cadernos ufs - filosofia
DOS GRÃOS QUE SOBRAM NA PENEIRA DO TEMPO:
CRIVANDO COM VIGILIUS HAUFNIENSIS*
Daniel Nascimento
Mestre em Filosofia
Universidade Federal do Piauí – Campus de Picos
Resumo: O objetivo do presente trabalho é avaliar o conceito de
temporalidade à luz do Conceito de angústia de Kierkegaard.
Palavras-chave: angústia, Kierkegaard, tempo, temporalidade.
Abstract: The aim of this study is to evaluate the concept of temporality in
light of the Concept of Anxiety of Kierkegaard.
Keywords: anxiety, Kierkegaard, time, temporality.
1
O presente texto foi inicialmente concebido para ser apresentado na VIII Jornada de Estudos de Kierkegaard,
organizada pela SOBRESKI – Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard, ocorrida entre os dias 12 e 14
de novembro de 2007, em Aracaju, na Universidade Federal de Sergipe. Daí ter sua linguagem traços
orientados especialmente para a exposição oral.
119
Só o passado verdadeiramente nos pertence.
O presente... o presente não existe:
Le moment où je parle est déjà loin de moi1.
Passagem, passado, instante, tempo, presente, futuro, eterno, porvir...
entre significantes e significados, estes e outros termos aparecem sorrateiramente no texto de introdução ao terceiro capítulo do livro O conceito de
angústia assinado por Vigilius Haufniensis. No conjunto da obra de Søren
Kierkegaard, poucas vezes o tempo é problematizado de maneira tão pormenorizada e contundente. O texto permite ao leitor não somente conhecer a
oposição do filósofo dinamarquês à filosofia do sistema e um frutuoso pensamento sobre a ruptura do tempo e a continuidade da história, mas também,
a partir da reflexão de Vigilius Haufniensis, refletir por ele mesmo sua relação
com o tempo que se pretende uniforme. Antes que filósofos e literatos do
século vinte pudessem pensar sua crise, a concepção de tempo que assume a
temporalidade como sucessão infinita encontra aí o seu contraditório. A presente comunicação tem a intenção de se juntar ao vigia de Copenhage na
tarefa de sacudir a peneira do tempo para nela distinguir aspectos e resíduos
que normalmente passam desapercebidos aos que usam relógios de pulso.
RUPTURA DO TEMPO E A CONTINUIDADE DA HISTÓRIA
Há algo que incomoda a vigília de Vigilius Haufniensis: a categoria da
passagem, categoria conceitual utilizada pelos filósofos que tomam o tempo
como um sistema coerente e uniforme. Segundo o autor, o conceito de passagem, inserido na metafísica não de modo completamente pacífico, visa dar
sustento à concepção de instante que mostra-o como um ser estranho posto
no intervalo do movimento interior ao tempo, ponto de chegada do passado e
ponto de partida do futuro, ou ainda, ponto de chegada de um móvel quando
este entra em repouso e ponto de partida do imóvel quando se coloca em movimento. Esse intervalo, nomeado de instante, tomado como presente, impede
que o tempo em sua progressão do ocorrido para o porvir escape do momento de
passagem – entre o antes e o depois, é vedado ao tempo no seu curso liso pular
o agora. Em função disso, conclui Vigilius, no universo delimitado do sistema,
o presente vacila entre significar presente, eterno e instante.
Representar o tempo como uma sucessão infinita e constante, defini-lo
como passado, presente e futuro, talvez possa consolar certa inquietação
impertinente, mas não ajuda a compreender o tempo no que tange ao que
possui de essencial ao existente. A distinção entre passado, presente e futuro, não se sustenta:
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1
Manuel Bandeira, Passado, presente e futuro in Estrela da tarde in Estrela da vida inteira, p. 242.
Se conhecêssemos em que ponto encontrar pé na sucessão
infinita do tempo, isto é, se achássemos aí um presente que
servisse de ponto de apoio à divisão, esta seria justa. Contudo, visto que todo momento, assim como a soma dos momentos, é um avançar (um desfilar), nenhum deles pode ser
presente e, em tal sentido, não existe no tempo nem presente, nem passado, nem futuro (KIERKEGAARD, 1968, p. 91).
Nesta linha de raciocínio, a divisão só poderia ser sustentada se, pelo
concurso da imaginação, se especializar um momento e se suspender o contínuo da sucessão infinita. Neste caso, o presente seria uma abstração, dotada
do atributo do infinito, mas sem conteúdo, valendo apenas para demarcar a
separação entre passado e futuro – um presente fruto da operação do intelecto humano. O presente, enquanto realidade temporal, não existe, assim como
não podem existir passado e futuro.
Argumentando dessa maneira, Vigilius sabe onde quer chegar – ele quer
desmoralizar a tese de que o presente seria eterno, invertendo-a, para levar
em consideração um outro conjunto de realidade temporal segundo o qual o
eterno seria o presente. Mas para isso, nosso autor deve antes abolir a sucessão. O eterno só pode ser definido como presente se o presente for definido
como sucessão abolida. Surge a ruptura do tempo e o eterno deixa o cargo de
categoria submetida à ordem temporal demarcada no conceito de instante.
[Se quisermos imaginar uma figura que represente a tese de que o presente
seria eterno, podemos fazê-lo assim: imaginar uma linha para representar o
tempo, uma linha reta que conduz o movimento da esquerda para a direita, ou
seja, do passado para o futuro. Se tomarmos um ponto mediano nessa linha,
ele será o presente, um presente gordo que abrange o instante e o eterno. O
instante neste desenho envolveria o eterno como uma membrana. O eterno
estaria retido pelo perímetro do instante.]
O instante que divide passado e futuro não existe. O instante não constitui
uma categoria temporal se concebido como momento de separação entre
passado e futuro. O tempo, se precisarmos admitir um ponto de vista que o
defina por meio de uma categoria fenomênica, é sempre passado, conclui
Vigilius, e o instante surge da interseção entre tempo e eterno. “Compreendendo-se que tempo e eternidade precisam tocar-se, apenas no tempo é que
podem tocar-se – e aí está como surge o instante” (KIERKEGAARD, 1968, p.
92). Na representação gráfica sugerida pelo texto, tempo e eternidade são
duas linhas que se cruzam e dão origem a um ponto de interseção denominado de instante.
Proponho que usemos a imaginação para visualizar o seguinte gráfico:
tomando como ponto de apoio aquela mesma linha da figura anterior, uma
reta que conduz o movimento da esquerda para a direita, ou seja, do passado
para o futuro, podemos cruzar uma outra linha perpendicular à primeira, uma
reta na vertical de modo a fazer um ângulo de 90º. Esse linha vertical seria o
121
122
eterno e o ponto de interseção seria o instante. Com um detalhe: na figura
proposta, o ponto representativo do instante pertenceria ao eterno e não ao
tempo.]
O instante constitui portanto átomo não do tempo, mas da eternidade. À
eternidade pertence este átomo de tempo que não pertence ao tempo. O
instante seria o primeiro reflexo da eternidade no tempo, sua primeira tentativa de sustar o tempo, interromper o seu passeio tranqüilo de menino virgem
na tarde de sábado. Todavia, isso não quer dizer que tempo e eterno se
toquem uma única e inadvertida vez: “o tempo não deixa nunca de afastar a
eternidade e a eternidade não mais deixa de adentrar o tempo” (KIERKEGAARD,
1968, p. 94).
[A observação daria origem a um novo gráfico, alterando o anterior. A linha
do tempo, deslocando-se do passado para o futuro, seria atravessada não por
uma única linha vertical, mas por várias linhas verticais paralelas umas às
outras, todas representando a eternidade enquanto repetição. As linhas verticais cruzariam insistentemente a linha do tempo, uma após a outra, de modo
a tocar cada ponto particular da linha do tempo, gerando a cada interseção a
figura do instante. O novo desenho sugere assim uma repetição infinita onde
as linhas verticais não cessam nunca de cruzar a linha do tempo.]
A eternidade se repete ao cruzar a linha do tempo – a repetição acontece
sem desistência. O tempo sofre a exposição insistente à tentativa de ruptura
pela lança do eterno, sem que a história termine. A história continua. A história renasce do instante. Percebe-se, então, que o porvir goza de uma
potencialidade de sentido privilegiada. O porvir quer dizer mais que o presente
e o passado, salienta Vigilius, mostrando de vez sua veia kierkegaardiana. O
passado é simplesmente uma parte do porvir. “O porvir não é o todo de que o
passado é apenas uma parte? Que, em certo sentido, o seu significado seja
este, vem de que o eterno signifique, acima de tudo, porvir” (KIERKEGAARD,
1968, p. 94). O eterno se relaciona com o tempo à maneira do porvir que
sempre se oferece.
[Se quisermos ser fiéis à descrição acima, temos que sugerir ainda outra
alteração no nosso gráfico. As linhas verticais que cortam a linha do tempo
deveriam portanto cruzá-la de modo a criar ângulos agudos, por exemplo, de
45º. As linhas insistentes cruzariam a linha do tempo inclinadas, mais ou menos na posição assumida pelos ponteiros de um relógio quando marcam 13:35,
gerando na parte superior da linha horizontal um ângulo obtuso de 135º e um
ângulo agudo de 45º. Essas linhas verticais de repetição infindável, representativas do eterno, se oferecem ao tempo como possibilidade sempre renovada.]
Com relação ao tempo, o eterno se apresenta como porvir, ou melhor,
como possível, como possibilidade – na dinâmica de um porvir que retira-se
do comércio com o presente como se fora simples seguimento e cede espaço
ao instante que interrompe a cadeia temporal e provoca um salto. Para Vigilius,
o novo surge apenas com o salto, com a superação da temporalidade da
passagem ou do sistema coerente e uniforme.
[No gráfico anterior, então, os pontos de interseção não são verdadeiros
pontos, uma vez que a pequena circunferência do instante apaga os vestígios
das linhas retas, criando um espaço vazio que exige o salto para ser
transpassado. A realidade pontilhada do instante não deixa que as linhas se
toquem, confundindo os que confiam na mediação e exigindo o salto.]
INTERMÉDIO
Toda a reflexão de Vigilius Haufniensis ganha novas cores numa realidade
em que a crise do tempo que falta, corre, voa, está na ordem do dia, especialmente se levarmos em conta que um dos principais objetivos do autor seja
provocar o leitor e convidá-lo a descobrir uma nova relação com o instante. O
seu texto não esconde o desejo íntimo de afrontar o tempo organizado pelo
sistema, esse pai cruel que desde os gregos come os seus filhos, tempo
contado pelos relógios dentro do mais legítimo rigor cronológico, nem esconde o olhar irônico sobre os que correm atrás do tempo na caçada ao instante.
Viver sempre com pressa é ridículo. Vigilius sabe disso. Nós sabemos disso.
Não obstante, vivemos no século vinte e um e dificilmente conseguimos
terminar um dia sem que tenhamos nos esfolado para cumprir a agenda. Pior,
nem nos reconhecemos em nossos compromissos. Vivemos como se cumpríssemos uma agenda que pertence a outro, observando datas e locais fixados por um desconhecido. Não nos reconhecemos nas páginas da agenda e
mesmo assim não tiramos o pé do acelerador.
O tempo uniforme e constante não existe. O tempo pode variar por uma
série de circunstâncias. Se estamos alegres, por exemplo, o tempo passa
rápido. Se estamos tristes ou ansiosos, o tempo demora para passar. Uma
hora num restaurante agradável não é o mesmo que uma hora na sala de
espera do médico ou antes de uma avaliação. Uma hora na sala de espera do
aeroporto é bem diferente de uma hora no ponto de ônibus da Central do
Brasil. Não é somente a nossa percepção de tempo que varia, o tempo mesmo
varia. A nossa memória não registra o tempo dividido milimetricamente, certos períodos de tempo possuem uma unidade de grandeza mais larga que
outros.
Os diversos ritmos que assumimos qualificam o tempo. Há coisas que
devemos fazer rapidamente e outras que requerem maior tempo. Dar um beijo
ou fazer amor não é o mesmo que correr para pegar o trem. Beber um copo de
cerveja quando se quer estabelecer uma conversa com alguém, cultivar uma
amizade, conquistar uma menina, toma um tempo diferente do beber para
matar a sede. Há coisas que exigem um vagar, como o ler e meditar, ou como
a celebração ritual pela morte de alguém – mesmo que não durem muitos
minutos, devem os minutos que durar demorar. O corpo humano entende
isso. A digestão toma tempo enquanto a reação muscular explode.
Para o existente, o tempo contínuo não é tempo, é mera ficção que oprime
o cotidiano, que arrasta contra a vontade. O possível, o novo, só pode surgir
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de um salto – salto que desprende, desembaraça, desenlaça, desgarra, desnuda. O que sobra na peneira do tempo é a possibilidade do possível, a
possibilidade de inaugurar no instante alguma coisa nova, não enquanto capacidade ou habilidade de fazer, mas como o que se oferece ao alcance com o
risco de contaminar a inteira existência. Possibilidade que não se exaure: o
possível sempre vai conosco. O tempo não precisa ser necessariamente um
inimigo, pode ser um companheiro de viagem.
Resta-nos ler a poesia de um pernambucano que com a mesma mão que
descreve o corpo das mulheres em flor ou o canto dos meninos carvoeiros
sujos de rua, sabe decorar o ambiente cativo do tempo. Transcrevo um poema
de nome sugestivo do apaixonado Manuel Bandeira: Tempo-será. Transcrevoo seguido de um outro, intitulado Resposta a Vinicius, escrito na mesma
época, dois poemas que gosto de ler juntos.
TEMPO-SERÁ 2
A Eternidade está longe
(Menos longe que o estirão
Que existe entre o meu desejo,
E a palma de minha mão).
Um dia serei feliz?
Sim, mas não há de ser já:
A Eternidade está longe,
Brinca de tempo-será.
RESPOSTA A VINICIUS3
Poeta sou; pai, pouco; irmão, mais.
Lúcido, sim; eleito, não.
E bem triste de tantos ais
Que me enchem a imaginação.
Com que sonho? Não sei bem não.
Talvez com me bastar, feliz
– Ah feliz como jamais fui! –
Arrancando do coração
– Arrancando pela raiz –
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui.
124
2
3
In Belo Belo in Estrela da vida inteira, p. 196.
In Belo Belo in Estrela da vida inteira, p. 201.
Se nosso amigo dinamarquês tivesse escrito os poemas, eles ficariam assim:
O possível está longe
(Menos longe que o olhar
Que aproxima o existente,
E o instante a se curvar).
Um dia serei feliz?
Sim, mas não há de ser agora:
O possível se oferece,
Como jovem que implora.
Poeta sou; pai, pouco; irmão, mais.
Lúcido, sim; eleito, não.
E bem triste de tantos ais
Que me enchem a imaginação.
O que espero? Não sei bem não.
Talvez o descansar, feliz
– Ah feliz como jamais seria! –
Do correr atrás do timão
– Do timão da hora matriz –
Deixar que o tempo intrujão
Surpreenda por sua ironia.
POSLÚDIO
Se desejássemos escrever ainda algumas palavras a respeito do problema do tempo e pensássemos em convidar alguém para conversar com Vigilius
Haufniensis, dificilmente encontrariamos um melhor interlocutor que Aurelius
Augustinus. Aquele que viria a ser conhecido como Santo Agostinho deixou
para a história da humanidade, em suas Confissões escritas ao final do século
quatro, um dos capítulos mais significativos para a tradição tutora da discussão acerca da compreensão do tempo. Algumas aproximações são possíveis.
Algumas diferenças, notórias. Tanto o filósofo dinamarquês quanto o filósofo norte-africano partem de uma visão linear do tempo, chegando porém a
conclusões diversas: para o primeiro, como vimos, rigorosamente falando, o
presente não existe; para o segundo, só o presente existe, embora seja o
presente frágil e rodeado pela não-existência.
Agostinho coloca o problema numa passagem que se tornou célebre:
O que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, sei o que
é; mas se quero explicá-lo a quem me pergunta, não sei: no
125
entanto, digo com segurança que sei que, se nada passasse,
não existiria o tempo passado, e, se nada adviesse, não existiria o tempo futuro, e, se nada existisse, não existiria o tempo presente. De que modo existem, pois, esses dois tempos,
o passado e o futuro, uma vez que, por um lado, o passado já
não existe, por outro, o futuro ainda não existe? Quanto ao
presente, se fosse sempre presente, e não passasse a passado, já não seria tempo, mas eternidade. Logo, se o presente,
para ser tempo, só passa a existir porque se torna passado,
como é que dizemos que existe também este, cuja causa de
existir é aquela porque não existirá, ou seja, não podemos
dizer com verdade que o tempo existe senão porque tende
para o não existir? (AGOSTINHO, 2001, pp. 299/300).
Encontramos no parágrafo algumas indicações do que ficará aparente
ao longo do desenvolvimento da reflexão do livro onze: a convicção de que
passado e futuro não podem existir e a perplexidade pela existência do presente. Passado e futuro não existem porque não estão presentes, estão distantes, escondidos em algum lugar 4. O passado já não existe e o futuro ainda
não existe 5. O presente, ao contrário, existe. O tempo se move, o tempo
muda e toda mudança só pode acontecer no presente. Como entender porém
o presente? Uma concepção comum do presente o imagina como se fosse
uma argola que se desloca na linha do tempo em direção ao futuro. A argola
seria o presente nesse escorrer devagar do passado ao futuro, fazendo crescer o passado e diminuindo o futuro. Na visão de Agostinho, contudo, o
movimento do tempo ocorre no sentido oposto (talvez a argola devesse ficar
parada e a linha do tempo correr canalizada pelo seu diâmetro). O presente
voa do futuro para o passado, embora o presente não tenha qualquer extensão6. O tempo presente vem daquilo que não existe, passa por aquilo que não
tem extensão e dirige-se para aquilo que já não existe 7. Um ponto qualquer do
futuro que ainda não existe um dia será um ponto perdido dentro do passado
que já não mais existe, tendo transitado pelas vias de um presente sem
extensão. Um presente sem extensão, sem duração? Um presente volátil,
pressionado de ambos os lados pela voraz não-existência do futuro e do
4
5
6
7
126
Agostinho se refere a um lugar escondido quando dirige a oração do parágrafo XVII. Mas o parágrafo é típico
de quem possui um refinado senso de humor. Tanto a referência ao ensino das crianças como a sugestão de
algo oculto parecem ser irônicas.
Cf. Livro XI, XV, p. 300.
Cf. Livro XI, XV, p. 302.
Cf. Livro XI, XXI, p. 306. “According to one possible conception a single time, called the present, moves
forward through successive dates, so that once it lay at AD 387 and before long it will lie at AD 2000. But that
is not the way Augustine thinks. He treats times as moving backwards into the past, so that as the present
moves it ceases to be present and becomes a part of the past. The word ‘present’, then, is for Augustine a
temporary name of a time, describing a property which each time holds successively, and discards as it
assumes the property of being past” (Christopher Kirwan, More meditations on time in Augustine: the
arguments of the philosophers, p. 180).
passado? Com um presente assim se pode contar muito pouco... Estaria
Vigilius pensando em algo semelhante quando diz que o presente não existe,
talvez ironicamente, para provocar a reação do curioso que quer aprisionar o
instante ou do esteta que pula de novidade em novidade como quem anda em
brasa quente aos pulinhos? Caçar o instante fugitivo, pular de novidade em
novidade, expressões que deságuam no mesmo reduto: fim da experiência.
Mais que isso: se a experiência acontece no presente, tais expressões designariam o fim do presente.
A solução de Agostinho, todavia, não soa tão dramática. O filósofo
norte-africano observa que embora certas coisas não mais existam, porque
pertencem ao passado, vemos sua imagem no presente quando acionamos a
memória. A infância, por exemplo: recordamos fatos de nossa infância resgatando-os pela memória. Do mesmo modo, premeditamos as ações futuras
embora o futuro ainda não exista. Podemos ter a imagem das coisas futuras
concebidas previamente a partir da oficina do presente, coisas que só existirão quando começarmos a realizar o que premeditávamos 8. Passado e futuro
somente passam a existir quando se tornam presentes ao momento presente.
A conclusão é a seguinte:
Uma coisa é agora clara e transparente: não existem coisas
futuras nem passadas; nem se pode dizer com propriedade:
há três tempos, o passado, o presente e o futuro; mas talvez
se pudesse dizer com propriedade: há três tempos, o presente respeitante às coisas passadas, o presente respeitante às
coisas presentes, o presente respeitante às coisas futuras.
Existem na minha alma estas três espécies de tempo e não as
vejo em outro lugar: memória presente respeitante às coisas
passadas, visão presente respeitante às coisas presentes,
expectação presente respeitante às coisas futuras. Se me
permitem dizê-lo, vejo e afirmo três tempos, são três (AGOSTINHO, 2001, p. 305).
Tais considerações dão margem, evidentemente, à interpretação que
acusa Agostinho de nutrir uma visão psicológica do tempo, na medida em
que todo o tempo é concebido no espírito 9. É até provável que mencionada
8
9
Cf. Livro XI, XVIII, pp. 303 e 304.
“His positive account of time is usually regarded as something of an oddity – a curiously implausible reduction
of the reality of time to the workings of the human psyche. Time, he argues, rather than being an ‘objective’
feature of the world, is a ‘distension’ of the soul. The mind stretches itself out, as it were, embracing past and
future in a mental act of attention and regulating the flow of future into past. Taken is isolation from the
autobiographical reflections that frame it in the Confessions, such claims about time do seem implausible. As a
theory of the nature of time, such a radical psychologizing of its reality must seem counterintuitive. Although
Augustine presents his view as a theory of time’s nature, his interest in that question is framed by reflection
on the experiential and emotional dimensions of being in time” (Genevieve Llyod, Augustine and the “problem”
of time, p. 39).
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acusação faça sentido aos homens de ciência. Agostinho joga no mesmo
time de Vigilius: a idéia de um tempo objetivo lhe é inteiramente indiferente.
O que interessa a ambos traz a distinção de ser concebido do ponto de vista
do existente. É de bom alvitre notar que a reflexão de Agostinho ocorre no
bojo de uma narrativa autobiográfica ou literária 10. A literatura não tem compromisso estrito com a verdade dogmática. Literatura exige engajamento pessoal, esforço de se deixa invadir pela brancura do papel, esforço raramente
notado pelos que agarram a caneta sem receio da promiscuidade.
De acordo com o texto cru das Confissões, as diferentes espécies de tempo
nascem da memória, da atenção e da expectativa. Por meio daquele que está
no tempo, passado, presente e futuro vêm ao momento presente. Ao final do
livro onze, Agostinho apresenta uma das mais significativas analogias entre
estar no tempo e a ação daquele que existe. Suponhamos – ele escreve – que
tenha a intenção de recitar um cântico que conheço. Antes de começar, minha
expectativa se volta para o canto como um todo. Mas ao iniciar vou removendo
da província da expectativa e entregando ao passado as palavras cantadas.
Enquanto minha ação debruça-se toda na atenção ao presente, estende-se para
a memória daquilo que recitei e para a expectativa por causa daquilo que vou
recitar: “está presente a minha atenção, através da qual passa o que era futuro,
de molde a tornar-se passado. E quanto mais e mais isto avança, tanto mais se
prolonga a memória com a diminuição da expectativa, até que esta fica de todo
extinta, quando toda aquela ação, uma vez acabada, passar para a memória”
(AGOSTINHO, 2001, p. 314). O mesmo vale para um conto ou uma piada. Deve
o narrador tornar presente passado, presente e futuro. Da perspectiva do narrador,
as três espécies de tempo estão simultaneamente presentes.
Tomando toda a história por esse ponto de vista, talvez possamos ainda
admitir que passado e futuro existem. Não somente porque podem estar
presentes mas porque estão no tempo como participantes constituintes 11.
Pode ser vital para o existente tornar o passado e o futuro presentes. Especialmente o passado, essa fonte de tesouros, esse reservatório de energia.
Tornar o passado e o futuro presentes sem que paralisem ou danifiquem o
presente, e sem que atrapalhem o destemido salto, isso sim seria muito bom.
10
11
128
Nesse sentido: “If we are to understand fully what he has to say about time, we must take seriously the fact
that it occurs in the context of an autobiography. The philosophical content of the work is interwoven with its
narrative form. […] We will not resolve the problem of time, Augustine thinks, until we learn to examine our
own consciousness rather than treat it as the transparent performer of measurement of external change.
What is problematic about our being in time is not resolvable through consideration of change in the physical
world. But Augustine of course wants to go further than this. Understanding the relations between the
spoken word and time is supposed to reveal also the true nature of time itself” (Genevieve Llyod, Augustine
and the “problem” of time, pp. 39 e 55).
“I think there is a misunderstanding embodied in even raising the question ‘when?’ about an assertion of the
existence of a time, just as it would betray misunderstanding to raise the question ‘where?’ about an
assertion that a place exists. In the case of a ti me, to exist is, merely, to lie within time, as a part of time; and
that is something which times do timelessly. Therefore the eighteenth century does exist, but timelessly. It has to
be admitted also, secondly, that past and future are not literally hidden; and this fact does, I suspect, reveal a
genuine difference between spatial and temporal presence. […] So the past and the future are in hiding only
in the attenuated sense of being absent; but absence, not non-existence, is the true contradictory of being
present” (Christopher Kirwan, More meditations on time in Augustine: the arguments of the philosophers, p.
183).
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
AGOSTINHO, S. Confissões, tradução de Arnaldo do Espírito Santo,
João Beato e Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel, Lisboa:
Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira e Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 2001.
BANDEIRA, M. Estrela da vida inteira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1993. KIERKEGAARD,
S.
Le
concept
de
l’angoisse:
eclaircissement
psychologique préalable au problème du péché originel,
danois par
Knud Ferlov et Jean J. Gateau, Paris: Gallimard,
1935.
simple
traduit du
O conceito de angústia: apenas um esclarecimento
psico- lógico que antecede o problema do pecado original, tradução
brasileira de Torrieri Guimarães, São Paulo: Hemus, 1968.
KIRWAN, C. Augustine, in the series The arguments of the philosophers
edited by Ted Honderich, London and New York: Routledge, 1999.
LLOYD, G. Augustine and the “problem” of time, in The augustinian
tradition, edited by Gareth B. Matthews, Berkeley and Los Angeles:
University of California
Press,
1999.
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crivando com vigilius haufniensis