GRAMATICOGRAFIA DA LÍNGUA PORTUGUESA – REFLEXÕES LUSÓFONAS Neusa Maria Oliveira Barbosa BASTOS (IP-PUC/SP – UPM) Nancy dos Santos CASAGRANDE (IP-PUC/SP) Temos por objetivo refletir sobre um tempo, um lugar, sujeitos produtores, fatores gerais que corroboram com o surgimento de uma obra, buscando, para tanto, os princípios teórico-metodológicos da Historiografia Lingüística, por meio de enfoques koernianos. Para desenvolvermos este trabalho, apoiamo-nos na análise do discurso do gramático no que tange ao segundo princípio koerniano - imanência da obra em seu contexto sócio cultural lusófono, permeado pelas políticas pedalingüísticas e pela ideologia vigente, primeiro princípio koerniano. Com vistas à busca das condições de produção na proposta de ensino de língua portuguesa no século XVIII apresentada na obra “Reflexões sobre a língua portuguesa” de Francisco José Freire, tomá-lo-emos como sujeito na produção do discurso no qual assume uma posição didática que, no decorrer da pesquisa, deverá vir a ser confrontada com as propostas didático-pedagógicas para o ensino do português hoje, numa perspectiva de preenchermos a adequação, terceiro princípio koerniano. Considerando que o estudo das condições de produção do discurso possibilita o estabelecimento das representações sociais de uma época e que o desvelamento da posição do sujeito no processo discursivo revela a formação ideológica que determina seu papel na sociedade, buscaremos tal sujeito em sua constituição e identificação na formação discursiva, reconhecendo-se em sua relação consigo mesmo e com os outros sujeitos (EU e TU) e produzindo os efeitos de sentido. Portanto, o conceito de discurso, aqui, deve ser entendido como uma prática: efeito de sentidos entre locutores num determinado contexto. Segundo Pêcheux (1969, ??) “é necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estudo definido das condições de produção.” Um sujeito-autor tem uma vocação totalizante que acaba por estabelecer uma relação de dominância de uma formação discursiva sobre as outras na constituição do texto. Essa efeito ideológico de dominância procuraremos estudar na construção do texto de Freire, como uma unidade que se constitui de um concerto de várias vozes , assumindo papéis diferentes. Do ponto de vista histórico, sabemos que a história tem sempre o seu lugar em todas as áreas do conhecimento humano, isto porque o homem é um ser histórico por excelência, marcado histórico-ideologicamente e ávido por desvendar mistérios relativos ao seu passado. Sabemos, ainda, que permeando a História da Língua, temos a da Gramática, sistematizadora dos atos lingüísticos de momentos sincronicamente diversos, que traçam a diacronia gramatical. Paralelamente a esse objetivo de sistematização lingüística, percebemos um objetivo didático-pedagógico e, ainda, um objetivo político, em todas as obras gramaticais, visando ao ensino da língua portuguesa aos próprios portugueses e àqueles que foram conquistados por eles. O ensino de língua portuguesa, foco de nosso trabalho, passa a ser ministrado na ocasião em que surge a primeira gramática portuguesa que teve o seu berço na Gramática Latina que, por sua vez, baseou-se na Grega. Por esta razão, encontramos em Roma uma sistematização, com objetivos didáticos, do latim, de acordo com os moldes gregos. Na Grécia antiga, o surgimento da gramática teve um objetivo claramente didático, pois Dionísio da Trácia elaborou-a com a finalidade de fortalecimento do ensino/aprendizagem da língua grega para os próprios gregos, uma vez que ocorria, na época, influências estrangeiras que, na visão de mundo dos gregos, estavam a corromper a sua língua clássica incorrupta. Tal normativização, por ocasião da invasão romana na Grécia, chega às mãos de Varrão, primeiro gramático latino, que faz as adaptações necessárias para o Latim que passa a ser uma língua também sistematizada. Os objetivos da Gramática Latina, além de serem também didáticos, apresentavam-se com um caráter político bastante acentuado, pois os romanos estavam se assenhorando do mundo, através de suas conquistas que eram efetivadas com base em duas grandes metas: serviço militar obrigatório e ensino do Latim, sempre como língua oficial. Dessa forma, obrigavam os seus dominados a se engajarem em seus hábitos, costumes e cultura. Tendo como meta o uso obrigatório do Latim pelos povos conquistados, sentiram a necessidade de sistematização de sua língua para que pudessem dominar não só pela força mas também pela cultura que era imposta por eles. Assim, baseando-se no modelo grego, fazem as devidas alterações, produzindo a sua própria gramática. Essa gramática de uma língua sintética, como o Latim, era composta, numa visão geral, pelas seguintes partes: Ortografia, Sílaba, Etimologia, Dicção, Sintaxe, as mesmas que permanecem na gramática de uma língua analítica, o Português. Surgida séculos depois por ocasião das conquistas ultramarinas, tal gramática revela o mesmo papel didáticopolítico constante nas gramáticas “romanas”. Portugal passa por um apogeu econômico e, através das viagens marítimas, se apossa de terras sul-americanas, africanas e asiáticas e, assim como os romanos, os portugueses tiveram a mesma postura: dominar também pela língua. Nos dizeres de Fernão d’Oliveira, primeiro anotador da língua portuguesa: “quando senhoreavam o Mundo mandaram a todas as gentes a eles sujeitas aprender suas línguas”. João de Barros, primeiro gramático da língua portuguesa, com este espírito, elabora a primeira sistematização do português, calcado na Gramática Latina, sem observar o analitismo já presente na língua do século XVI. Elabora ainda Cartinha para ensinar leer, com intuito de , em primeiro lugar, educar os nobres, ensinando-lhes a sua língua materna, e, em segundo lugar, passar a língua do dominador ao dominado. Este papel político, imprimido também pelo povo português à gramática, perdura até os nossos dias, pois o gramático continua sendo parte do aparelho ideológico do Estado, responsável pela manutenção de uma elite cultural que preserva os seus direitos através do domínio lingüístico, inibindo os que não têm acesso à cultura e manipulando-os a seu bel prazer. Já, no século XVII, Amaro de Reboredo desponta como o mais representativo gramático português, por imprimir à sua obra um caráter pragmático não observado até então. A preocupação revelada por Reboredo no que diz respeito a facilitar o ensino/aprendizagem de língua, encarando tal procedimento como fator determinante para e eficácia do processo, leva-nos a considerá-lo como um nome importante dentro da História da Gramática Portuguesa. Estando também cooptado ao sistema da época, Reboredo não se furta ao seu papel político de contribuir para a preservação da Língua Portuguesa e para a continuidade do processo colonizador/colonizado que ocorria entre a Metrópole e suas colônias. Sua obra não se distancia muito da de seus antecessores, pois há um enfoque maior para a morfologia e a etimologia, menor para a ortografia e quase nulo para a sintaxe que se restringia à “construiçãm e regimento”, sem que haja um aprofundamento de tais aspectos. O estudo de seus textos nos propicia várias leituras, dependendo do enfoque que pretendemos dar. Partindo de uma análise formal da gramática, podemos considerá-la ainda dentro da fase: Gramática Portuguesa e Gramática Latina (Genouvrier & Peytard, 1974) em que se fazia uma gramática da palavra sem se dar importância ao texto. No entanto, há que se considerar que Reboredo já vislumbrava uma gramática da frase, pois sua atenção estava voltada à memorização no aprendizado da Língua Portuguesa, feita através de frases e não através de palavras isoladas, o que, para ele, causava resistência por parte dos estudantes, uma vez que, distantes do contexto, as palavras não faziam sentido e, inseridas nele, elas seriam mais fácil e agradavelmente memorizadas; principalmente, por estarem organizadas em frases cujo sentido dizia respeito à vida dos portugueses na época: “Da Virtude e do Vício Comum”; Da Prudência, e Imprudência”; “Das Ações Humanas”; “De Cousas Artificiaes”; etc. Tais títulos se referem às centúrias, grupos de cem frases abrangendo vários assuntos. Já no século XVIII, entre os estudos gramaticais foram privilegiados os ortográficos que herdaram as contradições ortográficas dos séculos anteriores que, de acordo com Pinto (1988, 15), foram “geradas por múltiplas causas: a primeira, de natureza teórica, foi a indecisão do ortografista, ‘dividido entre a tradição ou o costume ortográfico, a etimologia (revalorizada pelo culto das letras e das tradições clássicas) e as realidades fonéticas da língua, que presenciava e procurava não ignorar’ (Buescu 1984, 152). E, na prática, a insegurança e capricho dos copistas, do período anterior à imprensa, e dos escritores, em geral, como sabemos por observação direta dos textos, confirmada pela opinião de autoridades reconhecidas. É, por exemplo, o que lemos em Verney: ‘pois da falta desta doutrina (a da Ortografia Portuguesa) nasce que, em toda a sua vida, escrevam mal, e , ainda depois de estarem em lugares de letras, é lástima ver como muitos escrevem’ (Buescu 1984, 45)”. Surgem, nesse século, obras importantes, como a de Francisco José Freire, o Cândido Lusitano, Reflexões sobre a língua portuguesa que trouxe, além das questões ortográficas, valiosos subsídios para o conhecimento do léxico vivo. É essa obra, o objeto de nossa investigação, sem nos esquecermos de que a mesma foi produzida num determinado momento histórico em que o autor estava inserido e inscrito em estratégias de interlocução, em posições sociais ou em conjunturas históricas que propiciaram o aparecimento dessa obra. Neste momento, enfocaremos o prefácio da segunda edição da obra supra-mencionada, produzida no século XVIII e publicada somente no século XIX. Nas primeiras considerações inscritas no “Prefação da Presente Edição”, a voz da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis de Lisboa se refere “à linguagem e ao entendimento” como sendo “dous irmãos gêmeos”(p.V), revelando a sua crença na ligação intrínseca entre a linguagem e o pensamento. Atribui-se grande importância à história da civilização de um povo, como sendo a história de seu progresso intelectual que se dá através da linguagem. Assim, na manifestação discursiva existem mecanismos de toda formação social com suas regras de projeção estabelecedoras da relação entre as situações concretas e as representações dessas situações. É o lugar das representações sociais constitutivas da significação discursiva: expressam-se os pensamentos em lugares adequados através da linguagem adequada. Delimitam-se, em seguida, os estudos para as fases da cultura intelectual do povo português, do qual é representante, fazendo parte da classe dominante e revelando coopção ao Estado, buscando enobrecê-lo também através da língua portuguesa. Dessa forma, a representação social do locutor enquanto porta-voz do alocutário na manifestação discursiva, nesse contexto determinado, nos leva às condições de produção. Isto é, um sujeito-falante ocupa o lugar de dominante na sociedade, assim como o sujeitoouvinte, ambos fazendo parte da significação, ocupando lugares que são o espaço das representações sociais, estabelecendo relações de sentido com outros discursos e apontando para outros discursos. Em seqüência, distinguem-se, na Língua Portuguesa, três fases: a primeira - idade anteclássica - desde a origem até a formação de um “sistema completo, unido, e distincto de outro qualquer, ainda que derivado da mesma raiz”(p.V) momento em que assume a Língua Portuguesa como uma língua estruturada, sistematizada, característica de um povo civilizado, evoluído: o povo português do qual a Sociedade faz parte. A segunda - idade clássica - “período em que o systema da linguagem começou a desbastar-se, e a pulir-se, até se tornar elegante, flexível, e apta para todos os gêneros de escrever, isto é, para exprimir com propriedade e energia as mais delicadas concepções do entendimento”(p.V), período que vai desde 1500 até 1625 aproximadamente. Percebese aqui a intenção de fazer-saber que a Língua Portuguesa é aquela que preenche todos oe requisitos para que uma língua seja considerada perfeita, apresentando-se eficaz em sua verbalização tanto no que diz respeito à beleza quanto à adequação e revelando-se apropriada a toda a qualquer manifestação da pensamento do homem. A terceira é a época em que a “língua degenerou daquela pureza e elegância da iadade anterior, ou por nella se admittirem sem discernimento vozes estranhas, ou por se applicar a exprimir pensamentos intrincados, mal definidos, e deduzidos contra regras da recta razão.”(p.V). Dessas assertivas, depreende-se que as influências externas são sentidas e a Língua Portuguesa sofre alterações que interferem na sua “pureza”, impetrando transformações na fixidez de uso reinante no período. Menciona-se, ainda, uma quarta idade de restauração que seria a retomada dos padrões rígidos, o que nos revela uma preocupação com a perpetuação de uma língua pura sem alterações, que pudesse se firmar perante o mundo inteiro. É mencionado o descaso que já se dava, na época, aos documentos históricos dos séculos XII, XIII e XIV que jaziam escondidos e ignorados nos arquivos, cartórios e bibliotecas empoeiradas. No entanto, a época clássica, idade quinhentista, é alvo dos estudos de Francisco José Freire, o que se entende como natural, por ter sido o período do apogeu político e econômico de Portugal, momento em que floresceram obras artísticas significativas para a glória da nação portuguesa. Luta-se, portanto, contra o abusivo uso de “methaforas atrevidas, e despropositadas, antitheses, equivocos, e trocadilhos”(p.VI), prática constante no século XVII por influência espanhola, e evitada e refutada no século XVIII, momento em que Portugal precisa se firmar lingüística e politicamente para buscar novamente um salto qualitativo valorizador da sua pátria e da sua gente lusitana. É nessa luta que se engaja Francisco José Freire, o Cândido Lusitano, objetivando a “plantação do bom gosto” assentada no seguinte argumento que vai ao encontro de sua posição junto à classe dominante preservadora da moral e dos bons costumes, bem como do bom uso das belas letras: “...é doutrina corrente que as regras não criam o gênio: mas ao mesmo tempo bom é não esquecer que com ellas se lhe podem corrigir os erros, e embargar o passo a seus extravios.”(p.VIII) Portanto, temos um sujeito inserido numa determinada classe social com uma visão de mundo, sendo essa a sua formação ideológica (FI) à qual corresponde sempre uma formação discursiva (FD) que materializa essa visão de mundo. Para Foucault (1969, 153), as formações discursivas são “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiu em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa”, podendo-se afirmar que as FDs determinam o que dizer, assim como as FIs impõem o que pensar, pois o indivíduo é “assujeitado” pelo discurso já que este reflete, em sua instância enunciativa, as marcas ideológicas que se refletem nas FDs, constituindo diferentes efeitos de sentido entre os locutores. Dessa forma, obtemos o ser legislador, marcado sócio-historicamente por suas formações ideológicas e discursivas, criando e preservando regras para o bem escrever e para o bem falar, mostra a sua coopção ao Estado e sua preocupação com a gramática normativa, elaborando um instrumento capaz de melhorar, através de bons exemplos de autores de prestígio, o estudo das “patrias lettras”(p.IX) com sua obra didática e crítica. BIBLIOGRAFIA BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo. HUCITEC, 1992. BASTOS, N. B. (org.) Língua Portuguesa em calidoscópio. São Paulo, EDUC, 2004 BASTOS, N. B. (org.) História entrelaçada: a construção de gramáticas e o ensino da Língua Portuguesa do século XVCI ao XIX. Lucerna, Rio de Janeiro, 2004 CARVALHO, L. R. de. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo, Saraiva, Editora da USP, 1978. COURTINE, J. 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