a seleção seria feita através da Coordenação de Extensão e seriam levadas em consideração as condições sociais e financeiras dos candidatos. Eu achei que ali estaria minha salvação, e fui atrás de saber como seria essa seleção e quando sairia o resultado. Respondi um enorme questionário sócio-econômico onde perguntavam tudo sobre mim, o que eu fazia até o momento da entrevista. Esperei os dias necessários para conhecer o resultado, que classificaria para uma entrevista com os coordenadores do programa. Logo recebi a notícia de que tinha sido escolhida pra ser bolsista e até hoje agradeço a DEUS por tudo o que aconteceu na minha vida, e o programa que me proporcionou um maior tempo na universidade, e a tentar com pesquisas ajudar as pessoas que passam pelas mesmas dificuldades que estava passando. Universidade Federal de Rondônia 47 Estudar na federal? Porque não!!! Basta querer e acreditar Lucinéia Miranda Sanches * Agradecimentos Agradeço ao professor Jailson por ter dado início a este trabalho tão bonito, o Programa CONEXÕES DE SABERES, e assim dar a oportunidade de tornar pública, minha e de muitos outros, nossa trajetória de vida até chegar à universidade, sem o mesmo, seria complicado ser realizado. Ao meu esposo que me tem dado força nas horas mais difíceis e aos meus filhos pela compreensão. Também a minha mãe, irmãos, cunhados e sobrinhos, que torcem por mim. Minha família Lucinéia Miranda Sanches é o meu nome, vim para este mundo aos 21 dias do mês de maio de 1967, no pequeno patrimônio de Marabá, distrito de Tuneiras do Oeste, no estado do Paraná. Meu pai, Antônio Nunes Miranda (já falecido) lavrador, filho de mãe solteira, foi criado com parentes. Nunca freqüentou escola como aluno, indo somente como ouvinte porque seus tios não o matricularam por ruindade mesmo, contudo, tinha ele que levar os primos até a escola, por não poder entrar, assistia as aulas pela janela, e quando chegava em casa ainda ensinava aos primos a matéria dada na aula que eles não conseguiram entender. E assim, aprendeu a ler e escrever muito bem, pois, até nos auxiliava nas tarefas de casa. Minha mãe, Anita Leite da Silva, veio de uma família muito pobre e numerosa, teve 22 irmãos, mas só restaram 11, o índice de mortalidade era muito grande. Ela, foi à escola poucas vezes e por isso lê com muita dificuldade. Dessa união, nasceram 8 filhos, respectivamente: Maria Aparecida (Tiu), Maria Helena (Nena), Noêmia (Queva), Aparecida Izabel (Neném), Arlindo (Lindo), (eu)Lucinéia (Néia), Maria José (Bida) e Aparecido o caçula que faleceu aos nove anos vítima de leucemia. Dentre os sete irmãos somente eu estou cursando ensino superior, os demais, não pretendem. Minha história Recordo com muita saudade minha infância, apesar de muita pobreza, na face de meu papai e de minha mamãe sempre havia um sorriso amigo... o violão estava sempre presente... a canção não faltava, as crianças ao seu redor brincavam... dormíamos em quatro numa cama de casal, mas éramos muito felizes. Posso dizer, não tive vida farta de regalias, mas, tive o beijo e o abraço carinhoso de meus pais, isso, não tem dinheiro no mundo que pague. Hoje, meu pai já se foi deste mundo, mas, o mesmo violão ainda existe e somente eu, de meus * Graduanda em Letras - Espanhol pela UNIR. 48 Caminhadas de universitários de origem popular irmãos, herdei dele o gosto por música que além do violão, gosto também de órgão. Meus três filhos também são músicos. E assim, sou muito feliz e com vontade de lutar por mais difícil que a vida pareça ser. Comecei a estudar aos seis anos, em 1973, na Escola Municipal Machado de Assis, em Marabá - PR. Lembro-me, do primeiro dia de aula, ansiosa e preparada com lápis e caderno dentro de uma bolsa de tecido azul celeste que minha irmã Nena fez, pintou um detalhe meio borrado por ser o primeiro que tinha feito, e lá estava eu, pronta pra estudar. A escola tinha poucas salas, e a minha era de madeira e de assoalho, e quando andávamos fazia barulho. Na segunda série já lia muito bem. A professora dava cartões com textos e fazia a gente ir à frente da sala ler, eu ia, com muita vergonha, mas lia bonitinho, e ficava com pena daqueles que não conseguiam ler. Faltei muitas vezes as aulas, a necessidade fazia com que meus pais nos levassem para trabalhar na época da colheita de algodão e demais colheitas. Era muito sofrido, pois a gente saía de casa as 4 horas da manhã e só voltávamos às 8 horas da noite naquele frio terrível e em cima de um caminhão que nem sequer tinha cobertura de proteção. Quando chegávamos no local da colheita, estava tudo molhado de orvalho, mesmo assim, tínhamos que colher, pois era pago por quilo e estando molhado pesava mais. Na hora do almoço, a comida estava gelada, pois, havia sido preparada às 3 horas da manhã, no entanto, éramos conhecidos como “bóias frias”. Concluí a 4a série em 1977, sem nunca ter reprovado, minha mãe não me deixou continuar os estudos. Mas o meu sonho era ser professora. Minha cidade era composta de duas vendas, a do Milton, a do Sebastião Tiviroli, e alguns bares como o do Francisco Simplício, e o bar do Mané Palito que ficava perto da rodoviária, uma farmácia, um postinho de saúde, uma escola, dois campos de futebol e um bazar. Aos 10 anos, comecei a trabalhar como babá, aos 14, de doméstica na casa da Maria das Graças Tiviroli (Gracinha), diretora da escola em que eu estudei, uma pessoa muito legal (já aposentada) que ainda reside em Marabá. Ela (Gracinha) me ofereceu uma sala de aula para eu lecionar, mas para isso tinha que voltar a estudar. Falei com minha mãe, mas ela não deixou, porque as aulas eram a noite e por eu estar namorando (ela tinha muito ciúme das filhas). Chorei muito. Uma amiga até ofereceu os livros para que eu não precisasse comprar, mesmo assim não teve jeito perdi essa oportunidade, não por mim, mas por ter que obedecer minha mãe. Casei aos 17 anos, (com meu primeiro namorado) aos 18, tive meu primeiro filho, Marcos, (hoje com 21 anos, é Cabo no Exército) aos 20, tive minha filha Marcela (hoje com 19 anos) linda... Nesse intervalo de tempo tentei fazer curso supletivo, mas por morar ainda nesse patrimônio e ter que me deslocar para a cidade de Cianorte, desisti. Mudamos para Tapejara, cidade que fica a 12 km de Marabá, no dia 3 de janeiro de 1991. Passamos por muitas dificuldades. Comecei a vender roupa (sacoleira) para ajudar nas despesas de casa e por isso não podia estudar, foram dez anos de luta. Em 1994, tive o terceiro filho, Lucas Samuel (12 anos). Nessa época já tinha curso supletivo próximo, assim, comecei a estudar no CEEBJA, (Centro de Estudo Básico para Jovens e Adulto) que era de 5a á 8a série, em seguida, eu e meu esposo, concluímos o segundo grau, com direito a coquetel e tudo, teve aquela de entrar na passarela e fotos e mais fotos. Comecei a fazer um curso de magistério à distância em 1999, no colégio João Bagosi de Curitiba-PR, pois afinal eu queria ser professora ora! Universidade Federal de Rondônia 49 No início do curso, consegui um estágio pelo CCEE, de manhã, auxiliava os professores das quartas séries, gostava muito de trabalhar com aquelas crianças desinteressadas. Um deles, chamava Geovani, nunca fazia nada em sala de aula, a professora regente gritava muito com ele e constantemente chamava sua atenção. Comecei a trabalhar diferente com ele, elogiava-o. Pra resumir, Geovani ficou tão dedicado que fazia as atividades primeiro que os demais. Isso chamou a atenção até da diretoria da escola. A tarde eu era regente de uma sala de pré-escolar. Mas, eu não tinha ainda sequer, aprendido a preparar aula, não sabia por onde começar e muito menos por onde terminar. Auxiliar é uma coisa, ser regente, é totalmente diferente. As crianças eram muito bagunceiras, eu não sabia como controlá-las. O diretor dessa Escola, nunca procurou me ajudar, mas, me criticava muito, o que causou a revolta de muitos outros diretores, que solicitaram uma professora para me ajudar. Depois desse acontecimento, a vontade de ser professora acabou.(aparentemente) Quando tinha dois meses que estava trabalhando nesse tormento, surgiu a oportunidade de vir morar aqui em Porto Velho. Meu esposo recebeu um convite para prestar serviços para as lojas móveis Gazin, tivemos que vir para cá, o mais rápido possível. E colocamos nossa mudança em um caminhão e partimos. Sentimos muita diferença com a forma como os moradores daqui falavam. Quando chegamos, fomos para a casa de uns amigos e lá havia alguns jovens. Começaram a conversar falando algumas palavras que não entendíamos, e por saber que não estávamos entendendo quase nada do que estavam falando, diziam que tínhamos que tomar cuidado pois, tinha uns “carapanãs” que eram acostumados a carregar a gente enquanto dormíamos. Ficávamos pensando: o que seria “carapanã”? Depois, descobrimos que “carapanã” era o que em minha terra conhecemos por “pernilongo”. Depois fomos conhecer a famosa cachoeira do Teotônio, uma bela obra de arte da natureza. Vimos “boto cor de rosa”, andamos de barco no Rio Madeira e sempre com medo da sucuri e do jacaré porque aqui não é lenda, é realidade. O vestibular Em 2002, me inscrevi no vestibular na Universidade Federal de Rondônia –UNIR- no curso de Letras Português, mas não passei, em 2003 tentei para o curso de Ciências Contábeis na UNIR e na UNIRON, (queria fugir de ser professora). Passei na UNIRON, mas era particular. Para pagar meus estudos, comecei a trabalhar na loja Casa das Malhas como vendedora. Felizmente não me identifiquei com o curso, estava na sala de Contábeis, mas minha vontade era estar na sala ao lado, Letras. Sempre me vinha à mente aquele rostinho tão feliz do Geovani (aquele desinteressado da quarta série), fazendo as atividades que eu sugeria, isso era muito gratificante para mim. Eu disse à professora de Contábeis que iria desistir do curso por não estar me identificando com o mesmo, ela me disse que eu estava no curso errado porque o meu perfil era pra Letras. Então... em 2004 tentei novamente, mas agora para Letras Espanhol, já havia prestado vestibular duas vezes na Universidade Federal de Rondônia e não tinha conseguido. Passei na primeira fase. Nessa época eu ainda estava trabalhando na loja. Se aproximava a segunda fase do vestibular. Uma amiga da loja me informou que na Escola Padre Moretti estava acontecendo curso pré-vestibular gratuito. Então fomos imediatamente procurar a escola para assistir algumas aulas porque só faltavam duas semanas para a tão temida redação do vestibular. Na primeira semana, só teve aula dois 50 Caminhadas de universitários de origem popular dias, os professores faltaram, na segunda só pude assistir uma aula, pois trabalhei até mais tarde porque era final de ano e a loja estava muito movimentada. Posso dizer que se não tivesse assistido aquelas três aulas de História de Rondônia, não teria conseguido desenvolver as redações porque a professora trabalhou justamente as questões que caíram na prova. Saiu a lista dos aprovados e meu nome não estava lá, infelizmente não passei de novo, lamentei e já estava preparada o psicológicamente para tentar novamente. Até que um certo dia... minha filha estava fazendo um curso de informática e navegando na internet, viu que no curso em que eu havia me inscrito já estava sendo feita a quinta chamada. Fui na UNIR centro para saber qual era minha classificação. Eram 20 vagas e eu havia ficado em 26º lugar, liguei para a secretaria e alguém me disse que era a minha vez e que eu já podia fazer a matrícula. Oh! Como eu fiquei feliz, pois consegui uma vaga na Universidade Federal de Rondônia UNIR, onde tantos gostariam de estar e não conseguem. Hoje aos 39 anos estou no 6º período e muito feliz por esta grande conquista apesar de ter encontrado dificuldades para me manter estudando. Assim que ingressei na Universidade, meu marido ficou desempregado e muitas dificuldades vieram, pensei até em desistir. Então comecei a pensar o que fazer para não abandonar o curso que consegui com tanto esforço. Comecei a fazer iogurte embalado em forma de geladinho e vender na hora do intervalo. E graças á Deus teve boa aceitação pelos universitários e isso tem garantido a mim e minha filha Marcela, que tem 19 anos, cursar o 4º período de Enfermagem também na UNIR. O conexões Quanto ao Conexões, lí a divulgação no mural que tinha vaga para trabalhar no projeto. Interessei-me a princípio, mas não fui me inscrever porque tinha que disponibilizar vinte horas semanais e como eu tenho que cuidar da casa e levar almoço pra minha filha, não dava pra mim, pois a bolsa era de R$300,00 e vendendo iogurte ganho um pouquinho mais. Mesmo assim fui assistir as reuniões. Entrei como colaboradora. Comecei a perceber que dava pra conciliar meus estudos, minha casa, meus iogurtes e o Conexões. Atualmente sou bolsista do programa. Universidade Federal de Rondônia 51 Muito mais que um sonho Luiz Gonzaga Junior* O dia da minha matrícula na Universidade trouxe a lembrança de alguns momentos na minha vida. Lembrei-me dos meus pais incentivando a todos (somos em quatro irmãos) a estudar, pois dificilmente seria possível ingressar em uma particular, já que as condições financeiras não eram favoráveis. Desde o início nos foi “encucado” a estudar nas horas vagas, pesquisar nas bibliotecas, para que tivéssemos maiores chances no vestibular. Minha avó Marcelina trabalhava em uma feira no estado do Maranhão, local de onde quase todos meus familiares vieram. Não tinha condições de manter seus nove filhos em escolas, mesmo que públicas, pois naquela época não haviam tantas escolas rurais, assim sendo, quando vieram pra Rondônia meu pai e seu irmão disseram que começaram a trabalhar muito cedo e tiveram que parar de estudar, mas nós não sabíamos o real motivo. Certo dia, minha tia Sônia nos contou que era muito grata a dois de seus irmãos, que tomaram uma decisão que a ajudou e muito. Como ela era a mais velha, minha avó tinha decidido que ela pararia de estudar pra poder ajudar em casa. Os dois, vendo as condições da época (pobre, mulher e negra) decidiram parar de estudar para que as expectativas de vida de minha tia aumentassem. Ao contar isso, eu passei a entender o porque meu pai falava que enquanto pudéssemos estudar, nós estudaríamos. E passei a me empenhar ainda mais para chegar onde meu pai não pôde. Em 1989 começa minha trajetória escolar na E.M.E.F. Padre Ezequiel Ramim, em Alta Floresta, lá permaneci durante dois anos, em 1992 nos mudamos para Ariquemes, local onde residem meus pais e irmãos. No mesmo ano, comecei a estudar na E.E.E.F. Migrantes, terminado o ensino fundamental em 1998 fui transferido de escola para poder concluir o ensino médio na E.E.E.F.M. Heitor Villa-Lobos, onde permaneceria por dois anos. Depois disso, já em Porto Velho, estudei na E.E.E.F.M. Castelo Branco e por problemas de saúde, tive que ficar dois anos sem estudar, voltando em 2003 na E.E.E.F.M. São Luiz. Pelo fato de ter ficado esse tempo fora da sala de aula, decidi que voltaria fazendo supletivo e em agosto do mesmo ano terminei o ensino médio. No ano seguinte fazia minha primeira tentativa no vestibular, ao qual infelizmente não fui bem sucedido, mas isso não fez com que eu desanimasse, no ano seguinte estava novamente concorrendo a uma vaga e dessa vez tinha me preparado melhor. * Graduando em Espanhol pela UNIR. 52 Caminhadas de universitários de origem popular Dias e noites estudando, as vezes só, outras com ajuda de amigos, ou mesmo em cursinho comunitário (Pré Vestibular da Paróquia Nossa Senhora do Amparo), serviram para reforçar tudo o que eu aprendi no ensino fundamental e médio. Estava chegando a hora, e eu estava realizando um sonho, que já não era só meu, mas também dos meus pais, que por outros motivos não puderam ingressar quando mais novos. Ainda ouvia a voz de alguns professores dizendo que ainda me viriam por aqui e ao mesmo tempo, muito longe, a lembrança daqueles que achavam que isso fosse ficar somente na vontade, que seria mais um sonho frustrado. A alegria que senti era muito além do que a expressada. Hoje dentro da Universidade, faço parte de um projeto que ajuda alunos, que assim como eu, tiveram dificuldades para ingressar e nos prepara também para ajudar formar Universidade Federal de Rondônia 53 Caminhada Marilene Pinheiro Craveiro * No dia 27 de dezembro de 1985 nasce a filha de Luzia Monteiro Pinheiro, uma dona de casa, e de Manoel de Sousa Craveiro, um padeiro. Irmã de Ismael Pinheiro, o caçula e Lucilene Pinheiro, a mais velha e eu Marilene a do meio com apenas dois anos de diferença de cada um. Tive uma infância muito boa, fiz tudo que uma criança faria, e sempre tive tudo que uma criança queria apesar dos esforços dos meus pais, era uma criança pobre, mas nunca me faltou nada. Comecei minha trajetória escolar aos quatro anos de idade estudando na escola Pinóquio. Era uma escola particular e ficava perto do trabalho da minha mãe, eu particularmente adorava, depois da aula ela me levava para passar o resto da tarde com ela, e na escola sempre fui uma aluna muito quieta e calada, e sempre sofri com isso, com a danada timidez. Mas, apesar de tudo, sempre fui uma ótima aluna, dedicada e atenciosa. Apesar dos esquecimentos de minha mãe, que ocorriam raras vezes, segundo ela, eu gostava. Quando ela não podia ir me buscar sempre mandava alguém no seu lugar. Muitas vezes minha tia que também tinha um filho que estudava lá e, além disso, era nossa vizinha, mas eu não gostava quando ela ia, porque ia passar o resto da tarde em casa, e não acompanhada da minha mãe como eu queria. Isso tudo durou apenas um ano. Estudei lá apenas o jardim I. Durante essa mudança aconteceu à separação do meu pai com a minha mãe. Minha mãe sofria muito com meu pai, ela nunca deixou transparecer, mas nós sabíamos o motivo, pois víamos quando meu pai chegava bêbado em casa. Depois dessa separação fomos morar na casa da minha avó. Ficamos sem parte nenhuma na casa porque meu pai sumiu com tudo, e minha mãe ficou sem saber o que fazer com três filhos e sem casa. Com um tempo minha mãe se casou novamente com uma pessoa chamada Antônio Sousa, meu padrasto. Uma pessoa que eu amo. Nos mudamos e fomos morar em outro bairro, mudei também de escola, era uma escola pública, mas só assim nós três voltaríamos juntos para casa, da escola. Não era perto de casa mas mesmo assim nós íamos. O nome da escola era Maria de Nazaré, comecei com o jardim II, onde eu era uma boa aluna e sempre ajudava meus colegas de turma a mando da professora, mas eu gostava. Quando parti para a alfabetização foi muito bom, mas me lembro das grandes dificuldades que passei, como fazer a letra F por exemplo. Era um problema pra mim, mas meu padrasto me ajudou, e finalmente pude dançar a valsa da formatura com ele e enfim concluir a alfabetização. Passando para a primeira série onde aprendi a ler e a escrever melhor, foi muito tranqüilo, foi um bom ano sem grandes dificuldades. Na segunda série foi legal porque estudei com a minha irmã mais velha, pois ela havia reprovado por dois anos, ela tinha muitas dificuldades. * Graduanda em Pedagogia pela UNIR. 54 Caminhadas de universitários de origem popular Já a terceira série foi um desastre, pois foi o ano que reprovei. O motivo é que “faltava” às aulas, ou seja, fugia junto com meus dois irmãos. Não sei onde estava com a cabeça quando fazia esse tipo de coisa! Quando menos esperávamos uma mulher que trabalhava na secretaria da escola contou para os meus pais, e aí imaginem o que aconteceu, minha mãe pegou e aí nem quero contar, mas pode ter certeza que aprendi, e como aprendi, foi uma lição e tanto, se eu pudesse voltar atrás... Mas quando tudo se passou fiz novamente a terceira série e enfim passei com tranqüilidade, e fomos estudar em uma escola particular chamada, Dr. Gilberto Mendes de Azevedo, mesmo na quarta série com 11 anos pude observar a grande diferença de classes. Nós passamos muitas dificuldades com a mensalidade da escola, ainda que esta fosse baixa, minha mãe não podia pagar. Era uma escola muito boa, pois além do bom ensino tínhamos consultas médicas e assistência odontológica. Como perto de casa havia surgido uma nova escola, que por ser muito grande chamava atenção de muita gente, e como minha mãe não tinha condições ela resolveu nos matricular lá. Era uma escola estadual, comecei na quinta série, eu ia sempre a pé, o ensino era muito bom e havia muitos professores, tantos que eu tinha dez. Essa mudança de professores foi muito louca, pois desde a quarta série eu só tinha uma professora, a minha quinta série foi legal, e eu me dedicava muito. Na sexta série também foi um bom ano, pois consegui passar tranquilamente. A sétima série que considero um dos melhores anos que passei nessa escola, foi o primeiro ano de feira cultural da escola. Um dos temas escolhidos pela turma foi astrologia, um tema muito legal, e nós enfeitamos a sala com tapetes, almofadas, estrelas, sol e muito mais. É bom quando a escola realiza esse tipo de evento para a motivação do aluno, dando incentivo aos interesses, é uma forma do aluno ser organizado e de buscar o melhor em seus trabalhos. Quando passei para a oitava série tive um pouco mais de dificuldades, no que diz respeito à matéria senti o peso, e tive um pouco mais de dificuldades para passar de ano, principalmente em matemática, mas enfim consegui ser aprovada e fui para o primeiro ano do ensino médio. Foi quando surgiu o projeto terceirão, que tinha como objetivo ajudar estudantes de origem popular a passarem no vestibular e cursar a Universidade. Este projeto surgiu através dos esforços de alguns professores que já estavam cansados de verem seus alunos saírem da escola sem um preparo suficiente para entrarem na Universidade. Muitos diziam que era loucura de alguns professores, e que eles queriam apenas ganhar sucesso. Foi um sonho realizado. Mas a preparação não começava no terceirão, pois a partir do primeiro ano os alunos já teriam que ser devidamente preparados para que quando chegassem ao terceiro ano os professores fizessem só uma revisão da matéria. Esse esforço todo só para que nós, alunos de comunidades populares tivéssemos o direito de competir legalmente com alunos de escolas particulares. O segundo ano foi mais reforçado ainda, e enfim quando cheguei ao Terceirão. Foi uma grande alegria saber que eu teria a minha chance de ir para a Universidade, de cursar a Universidade Federal de Rondônia, meu sonho e de muitos outros alunos. Antes de começar a estudar no terceirão consegui um emprego, como estagiária nos Correios. Trabalhar e estudar não é fácil como muita gente pensa. Sofri na pele o que é querer ajudar em casa no momento em que minha família mais precisava e ter que desistir para estudar, não porque quisesse, mas porque as aulas eram muito intensivas, cansativas, e eu não tinha aquele pique de estudar. Universidade Federal de Rondônia 55 Comecei a faltar às aulas, não consegui mais acompanhar a turma, e quando percebi tudo isso acontecer comigo eu parei e pensei: “e o meu sonho como fica? Tudo que eu estudei vou jogar fora e simplesmente vou terminar por terminar o ensino médio?” Tive que parar para refletir um pouco, pensar na minha vida. Mas tenho certeza que eu fiz a coisa certa, pois escolhi o melhor caminho, e nunca vou me arrepender dessa escolha. Como eu havia perdido muita matéria tive que correr contra o tempo, pois oito meses já tinham se passado desde que havia começado a estudar. Tive que correr atrás do prejuízo, comecei a estudar de manhã à tarde e à noite sem me cansar. No ano anterior tinham sido aprovados 25 alunos no vestibular da Universidade Federal de Rondônia, no ano da minha turma de 2004 foram mais de 50 alunos, inclusive para medicina. Na escola foi uma verdadeira festa, nosso diretor o professor Suammi fez uma promessa de soltar fogos de acordo com a quantidade de alunos aprovados. Acho que ele teve um grande prejuízo, fora um de nossos professores que falou que se em 2004 fossem aprovados mais de 25 alunos, o recorde do ano anterior, ele daria uma grande festa . Tanto a festa como os fogos foram cumpridos, nossos nomes foram colocados no muro de nossa escola, assim como já era de costume. O curso que escolhi foi o de Pedagogia, foi uma escolha minha, ninguém opinou na minha escolha. Meus pais adoraram e quando souberam que eu passei então, foi muito bom dar essa alegria a eles, que ficaram muito orgulhosos de mim, por saberem que fiz a escolha certa. Muitas pessoas falaram do curso que eu escolhi que era um curso pobre, um curso fácil de passar, mas eu não ligo e digo com muito orgulho que faço Pedagogia. Logo que entrei na UNIR me deparei com muitas mudanças, à primeira delas foi o ambiente, um espaço livre, as roupas, pois não se precisava ir de uniforme, as disciplinas que eram totalmente diferentes daquilo que eu estava acostumada a ver, foi a melhor mudança que já fiz. Eu me casei com uma pessoa muito legal chamada Wesly de Sousa, que é uma pessoa maravilhosa e que me ajudou muito nos dois anos em que fomos namorados. Ele me deu apoio para que tudo isso acontecesse na minha vida. Quando comecei o terceiro período soube da seleção que o professor Márcio Secco estaria fazendo, para o Programa Conexões de Saberes, um programa nacional onde seriam selecionados 25 bolsistas que receberiam uma ajuda de custo no valor de R$ 300,00 (trezentos reais). Fiquei interessada, pois os alunos passam muitas dificuldades na hora de comprar um livro, de tirar uma cópia, e também com passagem porque só no trajeto para a UNIR pego dois ônibus para ir e dois para voltar, por isso para mim foi uma grande oportunidade esse programa, para diminuir minhas necessidades de estudante. Fui selecionada para o programa, fiquei muito feliz, minha vida mudou muito desde que entrei no programa. Percebi que da mesma forma que nós outros querem fazer diferente. Eu pude enfrentar todas as dificuldades mas ainda existem pessoas que precisam dessa ajuda, de um simples empurrão, assim como eu um dia precisei dos meus professores, dos quais sempre vou lembrar. Esse será o meu grande objetivo nesse Programa chamado Conexões de Saberes: diálogo entre a universidade e as comunidades populares, sinto muito orgulho de ter sido escolhida para assumir esse papel junto com meus 24 colegas, meus colegas de programa, que juntos daremos esperança para as comunidades populares e pessoas que assim como nós querem fazer diferente. 56 Caminhadas de universitários de origem popular Nuances de mim Patrícia dos Santos Lima * Todas as histórias populares são iguais... Contudo, cada uma tem seu estranho ímpar. “O que foi, isso é que o há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; de modo que nada há novo debaixo do sol”. Eclesiastes 1.9 Aquele parecia seu instante de eternidade, naquele instante parecia estar sozinha na sala, naquele momento Patrícia sentiu o peso da sua origem social. Ela estava em sua primeira aula de Inglês na Universidade. Mas para situarmos melhor esta trajetória, vamos ao comecinho. Patrícia é candanga, estranha esta palavra?! Mas eu explico ao leitor: candango é a pessoa nascida no Distrito Federal. Pois é, ela nasceu na cidade-satélite de Ceilândia e começou a crescer lá. Bom ela é a segunda filha do senhor Edimar, de origem piauiense e dona Francelice de naturalidade maranhense e por sinal, na época, era muito hiperativa esta criança. Agora chegou o momento desta personagem entrar em cena. “Como os leitores devem ter percebido, não venho de uma família grande, mas pequena e simples, muito simples, eu acho. Não pense que quero fazer uma manipulação psicológica para atingir as emoções de vocês leitores, talvez queira eu despertar, eu ínfima curiosidade quanto à minha pessoa. Então, começando, quero deixar claro que meus pais não estudaram tanto como eu queria que eles tivessem estudado. Meu pai diz que estudou até o ensino científico, hoje ensino médio, mas seu histórico só comprova até a 5ª série, porém quem sou eu para questionar meu nobre pai. Já a minha mãe era mais interessada em estudar, ela cursou até o segundo ano de contabilidade, quer dizer até hoje ela é interessada, pois agora está dando continuidade aos seus estudos e deseja também chegar à universidade como tantos. Mas devido às circunstâncias nenhum dos dois tem uma profissão definida. Na época em que moramos em Brasília e que eu tinha consciência disto, minha família possuía uma condição razoável, então eu comecei a estudar em escola particular. Sempre fui muito curiosa. Comecei a estudar com três anos, na semana que antecedia ao primeiro dia de aula fiquei muito ansiosa e contando os dias para o meu primeiro dia na escola. O nome era * Graduanda em Letras - Inglês pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 57 ‘Pimentinha’ fazia jus ao meu comportamento na época. O primeiro dia foi encantador, eu me sentia bem naquele ambiente que me colocava em contato com o conhecimento. Antes de ir para o ambiente escolar eu já gostava de rabiscar bolinhas em cadernos que minha mãe comprava justamente para esta finalidade, por isso quando eu iniciei meus estudos eu tinha uma coordenação muito boa. A minha primeira professora que me ensinou os primeiros símbolos gráficos elogiavame bastante, o nome dela era Célia, era uma pessoa muito gentil. Todos os dias eu queria ir à escola, não gostava de faltar. Às vezes fazia a minha mãe me levar à escola até aos Domingos para comprovar que não havia aula, isso aconteceu algumas vezes porque eu como criança não tinha muita noção do tempo, inclusive quando a minha mãe não me levava para a escola dominical na igreja. “Na época do inverno, as chuvas são intensas e longas em Brasília, minha mãe teve uma brilhante idéia para não faltar à aula e nem ficar importunando-a, comprou uma capa de chuva, uma sombrinha e umas botas”. Era algo muito engraçado! Que pena que vocês leitores não estavam lá par assistir a cena ímpar desta trajetória. Ela, a Patrícia, era das poucas crianças que gostavam do ambiente escolar e que inclusive não chorou em seu primeiro dia de aula, isto era apenas indício de uma futura paixão pelo conhecimento. Como as coisas não estavam bem, em Brasília, seus pais resolveram mudar para Teresina no estado do Piauí, deixando muitas coisas pra trás e quando chegaram lá tiveram que recomeçar uma outra vida. Ela não recorda com precisão em que época do ano essa mudança aconteceu, só sabe que foi estudar em escola luterana coordenada por um pastor norte-americano e que era um estabelecimento privado. Ela estava cursando o jardim II. A escola tinha uma estrutura muito boa. Ela ficou nesta escola até a Alfabetização. Que anos singulares, sua adorável professora Isabel foi quem lhe ensinou a ler as primeiras estruturas frasais. Ainda hoje, Patrícia possui a vaga lembrança de uma pequena criatura que marcou seu aprendizado. Quando eu fui para a 1ª série, foi um primeiro contato com a escola pública, nesta escola não senti tanta diferença, a escola e as pessoas eram até legaizinhas, não considere esta palavra pejorativa, é apenas uma maneira carinhosa de descrever o lugar. Naquele mesmo ano eu comecei em uma escola e terminei em outra, por motivos de mudança domiciliar. Nesta última escola o ambiente me assustou um pouco, as pessoas eram frias e indiferentes, a estrutura deixava muitas coisas a desejar, eram pintadas de uma cor sombria, as paredes praticamente eram rabiscadas, a verdade é que o ambiente era desmotivador para estudo. Mas estes detalhes não me bloquearam o interesse para aprender. Mas é claro que muitas crianças iam à escola somente para brincar e passar o tempo. Durante o meu curso primário nós mudamos várias vezes até que nos estabilizamos em um bairro afastado do centro da cidade. Nesse período eu estudei em várias escolas, porém isto não afetou o meu desempenho escolar, não reprovei em nenhuma série e sempre dei conta do recado. Quando eu estava terminando o primário e no próximo ano começaria o ginásio minha mãe achava que seria melhor eu estudar em colégio particular. E foi isso que sucedeu, havia uma escola próxima a minha residência e eu comecei o primeiro ano do ginásio nela. A princípio eu tive algumas dificuldades porque o nível de ensino era outro, mas com o tempo superei e comecei a me destacar em minha turma. Estudei nesta escola até o primeiro semestre da 7ª série. Como eu creio que todo mundo sabe que na vida nem tudo são flores, a economia familiar ficou fragilizada e meus pais não puderam mais me manter nessa escola. Conseqüentemente, eu tive que estudar em escola pública novamente. 58 Caminhadas de universitários de origem popular Como eu não era dona do meu nariz aceitei a decisão sem reclamar. A escola era bem longe, a princípio eu ia de ônibus, só que chegou o momento em que o dinheiro para o ônibus não estava dando no orçamento familiar. Então como meu pai era bicicleteiro, ele montou uma bicicleta para eu ir ao colégio. A bicicleta não era a dos meus sonhos, mas quebraria o galho, e que galho! A final eram cerca de quatro quilômetros de distância. “Só que às vezes o caiporismo me perseguia e quando acontecia, eu tinha que andar a pé se quisesse de fato ir à escola”. Foram dois anos e meio bem difíceis, não pelo estudo, mas sim pelas circunstâncias daquela época. Não sei se já falei, se sim, se não quero abrir um parêntese para que o leitor compreenda as próximas linhas desta prosa: Patrícia teve toda uma educação cristãoevangélica, significa dizer que era uma pessoa muito diferente tanto no falar quanto no vestir. Em virtude desses aspectos da nossa personagem central, ela no último ano do ensino fundamental começou a sofrer preconceito religioso. Durante esse período ela ficou um tanto isolada da turma porque somente algumas pessoas dialogavam com ela. Os outros alunos a excluíam em razão dos seus costumes religiosos, como vestir roupas compridas e não usar maquiagem e etc. Com o passar do tempo ela estava desmotivada para ir à escola, conseqüentemente seu rendimento escolar baixou. Mas isso tudo só ficou perceptível no final do ano quando pela primeira vez ela ficou para recuperação em sua matéria preferida: Matemática. Seus pais ficaram surpresos com o fato e conversaram com ela para saber o que estava acontecendo, mas como faz parte da garota ser reservada, ela apenas declarou que havia estudado pouco nos últimos meses. Ela estudou bastante para a prova e conseguiu ser aprovada. Pronto! O ensino fundamental estava concluído e agora começaria uma nova etapa: o ensino médio. Para aquela próxima etapa, aquela cabecinha estava cheia de planos, sendo um deles ingressar na Escola Técnica Federal no curso de Edificações. Sem esquecer de um detalhe, em Teresina, em todas as escolas que possuía ensino médio só se ingressava através de exames classificatórios. Como a criatura era muito teimosa e ainda é um pouco até hoje, ela só se inscreveu para o exame da ETFPI (Escola Técnica Federal do Piauí) na época, hoje CEFET. Digamos que estudou o possível. No dia do exame estava muito nervosa, pois nunca havia feito uma prova daquele gênero antes. Depois de alguns dias saiu o resultado, para a sua decepção não havia sido aprovada. Claro que foi humilhante, mas o pior não era isso, ela tinha depositado toda a sua esperança naquele exame e não se inscreveu em outra instituição. Onde ela iria estudar aquele ano? Resolveu ficar sem estudar, ou melhor, não foi possível. Naquela época ia fazer dois anos que meu pai estava trabalhando em Manaus. Então neste mesmo ano ele recebeu uma proposta para trabalhar em Porto Velho no estado de Rondônia. A princípio eu adorei a idéia, lugar novo, gente nova, era disso que eu estava precisando. Mas depois comecei a pensar, eu já morava naquela cidade há onze anos e no bairro há sete anos. Não seria fácil se desfazer assim, do lugar onde aprendi muitas coisas, das pessoas então, era mais doloroso, eu acho que foi uma época em que fiz mais amigos, diferente de hoje, que parece que fui me introvertendo ao longo dos anos. Aquela saudade que eu sentia, mesmo sem ter saído ainda era porque na verdade eu não sabia quando retornaria ali e veria aqueles rostos que convivi durante aquele tempo. Enfim a decisão foi tomada e eu, minha mãe e minhas duas irmãs tivemos que partir em direção ao norte do país. Perdão, mas eu acho que ainda não contei aos leitores que eu tenho duas irmãs, uma mais velha e outra mais nova. Só que nesse jogo familiar quem faz o papel Universidade Federal de Rondônia 59 da mais velha sou eu, porque a minha irmã mais velha tem microcefalia e requer um cuidado todo especial. Devido a esse problema tivemos algumas complicações na hora de viajar, mas mesmo assim a viagem ocorreu bem. Quando eu cheguei a Porto Velho, o outro lado do país, o choque cultural e lingüístico foi inevitável. Eu estranhei alguns costumes e algumas palavras. E quando eu perguntava alguma coisa a respeito era motivo de risos. Mas isso foi superado com o tempo. Não foi fácil encontrar vagas nos colégios e minha mãe só conseguiu em um colégio bem distante de onde morávamos. Eu estava muito ansiosa, também já estava a um ano de férias. No percurso da minha casa até a escola não havia ônibus, então eu ia a pé, não era tão longe mesmo, eram só dois quilômetro e oitocentos metros de caminhada todos os dias. Mesmo nestas circunstâncias eu era assídua ia mesmo doente, isso fazia parte das minhas metas enquanto estudante. Eu só agüentei esse ano. Como eu já conhecia algumas pessoas, através de amizades consegui uma vaga em um colégio próximo de minha residência, o qual era muito cogitado para se ingressar nele. Este foi um dos melhores anos de escola apesar de nem todos os professores serem competentes. Mas eu procurava ser competente. No ano seguinte, em virtude do corpo docente dessa escola estar mal estruturado, eu resolvi mudar de escola novamente. Porque eu já ia cursar o terceiro ano e queria uma coisa melhor. Como a escola John Kennedy tinha um corpo docente muito bom eu fui estudar lá, nem tinha mais vaga, mas eu não me conformei com o não da pessoa responsável pelas matrículas e pedi para falar com a diretora e ela me deu a vaga. Apesar de ser uma escola pública, estudava muita gente de classe média baixa, então eu via um grande hiato entre eu e meus colegas de turma, mas nós nos entendíamos. A parte mais constrangedora desta época é que muitos tinham microcomputador e acesso à internet em casa e entregavam os trabalhos digitados com tudo que tem direito. E eu fazia os meus manuscritos e a custo de muita pesquisa na biblioteca. Nesse ano meus pais não estavam mais suportando o aluguel e compraram uma casa simples ‘no fim do fim’ da cidade, ou seja, em um bairro popular. Como desde que chegamos a Porto Velho não tinha gastos com ônibus, pois morávamos sempre no centro da cidade a partir de então, esta seria a próxima despesa em lugar do aluguel. Como vocês devem ter percebido durante esta minha trajetória eu não me envolvi em muitas atividades na escola, eu não gostava de participar de gincanas, conta-se às vezes em que participei deste tipo de evento. Não gostava de estar em mobilizações políticas, meu objetivo na escola se resumia apenas em cumprir o meu papel de estudante. No ano em eu estava cursando o terceiro, eu teria que decidir que curso universitário iria fazer, era um ano de decisão. Na verdade, eu já tinha os meus planos traçados, meu sonho e objetivo era cursar Engenharia da Computação no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica). “Este desejo parecia impossível, mas eu acreditava em meu Deus e em minha capacidade, afinal eu estava estudando para isso a um bom tempo”. As pessoas achavam que era um sonho ingênuo de adolescente que quer crescer e não pensa nas circunstâncias. E ela trazia um slogan consigo: “Se os pensamentos de meu Deus são altos por que os meus não podem ser também?”. O tempo passou e a inscrição e todos os documentos para o exame do Instituto Tecnológico de Aeronáutica chegaram até a sua casa. A emoção de dar este passo estava estampada em seu rosto, só que tinha um detalhe, se acaso ela fosse aprovada passaria cinco anos em São José dos Campos em São Paulo em regime de internato. Outro fator, ela era menor de idade e seus pais teriam que assinar os 60 Caminhadas de universitários de origem popular termos de responsabilidade que vinham anexos aos documentos, especificamente para candidatos enquadrados neste caso. A mãe percebendo as circunstâncias de ficar separada da filha durante muito tempo negou-se a assinar os termos e o sonho de Patrícia foi dissipado no tempo. “Foi duro encarar a realidade e ver meus sonhos desfeitos por uma simples vontade. Eu fiquei revoltada, mas não podia fazer nada e tive que usar minha segunda alternativa: vestibular da UNIR (Universidade Federal de Rondônia)”. Seus pais não podiam pagar cursinho Pré-vestibular e ela começou a estudar em casa mesmo. Foram três tentativas pra ingressar na Universidade Federal. A primeira vez ela tentou para Informática e as outras duas vezes para Letras/Inglês. Ela disse que não consegue descrever com fidelidade o que sentiu quando foi aprovada, seu nome no jornal, os amigos dando parabéns foi uma sensação ímpar. “É curioso como eu decidi optar pelo curso de Letras/Inglês, durante meu ensino médio eu gostava mais das matérias de Matemática, Física e Química, todas voltadas para área de exatas. Eu detestava Português e Literatura. Hoje pensando bem se tivesse sido aprovada para o curso de Informática, eu teria me frustrado, pois hoje sei que não me identifico com o curso. Escolhi Letras e sou apaixonada por meu curso, apesar de as pessoas falarem desdenhosamente ‘ser professora’, ganhar pouco. Eu nunca fiz planos para ser professora, mas as pessoas dizem que tenho um dom nato, me elogiam de forma que às vezes fico confusa, pois eu ensino de forma tão natural e espontânea. Eu sei que na época da minha última tentativa para o vestibular foi O Ano, não sabendo eu que era O Ano, naquele período ‘eu olhava ao meu redor as circunstâncias e nada sustentava a minha fé, mas eu aprendi algo tremendo: que eu podia fechar os meus olhos, fechar os meus olhos pra tudo que estava ao meu redor. E com olhos do meu coração, a fé que Deus colocou em cada um dos seus filhos, a fé que Ele me deu, a própria fé de Deus. Com esta fé eu pude contemplar, eu pude ver um dos meus sonhos se realizarem: ingressar na universidade”. O curso em que ela estudaria só entraria no segundo semestre do ano, porém ela não ficou ansiosa durante o período de espera para ingressar, ficou tranqüila. Quando chegou a época do início do curso, ela estava com muitas expectativas a respeito dos professores e das disciplinas. O seu primeiro dia de aula foi muito bom, os professore se apresentaram e os veteranos os recepcionaram dando dicas como funciona o ambiente acadêmico. “Esse é um dos momentos que mais me marcou quando entrei na universidade, foi minha primeira aula de Língua Inglesa, por isso ela é citada bem no início do ensaio. O meu Inglês era o básico do básico da minha educação escolar, mas eu tinha uma noção do escrito, da fala a fonética soava muito estranho para mim. Quando aquele professor chegou à sala falando Inglês fluente, eu me senti um grão de areia perdido no espaço. Foi uma experiência horrível. Acreditem! Quando eu cheguei em casa estava decidida a trancar o curso, mas a minha mãe convenceu-me a não trancar e realmente não o fiz e valeu a pena o conselho. Claro houve muitas outras dificuldades como as de fotocópias, os livros que tinha que comprar a entrega de trabalhos digitados sem ter computador, tendo que depender do laboratório de informática da universidade, o transporte, enfim, muitas coisas”. Com o passar do tempo os conteúdos na academia foram ficando mais densos ela quase adotou a filosofia de Salomão em Eclesiastes 12.12 “E, de mais disso, filho meu, atenta: não há limites para fazer livros, e o muito estudar enfado é da carne”. Universidade Federal de Rondônia 61 “Outro fator que enfrentei e enfrento até hoje são os bombardeios ateístas sobre mim, afinal o Cristianismo faz parte da minha cultura particular e popular, ele está praticamente intrínseco ao meu ser. Não posso desenraizá-lo de mim assim tão facilmente. Em um determinado dia depois de uma discussão com ateístas, com minha fé abalada procurei refúgio no Livro Sagrado e encontrei uma palavra maravilhosa em Romanos 3.3,4 ‘Pois quê? Se alguns foram incrédulos, a sua incredulidade aniquilará a fidelidade de Deus? De maneira nenhuma! Seja sempre Deus verdadeiro e todo homem mentiroso, como está escrito: “Para que seja justificado em tuas palavras e venças quando fores julgado’”. Assim que ingressou na universidade, Patrícia já foi informada sobre as políticas de pesquisa da instituição. Então desde o início do curso já alimentava o desejo de participar do PIBIC. Ao ver o cartaz de seleção para o Programa Conexões de Saberes se inscreveu, pois já desenvolvia atividades comunitárias no seu espaço de moradia. Como eu já trabalhava no UNA (Universitários em Ação) resolvi unir o útil ao agradável. Depois que entrei na universidade muitas coisas mudaram para mim e ao redor de mim, e proposta do Conexões veio a ampliar esta forma de ver a sociedade diferente. Quero ver minha comunidade aliar o conhecimento a suas práticas sociais e assim aos poucos transformar a realidade em nossa volta. Pois eu acredito que assim como “Há esperança para a árvore, mesmo cortada, mesmo que no chão o seu tronco de velho venha morrer, ao cheiro das águas brotará e dará frutos como a planta nova, os seus ramos se renovarão”, assim há esperança’ para a sociedade considerada perdida. Talvez o leitor(a) não tenha compreendido as nuances deste ensaio, este entrelaçamento de discurso que deixa no ar a existência de um mediador nesta prosa. Quero declarar-vos que o texto foi produzido por uma única pessoa. O “eu em mim demonstrando como eu sou e eu fora de mim demonstrando como eu me vejo”. 62 Caminhadas de universitários de origem popular Mudanças imagináveis... Regilane Lacerda Gonçalves * A comunidade de Nazaré, o que se poderia chamar de “vila” do distrito, localiza-se a 150 km de Porto Velho, tem como acesso principal à via fluvial, através de barcos, voadeiras e canoas e é uma localidade simples e muito acolhedora. Nasci nesta vila, onde morei até os 11 anos, com minha mãe, meu pai e meus irmãos. Comecei a freqüentar a escola muito cedo, pois minha mãe era professora e não tinha com quem me deixar. Fui alfabetizada aos 6 anos pela minha mãe, uma ótima professora que com poucos recursos didáticos e condições precárias da sala de aula conseguia ensinar aos alunos com alegria e força de vontade. Lembro-me que da 1ª à 4ª série, o período que estudei na escola Floriano Peixoto foi ótimo, mesmo sendo uma escola da zona rural com uma precária infra-estrutura de sala de aula, pouco material didático e merenda. Os professores utilizavam recursos da natureza para ensinar aos alunos, tínhamos aulas ao ar livre, todos os finais de semanas o professor Maciel organizava brincadeiras para todos, foram muitas as lembranças desse período escolar que ficaram para sempre em minha memória como o desfile cívico, onde os alunos da escola ensaiavam rigorosamente durante um mês, todos os dias depois da aula, com a orientação de todos os professores, para que no dia 7 de SETEMBRO se apresentassem no desfile. Outra lembrança que marcou este período foi a luta dos professores pela complementação do ensino na escola Floriano Peixoto. Aos 10 anos terminei a 4ª série, fui estudar na capital de Rondônia, quando meu pai falou que já estava matriculada na Escola Duque de Caxias, fiquei muito alegre, mas sabia que as dificuldades seriam imensas, principalmente pelos motivos que me separaram de pessoas muito importantes como minha família e colegas. Estava feliz por continuar os estudos, coisa que meus colegas de classe queriam fazer, mas tinham menos condições que eu, filhos de pescadores e trabalhadores da roça, os pais dos meus colegas diziam que não poderiam mandar seus filhos, pois não tinham como mantê-los na cidade. Assim meu pai falou com uma tia dele, perguntou se eu poderia morar com a sua família em uma casa com 8 pessoas, tive que levar em consideração que morar em uma casa com essa quantidade de pessoas era muito difícil, mesmo sendo parente. A saudade dos meus familiares queridos era imensa, chorei quase todos os dias dos meses, porém minha bisavó incentivava, dizia que tudo por que estava passando seria por uma boa causa, porém fiquei nesta casa só por dois meses, logo fui morar com minha tia Rosa Maria e mais seis pessoas inclusive minha avó paterna Francisca. Nesta casa me sentia mais aconchegada, neste período fiquei indo para a escola a pé, tudo para economizar dinheiro e ajudar na alimentação da casa onde estava morando. * Graduanda em Pedagogia pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 63 No ano de 1998, pedi para os meus pais me transferirem para São Carlos, no distrito que fica a quatro horas de porto velho, então meu pai me matriculou na escola Henrique Dias. Foi um período complicado porque as aulas desta escola só começaram em julho por falta de professores, situação que continua até os dias atuais, principalmente pelo motivo da falta de adaptação dos professores nesta localidade rural. Um dos inúmeros momentos difíceis neste período foram às muitas “pedaladas”, todos os dias tinha que andar quarenta e cinco minutos para chegar a escola, debaixo de chuva e sol, em uma estrada de terra que a maioria do tempo estava com a mato alto e no inverno chovia muito onde se via muita lama. Lembro-me das histórias das misurias (lendas de assombração) que apareciam na estrada. O medo era imenso, mas graças a Deus existiam mais colegas que iam também de bicicleta. O Bosco (um colega desta fase) marcou bastante por me ajudar nas minhas dificuldades, por ser a menor da turma ficava sempre pra trás, ele nunca me deixava sozinha e me chamava de um apelido carinhoso “menina bonitinha de Nazaré” e com muita luta consegui terminar a 6ª série. No ano de 1999, meu pai contou nossas dificuldades para um padre que estava visitando a igreja de Nazaré, com isso ele conseguiu uma bolsa de estudos em uma escola particular de Porto Velho, foi muito complicado, pois minha mãe tinha muitas despesas, dentre elas fez um empréstimo bancário no intuito de comprar uma casa para que pudesse morar e não podia me ajudar com as despesas escolares. Meu pai foi à escola e contou o que estava ocorrendo e as irmãs facilitaram a pagamento destas despesas, os livros que utilizei neste ano foram doados. Na sala de aula tive muita dificuldade, pois o ensino da escola era avançado e no início não conseguia acompanhar os colegas de sala, minhas notas no 1º bimestre foram péssimas e por isso tive que fazer aulas de reforço para poder acompanhálos. Desde esta data as condições financeiras só pioravam, minha mãe foi demitida e o meu pai mantinha o sustento da casa, dos meus estudos e dos meus irmãos e esta dificuldade durou até a conclusão do ensino médio. No ano de 2003, fiz a inscrição do vestibular para pedagogia e quando fiquei sabendo que tinha passado fiquei muito feliz, por ter vencido mais uma etapa da minha vida, mas as dificuldades vindas do ensino médio foram aumentadas na universidade, pois meus pais se separaram e ficou instável a nossa situação. Com a universidade os meus gastos ficaram muito grandes, as fotocópias e o transporte eram o mais necessário naquele momento de início da minha vida acadêmica. Foi assim que em um dia passei pelo corredor e vi um cartaz, onde aconteceria a seleção de bolsistas oriundos de camadas populares, este Programa se chamava CONEXÕES DE SABERES, neste período do conexões ajudou-me muito para que continuasse na universidade. Agradecimentos Gostaria de agradecer a todos da minha família; ao Bosco; as irmãs do colégio Maria Auxiliadora; ao padre que conseguiu a bolsa; aos meus colegas de curso; e aos bolsistas e coordenadores do Programa Conexões de Saberes. 64 Caminhadas de universitários de origem popular Juntando minhas conexões Rosemari Nazaré da Silva Paz * Minha história deve ser muito comum dentro de nosso grupo. Comecei minha vida escolar aos 6 anos de idade, no Pré-Escolar, na Escola São Luiz que era a mais próxima de minha casa. Nessa época morava no bairro JK III, um bairro que surgiu a partir de invasões. Minha mãe sempre ia me deixar na escola juntamente com minha irmã mais velha. Meu outro irmão ela levava para o trabalho e na saída voltávamos sozinhas. Após iniciar a 2ª série do 1° Grau (atual Ensino Fundamental), meu pai comprou uma casa num bairro mais afastado do anterior. Logo mudamos de escola também, que por sinal, era muito distante da minha casa, mas meus primos que já estudavam nessa escola nos acompanhavam. Essa escola era muito boa, mas por ser uma escola estadual e estar localizada num bairro popular e muito distante do centro, muitas vezes não tínhamos aula por falta de energia elétrica, falta de água e na maioria das vezes falta de merenda escolar, pois muitos alunos freqüentavam a escola para obterem alimentação. Fiquei nessa escola até meus onze anos de idade, foi quando terminei a 4ª série e tive que mudar de escola. Permanecemos no mesmo bairro, mas minha nova escola, Risoleta Neves, era muito mais distante de minha casa. Minha mãe trabalhava no Centro da cidade, então todo dia íamos juntas no mesmo ônibus. Isso aconteceu até o final do primeiro semestre quando passei a fazer o percurso sozinha. Minha vida mudou muito nessa época, pois conquistei mais liberdade. Sempre quis cursar uma Universidade, mas sempre tive dificuldades em escolher uma profissão, apesar de ser boa aluna, pelo menos nessa época. Minha mãe confiava em mim e dizia que eu não teria problemas, se estudasse passaria. Nessa altura meu irmão ia mudar também para a mesma escola que eu estudava, o que significaria que teríamos problemas financeiros, pois as despesas dobrariam, uma vez que agora seríamos dois a pegar ônibus, então começamos a ir de bicicleta. Essa foi uma fase muito difícil, pois a escola era muito longe e em dias de chuva era um Deus nos acuda. Quando estava no 3° ano, sempre que chegava da aula pegava livros para estudar para o vestibular, pois não tínhamos dinheiro para pagar cursinho e como eu já tinha feito o ENEM, me considerava um pouco preparada, para ser uma futura acadêmica da Universidade Federal de Rondônia. Nessa fase de minha vida tive o apoio total de minha mãe que fazia o possível e o impossível para me ajudar, ela trazia revistas do trabalho para que eu pudesse ficar por dentro de todas as atualidades. Em minha escola, havia duas turmas concluindo o 3º ano. Aproximadamente 10 pessoas, cinco de cada turma, inscreveram-se para o vestibular, mais foi grande minha surpresa quando fiquei sabendo que de todos os inscritos em vários cursos, apenas eu havia passado nas duas fases do vestibular, tendo então realizado o meu maior sonho, compartilhado por minha mãe. * Graduanda em Geografia pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 65 Enfim começaram as aulas e as dificuldades eram as fotocópias, livros, trabalhos e tudo isso, além do transporte, faltava dinheiro, e agora? Para chegar até a Unir, preciso pegar um ônibus da minha casa para o centro da cidade, o outro ônibus para ir ao Campus da Unir, sendo o mesmo trajeto na volta, ou seja, pagar 4 passagens por dia, o que pesa bastante no orçamento de minha família, pois além de mim, minha mãe mantinha mais dois irmãos na escola regular. O Conexões apareceu pra mim numa fase em que eu já estava em dificuldades em minha graduação. Juntando o útil ao agradável, pois pretendo ser Bacharel em Geografia, e estava meio perdida sobre a monografia, o projeto foi uma saída para me manter na Universidade, fazer minha monografia, e ajudar outras pessoas que estejam passando pela mesma situação que passei, ou até mesmo pior. Em algumas comunidades que conheço bem, pois sempre morei em bairros pobres, e sempre estudei em escola pública, me deparei com esta realidade. E hoje se estou prestes a concluir meu sonho dentro desta Universidade devo muito a minha mãe, a meus colegas conectados deste projeto. 66 Caminhadas de universitários de origem popular Minhas caminhadas Rosimeire Ferreira do Nascimento * Meus pais são Nordestinos, minha mãe teve 7 (sete) filhos sendo, 4 (quatro) mulheres e 3 (três) homens, sou gêmea e minha irmã é mais velha do que eu 1 (uma) hora. Bem vou voltar ao passado e tentar passar para o papel um pouco de minha trajetória escolar. Sempre estudei em escolas públicas pois, minha mãe não tinha condições de pagar uma escola particular, bem, todos nós irmãos, concluímos os estudos em escolas públicas. Iniciei os estudos com 5 anos de idade no jardim próximo de casa. Fiquei 2 anos no jardim e só depois fui para a Escola 21 de Abril. Dessa escola fiquei em torno de 5 anos e só sai da escola para ir para outra escola pública chamada Samaritana, pois nessa escola pude sentir na pele a perda de um ano de estudos, pois havia reprovado. A escola de onde estava vindo era fraca demais. Nessa escola fiquei por volta de 4 anos, quando concluí o ensino fundamental então fui para outra escola e dessa vez havia prometido para mim mesma de que concluiria meu 2° grau na Escola Castelo Branco, mas com o passar do tempo decidi ir para a escola Pública Rio Branco onde havia me interessado por fazer curso profissionalizante e nessa escola oferecia o curso de técnico em Administração, Contabilidade e Processamento de Dados. Eu havia me interessado pelo curso de Processamento de Dados e para conseguir a vaga tive que passar a noite na escola para pegar uma senha. É as vagas eram limitadas. Essa escola pública era a primeira escola a oferecer cursos profissionalizantes gratuitos e todos estavam querendo estudar nessa escola para ingressar no mercado de trabalho. Era chegada a grande hora. Quando amanheceu abriram os portões da escola e finalmente havia conseguido uma senha e fui fazer a matrícula, mas, bateu o desanimo, pois, o curso que eu queria era processamentos de dados e as vagas já havia encerrado e só havia vaga para Contabilidade e Administração e opinei por cursar o curso de Contabilidade. Passado um ano de curso desisti, pois não havia me identificado com o curso. Mais um ano se passou e decidi voltar para a escola Castelo Branco e nessa escola me interessei pela fanfarra, então decidi participar. De cara havia um campeonato de fanfarra que iria se realizar em Recife foi um grande sonho meu que estava prestes a se realizar, pois nunca se passara na minha cabeça conhecer outro Estado. Chegando de Recife decidi me dedicar ao máximo nos estudos, pois, queria ir, mas além. Concluí o 2° grau e então veio o sonhado vestibular e eu estudava em casa para o vestibular, não tinha dinheiro para pagar o cursinho preparatório. Inscrevi-me para o vestibular e desde então não parava de estudar. Chegada a hora das provas fiquei ansiosa pelo resultado, havia passado para a segunda fase e comecei a estudar mais ainda, e dessa vez não havia sido aprovada , mas mesmo assim não desanimei e tentei pela segunda vez e * Graduanda em Pedagogia pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 67 dessa vez crente de que iria passar, então soube que havia sido aprovada na Universidade Federal de Rondônia e o mais legal de tudo é que meu irmão tentou pela primeira vez e também havia passado e ingressamos na Unir em 2004. Mas eu e meu irmão nos deparamos com muitas dificuldades sendo que uma delas era a permanência na universidade sendo que meu irmão cursa um curso de período integral e eu um curso pela manhã. Saí do emprego assim que passei no vestibular, pois, trabalhava o dia todo e desde então não conseguia emprego, pois o horário que tinha disponibilidade para trabalhar era a tarde e a noite. Em 2005 fiquei sabendo do Programa Conexões de Saberes e me interessei pelo programa e decidi me inscrever e passar pelo um teste de seleção. Fui selecionada para a entrevista e depois fiquei aguardando a ligação para saber ser iria ser selecionada para atuar no programa. Então veio o resultado e havia sido aprovada para o Programa Conexões de Saberes com o resultado fui tomada por uma grande emoção. O programa veio em boa hora, financeiramente falando, mas, não só isso, porque o programa te desperta para tomar iniciativas e juntos levarmos para a Universidade discussões sobre cotas para negros e indígenas e a iniciativa de juntos também implantarmos uma política de acesso e permanência para os alunos de origem popular. Através do Programa Conexões de Saberes fomos em 2005 para o Estado do Rio de Janeiro onde se realizou um seminário na UFRJ foi onde encontramos mais alunos que estão atuando no programa em todo o Estado Brasileiro. Foi bom o seminário, pois houve os grupos temáticos (GTs), onde trocamos experiências. É um compromisso social da minha parte em ajudar o próximo, ou seja, a ingressar na universidade e hoje eu sei a importância desse programa então decidi, este ano, atuar no pré-vestibular comunitário. Tem uma música da Xuxa que desde pequena eu sempre me inspirei que e ¨Lua de Cristal¨, principalmente quando diz : “Tudo que eu fizer eu vou tentar melhor do que já fiz”, ou seja sempre tentar fazer o melhor e nunca desistir de seus planos de seus sonhos. 68 Caminhadas de universitários de origem popular A conquista esperada! Sales Conceição de Melo Nogueira * A história contada a seguir é baseada em fatos reais, ocorridos no período de 1968 e o atual ano que nos situamos. Será narrado através desta, a veracidade de momentos vividos por mim até minha chegada à Universidade. Narrarei uma história como outra qualquer, uma história simples, comum que pode parecer com a sua ou a de quem você conheça que tenha origem popular. Minha pretensão não é levá-lo a lágrimas, risos ou entediá-lo, minha perspectiva inicial é tentar contar uma trajetória, trajetória esta que ocorre na vida de algumas pessoas, pessoas que sonham, que têm esperanças, que buscam em seus sonhos torná-los ideais de vida, aspirações que levam cada um a lutar para têlos realizados. Acreditar nos sonhos é uma constante na minha vida, pois creio que eles são o combustível que nos move para podermos lutar, correr, brigar e até mesmo mendigar para se ter uma oportunidade, um desejo realizado. O sonho se faz ideologia, ele está acima de qualquer crença, regra ou pacto social, acima de Deus e do próprio ser humano. Ele é a força motriz, a essência que envolve corpo e alma, que empurra para frente, que encoraja para a batalha. Chamarei meu conto de “Retalhos”, pois é assim que a vida de cada um se constitui, como retalhos que no decorrer da história. Cada pedaço representa um momento individual da vida e assim forma-se uma linda colcha, dando representatividade à vida, em que todos os momentos se unem e podem ser costurados e juntos formar uma história, história esta que, de forma especial, quero contar, a minha, costurar minha colcha, a colcha de minha vida. Retalhos... No ano de 1968, em plena ditadura militar no Brasil, mais precisamente no verão amazônico daquele mesmo ano, meus pais que moravam no interior do Estado do Amazonas resolvem se conhecer e por conseqüência unirem-se por enlace matrimonial. O enlace ocorrera no mês de novembro daquele ano e a partir daí se iniciaria a trajetória de uma nova família, família esta que estou inserido, que amo e honro tanto de maneira imensurável. Pois foi com o apoio de todos que dela pertencem que consegui chegar ao Ensino Superior. Meus pais, logo após o casamento foram viver em um pequeno sítio, onde trabalharam por muito tempo na agricultura de subsistência. E assim, buscando suprir as necessidades que tinham e que apareciam no decorrer dos anos. O primeiro filho nascera no ano de 1969, meu irmão que mais tarde ajudara em grandes proporções meus pais na lavoura e em casa. Posteriormente a ele nasceram mais cinco filhos, inclusive eu que no ano de 1984 me fazia presente no seio daquela família. * Graduando em Ciências Sociais pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 69 A vida nunca foi fácil conosco, e creio que também não foi e nem é com muitas famílias de baixa renda, desde cedo meus pais tiveram que contar com o apoio dos meus irmãos na lavoura, de modo que ajudassem no trabalho para não faltar principalmente o alimento em casa. Ajudar no trabalho era regra de casa, mas estudar era uma ordem. Minha mãe nunca abriu mão da educação escolar dos filhos, com muitas dificuldades estudávamos, mas sempre contávamos com o apoio e a gana de nossos pais de nos verem crescer e possivelmente termos um futuro promissor. Meu pai conseguira um emprego público no município onde morávamos, o que viera melhorar em grande parte nossa situação, pois iríamos mudar da residência que vivíamos para um local mais próximo a cidade. Ele ainda recebera um lote de terra para onde mudamos. Ainda recordo aquele lugar, um lugar bem grande, uma espécie de chácara onde minha mãe e meus irmãos plantavam e criavam animais, eu apenas ajudava em poucas coisas, pois era muito pequeno e foi ali que iniciei meus primeiros anos escolares. Comecei a estudar no ano de 1991, na Escola São Domingos Sávio, onde fiz a alfabetização e ano seguinte à primeira série primária. As dificuldades na escola eram muitas, entre elas a falta de material escolar para acompanhar o método de ensino. Aparecera no final do ano de 1992, uma nova oportunidade para nós, meus irmãos mais velhos que vieram anos antes para Porto velho, com muito esforço conseguiram comprar uma casa para nós, a mesma que moramos até hoje. Foi uma surpresa para todos e uma mudança que ocorreu muito rápido, nos mudamos em janeiro de 1993 para morarmos para a capital de Rondônia. Houve hesitação da parte do meu pai que temia vir e não conseguir emprego, enfim, foi possível, minha mãe e meus irmãos convenceram-no a mudar. Esperávamos muitas mudanças em nossas vidas, elas de fato ocorriam, porém sempre acompanhadas de grandes dificuldades. No ano de 1993, cursei a segunda série primária na escola Manaus, a mesma escola que conclui as séries que complementavam o ensino primário. Quando conclui a quarta série, precisava mudar de escola, pois a que estudava não atendia o ensino fundamental completo e cursei de quinta a oitava na escola Murilo Braga, da qual tenho muitas saudades de amigos e professores que em minha vida tiveram grande influência. Minha pretensão ao concluir a oitava série era fazer o magistério, o curso de capacitação para lecionar nas séries iniciais do ensino fundamental, naquele ano de 2000, a última turma do magistério estava se formando e as escolas que ofereciam o curso teriam que aderir ao colegial. Meu desejo de ser professor teria que ser adiado, agora seria pensar em um curso superior para poder chegar à sala de aula como professor. No ano de 2001 mudava mais uma vez de escola, agora porque não era oferecido o ensino médio e mudei para escola John Kennedy onde concluí o ensino médio. Nessa escola aprendi muitas coisas para a minha formação e para a vida, foi a partir do ensino médio que pude redescobrir um antigo desejo que tinha e que permanecia escondido. Acreditava que minha vocação era consagrar minha vida buscando a ordenação sacerdotal da igreja Católica. Nesses três anos de ensino médio minha vida virou pelo avesso, queria ser tudo e fazer tudo e acabava deixando pra trás à vontade da ordenação. Estudando literatura no ensino médio descobri o que gostava de fazer, que era escrever histórias contadas a partir do contexto dramático do teatro. Procurei unir o útil ao agradável e logo fiz uma oficina de teatro, que com muito esforço conseguia pagar, para descobrir se havia oportunidade para mim ou não. 70 Caminhadas de universitários de origem popular Surpresa! Encontrei-me rapidamente e logo me viera à cabeça ser ator e escritor de peças teatrais. Mas nem tudo era tão fácil assim, permaneci na oficina no ano de 2003 e pensava em crescer, pude ver a realidade artística do Estado de Rondônia. Não tínhamos um espaço público para nos apresentarmos e tínhamos que buscar patrocínio para levarmos espetáculos para o público, mas entre tantas tristezas nos conformávamos com um pequeno espaço de propriedade particular para montarmos os espetáculos. Mesmo com tantas dificuldades me apaixonava por aquele mundo tão maravilhoso, não ganhávamos um centavo para nos apresentarmos, pelo contrário pagávamos pelo espaço e ainda pagávamos para o público ir nos assistir. Ao me deparar com a situação cada vez mais cruel, verifiquei que era necessário buscar um futuro mais sólido e deixar o sonho para depois, para realizá-lo como hobby, pura diversão, prazer em fazê-lo. A partir daquela reflexão pude perceber que só com uma formação de nível superior poderia conquistar meu sonho e daí sem nenhuma idéia de que curso escolher, terminei o ensino médio sem prestar vestibular. Em 2004 a convite de uma amiga, procurei na Paróquia Nossa Senhora das Graças informações sobre um cursinho pré-vestibular comunitário que eles ofereciam. Interesseime e fiz minha inscrição para participar de um processo seletivo que iria ocorrer por ter muitos candidatos. Fui aprovado no processo seletivo e comecei a preparação para o vestibular. Ainda confuso não sabia que curso escolher, afinal, a Universidade Federal do Estado não oferecia e nem oferece o curso que sonho fazer: Artes Cênicas. Mas continuei acreditando no futuro e pensei, prestar vestibular para o curso de História, pois acreditava ser menos concorrido, me interessava pelas disciplinas e também para mim naquele ano o verbete “tanto faz como tanto fez” se encaixava direitinho no meu perfil de escolha. Não pude continuar no cursinho pré-vestibular, pois aparecera a oportunidade de fazer um curso profissionalizante que me interessava e acabei desistindo no terceiro mês de aula. Um emprego naquele momento era mais importante para mim, pois, estava frustrado por não poder fazer o curso superior dos meus sonhos. Então, minha amiga ao ler o edital do vestibular 2005 da unir, verificara que a Universidade oferecia isenção de taxa. Logo, juntos viemos a Unir e fizemos inscrição para concorrermos a isenção de taxa. Alguns dias depois o resultado saiu e fui contemplado com a isenção total da taxa de inscrição e assim fui fazer minha inscrição para o vestibular. Em mente o curso que a principio iria me inscrever era História, mas na hora exata de preencher o questionário verifiquei que a UNIR iria iniciar um novo curso em 2005, e sem pensar me inscrevi para aquele curso novo na Universidade, que eu nem sequer sabia qual era a habilitação que teria, caso fosse aprovado no vestibular e concluir o curso. Ciências Sociais, esse era o curso que escolhi para prestar o vestibular, sem nem me ter preparado o suficiente encarei com a cara e a coragem o processo seletivo da primeira fase. Um alívio, fui aprovado para a segunda fase, agora precisava me preparar para a segunda fase que envolvia a prova discursiva e não me sentia capacitado para encarar a prova que colocava medo em todos os vestibulandos. Com uma semana antes da segunda fase do vestibular, voltei ao cursinho da Paróquia Nossa Senhora das Graças para assistir as aulas de redação e de Historia e geografia regional, mais uma vez encarei outra prova sem muita confiança em mim. Mais uma surpresa, fui aprovado na ultima fase do vestibular da UNIR e agora era só comunicar a todos em casa que havia conseguido uma oportunidade que nenhum de meus irmãos tivera que foi cursar o Ensino Superior numa Universidade Federal. Universidade Federal de Rondônia 71 Contente pela vitória, no inicio do ano de 2005 fui fazer minha inscrição para ingressar no curso, e em março comecei a estudar, me afastando do teatro. Embaraçado com as disciplinas, me sentia totalmente perdido no curso, pois tudo era novo para mim e tinha medo de reprovar. Pensei em desistir, mas a oportunidade que aparecera eu não podia desperdiçar e acabei por terminar o primeiro período. As dificuldades no primeiro semestre eram muitas, como adaptações, muitas cópias e pouco dinheiro, compreensão dos textos e dificuldade no transporte, que depois acabei conseguindo auxílio da Universidade, nesse âmbito. Um pouco mais convencido iniciei o segundo semestre pensando nas vantagens que o curso poderia me oferecer na vida, inclusive trabalhar na área de minha formação para depois fazer teatro apenas por realização pessoal. E assim, terminei o segundo semestre intencionado a concluir o curso para buscar através dele oportunidades de crescer dentro e fora da vida acadêmica. Encantei-me pela antropologia e pensei estudar as religiões afro-brasileiras, mas era muito cedo ainda para me decidir, pois o curso dá habilitação em três disciplinas. O segundo semestre foi muito mais gratificante para mim que o primeiro, pois, venci todas as dificuldades que havia enfrentado no inicio. O ano de 2006 foi promissor, no ano anterior fui aprovado no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), que fiz pensando em concorrer a uma bolsa no curso de Artes Cênicas que tinha promessas de ser lançado em uma faculdade particular de Porto velho e não foi. Fui contemplado com uma bolsa integral no programa Universidade para todos (PROUNI) do Governo Federal, mas acabei não fazendo o curso por não me identificar com ele, a bolsa era para o curso de Nutrição, que nunca havia pensado estudar curso dessa área. Foi neste mesmo ano que a Universidade abriu inscrições para um novo programa, que por seleção buscava vinte e cinco bolsistas. Participei do processo seletivo e consegui ser contemplado com uma bolsa do programa Conexões de Saberes, que atualmente me dá subsídios para continuar na vida acadêmica, entre eles o transporte, cópias dos textos pedidos pelos professores do curso entre outras necessidades que são supridas com a bolsa oferecida pelo Conexões de Saberes. Esse Programa veio em boa hora para mim e acredito que para os meus companheiros bolsistas também, pois, acreditamos ter uma graduação de qualidade com perspectivas de permanecer na vida acadêmica para futuramente estar capacitado para concorrer a vagas em Mestrado e Doutorado. Minha pretensão agora é concluir meu curso de qualquer maneira para trabalhar na área de minha formação e com isso conseguir recursos para minha manutenção, ajudar meus familiares e a minha comunidade. Espero que consiga ver meu sonho ser realizado, mesmo fazendo arte como amador, ainda assim, estarei feliz por fazer o que amo. Um dia, quem sabe, poderei ser memória, objeto de estudo ou até assunto de jornal, no entanto, espero que seja lembrado como alguém que amou as Artes Cênicas de tal maneira que mesmo vendo-a distante da sua realidade sempre alimentou o sonho de poder cultivá-la. Meu sonho... Ao descobrir minha paixão pelas Artes Cênicas, a princípio por falta de incentivo à cultura em Rondônia, não sabia o que era teatro e nem como se fazia. Conheci o teatro quando estava no ensino médio, por volta dos 16 anos de idade. Então fazendo oficinas descobri minhas habilidades artísticas na área cênica e comecei a sonhar com a possibilidade de viver desse trabalho. 72 Caminhadas de universitários de origem popular Pensei em ser autor de telenovelas, dramaturgo, enfim, queria expandir minhas histórias de modo que todos pudessem conhecê-las e se emocionar com elas. Mas a realidade é dura, se nem na cidade onde vivo posso mostrá-las imagine para o país ou o mundo? Hoje sei que nem sempre é possível fazer tudo, é necessário esperar. E com toda esperança eu aguardo o meu dia chegar e aí todos conhecerão o meu potencial de criar personagens e através deles fazer as pessoas aflorarem seus sentimentos. Não quero tesouros, apenas necessito ser reconhecido, viver do que gosto e fazer feliz a todos que amo. Serei uma pagina na história. Quero aplausos, sonho com comentários a respeito do meu trabalho, ser aprovado pela crítica e o que é melhor ter o reconhecimento do público que é apaixonado como eu pelas Artes Cênicas. O sonho é a força que faz o ser humano buscar a felicidade e é pelo meu sonho que eu estou aqui escrevendo e buscando experiências, para que um dia, elas possam servir para minha realização pessoal e fazer feliz a quem eu possa atingir. Universidade Federal de Rondônia 73 Especial Suelen da Costa Silva * Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Suelen! Seja “especial” na vida. O termo “especial” foi uma das primeiras palavras que minha mãe ouviu. Quando eu tinha seis meses de idade, tive uma pneumonia e há 21 anos atrás não se podia contar com hospitais e profissionais competentes na área de pneumologia aqui na região Norte, ainda mais se tratando de um bebê, meu caso foi rejeitado por alguns médicos, segundo o meu pai, alguns médicos alegaram ter medo de perder uma vida, no começo de carreira, bom eles diziam que era caso perdido. Até que encontraram um médico em fim de carreira que dizia não ter nada a perder, tive os cuidados necessários, contudo adquiri a asma desde então. O médico disse pela primeira vez o termo especial para minha mãe a partir dali nada seria mais o mesmo. Desde então foi muito difícil, eu era uma criança diferente, isso era visível o tempo todo, fui criada com minha avó e mais cinco crianças, eu não era a mais mimada mais era a que tomava mais remédios, e ficava o tempo todo encapada parecendo um pacote. Não podia sair quando a temperatura caia e nem correr muito para não cansar. Então lembro que a brincadeira constante, era brincar de escolinha, minha prima dois anos mais velha que, eu era sempre a professora, e ela levava jeito mesmo, tanto que ela é formada hoje em Letras Vernáculas e já é funcionária pública atuando na área de Professora, era vocação mesmo. Eu não gostava muito de brincar disso, mas cá estou também já ministrando aula em PréVestibular Comunitário, e creiam eu acho um máximo. Devo tudo que eu sou aos cuidados da minha avó, mesmo sendo criada nos moldes da rigidez e da palmatória, não tenho nada do que reclamar, o que vale ressaltar é que quando era só um bebê minha mãe teve que me deixar aos cuidados da minha avó, porque conseguiu um trabalho de zeladora no funcionalismo público e nessa altura meu pai já havia lhe deixado por outra, só para comentar acho que meu pai nasceu no país errado, até hoje ele afirma não conseguir ficar com uma só mulher, e também não vê nada demais nisso. Bom voltando a minha mãe, esse foi um passo bem difícil, se recuperar de uma separação, deixar um bebê pequeno e com problemas de saúde para poder trabalhar, depois de um tempo como não houve volta com o meu pai, minha mãe resolveu procurar alguém, alguém que infelizmente já tinha outro alguém, e aí veio minha querida irmã, e mais um bebê para os braços da minha avó, em seguida o pai de minha irmã morreu tragicamente em um acidente de carro, e ela não pode conhecê-lo. * Graduanda em Letras - Vernáculas 74 Caminhadas de universitários de origem popular O que foi resolvido é que minha mãe nos pegaria nos fins de semana e nas férias, assim como os meus outros primos, seriam pegos por seus pais. Era difícil, ás vezes quando ficava de castigo minha avó não deixava eu ir com a minha mãe, eu sofria muito, não sei ao certo porque, mas sempre uma admiração muito grande pelo que a minha mãe fazia, ela me levava ás vezes para o trabalho e eu achava legal o que ela fazia, abrir e fechar as portas, ter várias chaves, como aquelas chaves me deixavam encantadas, não sei ao certo porquê, o que eu sei na verdade é que por detrás de cada uma daquelas portas haveriam mundos, e que minha mãe era dona de tudo aquilo, quando tinha que fazer as redações de sala de aula, eu não sabia o nome da profissão de minha mãe, acho que ela não gostava muito de falar sobre isso. As pessoas a discriminavam por essa profissão, nas lojas quando ela falava o que fazia, as pessoas respondiam Ah, ta! Com um olhar de reprovação. O que eu sei é que eu gostava tanto dela e queria tanto ver um belo sorriso naquele belo rosto, que eu fui a melhor aluna da sala, e com um pouco mais de esforço no ensino fundamental cheguei a ser a melhor aluna, pelas maiores médias do colégio. Ela não ligava muito dizia que era a minha obrigação. E na 5ª serie descobri o belo mundo da Literatura. Comecei por José de Alencar e em algum tempo já estava apaixonada por todo tipo de Literatura Brasileira. Mas nem só de livros se vive uma adolescente, e assim fiz parte de um grupo de dança por quatro anos, pelas apresentações do grupo, conheci toda a cidade de Porto Velho, minha cidade natal, percebi que ela era mais feia do que eu imaginava, não entendia muito de política mais eu via aquelas belas cidades na televisão e me perguntava por que não era assim a cidade onde eu morava? Também fiz teatro, e em 1996 em um festival chamado FEMUT (Festival Estudantil Municipal de Teatro), ganhei o troféu de melhor atriz juvenil. Foi um máximo, um dos momentos mais felizes da minha vida. Quando minha mãe estava grávida de minha irmã ganhou um terreno no então bairro Ulisses Guimarães, as casas foram construídas por meio de multirões, era muito criança tinha apenas quatro anos, mas percebi naquele momento que a união faz a força. Infelizmente as pessoas esqueceram dessa força, o bairro está inserido na Zona Leste de Porto Velho e todos os problemas imagináveis estão concentrados nessa área: violência, falta de saneamento básico, pessoas com baixo nível de escolaridade, e entre outros meninas que engravidam muito cedo, pessoas sem a menor perspectiva de vida. Os multirões acabaram, as cercas foram levantadas, e hoje os muros foram levantados, cada um quer saber apenas da sua vida ou apenas acha que não há nada que possa ser feito. Eu acho o contrário li o depoimento de Cecília que está no livro Ponto de Vida Cidadania de Mulheres Faveladas de Andréa Paula dos Santos, onde essa mulher especificamente relata sua história de luta, e afirma que “na organização da família, a mulher sempre fica em último plano! Quando falo isso aqui em casa, acham que estou me lamentando, que não sou feliz... não é isso: só acho que deveria ser uma sociedade com tarefas e divisões iguais...” Esse livro relata sobre um projeto chamado Carolina Maria de Jesus, o nome dessa associação foi escolhido porque essa personagem se trata de uma favelada negra onde conseguiu a publicação de sua história nos anos sessenta que como afirma Marisa Lajolo devassou os avessos do desenvolvimento otimista com seu Quarto de Despejo. Essa associação tem como principal intuito construir uma identidade feminina menos mutilada e uma cidadania mais completa segundo também Marisa Lajolo Unicamp.1996. Consegui enxergar nesse livro a idealização de um projeto pessoal, que as pessoas mais humildes devem ter consciência das oportunidades que podem ter ao estudar, que há uma Constituição que não ampara só os ricos, quero muito que a Universidade Federal de Rondônia 75 comunidade onde moro tenha o conhecimento sobre todos os caminhos antes de escolherem a vida do crime, antes de escolherem ser mãe aos 09 anos de idade, quero que eles saibam que merecem respeito, não importa a roupa que vistam, o cabelo que usam, se tem ou não tem dinheiro. Quero que a alienação seja dissipada, que os olhos se abram para os caminhos que podem ser percorridos além do tráfico, e é por isso que dou aula no Projeto UNA (Universitários em ação), estou agindo para que essas pessoas tenham pelo menos a oportunidade de escolher “o que querem ser quando crescer”. E que elas podem crescer. Antes de chegar à Universidade tive a oportunidade de estudar em um colégio particular, minha mãe morou junto com o meu ex-padrasto por uns 12 anos e nesse período foi me dado essa oportunidade. O colégio Dom Bosco tem muros bem altos, quando passava por eles imaginava que nunca ia poder entrar lá dentro, era só gente com uma boa condição financeira que estudava lá, mas eu entrei, e mais alto que os muros estavam às pessoas. Aos poucos consegui um bom espaço nos três anos que estudei lá fui condecorada como melhor aluna, e aos poucos fui ganhando a simpatia de todos. Descobri que o aprender não está em carros importados, ou dinheiro, está além dos mauricinhos e patricinhas que não dão o mínimo valor, porque tem de sobra, podem estudar em um colégio particular e em uma faculdade particular, eu tinha que absorver o máximo que desse para entrar na Universidade Federal, e assim que a minha mãe se separou ela me pediu para que eu escolhesse um curso que não tivesse muitos gastos, porque agora mais uma vez ela estava sozinha e não ia dá para bancar um curso que gastasse demais. Antes de entrar na Universidade passei quatro vezes pela UTI por paradas respiratórias, foi aí que comecei a ser dependente de bombinha de asma, para poder continuar tendo uma vida normal, essa foi uma alternativa, eu não sei direito o que as pessoas pensam sobre eu usar bombinha, se sabem que asma não pega? Se me olham com pena? Eu não sei mesmo, mais sei que atualmente preciso dela para me locomover. Devido aos problemas de saúde tive um bom prejuízo no meu segundo grau e só passei na terceira vez que prestei vestibular, fiquei bem frustrada afinal muita gente apostava em mim, a minha mãe chegou a falar para eu desistir de tudo e ficar em casa, a doença estava ficando cada vez mais grave. Eu vivia passando mal, mas eu não podia desistir, fui criada em uma família de mulheres muito fortes talvez nem elas saibam o tamanho de sua força. Minha bisavó ficou viúva com 14 filhos pequenos e com a graça de Deus está viva, e já criando um bisneto, e já tem tataraneto, criou seus filhos, educou e todos vivem dignamente. Minha avó se separou por motivos de adultério por parte do meu avó, e criou dois filhos lavando roupa dos outros, minha mãe não desistiu de nós, eu e minha irmã e também foi lutar, eu não podia e nem posso desistir. Em 2005 passei para Letras Vernáculas, desde os dez anos de idade era apaixonada por Literatura, e quando fiz um cursinho Pré-Vestibular tive um professor que me ajudou a decidir, nunca conversamos mais as suas aulas mudaram o meu modo de ver um professor, ele amava o que fazia, dava aulas com um prazer inimaginável, sempre parecia muito cansado, afinal vida de professor não é fácil, mas sempre com prazer, aí não tinha outra alternativa eu queria mesmo me apaixonar por Literatura; e dou aula desde os 14 anos estou hoje com 21, e com isso acho que o dom já veio imprimido dentro de mim, quase sempre dei aulas como voluntária, a não ser uma ou outra aula particular, ou alguns trabalhos que faço para ajudar a me manter na Universidade. Não é muito fácil estar aqui na Universidade, esse ano de 2006 passei por uma cirurgia de apêndice e mais uma vez fui para a UTI por problemas respiratórios. Não saí do Projeto UNA só dei uma parada, e com a Universidade voltei a tempo de não perder o semestre. 76 Caminhadas de universitários de origem popular Trabalhei desde os 14 anos na igreja católica e aos 19 percebi que eu queria muito mais do que dar aulas sobre o evangelho e não praticá-las. E como sou chamada por aqui, hoje sou evangélica, toda força que está sobre a minha vida vem de Deus. É impossível não acreditar Nele depois de tudo o que passei e sou conivente com a prática do Evangelho de Jesus Cristo, sou voluntária na igreja e realizo um trabalho de maior força com as crianças ensino elas com Literatura, e com todo o poder de conhecimento que foi adquirido até aqui. Sou atualmente Bolsista do Conexões de Saberes mas entrei como voluntária, e antes mesmo de receber a bolsa já estava envolvida nas propostas do projeto, sei que aprenderei as técnicas para ser uma agente transformadora na minha comunidade, na minha família, por onde quer que eu vá, hoje percebo que não posso ficar apenas olhando como o poeta de um mundo caduco. Sei as dificuldades da comunidade, mas também sei que como em quase tudo essas situações podem ser mudadas, ministro aulas de Literatura, Português e Redação no Pré-Vestibular ROCA (Resgatando o Ontem para Conquistar o Amanhã), que é uma ação do UNA (Universitários em ação). Tento mostrar aos meus alunos que se eu consegui, eles podem ir até mais longe que eu, hoje tenho frutos desse projeto tenho dois alunos que estudam no pavilhão da frente onde fica a minha sala, eles junto com outros que ajudamos a aprovar no vestibular do ano passado são os frutos de um trabalho, uma iniciativa que já deu certo; e mesmo estando com problemas esse ano porque tivemos uma queda no número de alunos não paramos e nem vamos parar, vamos pegar as técnicas nesse Programa, porque eu e mais alguns integrantes estamos participando do Conexões de Saberes para melhorarmos mais o desempenho do nosso Projeto, agora vemos que lá pode ser um local de debates conscientização dos direitos e muito mais, a ação só não pode é morrer. E finalizo com as palavras de uma carta aos jovens que diz: “Para todas as grandes coisas, exigem-se: lutas penosas e um preço muito alto. A única derrota da vida é a fuga diante das dificuldades. O homem que morre lutando é um vencedor”. Universidade Federal de Rondônia 77 A busca Terezinha Andrade da Costa * Após a morte de minha avó, meu avô sem saber o que seria dos filhos começou a separar a família, começando pelo meu tio irmão mais velho de minha mãe, que foi morar com os padrinhos e assim ocorreu com os outros filhos homens. As mulheres tiveram outra sorte, meu avô tratou de casá-las com os rapazes que por elas se encantavam, que sem escolha, acabavam se casando muito cedo, daí começa a minha história. Minha mãe foi casada pelo meu avô, com um rapaz que apareceu na cidade, com quem teve seu primeiro filho que faleceu aos dois meses de idade, acometido de infecção. Após essa grande perda minha mãe novamente engravidou, me trazendo ao mundo. Nasci em mil novecentos e sessenta e dois, em um povoado do Amazonas, hoje cidade de Humaitá, em uma maternidade dirigida por freiras que me deram o nome de Terezinha em homenagem a Santa do dia, ou seja, três de outubro. Minha vinda trouxe muitas alegrias, pois nasci forte, saudável e muito resistente, eu era sua compensação. Porém, meu pai logo nos deixou indo à procura de outras aventuras. Então minha mãe voltou para o seringal, lugar de onde saíra só que dessa vez acompanhada não mais por aquele jovem, mas sim de sua semente. A volta para o seringal, representou para meu avô uma grande felicidade, pois naquele momento ele refletiu o quanto foi precipitado, dando minha mãe aos quatorze anos para um estranho que mal teve tempo de conhecer, neste instante fez a ela uma promessa de que nunca mais a deixaria, e que só a morte os separaria. E assim aconteceu. No seringal minha mãe conheceu um jovem pelo qual se encantou e que logo contrairia novo matrimonio. Meu avô ficou muito feliz, pois consentiu que minha mãe se casasse de novo, mas dessa vez com o homem que ela mesma escolhera e que mais tarde eu chamaria de pai e que me daria uma nova família. Assim recomecei a minha história, ganhei um novo pai que com a minha mãe concebeu mais cinco irmãos. A vida no seringal apertou e minha família teve que migrar para Porto Velho em busca de melhoras. Vimos morar num bairro chamado Pedrinhas, onde minha mãe se tornou lavadeira e meu pai foi contratado para limpar as terras que na época eram demarcadas, foi ele um dos pioneiros nessa atividade que fez com que a cidade crescesse. Nessa época a vida melhorou, a fartura estava presente, em nossa mesa não faltava alimento, pois meu avô pescava e conhecia a mata e a cada quinzena vinha carregado de peixe e caça no paneiro, tudo salgado, pois não podíamos comprar uma geladeira. * Graduanda em Letras pela UNIR. 78 Caminhadas de universitários de origem popular E assim eu fui crescendo, assistindo a tudo e procurando crescer com as dificuldades que apareciam. Em minha lembrança, sempre vem àqueles momentos em que, quando meu pai tinha as atividades interrompidas pelas chuvas, ou seja, durante o período de inverno aqui na região norte não se podia capinar, ele ia trabalhar em uma padaria, que ao final de cada expediente as sobras eram divididas entre os funcionários. E eu o esperava para saborear aqueles pães tão gostosos da minha infância. Minha mãe repartia o que meu pai trazia com a vizinha, pessoa muito humilde, e isso ficara como um grande exemplo para mim de solidariedade. Quando começou a construção do conjunto Ipase, surgiu também o grupo escolar Nações Unidas. Minha primeira escola. Lá estudei o antigo primário, conheci Salet David, minha primeira professora, que me ensinou os primeiros passos dentro do mundo da escrita e da leitura, à qual nunca esqueci. Aliás, nunca esqueci a fisionomia de meus professores, pois vejo que através da docência nasce o progresso das nações pois através da educação surgem as mudanças, e para mim estão acontecendo agora, nessa nova jornada de minha vida. Em Porto Velho, estudei até a antiga Quinta Série. Foi quando surgiu a oportunidade de melhorar e viajei para a cidade grande. Minha mãe conheceu uma família que vinha de Manaus e permitiu que eu viajasse com eles até Brasília, pois estava de férias da escola. Assim fui eu, aventurar e conhecer algo diferente da minha realidade: os candangos. Essas férias duraram três anos, ou seja, pensei que voltaria logo e acabei ficando por lá. Conheci muita gente boa, voltei a estudar e tive que trabalhar como doméstica. Conheci Lúcia, hoje uma grande amiga, uma pessoa que muito me ajudou, dava conselhos incentivava, cuidava muito de mim, pois ainda era adolescente o que para ela representavam uma responsabilidade. Aos dezoito anos concluí o primeiro grau, no GAN, uma escola pública localizada perto de onde morava na L2 Norte. Disse a Lúcia que queria trabalhar no comércio, queria ser independente, para isso teria que tirar os documentos, assim eu fui. Com todo apoio de Lúcia, consegui um emprego no comércio e um lugar para tocar a vida. Tornei-me emtão, uma pessoa independente. Quando comecei o segundo grau, dessa vez, longe da Lúcia, percebi que não seria tão fácil, logo tive que optar pelo trabalho, pois tinha que me alimentar e pagar o aluguel. Daí continuei a vida só trabalhando, foi uma fase muito gostosa, namorei, passeei bastante, fui muito feliz na terra dos Candangos, afinal de contas vinte e uns é só uma vez. Comunicava-me com meus pais constantemente, mas bateu um tédio um desassossego no coração, me faltava algo, estava começando a enjoar de Brasília. Naquele tempo, tinha um amigo que estudava na UNB, o Sinval, que fazia Agronomia e estava voltando das férias que fora passar no Rio de Janeiro, o que ele me disse me tocou tão profundamente e comecei a imaginar que minha vida teria mais sentido se assim o fizesse, disse-me que teria que conhecer o mar até os vinte anos, exatamente a minha idade. Com ajuda dos amigos e do patrão fui conhecer o mar, Jorge, meu patrão, disse-me com aquele vozeirão Germânico: “Vai Terezinha conhecer o mar”. Assim eu fui. Quando cheguei no Rio de Janeiro fui recebida pela família de um amigo, depois de me instalar, em fim fui conhecer o mar, algo magnífico aconteceu dentro de mim, tamanha era a beleza daquela nova paisagem frente aos meus olhos, realmente Sinval tinha razão, não poderia passar a minha vida toda sem ter conhecido o mar. Universidade Federal de Rondônia 79 Reencontrei velhos amigos que ali foram, que nem eu, tentar melhoras. Um deles que não me recordo o nome, mais sua imagem me é bem nítida na lembrança que tinha um singelo apelido de “Jabá”, me convidou para trabalhar no seu bar. Ali fiquei atendendo as pessoas em um ambiente bem agradável, muita gente, muito pagode, muita curtição e o inesperado: conheci o que seria o grande amor de minha vida, Luiz Cerino de Almeida, com quem tive duas lindas e maravilhosas filhas, também viveram muitas aventuras, dificuldades tudo que se tem direito em uma vida a dois. Como já dizia Vinícius de Moraes, “Que seja eterno enquanto dure”. Porém, como um conto de fadas minha história com Cirílo, era assim que eu o chamava, terminou. Após quinze anos, retornei a minha terra natal, Porto Velho, mas não voltei sozinha, trouxe comigo o fruto do lindo amor que vivi no Rio de Janeiro, minhas duas filhas, Camila e a Clariana. Isso foi em dezembro de mil novecentos e noventa e nove. É, voltei para casa da mamãe, que como todas as mães, me acolheu e deu todo apoio que eu precisaria, pois agora tinha duas responsabilidades. Voltei a estudar, e foi na escola Major Guapindaia que minha história novamente recomeça. Terminei o ensino médio em dois mil em três, fui presidente da APP, (associação de pais e professores) da escola, pois minhas filhas eram alunas e fui convidada para prestar esse trabalho voluntário, onde percebi o quanto é importante o sistema educacional, o que me deu a certeza de que tinha que fazer algo para contribuir no desenvolvimento do meu pais. O incentivo por parte da equipe pedagógica, onde eu dava minha contribuição como presidente da APP, foi de suma importância, haja visto que minhas intenções não eram de chegar tão longe, mas sim de apenas terminar o ensino médio e me empregar para sustentar minhas filhas. Aos quarenta anos, percebi que não seria tão fácil arrumar um emprego, pois as dificuldades que encontrei por causa da minha origem negra e da minha idade, me dei conta de que o futuro seria o estudo. E assim fui. Fiz cursinho pré-vestibular, durante dois anos, sendo que nos primeiro e no segundo vestibular que fiz fiquei na segunda fase, mas minha força de vontade e minha persistência em busca do meu objetivo me animaram a tentar mais uma vez. Na terceira tentativa fui feliz, fui aprovada e fiquei em quinto lugar, das quarenta vagas oferecidas pela Universidade Federal de Rondônia, no curso de Letras-Português. Sinto-me feliz em ter alcançado esse objetivo, hoje sou citada como exemplo por todos que me conhecem. Minhas filhas me olham com orgulho, minha família se transformou, pois todos hoje buscam também alcançar seus objetivos. Meus pais me apoiam em tudo, peço a Deus que lhes dê muita saúde, pois sinto que tudo que fazem por mim é com satisfação, sem questionamentos, é como se estivessem agradecidos pela minha volta, tal como meu avô, quando minha mãe voltou para o seringal. É claro que no caminho existem as pedras, elas estarão sempre lá, nos esperando para serem por nossa vontade, retiradas, nos mostrando que não devemos nos acomodar nem tão pouco desistir de lutar, conto com minha força de vontade, minha família, meus amigos e muita, muita fé em Deus. Agradeço a Deus por essa pequena fresta, pretendo abrir a porta toda e vislumbrar um mundo melhor, um futuro que eu vou construir com o conhecimento que estou adquirindo, tenho agora outras metas a serem alcançadas, quero alçar grandes vôos, me especializar fazendo um mestrado e um doutorado na área de minha graduação. 80 Caminhadas de universitários de origem popular Nada é por acaso... tudo está escrito Walkyria Rodrigues Ramos* Isso é para que todos saibam e vejam , que foram as mãos do Senhor que fizeram isto... Eu Meu nome é Walkyria, nasci no dia 3 de dezembro de 1985, na cidade de Recife em Pernambuco, ao meio dia, na Policlínica Santa Clara. Nasci com 12 dias de atraso, minha mãe disse que minha cabeça já estava roxa, se tivesse demorado mais um pouco não teria sobrevivido. Apesar do contratempo, fui uma criança saudável sem muitas complicações de saúde, apenas um princípio de desnutrição quando tinha 1 ano e 6 meses, mas consegui superar isso. Sempre fui alegre e extrovertida, na verdade, essas são minhas características mais marcantes. Sou uma pessoa que ama viver apesar das dificuldades do dia-a-dia. Amo as coisas simples da vida como: música, estar com meus amigos, ler, Internet, assistir filmes, natureza e lógico minha família. Quando era criança, um dos meus sonhos era ser escritora, mas nunca imaginei ter minha vida publicada em um livro, isso é engraçado, pois, não foi algo que planejei, simplesmente aconteceu... morei em Recife até os 8 anos , mas meu pai ficou desempregado e conseguiu um emprego aqui em Porto Velho, então viemos morar em Rondônia que é um lugar que eu amo. Em Rondônia , conheci pessoas maravilhosas , vivi os melhores momentos da minha vida e foi em Rondônia que tive oportunidade de realizar um dos meus sonhos: Cursar uma Universidade Federal. Família Moro com meus pais e meu irmão. O nome da minha mãe é Vilma, ela tem 41 anos, cursou o segundo grau profissionalizante em saúde, mas nunca trabalhou na área, ela quis cursar faculdade, mas não pôde por ter que cuidar de mim e depois do meu irmão. O meu pai, Waldir, também tem 41 anos e cursou até a 7ª série do ensino médio, tanto ele quanto a minha mãe são apaixonados por leitura, acho que herdei isso deles. Meu pai gosta muito de português e pensa um dia em cursar faculdade. Minha mãe também pensa em um dia cursar faculdade e eu dou o maior apoio para os dois. Eles se conheceram adolescentes, com 19 anos já moravam juntos, e quando tinham 20 anos eu nasci. Quatro anos depois nasceu o meu irmão. O nome do meu irmão é Waldir Júnior, acho que eles gastaram muita criatividade pra me dar um nome e o nome do meu irmão é apenas a repetição do nome do meu pai... não foram muito criativos nisso... mas fazer o quê, né? * Graduanda em Biologia pela UNIR. Universidade Federal de Rondônia 81 O Júnior tem 17 anos e cursa o 1º ano do Ensino Médio, não pensa em fazer faculdade, mas eu e meus pais fazemos de tudo para incentivá-lo a fazer. Tento de tudo pra ele fazer biologia... um dia ele foi pra campo comigo fazer coleta e saiu se achando “o biólogo”, então sempre que vou pra campo tento levá-lo comigo, quem sabe ele não se decide em ser biólogo? Eu adoraria! Mudança Quando meu pai e minha mãe tinham 29 anos, meu pai ficou desempregado e sem a menor perspectiva de emprego em Recife, minha mãe foi trabalhar de babá e a patroa dela fez uma proposta para ela vir pra Rondônia com eles. O marido dela tinha uma firma de vigilância aqui em Porto Velho, se minha mãe aceitasse meu pai também teria um emprego garantido. Como emprego não se recusa ainda mais na situação em que eles estavam, aceitaram a proposta, e viemos morar em Porto Velho. Minha mãe trabalhou com ela ainda uns 5 meses, meu pai trabalhou na firma por 10 anos. Minha mãe trabalhou de vendedora por alguns anos e hoje trabalha por conta própria, revendendo catálogos e meu pai é segurança de uma concessionária. Amigos Não sei se é importante falar deles, mas, com certeza eles são muito importantes pra mim. Graças a meu jeito extrovertido tenho facilidade em fazer amigos, mas, verdadeiros amigos não se encontram em qualquer esquina. Quando me mudei pra Porto Velho, morei no centro da cidade por 6 meses e depois nos mudamos para o bairro onde moro até hoje, Jardim Eldorado. Quando mudei para esse bairro fiz muitos amigos, mas alguns em especial, como por exemplo a Luciana, que também é bolsista do conexões, eu e a Lu aprontávamos todas quando éramos crianças...correr, pular, até empinar papagaio (pipa)! Hoje nossas lembranças das aventuras vividas na infância nos rendem muita gargalhada! Também tem a Leilane , uma grande amiga que também conheci quando vim morar nesse bairro, ela e sua mãe Tereza sempre me ajudaram e incentivaram de todos os modos possíveis.... Na faculdade também fiz muitos amigos, eu, a Chely, a Márcia e a Roberta nos grudamos desde o dia do trote, montando o MSB (não vou dizer o que significa!) embora o pessoal da sala desde o primeiro período nos chame de “Meninas Super Poderosas”, mas eu prefiro Quarteto Fantástico! É incrível, mas junto com elas a tristeza passa longe... Quando decidi a área que queria trabalhar, encontrei uma concorrente que logo se tornou minha amiga, a Suzane. A Su me ajudou e ainda me ajuda demais... é meu braço direito! No começo era só “interesse profissional” (pois temos o mesmo interesse na área de aracnologia e animais peçonhentos), mas depois de uma pequena viagem a amizade se fortaleceu muito e hoje não desgrudo dela por nada! Bem, eu já estava muito satisfeita por ter feito quatro grandes amigas na faculdade e pensei que não faria outra grande amiga, pois já conhecia todo mundo da sala, mas aí apareceu a Gislaine. Foi muito engraçado... juntamosnos para estudar Fisiologia Animal e não nos desgrudamos mais... foi afinidade instantânea... essas amigas estão sempre do meu lado e me apóiam em tudo... sei que posso contar com elas em qualquer situação, assim como elas podem contar comigo. Muitas das minhas amigas têm uma trajetória de vida muito parecida com a minha, talvez por isso nos demos tão bem. E assim como a família influencia na construção do caráter, os amigos também o 82 Caminhadas de universitários de origem popular fazem, então resolvi mencionar alguns dos que influenciaram minha vida positivamente. Sem deixar de lado também as amigas que fiz no conexões: Carla, Rosy Bananinha, Helena, Ana Gleice (fofa) e juntamente comigo e a Luciana formam a turma do VUCO-VUCO. São especiais demais!!! Estudos Desde a 1ª série do ensino fundamental até o 3º Ano do ensino médio estudei em escola pública. A alfabetização e a 1ª série eu fiz ainda em Recife. Antes de entrar na 1ª série, estudei em duas escolinhas, uma numa associação de futebol “VETERANO” e numa escola paroquial “ALICE VILAR DE AQUINO”. Mas o destaque na minha alfabetização foi minha mãe, ela me ensinou a ler e a escrever antes de entrar na escola. Fiz minha 1ª Série na escola MARIA DE LOURDES RAMOS e como já sabia ler e escrever a primeira série pra mim foi moleza! Eu era ajudante oficial da professora. Comecei a 2ª série nessa mesma escola, mas me mudei e terminei a 2ª série em Porto Velho na escola NOSSA SENHORA DAS GRAÇAS, onde estudei até a 4ª série. Eu era uma aluna dedicada e sempre estava envolvida com as atividades da escola, principalmente nas atividades de música e leitura. Na 5ª série mudei de escola, pois lá não tinha a 5ª série. Estudei 6 meses na escola JESUS BULAMARQUE HOSANAH, mas inaugurou uma escola perto da minha casa, o colégio JOÃO BENTO DA COSTA, onde cursei até o 3º ano do ensino médio. O J.B.C é uma escola pública, considerada modelo, é a maior escola pública do estado, tem dois andares, 40 salas de aula, na época em que entrei, tinha enfermaria e dentista e algum tempo depois construíram uma piscina olímpica, onde os alunos faziam aulas de natação, essa escola era muito dinâmica, tinha fanfarra, coral, grupo de dança e sempre oferecia cursos profissionalizantes, como por exemplo, informática, relações humanas e o que eu fiz, serigrafia, todos com certificado pelo SEBRAE, todo mundo queria estudar lá, mas vaga era difícil, até quem reprovava perdia a vaga. Quando entrei nessa escola era bem rigorosa, só entrávamos na escola se o uniforme estivesse completo, não se entrava sujo ou despenteado, os sapatos deviam estar brilhando, as unhas cortadas, cabelos arrumados, os meninos não podiam entrar de brinco nem boné e as meninas que usavam saia, como eu, deveriam usar uma saia de no máximo dois dedos acima do joelho. Todo dia antes de subirmos para assistir às aulas tínhamos que fazer fila, cantar o hino nacional, o hino de Rondônia, o hino da escola e fazer um monte de oração e quando subíamos para a sala ficavam o diretor e os inspetores supervisionando cada detalhe dos nossos uniformes. Outra coisa engraçada eram algumas disciplinas que estudávamos: técnica de locução de Rádio e TV, Educação para o trânsito e xadrez. Mas, com o passar dos anos isso foi mudando e quando mudaram o diretor a escola virou bagunça. Enquanto estudei lá, fui envolvida também com as atividades da escola, entrei na fanfarra, mas como meu pai não me deixava viajar, tive que sair. Participei do coral e fiz parte da equipe da Rádio da escola comandada por uma professora muito legal, a professora Glacilda, ela me deu aula de história e história de Rondônia desde a 6ª série. Ela é um amor de pessoa , um exemplo de profissional...sempre tive uma enorme admiração por ela. No 3º ano fiz o terceirão no J.B.C, nossas aulas não eram como os das outras escolas e sim como nos cursos pré-vestibulares. Nossos professores eram todos professores de cursos pré-vestibulares de prestígio na cidade e nos davam aula com a mesma dedicação de quando Universidade Federal de Rondônia 83 ensinavam nos cursinhos. A rotina de estudo era puxada, só fazia o terceirão, não paguei cursinho, mas estudava todos os dias até de madrugada e ainda acordava cedo para assistir ao tele curso 2000, mas todo esse esforço valeu a pena. No ano em que fiz vestibular mais de 40 alunos foram aprovados para a federal junto comigo. O empenho desses professores em nos ajudar, me motivou a fazer o mesmo por outras pessoas, por isso assim que entrei na faculdade, comecei a dar aulas em cursinhos pré-vestibulares comunitários. No final de 2003, prestei vestibular para Biologia, na verdade, eu queria fazer Música, mas como teria que mudar de cidade e não tinha condições para isso, optei por Biologia mesmo, era o único curso que eu me identificava (e não me arrependo da minha escolha!). Em 2004 ingressei na Universidade Federal de Rondônia, foi um sonho realizado...tudo vai dar certo...era isso que eu pensava, mas depois descobri que o difícil não era entrar, o difícil era sair formado! De cara me apaixonei pela Biologia, e graças a essa paixão e pelo apoio dos meus pais pude continuar meus estudos, apesar das dificuldades, pois, meu curso é integral e não tinha como conseguir emprego, tinha que almoçar na faculdade, comprar vale transporte, tirar fotocópias, mas graças a Deus esses detalhes não me abateram e falta pouco para concretizar meu sonho: ser bióloga. Conexões Um dia eu estava andando pela faculdade, quando vi o cartaz de seleção para o programa, passei e não dei muita importância. Depois de um tempo passei de novo e decide me inscrever, apesar de ter certeza de que não seria selecionada. Fiz minha inscrição e guardei o comprovante na minha bolsa. No dia marcado para sair a lista dos pré-selecionados, eu tive uma prova e depois da prova fui pra casa, nem lembrei da lista . Quando estava no centro da cidade, quase apanhando o ônibus pra ir para casa, encontrei a Janaína, também bolsista do Conexões, e ela me disse que eu tinha sido selecionada para a entrevista e meu horário estava marcado mais ou menos para meio dia e já eram quase duas. Eu fiquei desesperada, subi no ônibus e voltei pra faculdade; cheguei a tempo da entrevista, mas continuei sem acreditar que seria selecionada, mas para minha total surpresa, eu fui selecionada! Em novembro desse ano, viajamos para o Rio de Janeiro, para participar do II Seminário Nacional do Programa Conexões de Saberes, a viagem foi ótima, nós bolsistas nos aproximamos mais, porém o mais importante da viagem foi participar das plenárias e discutir como poderíamos mudar a situação dos jovens de origem popular na Universidade, ampliando a perspectiva de futuro dos mesmos. O Conexões de Saberes, além de me ajudar financeiramente, têm me ajudado a reconhecer e sentir orgulho de quem sou e também descobrir qual o meu papel na sociedade. Sonhos futuros Estou no 7º Período de Biologia, atualmente estou trabalhando com bioquímica de aracnídeos. Tenho um grande interesse na área de Zoologia, principalmente aracnídeos e animais peçonhentos. Quando terminar a faculdade , quero cursar mestrado , depois quero fazer doutorado e pós doutorado também, e além de pesquisadora também quero ser professora, principalmente de cursos pré-vestibulares. Apesar de ser totalmente apaixonada pela profissão que escolhi, ainda tenho o sonho de me formar em música, mesmo que não trabalhe na área, mas a música está no meu sangue...faz parte de mim...e se não puder realizar esse desejo ...acredito que seja uma pessoa frustrada mais adiante. 84 Caminhadas de universitários de origem popular Agradecimentos Bom, essa é minha história, pode não ser assim tão interessante, mas, é minha história. Falei do que julguei interessante e mais importante...e claro muita coisa ficou de fora, pois se fosse escrever tudo, teria que publicar um livro sozinha! Mas é isso... esse é o pouco de mim que quero compartilhar com vocês... bom, como toda história tem um autor, eu dedico esse memorial ao autor da minha história, ao meu Amado Senhor! Te Amo, Pai!!! E te agradeço por tudo Deus! E aos meus pais que sempre estiveram do meu lado me apoiando e incentivando... amo Vocês! Universidade Federal de Rondônia 85