Resenha: Vinícius, Léo. A Guerra da Tarifa. Faísca. São Paulo, 2005. O Lido e o Vivido Ronan Gomes Gonçalves∗ Os trabalhos em ciências humanas, embora as mesclas possíveis, partem de duas grandes linhagens de investigação. Há os trabalhos que se fundame ntam em pesquisa de textos escritos, inquéritos, entrevistas, documentos e há, por outro lado, os trabalhos que se fundam na memória ativa e na observação empírica direta. Embora a grande predileção pelos trabalhos fundamentados em pesquisa documentada, prosseguir por um ou outro caminho não é garantia, por si, de uma boa abordagem e de um bom retrato do real estudado. Michel Foucault construiu um clássico sobre penitenciárias que, embora o seu imenso valor, só é capaz de apresentar os presos como seres oprimidos, mostrando somente uma parte da realidade. A falta de vivência prática deixou Foucault alheio a certos conhecimentos que apenas quem viveu dentro de uma penitenciária, ou com ela se relacionou, é capaz de obter. Se o Vigiar e Punir de Foucault é um livro sobre punições e sobre presos, contém uma séria lacuna inscrita no fato de os presos existirem nessa obra apenas como produto do poder. Nela, os punidos não existem como opressores, porque não é abordada a organização interna dos mesmos, e não existem como elementos contestadores, em sua cotidiana luta pela liberdade. Também os carcereiros não aparecem como meros trabalhadores atrás de salários, que enrolam no serviço, que dormem, que tecem alianças, que faltam, que fazem que vêem ou fazem que não vê em. Talvez Foucault não tenha tido o interesse de ir além da análise das punições e suas formas jurídicas, mas sente-se, nessa obra, a falta de conhecimento prático comparativamente à vastidão documental que o livro possui. George Orwell, na outra tradição, ao participar da guerra civil espanhola (1936-1939), deixou à posteridade uma preciosidade que, não se fundamentando diretamente em centenas de livros lidos e documentos analisados, é absolutamente capaz de dar um panorama muito abrangente das mazelas e das contradições do real narrado. Ao ler Lutando na Espanha temos a impressão que o próprio Orwell está ao lado, contando- nos diretamente a história. Vemos os ratos passando, ouvimos os tiros, sentimos o fedor das latrinas e das barricadas, o sangue dos combatentes buscando a terra, o povo se insurgindo para defender-se do golpe de Estado franquista, as clivagens internas opondo comunista a comunistas, anarquistas a anarquistas, num rachado solo republicano. Se os trabalhos construídos a partir da observação direta podem se igualar ou superar aqueles fundados em outros textos, escritos, documentos, entrevistas etc. possuem, com relação a esses, a possibilidade de captar coisas que apenas a quem está diretamente em contato é possível. Se os livros e documentos são alicerces para obras, viver também é fonte de saber e, por vezes, uma fonte mais precisa. O que dizer então quando um dado tema não é objeto dessa abordagem mais tradicional levada a cabo pelos pesquisadores acadêmicos? Quando não se encontram dossiês, livros, teses de mestrado ou doutorado? Restam os diários, as conversas de botecos, coisas ∗ Professor da Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo Revista Espaço Acadêmico, nº 90, novembro de 2008 http://www.espacoacademico.com.br/090/90res_goncalves.pdf faladas baixinho, ao pé da orelha, ou em espaços mais permitidos. Alguns temas não são de fácil documentação, como os casos de abuso sexual contra crianças; os menores estuprados ao tentarem alçar uma vaga como jogadores de futebol... Outros não são de interesse dos pesquisadores: o processo pedagógico dos mendigos, o cotidiano de trabalho dos garçons... Nos casos em que não é possível reunir ampla documentação, ou que não há interesse de pesquisa, resta o saber cotidiano, aquilo que todos sabem, o saber vivido... Passados 200 anos da Revolução Industrial e 70 anos que Vargas iniciou decididamente a construção de um país urbano e, portanto, alfabetizado, permanece muito forte a tradição oral enquanto instrumento de história coletiva. A ponto de o ministro da educação, Fernando Haddad, afirmar que o país é mais ligado à imagem que à escrita. (Há quinze milhões de analfabetos no país). Num mundo em que toda forma de comunicação tornou-se uma forma de fiscalização, é muito grande a capacidade que os gestores possuem de obter conhecimento sobre facetas antes inacessíveis da vida social. Se para os populares continua obscuro o que se passa dentro da Maçonaria, do Rotary Club, das associações comerciais, dos Clubes Militares, das salas editoriais, dos jantares empresariais e políticos, enfim, são cada vez mais dados aos poderosos, enquanto permanecem em muito desconhecedores de si próprios. Justiça seja feita! Provavelmente, como uma das coisas mais significativas que foi publicada no meio libertário brasileiro dos últimos anos, temos o A Guerra da Tarifa, (Faísca, São Paulo, 2005) de Léo Vinícius, que também escreve sob o pseudônimo Ned Ludd, enquanto um dos animadores da coleção Baderna, que é tocada pela editora Conrad. Em A Guerra da Tarifa, Léo Vinícius descreve a luta do Movimento Passe Livre, em Florianópolis, ano 2005. Trata-se da continuidade de um outro escrito seu, também chamado A Guerra da Tarifa, este de 2004 e assinado Mané Ludd, no qual tratou do mesmo movimento, na condição de observador, no ano anterior. Seu trabalho é uma das coisas mais significativas que foi publicada no meio libertário atual porque, além da riqueza analítica, trata-se de um livro proveniente da participação direta, da observação prática, um relato histórico documental. Afinal, não é estranho que inexista um livro sobre o Movimento Punk escrito por um punk? Livros escritos por membros do MST narrando sua luta? Outros de operários falando dos grandes anos, do velho ABC e etc.? Não é estranho que os movimentos sociais, o movimento libertário brasileiro, trabalhadores, vivam sempre à espera do que pinga das universidades? Pois bem! O trabalho de Léo Vinícius é um trabalho sobre o Movimento Passe Livre feito por um membro do Movimento Passe Livre. Uma singularidade! Ao construir uma história por dentro do movimento, o autor rompe com o amplo costume subjacente ao país no qual o povo, a sociedade civil, os pobres, quando são retratados, o são somente pela perspectiva do Estado, como objeto de ação e/ou produto deste. Em A Guerra da Tarifa, fala-se de cidadãos, eles por si próprios. Vemos relatada a luta da população de Florianópolis contra os excessivos aumentos do preço das tarifas de transporte coletivo, numa prefeitura em que o prefeito da época, Dário Berger, era proprietário de empresa do ramo, embora ela não atuasse dentro da cidade. Ai está descrito o protagonismo da juventude estudante, o envolvimento da população, da sociedade civil, da opinião pública (uma velha senhora), a tomada de posição da mídia local, a tentativa de malabarismo dos políticos (tanto de dentro do movimento, quanto de fora), os conflitos internos ao movimento, as primeiras experiências daqueles que ousaram, na puberdade, experimentar a 2 Revista Espaço Acadêmico, nº 90, novembro de 2008 http://www.espacoacademico.com.br/090/90res_goncalves.pdf cidadania ativa e outros que o fizeram bem depois, os inúmeros atos e reuniões realizados, o preparo e a discussão das formas de luta, sua realização prática, a atuação dos diretores de escola tentando cercear os alunos da participação pública e/ou ameaçando-os de punição sobre a participação política externa aos muros escolares, a atuação violenta da polícia e das milícias patronais, as alternativas de resistência dos estudantes que, por exemplo, escreviam em seus corpos o número de sua pouca idade, para atenuar a truculência dos policiais... O trabalho, embora de poucas páginas, é bastante rico: ao lado da narração minuciosa dos acontecimentos temos a apresentação de análises contundentes que sistematizam e ampliam nosso aprendizado. Ele nos deixa melancólicos por não termos outros, de mesmo porte, sobre tantas outras lutas e acontecimentos, tanto do passado quanto do presente. Inscreve-se numa linha literária que embora pequena tem crescido no Brasil e é ampla de potencialidades. Trata-se de uma história contada por seus próprios participantes, justamente porque outros não a contarão ou não a contarão daquela forma. Nessa linha, posso citar Carolina Maria de Jesus (Quarto de Despejo); Maurício Tragtenberg, em Memórias de um Autodidata no Brasil; Ferrez (Capão Pecado); José Carlos Brito (A Tomada da Ford), Sérgio Vaz, em seu impressionante Cooperifa: Antropofagia Periférica e tantos outros. Um velho lutador, João Bernardo, afirma que a riqueza e a potencialidade dos livros está não em sanar nossas inquietações, em dar-nos respostas, mas em nos trazer novos horizontes que possibilitem outras questões ou a reformulação de antigas. Um bom livro é aquele que cria indagações, que desperta a curiosidade. Daí que os autores devam servir não como objeto de afirmações, mas como alicerce para novos questionamentos. Léo Vinícius nos oferta o conhecimento sobre uma erupção social numa cidade que tem a imagem de pacata, de local de gente feliz e tranqüila. O que nos leva a questionamentos vários, iniciando sobre todo o trabalho e tessitura que esteve na origem de tal empreitada. Que tipo de enfrentamento devem ter tido os adolescentes no âmbito doméstico? Como se passaram os acontecimentos no interior das unidades escolares? Será que a instrução para lutar pela baixa dos preços serviu para despertar a necessidade de instrução geral? A auto-organização fora da escola gerou novas formas de atuação dentro desta? Diminuíram os conflitos dentre os alunos? Despertaram-se novas formas de comunicação e imprensa? Surgiram outros grupos: de ação, de estudos, de arte e cultura? Que imagem do movimento ficou retida para seus participantes e para a população? Os grupos dominantes da cidade aprenderam que a tal sociedade civil pode ser um vulcão em terno sono: que alterações provocou na paisagem? Quando retornará a despertar? Numa conjuntura em que os meios tradicionais de investigação muitas vezes são incapazes ou não se interessam em estudar determinados temas, onde a memória histórica de ampla difusão está a cargo das novelas e na qual a comunicação social e interpessoal é objeto de investigação e controle por parte dos gestores, o trabalho de Vinícius tem o mérito de sistematizar uma experiência de uma perspectiva autônoma, tal qual aquela adotada por Orwell em Lutando na Espanha. De tantos outros, tem a capacidade de evitar romantismos ao apresentar ações em bruto, a luta social nua e crua. Daí que ofereça ensinamentos a quem pretende seguir, mesmo sabendo pedregoso o caminho, ao passo que concorre, ao lado de gigantes, na construção da memória. Esta, popular. 3