ÁFRICA E A UNIÃO EUROPEIA
ÁFRICA e a união europeia
Aguinaldo Jaime
Ministro Adjunto do Primeiro-Ministro de Angola
Não resisto a começar a minha comunicação, contando-lhes
uma pequena história, muito curta, dum homem de negócios
que, desejando ir passar férias a um lugar exótico, escolheu, imaginem, o inferno, como o local das suas férias. “Gostaria de ir
ver como é o inferno, pensou o nosso homem”! E, o nosso homem
foi mesmo ao inferno, de férias! Ao desembarcar no inferno, o
herói da nossa história encontrou um cenário inesperado e maravilhoso: boîtes, vida nocturna intensa, mulheres bonitas, muitas
festas, enfim, uma alegria esfuziante. Terminadas as férias, o
homem veio todo satisfeito da vida: afinal o inferno não era nada
daquilo que ele tinha ouvido. Algum tempo depois, o nosso
homem de negócios infelizmente acabou por morrer e tocou-lhe
a sorte de ir parar ao inferno, desta feita já não por opção. Para
sua surpresa, encontrou um panorama muito diferente do que
tinha visto antes: recolher obrigatório, vida nocturna quase inexistente, interdição de uso de bebidas alcoólicas, seca, racionamento alimentar, enfim, um ambiente a todos os títulos desolador.
Perplexo, o nosso homem virou-se para um habitante do inferno,
que encontrou no caminho, e perguntou-lhe: “O que aconteceu
ao inferno que eu antes conheci? Este não é o mesmo inferno
que eu visitei, nas minhas férias!” E o velho habitante, com a
sabedoria de longos anos, virou-se para ele e respondeu: “Agora,
meu caro, creio que você está em condições de saber que há uma
grande diferença entre o que é turismo e o que é emigração”!
Procurarei de seguida elaborar brevemente sobre o tema das
relações entre África e Europa. E, porque muito já foi dito, eu
achei que talvez não devesse estar a repetir coisas já ditas, resolvi
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trilhar um caminho diferente: pegar no exemplo de Angola, apresentá-lo como um case study, e referir algumas lições que poderemos retirar da história da cooperação entre Angola e a Europa,
e com outros países doadores.
Assim, através de alguns exemplos práticos, gostaria de mostrar-vos alguns problemas a que os países em desenvolvimento,
como Angola, têm de fazer face, nesta cooperação com o mundo
desenvolvido, em geral, e com os países da OCDE, em particular.
A minha óptica será, obviamente, a de um africano, que viveu
estes problemas, pois participou em muitas negociações, na condição de técnico, primeiro, e de governante, depois.
Mas, antes, gostava de vos dizer quão bem-vinda é a ideia de
que uma parceria supõe duas partes, apesar de haver uma grande
diversidade no seio da UE, por um lado, e no seio de África, por
outro; mas, para que haja parceria, temos que falar necessariamente
em duas partes, e para que haja parceria, embora haja interesses
divergentes, tem que haver uma base comum, porque só a existência desta base comum é que justifica o estabelecimento de uma
parceria com benefícios recíprocos.
E gostava de vos dizer, a este respeito, que uma das questões,
de resto também neste volume aflorada pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros de Cabo Verde, que a cooperação com África
suscita, é justamente a da igualdade entre os parceiros, por forma
a não haver diktats, por forma a não haver imposição de modelos
económicos ou políticos, por forma a que cooperação seja livre,
entre duas partes verdadeiramente iguais.
E o caso de Angola, a este respeito, é paradigmático. Para
ilustrar os problemas, que Angola teve de enfrentar, eu gostaria,
para começar, de falar do programa de reformas económicas, que
começou a ser implementado, em Angola, na década de oitenta,
mas que ganhou um novo ímpeto após a conquista da Paz, em
2002. Trata-se de um programa considerado heteredoxo, pois
desviou-se da ortodoxia, do modelo das instituições financeiras
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internacionais, tendo sido inteiramente concebido por técnicos e
especialistas angolanos, e sufragado pelo governo angolano e pela
sua liderança política. Esta origem endógena do nosso programa
fê-lo passar por algumas vicissitudes, que gostaria de partilhar
convosco.
Antes de mais, este programa foi encarado com muito cepticismo, dentro e fora de Angola, talvez porque, sendo heterodoxo,
ele não tinha a chancela das instituições do Bretton Woods. Sem
surpresa, muitos terão vaticinado que o programa seria efémero,
que nunca atingiria os resultados preconizados.
E, por causa da origem do programa de reformas económicas,
Angola nunca pôde ver realizada a conferência de doadores, decisiva para mobilizar os fundos necessários para financiar o seu
processo de reconstrução nacional, porque a condição sine qua
non, para a sua realização, era a existência de um acordo formal
com as instituições do Bretton Woods. Por isso, Angola teve de
encontrar outras fontes de financiamento, para manter vivo o seu
programa de reformas económicas, para não frustrar os anseios
das suas populações e para preservar a coesão e a reconciliação
nacionais. O argumento de que o nosso programa estava a ter
bons resultados e estaria, assim, a cumprir a mesma função que
um programa de estabilização, portanto formal, com o FMI, foi
rejeitado in limine!
E nem o facto de sermos um país pós-conflito, devastado por
quase três décadas de conflito armado, com problemas económicos e sociais muito graves, e termos, por causa da guerra, incorrido
em atrasados para com algumas agências de cooperação, dos países membros do Clube de Paris, fez com que Angola fosse tratada
com menor severidade, no processo de negociação da dívida contraída com os países membros do Clube de Paris. Nem mesmo
o facto de termos alocado importantes recursos próprios, para
saldar a dívida contraída, em detrimento de outras prioridades
nacionais, mereceu da parte dos credores um tratamento mais
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benevolente, na questão dos juros de mora. Uma vez mais, nos
foi feita a exigência de um programa formal com o FMI, como
condição necessária para poder obter o perdão dos juros de
mora.
Pouco adiantou mostrar ao Clube de Paris que Angola estava
a ter uma boa performance económica, de resto por todos reconhecida, bem ilustrada por um crescimento robusto, aumento do
emprego, inflação controlada, taxa de cambio estável, num regime
de cambio flutuante, défice orçamental sustentável, reservas internacionais liquidas em crescimento, etc, etc,. Inflexivelmente, a
exigência de um acordo formal com o FMI era-nos, uma vez mais,
apresentada como sendo incontornável.
Como podem constatar, esta parceria, que pressupõe partes
iguais, com agendas próprias, mas também com interesses convergentes, encontra muitas vezes dificuldades na sua concretização, muito por culpa da rigidez da abordagem, que adoptam
alguns países doadores e instâncias internacionais. Muitas vezes,
não há a necessária flexibilidade, segue-se a lógica do one size
fits all (uma medida ajusta-se a todos), demonstrando-se uma
clara incapacidade e disponibilidade para estudar cada caso, em
concreto, encontrar as suas virtualidades e poder então ser um
parceiro actuante, na promoção das reformas que são necessárias,
em cada país.
Um outro exemplo desta rigidez encontrámo-la quando resolvemos criar uma instituição financeira de fomento ao desenvolvimento, que é o Banco de Desenvolvimento de Angola (BDA).
O governo angolano constatou, depois de ter analisado o perfil
do crédito bancário na economia, que era necessário criar uma
instituição que financiasse a chamada economia não mineral.
O governo demonstrava, assim, que não pretende ficar refém do
petróleo ou dos diamantes, que são recursos finitos, não renováveis, e não aumentam massivamente a oferta de emprego, pois
são indústrias de capital intensivo.
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A este respeito, esta manhã, ouvi aqui críticas muito justas, ao
facto de alguns países, apesar de terem uma boa performance macroeconómica, bem ilustrada nos dados que nos foram aqui transmitidos pelo representante do BAD, não melhorarem, apesar disso, o
nível de vida e o bem estar das suas populações, de modo palpável.
Trata-se de crítica justa. Consciente disso mesmo, do facto de que
a restauração dos equilíbrios macroeconómicos não é um fim em
si, não é condição suficiente para que as populações gozem os
chamados dividendos da paz, o governo angolano tomou a decisão
de criar este banco, para financiar sectores como a agricultura, a
construção, as pescas, os transportes, a pecuária, a industria alimentar, etc. Mas, esta nossa iniciativa foi muito criticada por alguns
doadores, presos ao dogma de uma pretensa eficiência alocativa de
recursos financeiros por parte do mercado, e que olham para toda
e qualquer intervenção do Estado na economia como sendo necessariamente perversa e espúria. De nada nos valeu mostrar que o
mercado bancário angolano, apesar de estar em franco crescimento,
apenas ter consagrado 1% do total de crédito concedido à agricultura, que é um sector estratégico, que já empregou, no passado,
quase dois terços da população.
Debalde, o governo angolano tentou mostrar que esta expe­
riência não era singular, pois ela tinha-se baseado no estudo criterioso de outras experiências de países em desenvolvimento.
Apesar dos nossos esforços, e de detalharmos a lógia de rentabilidade que preside aos empréstimos a conceder por este banco,
que nos levou a um processo muito sério de formação de quadros,
de aquisição de software modernos e de eleição de um modelo
de financiamento de fileiras (clusters), em vez de projectos isolados,
pouca foi a compreensão que encontrámos para esta iniciativa,
que para nós é vital, na nossa estratégia de combate sustentado
à fome e à pobreza. Indiferente às críticas e ao cepticismo, o
governo angolano não recuou e o BDA é, hoje, uma realidade,
em Angola.
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Outro exemplo, que gostava de trazer à liça, tem a ver com a
declaração dos principais países doadores que se reuniram, no
seio da Organização Mundial do Comercio (OMC), em Novembro de 2001, no rescaldo dos trágicos acontecimentos de 11 de
Setembro, nos EUA. Nesta reunião da OMC, ocorrida em Doha,
no Qatar, os países doadores, membros da OMC, descortinando
a inter-relação que existe entre terrorismo, instabilidade e pobreza,
decidiram ou chegaram à conclusão de que havia um interesse
colectivo em assegurar que os países, que até então não estavam
a ser beneficiários dos frutos da globalização, passassem a sê-lo.
Permito-me ler a declaração então aprovada:
“Reconhecemos que a integração dos países menos desenvolvidos (least developed countries, na terminologia inglesa), no sistema multilateral de comércio, requer o acesso significativo
daqueles países aos nossos mercados, o que passa pelo apoio da
diversificação da sua estrutura produtiva e da sua base de exportação. Passa também pela assistência técnica para o desenvolvimento do comércio, e pelo desenvolvimento de capacidades
endógenas (capacity building). Por isso, comprometemo-nos com
os objectivos de um acesso livre e irrestrito aos mercados dos
países desenvolvidos para os produtos originários dos países
menos desenvolvidos.”
Esta declaração, vivamente saudada pelos países em desenvolvimento, porque estratégica e prenhe de significado político e
económico, permaneceu quase letra morta, durante quatro anos.
E só em Dezembro de 2005, na reunião de Hong Kong, a que
eu por sinal pude assistir, chefiando a delegação governamental
angolana, de alguma forma se passou da retórica à realidade; e os
países desenvolvidos só então deram passos concretos, comprometendo-se em eliminar os subsídios à exportação dos produtos
agrícolas até 2013, --vejam a décalage de tempo que vai ser necessária até que a eliminação destes subsídios possa ocorrer!--; e
também em garantir o livre acesso aos mercados dos países ricos
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para 97% dos produtos agrícolas e manufacturados oriundos dos
países menos desenvolvidos.
Ainda assim, há aqui um percentual de 3% de isenção que os
países ricos podem livremente utilizar, para impor, em 2013,
barreiras à entrada de alguns produtos nos seus mercados. E os
EUA foram mesmo ao ponto de interpretar esta isenção de 3%
como abrangendo não apenas a actual produção dos países menos
desenvolvidos, a current production, mas também para abranger
uma potencial produção, a potential production. Vejam a grande
margem de manobra que esta interpretação concede, o que naturalmente não deixa de ser problemática, e que pode levar-nos a
questionar a bondade e seriedade deste compromisso para com
um sistema de comércio livre e justo.
Permito-me recordar que, na minha experiência de negociação
de acordos internacionais, há a cartilha de “liberalizar, desregulamentar e privatizar”, defendida de um modo inflexível, independente das condições concretas de cada economia, na lógica do
modelo único, válido para todas as latitudes e todos os tempos.
É a tese que só reconhece as falhas de governo e nunca as falhas
ou imperfeições de mercado. Em Angola, ela também foi defendida, mesmo quando, em situação de guerra, tínhamos vastas
parcelas do território nacional ocupado militarmente e uma economia completamente desarticulada e paralisada, com excepção
da economia de enclave. E não deixa de ser curioso e paradoxal
que países ricos, com economias muito mais pujantes, levem tanto
tempo a honrar compromissos livremente assumidos, em homenagem à sua própria cartilha, a princípios tantas vezes apresentados aos países em desenvolvimento como a solução mágica para
todos os seus problemas económicos. Esta duplicidade de atitudes,
numa lógica de dois pesos, duas medidas, deve ser evitada, se
quisermos ter uma cooperação justa, equitativa, que vá de encontro às aspirações mais profundas das sofridas populações do continente africano.
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Portanto, uma agenda África-Europa só será relevante se ela
for encarada como uma agenda entre partes iguais, com interesses próprios, mas também com uma base comum que justifica e
dá sentido à existência desta parceria.
E, como africano, sinto-me encorajado por ter aqui ouvido,
com apresentação de evidência empírica, que os países africanos
estão a fazer sérios progressos em matéria de gestão macroeconómica, em matéria de regulação e prevenção de conflitos, e em
matéria de respeito pelos direitos humanos. Esta evidência é a
prova insofismável de que o afro-pessimismo não tem, hoje, razão
de existir. E com esta parceria, assim entendida, com a UE, estou
convencido de que os países africanos ainda poderão fazer mais
progressos, na luta contra a pobreza, a fome, o analfabetismo e
as doenças endémicas.
Mas, é evidente que, como africano, continuo também a estar
preocupado, porque a categoria dos países menos desenvolvidos,
inclui todos os países africanos de expressão portuguesa; e os Least
Developed Countries são caracterizados, como todos sabemos, por
baixo rendimento per capita, geralmente abaixo dos 750 dólares
(este não será o caso de Angola); sérias debilidades nos principais
indicadores de desenvolvimento humano, como baixos níveis de
educação, nutrição e alfabetização; vulnerabilidades económicas
devido ao fraco desenvolvimento da agricultura, e da sua base de
exportação; baixo nível de transformação industrial; base de exportação pouco diversificada, e vulnerabilidades a desastres naturais.
Portanto, esta categoria é fundamentalmente integrada por
países africanos, e por todos os PALOP. Obviamente, isto não
nos dá motivos de grande regozijo e relembra-nos, a nós africanos,
que a primeira responsabilidade por este estado de coisas é nossa.
Nós não podemos cair na tentação fácil de atribuir todos os
nossos insucessos à cooperação, a uma cooperação mal concebida,
que não tem em conta a chamada paternidade (ownership) dos
programas. Há que assumir as nossas responsabilidades, como
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africanos, pela incapacidade muitas vezes revelada de formular
políticas coerentes, por forma a que os países doadores e a UE
em particular, deixem de ver os países africanos apenas como bons
deserving recipients, uma expressão para mim nova. Para ser franco
esta expressão parece acentuar alguma ideia de passividade, que
não é consentânea com a ideia de uma cooperação entre partes
iguais, com a ideia de paternidade do processo de reformas.
A terminar, gostava de, nesta oportunidade, felicitar o governo
Português por ter tido a iniciativa de recolocar África na agenda
internacional. Creio que o governo português está de parabéns
por isso e pensamos que a Cimeira África-Europa, que se realizará
dentro em breve, será uma boa oportunidade para discutirmos
os programas de desenvolvimento de África, para deixarmos de
integrar esta categoria dos países menos desenvolvidos, para encontrarmos vias que nos permitam melhorar os indicadores humanos
em África, para que, e recordando a história que vos contei no
início, os nossos países não sejam só bons para neles fazer turismo,
mas que sejam também bons para emigrarmos, para neles fixarmos
residência.
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