“Andar onde não quero” Sair da zona de conforto... Só pelo Amor! fernando lópez sj ([email protected]); arizete miranda cns-csa ([email protected]) graça gomes cf ([email protected]); equipe itinerante ([email protected]) Neste mês de Agosto/2013 agradecemos um ano mais pelo companheiro e amigo Cláudio Perani SJ no Vº aniversário de sua Itinerância Definitiva rumo à Casa do Pai (Bérgamo, Italia, *14/08/1932 a Manaus, Brasil, +08/08/2008). Também celebramos o XIIº Encontro Interinstitucional e os 15 anos de Vida em Missão da Equipe Itinerante (EI) (1998-2013). Cláudio foi o “pai” desta desafiante proposta missionária. A ele nossa gratidão e oração para que continue acompanhando, inspirando e animando esta pequena e frágil “canoa itinerante”, ao serviço da Amazônia e a partir da escuta próxima, respeitosa e solidária a seus povos, ali onde as feridas estão mais abertas e a vida mais ameaçada. Agradecemos de modo particular a Kiki Perani, irmã de sangue e companheira de sonhos e utopias, confidente e acompanhante espiritual do Cláudio (como ele mesmo dizia dela), por ter facilitado com tanta generosidade e carinho vários textos e notas do seu irmão da alma. 1. Muda, tudo muda! (“Cambia, todo cambia!”) O cantante chileno Julio Numhauser compôs em 1982 a canção “Todo cambia” (Tudo muda), logo depois de escapar de seu país devido à ditadura militar. A canção é um poema de validez universal que transmite com imagens de grande beleza suas emoções no exílio frente às contínuas mudanças. As mudanças são algo “natural” e, sobretudo, necessária na vida. Sempre dispostos a sair e caminhar, em contínua dinâmica de mudança, esperando – como canta Numhauser – que “o que mudou ontem, terá que mudar amanhã". A realidade continuamente muda, ainda que nós nunca estejamos completamente preparad@s para assumi-las. Os bispos latino-americanos em Aparecida (CELAM, Brasil/2007) nos animam a mudar e atravessar fronteiras: “Para não cairmos na armadilha de nos fechar em nós mesmos, devemos formar-nos como discípulos missionários sem fronteiras, dispostos a ir à outra margem” (DA 376). Kiki e Cláudio, 16/07/2008 1 O Papa e a Igreja têm mudado de modo significativo nestes últimos meses: Benedito XVI apresenta humildemente sua renúncia e Francisco, primeiro Papa Latino-Americano e Jesuíta, assume este serviço com gestos carinhosos, profundamente evangélicos e palavras simples que todo o mundo entende. Para Francisco as palavras caminho e caminhada são fundamentais. Quando se apresenta como “Bispo de Roma” no dia de sua eleição: “E agora, começamos este caminho: bispo e povo. Este caminho da Igreja de Roma, que é a que preside na caridade a todas as igrejas. Um caminho de fraternidade, de amor, de confiança entre nós” (Cidade de Vaticano, 13-03-2013). Em sua primeira homilia durante a celebração da Santa Missa pela Igreja, com os cardiais, insiste na ideia de movimento: “Nestas três leituras vejo algo em comum: o movimento. Na Primeira Leitura o movimento é o caminho; [...] Caminhar. Casa de Jacob: “Venham, caminhemos na luz do Senhor”. Esta é a primeira coisa que Deus disse a Abraão: “Caminha em minha presença e seja irrepreensível”. Caminhar: nossa vida é um caminho. Quando nos detemos, a coisa não funciona. Caminhar sempre, em presença do Senhor, à luz do Senhor, tratando de viver com aquele caráter irrepreensível que Deus pede a Abraão, em sua promessa” (Capela Sistina, 14-03-2013). Recentemente, na Jornada Mundial da Juventude (JMJ), na missa de envio (Rio de Janeiro, 28-072013) o Papa Francisco diz aos jovens: “Ide, sem medo, para servir”. E no encontro com @s voluntári@s: “Tenham a coragem de ‘ir contra a corrente’. E tenham também a coragem de serem felizes”. Cláudio acreditava profundamente nesta dinâmica do ir ao encontro, do caminho e da caminhada: “O que vale é a caminhada, pisar na terra, andar até na lama, chegar até os caminhos periféricos onde todo mundo passa... Alguém prefere só o asfalto, lugares centrais para poder rezar melhor e pensar nas coisas do céu... É espiritualidade do Evangelho?” 1 Por isso, Claudio sempre insistia com os membros da EI: “Andem pela Amazônia e escutem o que o povo fala. Participem da vida cotidiana do povo”. A EI é uma chamada contínua a sair, interna e geograficamente, pelos distintos caminhos, rios e estradas, pelos becos e as periferias urbanas, pelas trilhas da mata, inspirando-se no próprio Jesus que “andava por cidades e aldeias anunciando a Boa Noticia do Reino. Os discípulos e algumas mulheres o acompanhavam” (Lc 8,1s). A vida é mudança, caminho e caminhada, travessia e itinerância rumo à Casa do Pai - diríamos em perspectiva cristã. Em palavras do poeta Antonio Machado: “Caminhante não há caminho, se faz caminho ao andar”. É no caminho e na caminhada onde o Peregrino aparece; é nas estradas e nos rios onde a vida renasce e floresce, como nos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35). 2. Sair da zona de conforto Em seu retiro espiritual de 2005, Cláudio registrava em suas anotações: “Outro apelo de Jesus, agora que sou velho, é a disponibilidade de andar onde não quero. Sem preocupar-me. Só seguindo a Jesus. Segue-me! E peço disponibilidade para o momento quando aparecer a cruz.” 2 Porém, ele não só sentiu, mas viveu com radicalidade, até o final de sua travessia vital, essa moção espiritual que continuamente o questionava e impulsionava: “Minha preocupação deve considerar que ainda não consegui (por medo?) 1 2 Diário de Cláudio Perani SJ, anotações do dia 09/04/2002. Ibid. anotações de seus Exercícios Espirituais do ano 2005. 2 entrar em certos ambientes. Passo pela Rua da Cachoeira, mas não paro no bar das prostitutas, nem na casa da droga. Ai também são meus irmãos que sofrem. O que devem dizer quando vêem o padre passar? Jesus caminha com os discípulos de Emaús, anda com os homens. Volta à memória a dificuldade que eu tenho para andar em certos lugares da rua Cachoeira.”3 “Andar onde não quero” é o apelo do Senhor que move a Cláudio para sair, uma e outra vez, de sua zona de conforto. A zona de conforto é o espaço metafórico aonde a gente se encontra cômoda, num entorno que conhecemos e dominamos. Nela nos sentimos seguros, as coisas são familiares e conhecidas, resultando fácil lidar com elas, sejam elas agradáveis ou não. Manter-nos na nossa zona de conforto é repetir, ano trás ano, às mesmas coisas no trabalho, paróquia, pastoral, missão, família, grupo, associação ou comunidade... Fazer sempre o mesmo é manter-nos na nossa zona de conforto: manter os mesmos costumes e rotinas, habilidades e conhecimentos, comportamentos e atitudes, etc. É um espaço que conhecemos bem, nos sentimos seguros e por isso tendemos a instalar-nos e empobrecendo-nos. Jesus continuamente convidava seus seguidores a sair da zona de conforto: “Se alguém quer seguir-me, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,24); “As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Lc 9,58). Até numa oportunidade ”Logo em seguida, Jesus obrigou seus discípulos a entrar na barca e ir à frente, para o outro lado do mar” (Mt 14,22). Os obrigou a sair de sua zona de conforto, “da beira da praia”, onde se sentiam seguros. E com algumas pessoas mais próximas e íntimas, Jesus é ainda mais exigente, não deixa que elas se acomodem nem na própria frágil e pequena “barca”. No meio da tempestade Jesus pede a Pedro sair da barca e caminhar sobre a água até Ele. Pedro duvida e afunda, mas Jesus estende a mão assegurando-o (Mt 14,22-33). Sair da zona de conforto exige uma confiança radical em que Deus é fiel e nos espera sempre do outro lado e vai estender a mão no momento do aperreio. O seguimento de Jesus exige radicalidade, é um contínuo convite a sair da zona de conforto e a confiar na Providencia do Pai que cuida dos pássaros e das flores do campo, e de todos nós sempre (Lc 12,22-34). Claudio viveu até o último momento esta dinâmica de sair de sua zona de conforto. Combinava seus serviços institucionais de governo como Superior Regional dos Jesuítas da Amazônia (DIA) e as assessorias diversas como diretor do SARES4, com as visitas periódicas às favelas. Durante os anos que ficou em Manaus, desde o inicio (1996), Cláudio se fez amigo das famílias da Rua da Cachoeira e das comunidades adjacentes de palafitas Bodó e Jacaré, no igarapé Cachoeira Grande no bairro S. Jorge, próximas da sede do DIA, onde morava. “Levei um ano antes de me decidir a entrar nestes bairros. No fundo, prevalecia certo medo, provocado pela diferença social, e o fato de não saber o que fazer. A desculpa eram os outros compromissos. Dona Leonor me ajudou e com ela entrei no Bodó onde ela era bem conhecida e, depois, também no Jacaré, onde fazia tempo ninguém visitava, a não ser os crentes. [...] Essas visitas aos 3 bairros e às famílias continuam até hoje, sem a preocupação de ‘realizar’ algo. 3 Diário De Cláudio Perani SJ, anotações do dia 24-10-2001. Pe. Cláudio Perani SJ foi o primeiro Superior do Distrito dos Jesuitas da Amazônia (DIA), Manaus-AM, 1995-2000; Pároco de Marabá-PA 2001-2003; Diretor do Serviço de Ação, Reflexão e Educação Social (SARES), Manaus-AM, 2004-2007. 4 3 Parece-me importante uma presença, procurando apertar a mão, saudar, escutar, as vezes, aconselhar as pessoas que desejarem.”5 E todas as sextas feiras de manhã, quando Cláudio estava na cidade, ia à Catedral (no centro, junto ao porto), para escutar carinhosa e pacientemente às prostitut@s e bébad@s, mendíg@s e maloqueir@s que queriam desabafar, conversar, confessar ou orientação espiritual. O próprio Cláudio reflete sobre sua experiência de itinerância pelo “interior” destas pessoas: “Qual a atitude do confessor diante dessa riqueza de vida humana? O confessor, ele também é um pecador, um homem frágil, com seus complexos psicológicos. Essa fragilidade deve ser assumida, para poder compreender melhor a fragilidade dos outros. [...] Sintetizando com duas palavras evangélicas: como Jesus, o confessor ou orientador é aquele que aparece na vida de alguém dizendo: Não tenha medo. A paz esteja com você. A consolação que o confessor experimenta, habitualmente, é muito grande. A pessoa chega com o rosto triste e angustiado. Aos poucos ela se abre e sai conseguindo sorrir. Acontece, Também, algumas vezes, que alguém voltou simplesmente para agradecer a vida recebida. Lembrei-me do caso do leproso do Evangelho. Dá para experimentar o poder de Deus”.6 E uma das zonas de conforto mais difíceis de atravessar é aquela da eficácia. Todos queremos ser eficazes e produtivos, não perder o tempo na nossa vida... E nesta armadilha ficamos atrapalhados, longe do povo porque não compreendemos ainda a eficácia da presença gratuita. No artigo “Sobre as eficácias”, escrito por Cláudio para a revista do Centro de Estudos e Ação Social (Cadernos do CEAS) 7, ele analisa as diversas experiências libertadora ocorridas no país, organizando-as didaticamente em três: a) Aquelas nas que prevalece a eficácia econômica; b) Nas que o aspecto político e o de maior peso; c) E por último, nas que predomina a dimensão de presença. Avaliando cada uma delas no que diz respeito à eficácia, Cláudio defende a indispensável complementaridade da eficácia da presença junto às outras eficácias mais econômicas e políticas: “A história recente dos movimentos sociais no Brasil nos revela que muitos espaços e categorias vieram a ocupar o palco dos atores históricos a partir de presenças mais gratuitas. É através desta presença menos orientada para determinadas ações eficazes que podemos favorecer novos tipos de sociabilidade que integram melhor o econômico-político com o cultural, tradições com novidades, espaços e tempos”.8 Cláudio continuamente sentia um apelo profundo do Espírito a sair de sua zona de conforto e descer ao encontro com os pobres, excluídos e diferentes, a atravessar as margens, a sair até da “própria barca e caminhar sobre a água no meio da tempestade”, para se aproximar respeitosa e cuidadosamente, sem julgá-las, das pessoas que “afundavam na lama”, para estender-lhes uma mão amiga e o rosto amoroso e misericordioso de Deus. Nesta atitude cotidiana de vida, Cláudio afirmava que “o povo é mestre de 5 6 Cláudio Perani SJ, texto “Bodó e Jacaré, depois de um ano”, pp. 3-4, Manaus, Novembro/1997. Cláudio Perani: “Depoimento de um confessor – diante da riqueza da vida humana”, Manaus, 2000? 7 Cláudio Perani foi um dos fundadores do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) em 1967, e da revista de análise social “Cadernos do CEAS”, Salvador-BA, Brasil. 8 Entrevista de IHU a Iraneidson Costa, membro do CEAS, sobre Cláudio Perani SJ: “As classes populares mestres da caminhada”, em www.unisinos.br/ihu, 26/08/2008. 4 minha caminhada”.9 E junto a ele sentia uma profunda alegria e presença atuante do Reino de Deus: “Onde e como aparece o Reino de Deus em minha vida? Onde e como ajudo o Reino ao meu redor? Lembro alguns encontros/acontecimentos que, por se só, justificariam minha vida sacerdotal: o abraço carinhoso de Vanessa, menina surda-muda, toda vez que vou a casa dela; poder dizer a uma prostituta ‘eu lhe quero bem’ e ver a gratidão dela; o sorriso aliviado de várias pessoas depois da confissão; o sorriso das crianças, quando chego ao Jacaré (favela de palafitas, Manaus); a noticia do jornal falando que o padre anda com prostitutas e drogados; a criança do Jacaré que pergunta: ‘Por que o senhor não fica aqui conosco?’; o bêbado que me segue na rua no dia do Natal e diz: ‘Padre, eu sou um pecador!’; A Linda escreve: `Exemplos sem palavras!’ Suas palavras só hoje compreendo”.10 3. Equipe Itinerante: Missão à intempérie Afirma o poeta José Luis Gallero11:“Todos os lugares onde se apreende estão à intempérie” , fora da zona de conforto! A EI é uma proposta de vida e missão à intempérie, “desconfortável” e, por isso, um exigente lugar de aprendizado. Cláudio viveu à intempérie. Esse mesmo espírito de sair à intempérie, da zona de conforto, para deixar-se tocar e ouvir o que o povo fala, Cláudio tentou transmiti-lo em todos os serviços e assessorias aos grupos, comunidades e instituições que acompanhou ao longo de sua vida. De modo particular tratou de semear este espírito desconcertante e “desconfortante” na EI. Sua proposta missionária è muito exigente. A EI vive uma constante e sadia tensão espiritual que a obriga continuamente a desinstalar-se e sair de si mesmo, da acomodação e dos espaços conhecidos, de segurança pessoal e institucional, da zona de conforto, para ir ao outro lado da fronteira, ao encontro do outro diferente, só confiando na Providência do Pai. “Sem me preocupar. Somente seguindo Jesus” - nas palavras do Cláudio. Os componentes que caracterizam o projeto da EI obrigam a sair da zona de conforto: itinerância e inserção, interfronteiriço, intercongregacionalidade e interinstitucionalidade, espiritualidade à intempérie, etc. Estes componentes juntos, num mesmo projeto, fazem muito exigente a proposta. a) A itinerância da EI é compreendida como um serviço complementário aos serviços mais institucionais e inseridos da missão. Estes três serviços podem também acomodar-se e cair na zona de conforto quando ficam cada um deles fechado sobre si mesmo, buscando só sobreviver e se reproduzir a si mesma de modo isolado. Cada um destes serviços rompe e sai de sua zona de conforto quando está disposto a se articular com os outros dois serviços complementários. Os serviços institucionais, de inserção e itinerantes saem respectivamente de sua zona de conforto, na medida em que se deixam afetar por uma das outras duas dimensões... Uma inserção que não permite ser questionada pela instituição ou a itinerância fica fechada na sua zona de conforto. Uma instituição que não se deixa confrontar pela inserção e a itinerância, vive só para si e está morta. E uma itinerância solta, que não se articula com os espaços mais institucionais e de inserção também fica acomodada em sua canoa, a 9 10 11 Ibid. Diário de Cláudio Perani SJ, notas no dia da Festa de Cristo Rei, 1998. José Luis Gallero (Barcelona, 1954), poeta, editor e crítico de arte. Em “Prédicas”, 2005. 5 deriva do vento, na sua zona de conforto, sem sair a “caminhar sobre as águas”. A itinerância pode cair na zona de conforto quando ela não se compreende como um serviço complementário aos serviços mais institucionalizados e inseridos. Uma itinerância desconectada e sem articulação com esses outros serviços é uma itinerância confortável. De igual forma as instituições caem em sua zona de conforto quando cortam sua articulação com os pobres e as equipes mais inseridas que trabalham junto a eles. E também uma equipe inserida que não se articula com serviços mais institucionais e itinerantes fica acomodada na sua zona de conforto. É fundamental que esses três serviços à missão interajam entre si, saindo cada um deles de sua área de conforto e entrando em relação recíproca de intercâmbio e articulação com os outros dois. Só assim poderão fecundar-se entre eles (instituição-inserçãoitinerância) e gerar vida nas fronteiras, onde as feridas estão mais abertas. Essa perspectiva de articulação do serviço itinerante já a explicitava Cláudio na primeira formulação do “Projeto de Itinerância” (1996): “Inspirado na mobilidade dos primeiros jesuítas, consiste na formação de uma equipe residente em Manaus com o objetivo de visitar periodicamente as comunidades do interior amazonense, para conhecer, passar informações, apoiar, animar, avaliar... o trabalho local, confirmando na fé os irmãos e as irmãs das comunidades. Seria um trabalho mais social ou mais religioso, a depender das necessidades e da preparação dos jesuítas, organizado de acordo com os bispos locais. Trata-se, também, de fazer a ponte com entidades e intelectuais da cidade, para descoberta de novos caminhos em favor do campo e da cidade, do ponto de vista pastoral e sociopolítico. O objetivo é ainda vago, mas só poderá se concretizar a partir das solicitações recebidas e da criatividade dos jesuítas da equipe”. 12 Por outro lado, a itinerância nos obriga continuamente a sair de nosso espaço conhecido de conforto e ir ao encontro do outro diferente, a entrar no espaço dele, que ele domina, a depender dos outros em algumas coisas importantes e a pôr toda nossa confiança no Outro. Essa dependência d@s outr@s é forte e exigente na experiência da EI, nos desinstala profundamente e nos ajuda a sair de nós mesmos. b) A inserção da EI se dá em articulação com a itinerância e isso já produz certo desconforto, pois na concepção tradicional itinerância e inserção são conceitos e práticas contrapostas. Duas dinâmicas concretas de inserção há na EI: 1. As “comunidades itinerantes” onde moram os membros da equipe estão situadas em realidades pobres, tentando manter um estilo de vida e moradia o mais próxima possível das famílias vizinhas. Morar na comunidade itinerante inserida é uma opção livre para os membros da EI. 2. Por outro lado, o estilo de missão é inserido, no sentido de que se presta um serviço ”de comunidade em comunidade”, escutando o povo e participando, dentro do possível, de sua vida cotidiana. Para poder aproximar-se ao modo de vida do povo, a EI, por opção, não tem mobilidade própria (carro, barco, aviãozinho, etc.). Também quando chega às comunidades fica a dormir nas casas das famílias, se 12 Claudio Perani SJ, texto: “Avaliando o DIA”, Agosto/1996. A 1ª Assembleia do DIA foi em Janeiro/1996 e nela foi sugerida a primeira ideia do projeto da Equipe Itinerante. O DIA nasceu apenas um ano antes, em Maio/1995. 6 alimenta com o que eles oferecem, vai pescar, caçar e na roça com as pessoas da comunidade. Alem das oficinas e serviços diversos que a EI possa prestar, sempre procura participar das tarefas e trabalhos do dia a dia da comunidade e das famílias onde ficam. Sempre tentando respeitar o principio de complementaridade e reciprocidade que entre eles vivem. A EI deve ficar “dependente” da comunidade em algumas coisas (comer, dormir, transporte, idas e vindas, etc.) como resposta recíproca a seu serviço (visitas, presença e escuta, formação e apoio, acompanhamento e assessoria, etc.). A dinâmica de inserção, de descida aos margens é um continuo processo de questionamento pessoal, grupal e institucional, de desinstalação e saída da própria zona de conforto. c) A intercongregacionalidade e interinstitucionalidade são também rupturas de nossa zona de conforto. É mais cômodo ficar dentro de “casa“ (congregação ou instituição, comunidade própria), trabalhando desde nossos próprios critérios e carismas sem ter que negociar com ninguém, nem ter que dar conta a outros diferentes. A intercongregacionalidade e interinstitucionalidade na missão são não só uma necessidade missionária para enfrentar os grandes desafios da realidade, que sozinhos não podemos enfrentar, mas sobretudo uma oportunidade de nos viver mais trinitariamente, relacionais, saindo da própria acomodação institucional, da zona de conforto onde nos sentimos seguros e cômodos. É na alteridade que nos fazemos fecund@s, na relação teologal-trinitária que nos fecundamos mutuamente, a imagem e semelhança de Deus comunidade, unidade na diversidade. d) A perspectiva interfronteiriça, territorial e geopolítica que desenvolve a EI é também uma contínua saída da zona de conforto. É mais seguro e mais cômodo ficar dentro das próprias fronteiras culturais, linguísticas, simbólicas ou geográficas. Sair ao terreno desconhecido, onde outra pessoa diferente e desconhecida é quem controla e conhece o terreno (e não eu!), é desconfortável e gera muita insegurança. Ter que me expressar numa língua que não domino da insegurança, entrar em outros códigos culturais nos faz sentir que estamos “caminhando sobre a água”... Pois essa perspectiva de atravessar as fronteiras geográficas e simbólicas nos dois sentidos, é um componente fundamental do projeto da EI, que nos faz sair da zona de acomodação na que nos sentimos seguros. e) A espiritualidade itinerante é uma espiritualidade a “intempérie” no sentido que a pessoa fica “nua”, sem muitas estruturas externas nas que apoiar-se. E toda itinerância geográfica leva consigo associada uma itinerância interior mais exigente ainda. No meio das itinerâncias, no isolamento comunicacional, na inserção noutros mundos culturais onde não se controlam nem a língua nem os modos relacionais, no meio dos rios e da selva, dos conflitos e tensões aos que são submetidos os povos das florestas e das periferias urbanas, no meio da imensa Amazônia o que sustenta é a estrutura espiritual e pessoal, as convicções internas, a estreita relação grupal de amizade e o apoio do povo. As estruturas externas com as que se contam na vida em missão da EI são muito limitadas e por isso a maturidade e estrutura pessoal são fundamentais. Por outro lado, a missão da EI nos desinstala e desafia a estar: com quem 7 ninguém quer estar; onde ninguém quer estar; e como ninguém quer estar. Essa dinâmica é muito exigente e nos convida a viver profundamente confiantes na Providencia do Pai. Cada um destes componentes do projeto da EI (Itinerância, Inserção, Interinstitucionalidade, Interfronteiriço e Espiritualidade à Intempérie) é, em si mesma, muito exigente. Muito mais se eles estão combinados num mesmo projeto. O próprio Cláudio já intuía em 1997 (um ano antes de iniciar a experiência) essa exigência: “A pouca experiência de itinerância, realizada até hoje, mostram a fecundidade deste tipo de trabalho, que vai ao encontro das expectativas de muitos agentes de pastoral. Além disto, há uma busca constante de muitos bispos. Não será fácil constituir esta equipe, porque se trata de um trabalho difícil, não tanto pela preparação teórica do jesuíta, mas pelas condições de vida, pela necessidade duma grande capacidade de escuta e pela renúncia a criar uma comunidade fixa ‘própria’. Contamos com a generosidade dos jovens”.13 4. O Amor permanece e nos transforma! A última estrofe da canção “Tudo muda” (Todo Cambia), de Julho Numhauser, afirma que o amor não muda, é o único que permanece: “Porém, não muda meu amor, por mais longe que me encontre nem a lembrança, nem a dor de meu povo e da minha gente”. Cláudio também recolhe nos apontamentos finais de seus exercícios espirituais de 2005 que o amor é o essencial: “Termino os Exercícios Espirituais com a meditação de Jo 21. Na intimidade consoladora de Jesus! ‘Cláudio, tu me amas?’ É claro! Porém, permanece sempre um pouco de tristeza, pois o meu amor é fraco e limitado. Mas Jesus faz a parte dele.” 14 Sair da zona de conforto não é fruto do voluntarismo, dum processo de cobrança e exigência pessoal, grupal ou institucional. O esforço sempre é necessário, porém é a partir da experiência profunda do amor que a vida se transforma e doa, se entrega em serviço até as últimas consequências, alémfronteiras geográficas ou simbólicas. Só a partir da experiência profunda e entranhada do Amor de Deus nos pobres, excluídos e diferentes se provoca o milagre da conversão da vida para mais amar e servir. E Cláudio nos lembra em suas anotações pessoais que si nós amamos é porque Deus nos amou primeiro (1Jo 4,19): “Minha oração vai na direção de dizer: Pai, te amo, quero amar-te sempre mais. Jesus, meu amigo que possa aumentar minha amizade... Talvez possa modificar um pouco ou radicalmente? Porém a perspectiva é que assim eu fico sempre no centro. Não seria melhor pedir: Pai que possa reconhecer sempre mais teu amor, tua misericórdia; Jesus fazei que ame sempre mais os meus irmãos, meu próximo!”15 E rezando sobre o texto de Jo 1,1-18, Cláudio registrava: “O Verbo que é Deus é minha vida, minha luz. Ele me envolve plenamente. Lembro-me o propósito – um tanto esquecido – de não pedir de amar a Deus, mas de deixar-me invadir pelo amor de Jesus para poder amar sempre mais meu próximo.” 16 13 Cláudio Perani SJ, texto apresentado na Consulta Ampliada da Provincia de Bahia: “La missione dei gesuiti nell’Amazzonia”, p. 4, Agosto-Setembro/1997. Original em italiano. 14 Diário de Cláudio Perani SJ, anotações de seus Exercícios Espirituais do ano 2005. 15 Diário de Cláudio Perani SJ, anotações do dia 24/10/2001. 16 Ibid. 8 Há pessoas que vivem abertas e apaixonadas pelo Amor e por isso sempre estão buscando como sair de sua área de conforto... Cláudio foi uma delas. Sempre sonhando com os olhos bem abertos e os pés no chão, sempre atento, não distraído, como um místico com olhos bem abertos, buscando como atravessar as fronteiras da injustiça socioambiental nos dois sentidos. Ainda que isto leve muitas vezes incompreensão e certa solidão, como a carregam os profetas de todos os tempos... Como que a carregou também o próprio Jesus... Os profetas são sempre empurrados a sair de sua área de conforto e deixar-se surpreender por Deus nas fronteiras, nas áreas de “desconforto”. Essa é sua atitude fundamental de vida: Estar atento e confiante, atravessar as fronteiras e deixar-se surpreender pela novidade de Deus no outro lado. Como lembra o profeta Dom Helder Câmara: “Aceita as surpresas que transtornam teus planos, derrubam teu sonhos, dão rumo totalmente diverso ao teu dia e, quem sabe, a tua vida. Não há acaso. Dá liberdade ao Pai, para que Ele mesmo conduza a trama de teus dias”. Assim o expressava também Cláudio nas últimas três anotações de seu diário dois meses antes de sua partida rumo à casa do Pai: “Estou para ser oferecido em sacrifício; aproxima-se o momento de minha despedida; combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé. Agora esta reservada para mim a coroa da justiça. São meus sentimentos. Só que não sei quando será a despedida: Daqui a 3 meses? Daqui a 2 anos? Daqui a 10 anos? Isso está nas mãos de Deus que olha com carinho minha situação.” 17 “Nesta situação de doente da para rever a própria vida: frutos e desvios. Se tivesse que resumir minha missão, vieram providencialmente as palavras de Jesus na missa dominical de hoje: ‘Escondestes estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos’. Identifico-me com essa afirmação de Jesus. Tentei aprofundá-la e vivenciá-la sempre mais e confesso que há muito caminho a percorrer.” 18 “Esta doença favorece um clima ideal para compreender sempre mais a vida e o projeto de Deus. Tenho mais facilidade em compreender estas afirmações da Escritura, sobretudo o rosto de justiça e misericórdia de Deus. Cartas e presença de muitos amigos são sinais... Isto consola e fortalece. Essa facilidade é um dom de Deus.” 19 Cláudio, “waku sese!” Muchas gracias! (em língua Sateré-Mawe,) 17 18 19 Ibid. anotações do dia 01/06/2008 Ibid. anotações do dia 20/07/2008. Ibid. anotações do dia 21/07/2008. 9