ESPORTE NA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE: DA MECANIZAÇÃO DO
GESTO À CONSCIÊNCIA CRÍTICA. E DEPOIS?
Prof Nilton José Farias
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RESUMO
O presente texto tem por objetivo refletir sobre o esporte e a iniciação
esportiva na escola pública do Estado do Paraná tendo como parâmetro
duas principais concepções que norteiam a educação física escolar: o
tecnicismo e a concepção histórico-crítica. O texto está organizado em
duas sessões. A primeira apresenta a trajetória da educação física
situando o aparecimento das concepções tecnicista e histórico-crítica e
suas influências no Curriculo Básico e
Diretrizes Curriculares de
Educação Física do Estado do Paraná, objetivando analisar o espaço
destinado ao esporte como conteúdo das aulas de educação física nas
escolas públicas. A segunda parte destaca as leis que estabelecem a
legalidade da educação física como componente curricular e o direito de
crianças e adolescentes ao esporte; vincula-se também à esta seção,
reflexões sobre o esporte e iniciação esportiva na escola de acordo com
as concepções de educação física.
1. O cenário das concepções da educação física
Temos que deixar claro que se queremos discutir o espaço do
esporte, na escola, estaremos discutindo também a educação física como
componente curricular (CAPARROZ, 2001).
A educação física tem se modificado, ao menos em teoria, ao longo
de sua história. Suas concepções e tendências tem influenciado a
formação profissional e determinado conceitos subjacentes à prática
pedagógica dos professores nas escolas. A compreensão e apreensão
destas concepções é importante pois os seus pressupostos determinam as
condutas pedagógicas, o papel do professor e seu conceito de aluno,
educação, avaliação, metodologia, função da escola, homem e sociedade.
A análise histórica das concepções da educação física extrapola o
marco temporal do seu aparecimento posto que foram gestadas em
períodos anteriores, sendo também impossível dissocia-las do quadro
político e das concepções de educação vigentes num determinado período
histórico. A educação física no Brasil inicia-se com a criação da Escola
Militar, em 1810, e considera-se que a sua introdução se deu oficialmente
na escola somente em 1851 através da reforma Couto Ferraz pois, a
reforma feita por Rui Barbosa em 1882 recomendando a ginástica para as
Escolas Normais atingiu apenas parte do Rio de Janeiro e as escolas
militares (DARIDO e NETO, 2005). Na sua trajetória a educação física
passou por diversas modificações quanto à sua função e objetivos. No
século XIX, sob a influência da ordem positivista e médica, à educação
física de caráter higienista impunha-se a função de criar corpos robustos
e saudáveis. Em 1937, lhe era dado o papel de adestrar fisicamente os
indivíduos com o objetivo de prepará-los para a defesa da nação. No
regime militar, em 1971, é aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, Lei no 5.692/71, que colocou o esporte como principal conteúdo
da educação física sob a égide política do desenvolvimento e segurança
do país (CASTELLANI FILHO, 1994). Este período da história brasileira
marcou profundamente a educação física sendo, ainda hoje, possível
observar sua presença nos espaços escolares influenciando a prática
pedagógica.
Entretanto, apesar de alguns autores (CASTELLANI FILHO, 1994;
GUIRALDELLI Jr, 1988) apontarem que o tecnicismo e a esportivização
teve seu início na década de 70, substituindo-se o lúdico pela
exacerbação do gesto técnico (BRACHT, 1992), não se pode imputar ao
regime militar a concepção mecanicista dada à educação física, uma vez
que
a própria educação física foi marcada desde sua gênese por uma
função utilitarista, fruto de suas raízes européias sobre a qual se
fundamentaram (TABORDA DE OLIVEIRA, 2001; SOARES, 2001).
Um primeiro questionamento que poderíamos fazer sobre o
mecanicismo
da
educação
física
é sobre
a
passividade de seus
profissionais em relação a esta concepção. Uma visão muito difundida,
mas questionável, é justamente a não resistência por parte dos
professores em relação ao conteúdo esportivista da educação física.
Somos frequentemente levados a pensar que a educação física tinha um
único discurso e que todos os professores eram unânimes em admitir a
pedagogia tecnicista. Na década de 70, mesmo com a legislação impondo
a conduta baseada principalmente, mas não exclusivamente no esporte, o
que se observa, de acordo com Taborda de Oliveira (2004), é que havia
também a preocupação em discutir os benefícios da educação física
através do debate acadêmico. Nos textos da Revista Brasileira de
Educação Física e Desportos (RBEFD), voz oficial da Secretaria de
Educação Física e Desportos do Ministério da Educação e Cultura, e que
circulou entre 1968 e 1984, instrumento utilizado por Taborda de Oliveira
(2001) para seu estudo,
havia a preocupação com o lazer, com a
desumanização da sociedade, com a educação integral da criança e com
uma fundamentação para a educação física. A própria Revista trazia
“alternativas de práticas pedagógicas para a Educação Física no interior
da escola”, como a dança, o jogo e o excursionismo (p. 21). Desta forma,
pensar nos professores como meros tarefeiros do Sistema é um engodo.
Existia, sim, uma tendência pragmática, que defendia o esporte de alto
nível vinculado à educação física, e uma tendência dogmática, que
concebia o esporte como meio da educação física, conceitos utilizados por
Manoel
Gomes
Tubino
em
artigo
entitulado
“As
Tendências
Internacionais de Educação Física”, publicada no número 26 da RBEFD
(TABORDA DE OLIVEIRA, 2004, p. 76). Um fator que contribuiu para a
afirmação desta tendência foi a produção acadêmica voltada para a
biomecânica e fisiologia, que se deu através de intercâmbios que
possibilitaram estudos de mestrado e doutorado, principalmente nos
Estados Unidos. Assim prevaleceu na educação física brasileira a
tendência pragmática sem, contudo, não existirem “conflitos, recuos e
amálgamas” (TABORDA DE OLIVEIRA, 2004, p. 14). É deste fato que se
aproveitou o regime militar para impor o seu controle social e ditar a
concepção de sociedade.
A
concepção
mecanicista
e
utilitária
e
a
passividade
dos
profissionais, como já afirmamos, disseminada entre os profissionais da
área de educação física está vinculada ao tipo de leitura que os
professores de hoje fazem deste período histórico. Ou seja, os vários
estudos
utilizam o modelo oficial, orientada pelo plano político-
econômico internacional e instituído através de decretos e Leis, para
estabelecer uma relação direta entre o “oficial” e as práticas pedagógicas
no interior das escolas (TABORDA DE OLIVEIRA, 2004).
Algumas inquietudes nossas ainda pairam sobre este período
histórico. Se o esporte era uma maneira de efetivar o controle social,
porque os professores o utilizavam em suas aulas? Taborda de Oliveira
(2001) responde a questão dizendo que havia uma tênue resistência por
parte dos professores, mas importante para as modificações no “pensar a
educação física escolar” que viriam a seguir. “As transformações pelas
quais essa disciplina vem passando nos anos 1980 e 1990 são resultado
do
influxo
das
práticas
dos
professores,
e
não
somente
do
desenvolvimento acadêmico da área ou das iniciativas legislativas”
(TABORDA DE OLIVEIRA, 2004, p. 370).
Darido (2003) apud Darido e Sanches Neto (2005), complementam
os fatos apontados por Taborda de Oliveira (2004) dizendo que as
mudanças nas concepções de educação física foram influenciadas pelas
exigências dos movimentos civis organizados na participação e tomada de
decisão política, o avanço das pesquisas em áreas muitas vezes opostas
às
tendencias
preconizadas
pelo
regime
militar
e
os
encontros
acadêmicos que discutiam sobre as concepções de educação física.
Também o aspecto de criticidade da educação física se fazia
presente neste período histórico. Segundo Vaz (2005, p. 2) na década de
60 surge nos Estados Unidos e Europa um movimento denominado Teoria
Crítica do Esporte que ousou colocá-lo como “tema de pesquisa, análise e
reflexão” evidenciando a possibilidade do esporte ser um “elemento
positivo do ponto de vista pedagógico e social”.
No Brasil mesmo antes da década de 70 já havia uma tendência ao
debate das
teorias críticas na Educação brasileira
sendo estas
incorporadas à educação física somente na década de 80 (TABORDA DE
OLIVEIRA, 2004; BARREIRA, 1995).
A ênfase esportivista, que em nenhum momento negamos mas
procuramos dar-lhe um outro entendimento, teve maior impacto com a
obrigatoriedade da educação física, assegurada pela Lei 5.692, de 11 de
agosto de 1971 (BRASIL a), que em seu artigo 7º inseriu a educação
física como disciplina obrigatória em todos os níveis e modalidades de
ensino. Porém, é o Decreto 69.450, de 1 de novembro de 1971 (BRASIL
b), que regulamentou a educação física na escola dando-lhe o caráter
esportivista estabelecendo, por exemplo, no § 2º a iniciação desportiva a
partir da 5ª série. Este Decreto é quem caracterizou de fato a presença
do esporte nas aulas de educação física.
A partir do final da década de 70, a educação física passou a ser
influenciada por pensamentos oriundos das ciências humanas e sociais e
professores que defendiam a inclusão de conteúdos dimensionados pela
fundamentação
histórica, política, social e cultural (NAVARRO, 2007).
Inicia-se uma série de debates e produções acadêmicas sobre e contra a
corrente pragmática como única alternativa pedagógica, “baseadas em
teorias críticas que foram incorporadas, a partir da década de 80, às
discussões em Educação Física Escolar” (TABORDA DE OLIVEIRA, 2001,
p. 35).
Nos anos finais da década de 70 e começo dos anos 80 a educação
física passa por uma reformulação na sua concepção. Carmo (1988) apud
Navarro (2007) diz que em oposição à educação física que tinha como
foco o esporte e a saúde, foram incorporados à educação integral os
conhecimentos da psicologia marcada pela presença da psicomotricidade
na educação física brasileira. Notadamente a psicomotricidade foi um
marco na ruptura da concepção mecanicista pois preocupava-se com o
desenvolvimento
integral
da
criança,
“valorizando
o
processo
de
aprendizagem, e não mais a execução de um gesto técnico isolado”
(DARIDO e NETO, 2005, p. 8). Segundo Navarro (2007) ainda neste
período surgiram
outros
modelos que tinham
a
psicologia
como
precursora, como a concepção desenvolvimentista e a psicomotora.
Em meados da década de 80 a perspectiva fenomenologica e o
construtivismo começaram a questionar o modelo de educação física
vigente.
Estas
abordagens
contribuiram
para
o
aparecimento
da
“educação física humanista”, cujo discurso defendia o esporte como meio
para o desenvolvimento de outros aspectos corporais, como a capacidade
cognitiva e afetiva (NAVARRO, 2007).
Nos anos 90 uma das mais representativas obras que influenciou o
pensamento e ações da educação física, e continua influenciando uma vez
que é obra básica na construção das Diretrizes Curriculares do Estado do
Paraná, é conhecida como Coletivo de Autores ou Metodologia de Ensino
da Educação Física. Esta obra é pautada no materialismo históricodialético e incorpora à educação física a concepção de Cultura Corporal.
De acordo com Navarro (2007) a partir da década de 90, o esporte
sofre novas críticas por tendências que consideraram os referenciais da
educação física insuficientes por não abordarem os aspectos sociais,
históricos e políticos. Esta concepção cuja base teórica fundamenta-se no
materialismo histórico dialético, deu origem às pedagogias críticosuperadora
e
pedagogia
crítico-emancipatória
(NAVARRO,
2007),
concepções que se encontram vivas nas práticas pedagógicas, mesmo que
muitas vezes de maneira não consciente por parte dos professores.
É neste período, de intenso debate sobre os rumos da educação
física, que a Secretaria de Estado da Educação edita o Curriculo Básico
para a Escola Pública do Paraná, cujo objetivo era reestrututrar o ensino
de
1ª
a
8ª
séries,
fundamentada
na
pedagogia
histórico-crítica
(NAVARRO, 2007) e com características da abordagem construtivistainteracionista e psicomotora (PARANÁ, 1990; DARIDO e RANGEL, 2005;
PARANÁ, 2008). Com a edição definitiva do Curriculo Básico em 1990, o
objetivo e a proposta da educação física para a escola pública do Estado
era a crítica das relações sociais e a transformação da sociedade,
viabilizando a “tomada de consciência dos educandos sobre seus próprios
corpos, não no sentido biológico, mas especialmente em relação ao meio
social em que vivem” (NAVARRO, 2007, p. 65). Os esportes são
contemplados no Curriculo Básico a partir da 5ª série e “são tratados
como heranças culturais” devendo “ser reconhecidos como práticas
incorporadas historicamente de diferentes formas e por diferentes
segmentos da sociedade” (NAVARRO, 2007, p. 84). Apesar da crítica ao
esporte
massificado
o
Curriculo
Básico
enfatizava
o
direito
a
aprendizagem de diversas modalidades esportivas porém, ressaltava que
a avaliação não deveria considerar padrões técnicos utilizados com
atletas (PARANÁ, 1990).
Em 2003 as Diretrizes Curriculares da Rede de Educação Básica do
Estado do Paraná (DCE) começam a ser elaboradas porque, segundo este
documento (PARANÁ, 2008) os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
não apresentaram coerência na sua fundamentação pois, além de
diversas abordagens como o tecnicismo e o construtivismo, defendia um
conceito de saúde e qualidade de vida baseada na aptidão física, algo que
lembrava a biologização da educação física, significando um retrocesso
para o discursso progressista da educação física. “As diversas concepções
pedagógicas ali apresentadas valorizaram o individualismo e a adaptação
do sujeito à sociedade, ao invés de construir e possibilitar o acesso a
conhecimentos que possibilitem aos educandos a formação crítica”
(PARANÁ, 2008, p. 15).
A gênese das DCE se deu com a construção de dois documentos: um
produzido pelo Departamento de Ensino Fundamental (DEF) e outro pelo
Departamento de Ensino Médio (DEM). Ambos tiveram diferentes
encaminhamentos e proposições teóricas divergentes sendo unificados
em 2006 na proposta das Diretrizes Curriculares (NAVARRO, 2007). As
Diretrizes têm como proposta para a educação física, partindo da Cultura
Corporal, a garantia de acesso
ao conhecimento e à reflexão crítica das inúmeras manifestações
ou
práticas
corporais
historicamente
produzidas
pela
humanidade, na busca de contribuir com um ideal mais amplo de
formação de um ser humano crítico e reflexivo, reconhecendo-se
como sujeito, que é produto, mas também agente histórico,
político, social e cultural (PARANÁ, 2008, p. 15-6).
O documento nos dá a oportunidade de reflexão sobre as
perspectivas para a educação física nas escolas públicas que tratamos
neste texto. “Busca-se, assim, superar formas anteriores de concepção e
atuação na escola pública, visto que a superação é entendida como ir
além, não como negação do que precedeu, mas considerada objeto de [...]
transformação daquelas formas” (PARANÁ, 2008, p. 17-8).
A colocação da Cultura Corporal como objeto de estudo e
fundamento metodológico para a proposta das DCE significa a adoção de
uma educação física sob a perspectiva crítico-superadora apresentadas
pelo Coletivo de Autores. Entretanto, para Navarro (2007, p. 97) citando
Bracht (1992; 1997) “falar em cultura corporal significa considerar toda a
atividade humana, que por si só é corporal. Portanto, o conceito de
cultura corporal não se caracteriza como objeto de estudo da Educação
Física”. Para Navarro (2007), Bracht adota o termo Cultura Corporal de
Movimento pois é o movimento que confere a especificidade à educação
física.
Navarro (2007, p. 20) ao concluir seu estudo Os caminhos da
educação física no Paraná: do Currículo Básico às Diretrizes Curriculares
menciona que as Diretrizes Curriculares do Paraná de 2006 configurava
um documento “Quimérico”
Na medida em que reflete inúmeras tentativas de se romper com
antigas concepções em Educação Física, mas que, ao mesmo
tempo, carregam consigo fragmentos daquilo que se pretende
superar ou avançar. Essas rupturas e permanências constroem
sobreposições discursivas, refletidas em textos estranhos,
monstruosos, incongruentes, isto é, Quiméricos.
Esta posição de Navarro (2007) se deve não somente pela gênese,
já apontada nesse texto, mas pelos desencontros das fundamentações
teóricas presentes nas DCE 2006.
2. A Crítica e o espaço do esporte nas diretrizes curriculares de educação
física
As DCE (PARANÁ, 2008) partem do pressuposto que a escola tem
como função dar condições de acesso aos alunos ao conhecimento
produzido historicamente. A educação física na escola, de acordo com as
DCE (PARANÁ, 2008), deve partir da cultura corporal estabelecendo uma
reflexão
das
práticas
corporais,
no
contexto
“histórico,
político,
econômico e social” (p. 18) tendo como fim a formação de um cidadão
crítico e reflexivo. Como salientam as DCE (PARANÁ, 2008) esta é uma
nova maneira de pensar a educação física, indo além da “preocupação
com a aptidão física, a aprendizagem motora, a performance esportiva,
etc” (p. 18).
As DCE (PARANÁ, 2008) colocam que nesta perspectiva o esporte
tem
como
objetivo
determinantes
estabelecer
históricos
e
nexos
entre
condicionantes
sua
prática
políticos
e
e
seus
sociais,
esclarecendo que o esporte vivenciado na escola, sem reflexão, pode
levar a uma pedagogia de exclusão e ao individualismo. Segundo
Shardakov (1978, apud PARANÁ, 2008, p. 46) para que a educação física
seja legitimada na escola é preciso romper com algumas de suas
características como o dualismo corpo-mente, o conceito a-histórico do
esporte, a utilização de testes e medidas como forma de classificar os
alunos, “a
educacional,
adoção da
a
falta
teoria
de
da
uma
pirâmide
esportiva
como
reflexão
aprofundada
teoria
sobre
o
desenvolvimento da aptidão física e sua contradição com a reflexão sobre
a Cultura Corporal”. O esporte na escola deve, então, receber outro
tratamento, para além da performance.
De acordo com o Coletivo de Autores, a educação física tradicional
e reprodutivista tem servido, através da filosofia liberal e da biologização,
como instrumento para a formação de um indivíduo com caráter
obediente, alienado de sua condição histórica e adestrado, contribuindo
para a manutenção do status quo dentro da estrutura capitalista
(COLETIVO DE AUTORES, 1992). Esta concepção traduz-se e tem
reflexos diretamente na atividade esportiva. Taborda de Oliveira (2004, p.
48) questiona todo este “poder” atribuído ao esporte.
Em que medida a escola (e o professor) têm poderes para para
definir como se formará enfim, o caráter do educando através do
esporte? O esporte que acontece dentro da escola (se acontece!)
é o mesmo regido pela indústria de entretenimento, pelos massmedia? Teria o professor que atua no cotidiano da escola
consciência ou mesmo intenção de adestrar os alunos?
Outra afirmação proveniente desta concepção é a de que os
esporte, orientado e imposto pelo muitas vezes pelo Estado através de
Leis e Decretos, tem o caráter e a preocupação de obter o máximo
rendimento técnico, tático, fisiológico, e que isto estaria diretamente
ligado ao modo de produção capitalista. Taborda de Oliveira (2004, p. 48)
enfatiza que o máximo rendimento não significa necessariamente
colaborar com os interesses capitalistas.
Ora, a exigência de render de maneira produtiva e eficaz implica na
necessidade de competência na produção das condições de
existência humana mais dignas para o conjunto dos homens e
mulheres, num mundo menos opressivo. Atuarmos nessa
perspectiva e exigirmos do educando que faça o mesmo, não
representa fazer o jogo do capitalismo ou do liberalismo.
Na organização das DCE (PARANÁ, 2008) os conteúdos da
educação física
estão primeiramente determinados nos Conteúdos
Estruturantes, que são definidos como “os conhecimentos de grande
amplitude, conceitos ou práticas que identificam ou organizam os campos
de estudo de uma disciplina escolar, considerados fundamentais para
compreender seu objeto de estudo/ensino” (PARANÁ, 2008, p. 32) e, em
outro documento denominado Conteúdos Básicos para a Educação Física
os conteúdos estruturantes são desdobrados nos conteúdos
básicos
definidos como “conhecimentos fundamentais e necessários para cada
série da etapa final do Ensino Fundamental e para o Ensino Médio”
(PARANÁ, 2008, s.p). Estes conteúdos básicos são abordados de forma
crescente em complexidade servindo como orientação na implementação
das DCE e devem fazer parte do Plano de Trabalho Docente (PTD) pois
“nele estará a expressão singular e de autoria, de cada professor, da
concepção curricular construída na discussão coletiva” (PARANÁ, 2008,
s.p). Percebe-se no documento uma orientação, não imobilizadora como é
ressaltado, do conteúdo básico Esporte apresentando algumas sugestões
quanto a divisão em etapas deste conteúdo. As DCE (PARANÁ, 2008, p.
32) criticam o “etapismo do conhecimento” ao negar que o conteúdo
necessite de pré-requisitos. Entretanto, logo a frente é exposto que o
enfoque do conteúdo deve ser diferenciado para cada série de acordo
com a sua “capacidade de abstração”. Esta afirmação, nos parece, exigir
uma
sistematização
e
progressão
dos
conteúdos.
A
progressão
pedagógica deve ser contemplada no Plano de Trabalho Docente,
documento que apresenta a organização dos conteúdos e suas relações
didático-pedagógicas,
abordando
desde
a
fundamentação
histórica,
fundamentos técnicos, sistemas táticos, regras e preenchimento de
súmula.
Os conteúdos estruturantes e básicos devem estabelecer um
diálogo
e
serem
contextualizados.
Estes
elementos
“alargam
a
compreensão das práticas corporais, indicam múltiplas possibilidades de
intervenção pedagógica em situações que surgem no cotidiano escolar”
(DEC, 2008, p. 21). Dentre os elementos articuladores apresentados pelas
DCE (2008) destacamos o que as Diretrizes denominam de Cultura
Corporal e Desportivização e a Cultura Corporal – Técnica e Tática.
Nestas
seções,
o
esporte
é
configurado
como
um
fenômeno
supervalorizado em detrimento de algumas mazelas sociais, como a fome
e a miséria. Nesta ótica, o esporte não é considerado como uma prática
que pode contribuir com a transformação social, como objetivam as
Diretrizes.
À escola, no discurso pós-moderno, é imputada a responsabilidade
pelas
mudanças
sociais
necessárias
ao
bem
estar
do
indivíduo.
Entretanto, todas as ações pedagógicas apenas indicam “possibilidades”
e não são garantias que as mudanças acontecerão.
Contrariamos, assim, aquelas perspectivas, ora moralista, ora
idealistas, para as quais é possível revolucionar a sociedade pela
escola. A escola é um lugar por excelência, de crítica social e
cultural. Como tal, cumpre um papel fundamental, no nosso
entendimento, junto às tentativas de mudança estrutural. Mas
essa não é mais que uma possibilidade, e não um axioma
(TABORDA DE OLIVEIRA, 2004, p. 99).
Kunz
e
Souza
(2003,
p.
22),
numa
perspectiva
crítico-
emancipatória, afirmam que “nem a escola e muito menos a Educação
Física
tem
o
poder
de
mudar
radicalmente
a
trajetória
de
desenvolvimento de um sistema social”.
Outro aspecto destacado nas DCE, e que merece reflexão, é a
relação entre esporte, técnica e criatividade. Aqui o esporte seria também
responsável pela redução da criatividade em virtude da perseguição ao
objetivo de máximo rendimento. A técnica é entendida como uma
padronização de gestos com o objetivo de uma ação eficiente. Entretanto,
não seria o pleno domínio do gesto, assumidos e representados no
esporte,
o
responsável
pela
criação
de
movimentos,
belos,
que
caracterizam o próprio movimento humano? E a isto não poderíamos
associar o conceito de criatividade? Um drible de Pelé, na copa de 70 ou
uma cesta de Michael Jordan, não seriam exemplos de criatividade no
esporte? Além de uma aparente redução e contradição conceitual o
esporte tratado pelas DCE corre o risco de ser transformado em algo que
não poderia ser mais denominado de esporte.
3. O esporte na escola: a práxis lúdico-agonistica
De acordo com Greco e Benda (1998) a educação física no Brasil se
prende à duas concepções: de um lado o tecnicismo e de outro a linha
humanista, representada pela abordagem crítico-social. Na concepção
tecnicista o aluno é visto como atleta e, ano após ano, os conteúdos dos
esportes na escola são modificados quanto à sua intensidade e volume. O
jogo nesta concepção é o prêmio pela realização dos exercícios analíticos.
Há uma perfeita e quase inquestionável ordem na apresentação dos
conteúdos: nos anos iniciais do ensino fundamental a ênfase está nos
jogos, ginástica, dança e luta, esta resumindo-se praticamente à capoeira.
Nos anos finais do ensino fundamental encontramos os jogos prédesportivos, a iniciação ao desporto e, nas escolas do Paraná uma
tentativa de implementar outras práticas da cultura corporal, já expressa
nos conteúdos estruturantes e básicos.
Em outro extremo encontramos os professores que integram a linha
crítico-social. Segundo Greco e Benda (1998) nesta concepção “o esporte
não é oferecido como conteúdo pedagógico, não é trabalhado, pois o
esporte (de competição) reproduz o modelo capitalista em que o
individual supera o coletivo” (p. 14). Os autores enfatizam que, nesta
visão, o esporte representaria “modelos alheios ao interesse da criança”
(p.15). Segundo Marchi Junior (1994, p. 26), parafraseando Freire (1989)
o jogo ou o esporte representam, num contexto lúdico, as ações
individuais e coletivas das pessoas e da sociedade, portanto, a
competição não nasce no jogo, mas é nele representada. Se a
competição assume, na sociedade, o caráter predatório que
observamos atualmente, não é por culpa do jogo e nem será
suprimido deste o aspecto competitivo que o problema
desaparecerá.
A prática do esporte na escola encontra-se nestes extremos. Ou é
trabalhado de maneira unicamente técnica, e aqui questionamos a
realização de alguns exercícios de fundamentação desvinculados de uma
concepção tática, ou é vivenciado como jogo, com regras modificadas sem
embasamento científico e sem uma sequência pedagógica. O esporte
assume uma característica de autonomia e, ao mesmo tempo, ligada à
educação física (LEMOS e RAVANELLO, 1993).
Se na extensão deste texto estamos nos referindo ao desporto
escolar, amparado pela legislação, cremos que a escola é também espaço
para a iniciação desportiva. Neste aspecto Vidal, Souza Neto e Hunger
(2004), citando Paes (2002), dizem que a escola é espaço privilegiado
para a prática do esporte pela difusão da cultura e justiça social, no
tocante à oportunização de sua prática.
Segundo Hildebrandt-Stramann (2003, p. 135/7) o esporte na escola
pode asumir diferentes significados e diferentes perspectivas. O autor
apresenta algumas perspectivas, como:”o esporte como algo socialmente
regulamentado, o esporte como algo a ser aprendido, o esporte como algo
a que se assiste, o esporte como algo a ser refletido e o esporte como algo
a ser modificado”. De acordo com Galvão, Rodrigues e Mota e Silva
(2005) a aprendizagem esportiva é importante pois somente através do
conhecimento de formas institucionalizadas é que o aluno poderá
vivenciar
e questionar valores, ações e atitudes proporcionados pelo
esporte propriamente dito. Na dimensão “o esporte como algo a que se
assiste” os autores colocam que o encaminhamento da criança ao
esporte, enquanto manifestação da cultura corporal, deve colaborar para
que esta tenha a competência em interagir, selecionar e interpretar o
esporte veinculado pela mídia, através do debate e discussões na escola.
Além dos aspectos citados sobre a importância do esporte, e outros
que não abordaremos neste espaço como os aspectos fisiológicos, a
legislação educacional brasileira prevê, no Art. 26, § 3º , da Lei 9394, de
20 de dezembro de 1996 (BRASIL c), a obrigatoriedade da educação
física na escolas sendo facultativa ao aluno em algumas situações.
Especificamente a prática do esporte é previsto em Leis que o
orientam no ambiente formal e não-formal. A Lei 8.069, de 13 de julho de
1990, em seu Art. 15 (BRASIL e), inciso IV, coloca como direito à
liberdade a prática do desporto, o brincar e divertir-se. O Art. 4º desta
Lei
diz
que
é
dever
da
família,
sociedade
e
poder
público
a
responsabilidade pelo direito da criança e adolescente à prática do
esporte e lazer.
A Lei 9.615, de 24 de março de 1998 (BRASIL d), alterada pelas
Leis 9.981 de 14 de julho de 2000 (BRASIL g) e Lei 10.672, de 15 de maio
de 2003 (BRASIL f), institui normas gerais sobre o desporto no país. Esta
Lei distingue entre o esporte formal, aquele regido pelas regras formais
dos desportos e aceitas pelas entidades representativas nacionais e
internacionais, e o desporto não-formal, caracterizado pela liberdade
lúdica dos praticantes. O Art. 30 desta Lei, em seus incisos I, II, e III
diferencia a natureza e finalidade do desporto distinguindo o desporto
educacional do desporto de rendimento e o desporto de participação. O
desporto educacional tem como característica a sua prática nos sistemas
educacionais e em outras formas de educação não sistemáticas. Enfatiza,
a Lei, que o desporto educacional não deve primar pela seletividade e
hipercompetitividade tendo como fim a formação de pessoas para o
exercício da cidadania e prática do lazer, alcançando o desenvolvimento
integral do indivíduo.
Alguns autores discutem as características que diferenciam
o
esporte e o jogo. Entre elas encontra-se a liberdade, a motivação lúdica
na participação e a flexibilidade nas regras. Entretanto, não podemos
tomar esta afirmativa como uma verdade absoluta pois mesmo o esporte
profissional apresenta o fator lúdico (GALVÃO, RODRIGUES E MOTA E
SILVA, 2005).
Apesar do lúdico estar presente no esporte profissional a atividade
agonística é quem caracteriza o esporte (LEMOS e RAVANELLO, 1993).
Seu sentido agonístico reduz a participação dos educandos, o que no
desporto educacional não é desejável uma vez que à escola cabe a função
de universalizar as diferentes manifestações do movimento.
O desporto na escola deve se caracterizar como lúdico-agonístico.
Canfield (1985) apud Lemos e Ravanello (1993, p. 27) diz que “do lúdico
para
o
agonístico
ocorrerá
uma
transição
do
divertimento
para
competição organizada”. Nesta ótica o esporte escolar deve ter regras
adequadas à população que se destina garantindo a participação de um
maior número de alunos em condições aproximadas de igualdade, que
canalize “o espírito competitivo para uma atividade de formação humana”
(LEMOS e RAVANELLO, 1993, p. 28). “Os alunos aprendem a praticar
esportes para que tenham subsídios que possibilitem atividades motoras
durante o resto da sua existência” (p. 28). Busca-se também, através de
ações pedagógicas reflexivas (o esporte como algo a ser refletido) a
“possibilidade de uma formação que leve em consideração a capacidade
do indivíduo tornar-se autônomo – intelectual e moralmente – isto é, que
seja capaz de interpretar as condições histórico-culturais da sociedade
em que vive de forma crítica e reflexiva, impondo autonomia às suas
próprias ações e pensamentos” (SILVA e COSTA, 2008, s.p).
Não queremos concluir, apenas traçar uma consideração final ao
concordarmos com Caparroz (2001, p. 44), citando Assis de Oliveira
(2001), no sentido da mudança possível do esporte como conteúdo na
educação física:
Mudanças que venham a alterar a atual dinâmica do esporte,
essencialmente competitiva e aparentemente lúdica, para uma
outra, qualitativamente distinta, essencialmente lúdica e
aparentemente competitiva. Para que mais à frente, não seja
consagrado um completo embrutecimento humano e não
precisemos ouvir de nós mesmos as sábias e dolorosas palavras
do replicante de Blade Runner [...]: “eu vi coisas nas quais vocês
humanos não acreditariam”.
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