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estações - eles são recursos (resources), mas cies são também fontes (sources),
as dádivas naturais perenes que suportam tudo o mais", (op. cit., p. 134)
Por tudo isso, não deixa de ser interessante assinalar, também, alguns
silêncios e algumas ausências. Com efeito, numa obra onde as questões
axiológicas ocupam um lugar central, falta uma reflexão sistemática acerca das
relações entre a ética ambiental e a tradição ética moderna, sobretudo a
kantiana. Por outro lado, não deixa de ser significativa a inexistência de
qualquer referência a Hans Jonas e à sua ética da responsabilidade.
Contudo, tais ausências, que o filósofo do Colorado não deixará certamente
de superar em próximos trabalhos, não diminuem a autonomia e singularidade
de uma obra que ocupa um espaço único num novo horizonte de questionamento filosófico, apenas emergente, sem se deixar confundir com as versões
mais ou menos superficiais da "ecologia profunda" e do "ecocentrismo".
Viriato Soromenho Marques
FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES, ilustração
ro de Almeida, Lisboa, Colibri, 1994.
è Catolicismo.
Teodo-
Teodoro de Almeida foi um daqueles portugueses que logrou alcançar projecção nacional e internacional digna de monta, razão por que não deixa de ser
estranho o escasso número dc estudos que entre nós tem motivado.
Nesta conformidade, o presente livro de Francisco Contente Domingues
surge como uma contribuição válida para o conhecimento da extensa obra do
Oratoriano que sc conseguiu alçar ao estatuto de figura cimeira do iluminismo
em Portugal.
A análise que este livro nos apresenta procura situar as balizas em que o seu
pensamento se desenvolveu, ao longo das várias fases de uma vida atribulada,
sendo de relevar o seu esforço permanente para conciliar as grandes conquistas
dos chamados Modernos com a concepção cristã e católica do mundo. É
porventura esse aspecto que confere unidade c coerência à obra do Neri
português, ora em luta pela superação da metafísica substancialista de raiz
aristotélica, ora em oposição ao deísmo e ao materialismo que soprava de
Inglaterra e da França pré c pós-revolucionária.
Mantendo e aceitando como válidas as teses fundamentais do criacionismo
inerente à filosofia cristã, no âmbito da relação entre Deus, o Homem e 0 Universo, o século XVIII em Portugal conheceu uma considerável proliferação de
discursos em ordem a reforçar a unidade entre as ciências da natureza e a teologia revelada, no quadro mais amplo da harmonia entre a razão c a fé, a natureza e a graça. Tratava-se, afinal, dc actualizar a antiga formulação paulina,
segundo a qual as coisas invisíveis dc Deus se conhecem pelas coisas visíveis,
indirectamente, como num espelho, transformando a natureza num imenso livro
em que reverberam os divinos atributos.
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Foi este enquadramento que permitiu a total abertura na nossa cultura da
época ao desenvolvimento e acolhimento das ciências naturais, na medida cm
que os avanços realizados nesse domínio eram vistos como progressos no
conhecimento da obra do Criador, assumindo-se aí o homem como um
cooperador de Deus, por isso que tudo na Natureza existe para ele, devendo este,
pelo são conhecimento adquirido, aprender a colocá-la ao seu serviço.
O autor do livro em apreço começa por analisar, numa perspectiva histórica,
os estatutos da Congregação do Oratório, a que Teodoro de Almeida pertenceu e
que nobilitou, mostrando os pontos de contacto entre o Oratório português e os
seus congéneres italiano e francês, a fim de pôr em destaque a moderação com
que era entendida a vida religiosa dos congregados, a sua resistência ao aparato
exterior do culto e às mortificações excessivas, em que se nota uma dimensão
mais urbana e cosmopolita.
Nota expressiva dessa característica é o capítulo dedicado aos estudos e à
renovação pedagógica no seio dos oratorianos, onde se nota a ausência de restrições à liberdade de pensamento cm matérias relacionadas com a filosofia natural, que atribuirá a esta congregação, nomeadamente através da aula de Física
Experimental que desenvolveu na década de vinte no Palácio das Necessidades,
e sobretudo com o magistério do Padre João Baptista c do Padre Teodoro de
Almeida, um lugar de relevo na efervescência cultural do nosso século XVIII.
Neste âmbito, parece-nos ser de louvar o facto de o autor não cair na tese
simplista que vê na actividade da Companhia de Jesus uma maquinação tenebrosa destinada a sufocar o zelo e os clamores dos sábios, chamando mesmo a
atenção para os trabalhos de João Pereira Gomes, António Banha de Andrade c
Domingos Maurício Gomes dos Santos que protagonizaram, nos anos quarenta
e cinquenta do nosso século, na Brotéria e na Revista Portuguesa de Filosofia,
a luta contra a senha anti-jesuítica, que foi parte estruturante da ideologia pombalina.
O esforço de modernização cultural empreendido pelos iluministas portugueses teve subjacente, de forma maioritária, o eclectismo como atitude filosófica conciliadora por excelência e, por isso, avessa ao espírito de sistema. Essa
foi igualmente a atitude de Teodoro de Almeida, analisada no ponto 3 do cap.
II, destacando o autor a mobilidade c, até certo ponto, a liberdade discursiva que
do eclectismo advém, embora sempre à luz de um ambíguo conceito de Razão,
tida como tribunal aferidor e instância de apelação da verdade e do erro. É também o eclectismo, como aliás o autor nota, que atribui uma importância ímpar a
uma disciplina que se começara a afirmar nessa época pela pena de Jacob
Brucker, a História da Filosofia, entendendo Teodoro de Almeida, na esteira de
Vernei, que a história de uma disciplina se assume como saber propedêutico ao
seu ensino.
Todavia, neste ponto, temos de discordar da posição assumida pelo autor,
quando, na pãg. 66, afirma que o eclectismo é "uma forma de tornear dificuldades concretas por legitimar a procura de uma causa última que se encontra fora
do campo da física", Ao que nos parece, não é o eclectismo que legitima a pro-
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cura da Primeira Causa, mas sim o conceito de criação, núcleo fundamental da
metafísica do cristianismo. Ou seja, a radicação em Deus da explicação última
do Universo e do Homem não advém da amálgama doutrinária proporcionada
pelo eclectismo, mas sim de uma concepção metafísica bem firmada. Aliás a
questão volta a ser colocada mais adiante, na pág. 106, quando sc faz referência
a "uma verdade da natureza" e a "uma verdade teológica", ficando o leitor na
dúvida quanto ao tipo de relação que aí se propõe.
Apenas mais uma nota de discordância que cm nada infirma a qualidade e a
oportunidade deste livro: o facto de se afirmar, na pág. 67, que da admiração do
filósofo natural perante a harmonia da natureza, emerge um êxtase "numa atitude contemplativa de claro pendor pré-romântico".
O conceito de pré-romantismo, defendido por muitos, tem merecido justas c
incisivas críticas (Jean Ehrard; Rofand Morticr, Georges Gusdorf) por participar, ou melhor, por afirmar um dilema tensional inexistente entre a razão c o
sentimento. Fique aqui a pergunta de Gusdorf quando sc questiona se a expressão "pré-romantismo" não terá sido inventada para desembaraçar o "Século das
Luzes" de resíduos não compatíveis com a perspectiva dominante escolhida por
certos historiadores?
No ponto 4 deste mesmo capítulo II, é-nos apresentado um interessante percurso da polémica em torno da filosofia experimental, uma das muitas polémicas que o nosso século XVIII conheceu, com justa análise dos vários folhetos,
quase sempre anónimos, que em seu redor se teceram, com especial enfoque no
problema dos acidentes eucarísticos, aspecto que motivou mais um embate entre
os Modernos e os escolásticos, por não aceitarem os primeiros a tese da separabilidade entre a substância e os acidentes.
O cap. III é dedicado à análise das vicissitudes conhecidas pela Congregação
do Oratório no contexto da política do consulado pombalino, esclareccndo-nos o
autor das razões que justificaram a queda em desgraça dos congregados e, com
eles, do Padre Teodoro de Almeida, forçado ao exílio cm França. O cerne do
problema radica na política regalista do Marquês de Pombal que já fizera cair
em desgraça o Bispo de Coimbra, D. Miguel da Anunciação. Visando a
supremacia do Estado em todo o temporal da Igreja c procurando confinar a
acção desta aos domínios estritamente espirituais, o regalismo era entre nós um
problema antigo, remontando pelo menos ao século XVI, arrastando consigo o
candente problema das relações entre o poder temporal e o poder espiritual,
aceite que era a sua comum origem e finalidade última.
Em todo o caso, foi habilmente utilizado por Pombal e pelo seu teórico
oficial, curiosamente outro oratoriano, o Padre António Pereira de Figueiredo,
como veículo de defesa das prerrogativas do Estado Absoluto. Segundo nos relata o autor deste trabalho, foram as atitudes menos claras de alguns oratorianos,
Teodoro de Almeida entre eles, a respeito da legitimidade do regalismo, que
terão provocado as iras de Pombal.
Depois de um quarto capítulo dedicado à fundação da Academia das Ciências e à polémica oração de abertura proferida por Teodoro de Almeida, em que
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o Oratoriano critica, com algum acinte, o estado da cultura portuguesa da época,
segue-se o quinto e último capítulo, onde de algum modo se regressa ao núcleo
teórico que confere unidade às obras de Teodoro de Almeida: o conhecimento
científico como veículo de aperfeiçoamento humano, no quadro de um humanismo personalista de feição cristã e católica, que afirma a primazia do superior
e transcendente destino do homem.
Pareceu-nos ainda deveras interessante o ponto 2 do capítulo em causa,
dedicado à pedagogia e didáctica. Diz a propósito o autor que "o que não se
encontra na Recreação Filosófica é um método uniforme de exposição"
(p. 147), falando inclusive duma constante alternância ao nível do método.
Ora, este problema é da máxima importância porquanto uma das Unhas de
força do nosso iluminismo, ao nível das reformas pedagógicas, gira exactamente
em torno da universalidade do método de exposição dc conteúdos de ensino,
tido como independente das matérias a ministrar. Abordado na linha do que
Pedro Ramo chamou, no renascimento, "método de doutrina" e que depois os
lógicos de Port Royai virão a vulgarizar com a designação de "método sintético", identificado com a ordem da demonstração, constatamos que Teodoro de
Almeida também se refere a este "método de doutrina" (Recreação..., vol. VII,
tarde quadragésima quinta), em nome das excelências da ordem geométrica,
nomeadamente a utilizada por Wolff.
Nesta conformidade, essa alternância c variação dos métodos expositivos que
Francisco Contente Domingues refere, parece representar uma importante nota
de abertura, no tocante a um problema que os autores do Compêndio Histórico
do Estado da Universidade de Coimbra (1771) e dos Estatutos da Universidade
dc Coimbra (1772) tinham como autêntica questão de Estado, na luta contra a
pedagogia da Companhia de Jesus.
Por último, apenas mais uma nota que se prende com a ausência de análise
dc uma das mais importantes obras dc Teodoro de Almeida, a par da Recreação: o Feliz Independente do Mundo e da Fortuna, obra romanceada c de grande circulação na época, essencialmente voltada para a temática antropológica e
ética, como também para a expressão dos padrões do gosto a que na altura aderiu.
Pedro Calafate
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