ESPORTE NA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE: DA MECANIZAÇÃO DO GESTO À CONSCIÊNCIA CRÍTICA. E DEPOIS? Prof Nilton José Farias [email protected] RESUMO O presente texto tem por objetivo refletir sobre o esporte e a iniciação esportiva na escola pública do Estado do Paraná tendo como parâmetro duas principais concepções que norteiam a educação física escolar: o tecnicismo e a concepção histórico-crítica. O texto está organizado em duas sessões. A primeira apresenta a trajetória da educação física situando o aparecimento das concepções tecnicista e histórico-crítica e suas influências no Curriculo Básico e Diretrizes Curriculares de Educação Física do Estado do Paraná, objetivando analisar o espaço destinado ao esporte como conteúdo das aulas de educação física nas escolas públicas. A segunda parte destaca as leis que estabelecem a legalidade da educação física como componente curricular e o direito de crianças e adolescentes ao esporte; vincula-se também à esta seção, reflexões sobre o esporte e iniciação esportiva na escola de acordo com as concepções de educação física. 1. O cenário das concepções da educação física Temos que deixar claro que se queremos discutir o espaço do esporte, na escola, estaremos discutindo também a educação física como componente curricular (CAPARROZ, 2001). A educação física tem se modificado, ao menos em teoria, ao longo de sua história. Suas concepções e tendências tem influenciado a formação profissional e determinado conceitos subjacentes à prática pedagógica dos professores nas escolas. A compreensão e apreensão destas concepções é importante pois os seus pressupostos determinam as condutas pedagógicas, o papel do professor e seu conceito de aluno, educação, avaliação, metodologia, função da escola, homem e sociedade. A análise histórica das concepções da educação física extrapola o marco temporal do seu aparecimento posto que foram gestadas em períodos anteriores, sendo também impossível dissocia-las do quadro político e das concepções de educação vigentes num determinado período histórico. A educação física no Brasil inicia-se com a criação da Escola Militar, em 1810, e considera-se que a sua introdução se deu oficialmente na escola somente em 1851 através da reforma Couto Ferraz pois, a reforma feita por Rui Barbosa em 1882 recomendando a ginástica para as Escolas Normais atingiu apenas parte do Rio de Janeiro e as escolas militares (DARIDO e NETO, 2005). Na sua trajetória a educação física passou por diversas modificações quanto à sua função e objetivos. No século XIX, sob a influência da ordem positivista e médica, à educação física de caráter higienista impunha-se a função de criar corpos robustos e saudáveis. Em 1937, lhe era dado o papel de adestrar fisicamente os indivíduos com o objetivo de prepará-los para a defesa da nação. No regime militar, em 1971, é aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei no 5.692/71, que colocou o esporte como principal conteúdo da educação física sob a égide política do desenvolvimento e segurança do país (CASTELLANI FILHO, 1994). Este período da história brasileira marcou profundamente a educação física sendo, ainda hoje, possível observar sua presença nos espaços escolares influenciando a prática pedagógica. Entretanto, apesar de alguns autores (CASTELLANI FILHO, 1994; GUIRALDELLI Jr, 1988) apontarem que o tecnicismo e a esportivização teve seu início na década de 70, substituindo-se o lúdico pela exacerbação do gesto técnico (BRACHT, 1992), não se pode imputar ao regime militar a concepção mecanicista dada à educação física, uma vez que a própria educação física foi marcada desde sua gênese por uma função utilitarista, fruto de suas raízes européias sobre a qual se fundamentaram (TABORDA DE OLIVEIRA, 2001; SOARES, 2001). Um primeiro questionamento que poderíamos fazer sobre o mecanicismo da educação física é sobre a passividade de seus profissionais em relação a esta concepção. Uma visão muito difundida, mas questionável, é justamente a não resistência por parte dos professores em relação ao conteúdo esportivista da educação física. Somos frequentemente levados a pensar que a educação física tinha um único discurso e que todos os professores eram unânimes em admitir a pedagogia tecnicista. Na década de 70, mesmo com a legislação impondo a conduta baseada principalmente, mas não exclusivamente no esporte, o que se observa, de acordo com Taborda de Oliveira (2004), é que havia também a preocupação em discutir os benefícios da educação física através do debate acadêmico. Nos textos da Revista Brasileira de Educação Física e Desportos (RBEFD), voz oficial da Secretaria de Educação Física e Desportos do Ministério da Educação e Cultura, e que circulou entre 1968 e 1984, instrumento utilizado por Taborda de Oliveira (2001) para seu estudo, havia a preocupação com o lazer, com a desumanização da sociedade, com a educação integral da criança e com uma fundamentação para a educação física. A própria Revista trazia “alternativas de práticas pedagógicas para a Educação Física no interior da escola”, como a dança, o jogo e o excursionismo (p. 21). Desta forma, pensar nos professores como meros tarefeiros do Sistema é um engodo. Existia, sim, uma tendência pragmática, que defendia o esporte de alto nível vinculado à educação física, e uma tendência dogmática, que concebia o esporte como meio da educação física, conceitos utilizados por Manoel Gomes Tubino em artigo entitulado “As Tendências Internacionais de Educação Física”, publicada no número 26 da RBEFD (TABORDA DE OLIVEIRA, 2004, p. 76). Um fator que contribuiu para a afirmação desta tendência foi a produção acadêmica voltada para a biomecânica e fisiologia, que se deu através de intercâmbios que possibilitaram estudos de mestrado e doutorado, principalmente nos Estados Unidos. Assim prevaleceu na educação física brasileira a tendência pragmática sem, contudo, não existirem “conflitos, recuos e amálgamas” (TABORDA DE OLIVEIRA, 2004, p. 14). É deste fato que se aproveitou o regime militar para impor o seu controle social e ditar a concepção de sociedade. A concepção mecanicista e utilitária e a passividade dos profissionais, como já afirmamos, disseminada entre os profissionais da área de educação física está vinculada ao tipo de leitura que os professores de hoje fazem deste período histórico. Ou seja, os vários estudos utilizam o modelo oficial, orientada pelo plano político- econômico internacional e instituído através de decretos e Leis, para estabelecer uma relação direta entre o “oficial” e as práticas pedagógicas no interior das escolas (TABORDA DE OLIVEIRA, 2004). Algumas inquietudes nossas ainda pairam sobre este período histórico. Se o esporte era uma maneira de efetivar o controle social, porque os professores o utilizavam em suas aulas? Taborda de Oliveira (2001) responde a questão dizendo que havia uma tênue resistência por parte dos professores, mas importante para as modificações no “pensar a educação física escolar” que viriam a seguir. “As transformações pelas quais essa disciplina vem passando nos anos 1980 e 1990 são resultado do influxo das práticas dos professores, e não somente do desenvolvimento acadêmico da área ou das iniciativas legislativas” (TABORDA DE OLIVEIRA, 2004, p. 370). Darido (2003) apud Darido e Sanches Neto (2005), complementam os fatos apontados por Taborda de Oliveira (2004) dizendo que as mudanças nas concepções de educação física foram influenciadas pelas exigências dos movimentos civis organizados na participação e tomada de decisão política, o avanço das pesquisas em áreas muitas vezes opostas às tendencias preconizadas pelo regime militar e os encontros acadêmicos que discutiam sobre as concepções de educação física. Também o aspecto de criticidade da educação física se fazia presente neste período histórico. Segundo Vaz (2005, p. 2) na década de 60 surge nos Estados Unidos e Europa um movimento denominado Teoria Crítica do Esporte que ousou colocá-lo como “tema de pesquisa, análise e reflexão” evidenciando a possibilidade do esporte ser um “elemento positivo do ponto de vista pedagógico e social”. No Brasil mesmo antes da década de 70 já havia uma tendência ao debate das teorias críticas na Educação brasileira sendo estas incorporadas à educação física somente na década de 80 (TABORDA DE OLIVEIRA, 2004; BARREIRA, 1995). A ênfase esportivista, que em nenhum momento negamos mas procuramos dar-lhe um outro entendimento, teve maior impacto com a obrigatoriedade da educação física, assegurada pela Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971 (BRASIL a), que em seu artigo 7º inseriu a educação física como disciplina obrigatória em todos os níveis e modalidades de ensino. Porém, é o Decreto 69.450, de 1 de novembro de 1971 (BRASIL b), que regulamentou a educação física na escola dando-lhe o caráter esportivista estabelecendo, por exemplo, no § 2º a iniciação desportiva a partir da 5ª série. Este Decreto é quem caracterizou de fato a presença do esporte nas aulas de educação física. A partir do final da década de 70, a educação física passou a ser influenciada por pensamentos oriundos das ciências humanas e sociais e professores que defendiam a inclusão de conteúdos dimensionados pela fundamentação histórica, política, social e cultural (NAVARRO, 2007). Inicia-se uma série de debates e produções acadêmicas sobre e contra a corrente pragmática como única alternativa pedagógica, “baseadas em teorias críticas que foram incorporadas, a partir da década de 80, às discussões em Educação Física Escolar” (TABORDA DE OLIVEIRA, 2001, p. 35). Nos anos finais da década de 70 e começo dos anos 80 a educação física passa por uma reformulação na sua concepção. Carmo (1988) apud Navarro (2007) diz que em oposição à educação física que tinha como foco o esporte e a saúde, foram incorporados à educação integral os conhecimentos da psicologia marcada pela presença da psicomotricidade na educação física brasileira. Notadamente a psicomotricidade foi um marco na ruptura da concepção mecanicista pois preocupava-se com o desenvolvimento integral da criança, “valorizando o processo de aprendizagem, e não mais a execução de um gesto técnico isolado” (DARIDO e NETO, 2005, p. 8). Segundo Navarro (2007) ainda neste período surgiram outros modelos que tinham a psicologia como precursora, como a concepção desenvolvimentista e a psicomotora. Em meados da década de 80 a perspectiva fenomenologica e o construtivismo começaram a questionar o modelo de educação física vigente. Estas abordagens contribuiram para o aparecimento da “educação física humanista”, cujo discurso defendia o esporte como meio para o desenvolvimento de outros aspectos corporais, como a capacidade cognitiva e afetiva (NAVARRO, 2007). Nos anos 90 uma das mais representativas obras que influenciou o pensamento e ações da educação física, e continua influenciando uma vez que é obra básica na construção das Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná, é conhecida como Coletivo de Autores ou Metodologia de Ensino da Educação Física. Esta obra é pautada no materialismo históricodialético e incorpora à educação física a concepção de Cultura Corporal. De acordo com Navarro (2007) a partir da década de 90, o esporte sofre novas críticas por tendências que consideraram os referenciais da educação física insuficientes por não abordarem os aspectos sociais, históricos e políticos. Esta concepção cuja base teórica fundamenta-se no materialismo histórico dialético, deu origem às pedagogias críticosuperadora e pedagogia crítico-emancipatória (NAVARRO, 2007), concepções que se encontram vivas nas práticas pedagógicas, mesmo que muitas vezes de maneira não consciente por parte dos professores. É neste período, de intenso debate sobre os rumos da educação física, que a Secretaria de Estado da Educação edita o Curriculo Básico para a Escola Pública do Paraná, cujo objetivo era reestrututrar o ensino de 1ª a 8ª séries, fundamentada na pedagogia histórico-crítica (NAVARRO, 2007) e com características da abordagem construtivistainteracionista e psicomotora (PARANÁ, 1990; DARIDO e RANGEL, 2005; PARANÁ, 2008). Com a edição definitiva do Curriculo Básico em 1990, o objetivo e a proposta da educação física para a escola pública do Estado era a crítica das relações sociais e a transformação da sociedade, viabilizando a “tomada de consciência dos educandos sobre seus próprios corpos, não no sentido biológico, mas especialmente em relação ao meio social em que vivem” (NAVARRO, 2007, p. 65). Os esportes são contemplados no Curriculo Básico a partir da 5ª série e “são tratados como heranças culturais” devendo “ser reconhecidos como práticas incorporadas historicamente de diferentes formas e por diferentes segmentos da sociedade” (NAVARRO, 2007, p. 84). Apesar da crítica ao esporte massificado o Curriculo Básico enfatizava o direito a aprendizagem de diversas modalidades esportivas porém, ressaltava que a avaliação não deveria considerar padrões técnicos utilizados com atletas (PARANÁ, 1990). Em 2003 as Diretrizes Curriculares da Rede de Educação Básica do Estado do Paraná (DCE) começam a ser elaboradas porque, segundo este documento (PARANÁ, 2008) os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) não apresentaram coerência na sua fundamentação pois, além de diversas abordagens como o tecnicismo e o construtivismo, defendia um conceito de saúde e qualidade de vida baseada na aptidão física, algo que lembrava a biologização da educação física, significando um retrocesso para o discursso progressista da educação física. “As diversas concepções pedagógicas ali apresentadas valorizaram o individualismo e a adaptação do sujeito à sociedade, ao invés de construir e possibilitar o acesso a conhecimentos que possibilitem aos educandos a formação crítica” (PARANÁ, 2008, p. 15). A gênese das DCE se deu com a construção de dois documentos: um produzido pelo Departamento de Ensino Fundamental (DEF) e outro pelo Departamento de Ensino Médio (DEM). Ambos tiveram diferentes encaminhamentos e proposições teóricas divergentes sendo unificados em 2006 na proposta das Diretrizes Curriculares (NAVARRO, 2007). As Diretrizes têm como proposta para a educação física, partindo da Cultura Corporal, a garantia de acesso ao conhecimento e à reflexão crítica das inúmeras manifestações ou práticas corporais historicamente produzidas pela humanidade, na busca de contribuir com um ideal mais amplo de formação de um ser humano crítico e reflexivo, reconhecendo-se como sujeito, que é produto, mas também agente histórico, político, social e cultural (PARANÁ, 2008, p. 15-6). O documento nos dá a oportunidade de reflexão sobre as perspectivas para a educação física nas escolas públicas que tratamos neste texto. “Busca-se, assim, superar formas anteriores de concepção e atuação na escola pública, visto que a superação é entendida como ir além, não como negação do que precedeu, mas considerada objeto de [...] transformação daquelas formas” (PARANÁ, 2008, p. 17-8). A colocação da Cultura Corporal como objeto de estudo e fundamento metodológico para a proposta das DCE significa a adoção de uma educação física sob a perspectiva crítico-superadora apresentadas pelo Coletivo de Autores. Entretanto, para Navarro (2007, p. 97) citando Bracht (1992; 1997) “falar em cultura corporal significa considerar toda a atividade humana, que por si só é corporal. Portanto, o conceito de cultura corporal não se caracteriza como objeto de estudo da Educação Física”. Para Navarro (2007), Bracht adota o termo Cultura Corporal de Movimento pois é o movimento que confere a especificidade à educação física. Navarro (2007, p. 20) ao concluir seu estudo Os caminhos da educação física no Paraná: do Currículo Básico às Diretrizes Curriculares menciona que as Diretrizes Curriculares do Paraná de 2006 configurava um documento “Quimérico” Na medida em que reflete inúmeras tentativas de se romper com antigas concepções em Educação Física, mas que, ao mesmo tempo, carregam consigo fragmentos daquilo que se pretende superar ou avançar. Essas rupturas e permanências constroem sobreposições discursivas, refletidas em textos estranhos, monstruosos, incongruentes, isto é, Quiméricos. Esta posição de Navarro (2007) se deve não somente pela gênese, já apontada nesse texto, mas pelos desencontros das fundamentações teóricas presentes nas DCE 2006. 2. A Crítica e o espaço do esporte nas diretrizes curriculares de educação física As DCE (PARANÁ, 2008) partem do pressuposto que a escola tem como função dar condições de acesso aos alunos ao conhecimento produzido historicamente. A educação física na escola, de acordo com as DCE (PARANÁ, 2008), deve partir da cultura corporal estabelecendo uma reflexão das práticas corporais, no contexto “histórico, político, econômico e social” (p. 18) tendo como fim a formação de um cidadão crítico e reflexivo. Como salientam as DCE (PARANÁ, 2008) esta é uma nova maneira de pensar a educação física, indo além da “preocupação com a aptidão física, a aprendizagem motora, a performance esportiva, etc” (p. 18). As DCE (PARANÁ, 2008) colocam que nesta perspectiva o esporte tem como objetivo determinantes estabelecer históricos e nexos entre condicionantes sua prática políticos e e seus sociais, esclarecendo que o esporte vivenciado na escola, sem reflexão, pode levar a uma pedagogia de exclusão e ao individualismo. Segundo Shardakov (1978, apud PARANÁ, 2008, p. 46) para que a educação física seja legitimada na escola é preciso romper com algumas de suas características como o dualismo corpo-mente, o conceito a-histórico do esporte, a utilização de testes e medidas como forma de classificar os alunos, “a educacional, adoção da a falta teoria de da uma pirâmide esportiva como reflexão aprofundada teoria sobre o desenvolvimento da aptidão física e sua contradição com a reflexão sobre a Cultura Corporal”. O esporte na escola deve, então, receber outro tratamento, para além da performance. De acordo com o Coletivo de Autores, a educação física tradicional e reprodutivista tem servido, através da filosofia liberal e da biologização, como instrumento para a formação de um indivíduo com caráter obediente, alienado de sua condição histórica e adestrado, contribuindo para a manutenção do status quo dentro da estrutura capitalista (COLETIVO DE AUTORES, 1992). Esta concepção traduz-se e tem reflexos diretamente na atividade esportiva. Taborda de Oliveira (2004, p. 48) questiona todo este “poder” atribuído ao esporte. Em que medida a escola (e o professor) têm poderes para para definir como se formará enfim, o caráter do educando através do esporte? O esporte que acontece dentro da escola (se acontece!) é o mesmo regido pela indústria de entretenimento, pelos massmedia? Teria o professor que atua no cotidiano da escola consciência ou mesmo intenção de adestrar os alunos? Outra afirmação proveniente desta concepção é a de que os esporte, orientado e imposto pelo muitas vezes pelo Estado através de Leis e Decretos, tem o caráter e a preocupação de obter o máximo rendimento técnico, tático, fisiológico, e que isto estaria diretamente ligado ao modo de produção capitalista. Taborda de Oliveira (2004, p. 48) enfatiza que o máximo rendimento não significa necessariamente colaborar com os interesses capitalistas. Ora, a exigência de render de maneira produtiva e eficaz implica na necessidade de competência na produção das condições de existência humana mais dignas para o conjunto dos homens e mulheres, num mundo menos opressivo. Atuarmos nessa perspectiva e exigirmos do educando que faça o mesmo, não representa fazer o jogo do capitalismo ou do liberalismo. Na organização das DCE (PARANÁ, 2008) os conteúdos da educação física estão primeiramente determinados nos Conteúdos Estruturantes, que são definidos como “os conhecimentos de grande amplitude, conceitos ou práticas que identificam ou organizam os campos de estudo de uma disciplina escolar, considerados fundamentais para compreender seu objeto de estudo/ensino” (PARANÁ, 2008, p. 32) e, em outro documento denominado Conteúdos Básicos para a Educação Física os conteúdos estruturantes são desdobrados nos conteúdos básicos definidos como “conhecimentos fundamentais e necessários para cada série da etapa final do Ensino Fundamental e para o Ensino Médio” (PARANÁ, 2008, s.p). Estes conteúdos básicos são abordados de forma crescente em complexidade servindo como orientação na implementação das DCE e devem fazer parte do Plano de Trabalho Docente (PTD) pois “nele estará a expressão singular e de autoria, de cada professor, da concepção curricular construída na discussão coletiva” (PARANÁ, 2008, s.p). Percebe-se no documento uma orientação, não imobilizadora como é ressaltado, do conteúdo básico Esporte apresentando algumas sugestões quanto a divisão em etapas deste conteúdo. As DCE (PARANÁ, 2008, p. 32) criticam o “etapismo do conhecimento” ao negar que o conteúdo necessite de pré-requisitos. Entretanto, logo a frente é exposto que o enfoque do conteúdo deve ser diferenciado para cada série de acordo com a sua “capacidade de abstração”. Esta afirmação, nos parece, exigir uma sistematização e progressão dos conteúdos. A progressão pedagógica deve ser contemplada no Plano de Trabalho Docente, documento que apresenta a organização dos conteúdos e suas relações didático-pedagógicas, abordando desde a fundamentação histórica, fundamentos técnicos, sistemas táticos, regras e preenchimento de súmula. Os conteúdos estruturantes e básicos devem estabelecer um diálogo e serem contextualizados. Estes elementos “alargam a compreensão das práticas corporais, indicam múltiplas possibilidades de intervenção pedagógica em situações que surgem no cotidiano escolar” (DEC, 2008, p. 21). Dentre os elementos articuladores apresentados pelas DCE (2008) destacamos o que as Diretrizes denominam de Cultura Corporal e Desportivização e a Cultura Corporal – Técnica e Tática. Nestas seções, o esporte é configurado como um fenômeno supervalorizado em detrimento de algumas mazelas sociais, como a fome e a miséria. Nesta ótica, o esporte não é considerado como uma prática que pode contribuir com a transformação social, como objetivam as Diretrizes. À escola, no discurso pós-moderno, é imputada a responsabilidade pelas mudanças sociais necessárias ao bem estar do indivíduo. Entretanto, todas as ações pedagógicas apenas indicam “possibilidades” e não são garantias que as mudanças acontecerão. Contrariamos, assim, aquelas perspectivas, ora moralista, ora idealistas, para as quais é possível revolucionar a sociedade pela escola. A escola é um lugar por excelência, de crítica social e cultural. Como tal, cumpre um papel fundamental, no nosso entendimento, junto às tentativas de mudança estrutural. Mas essa não é mais que uma possibilidade, e não um axioma (TABORDA DE OLIVEIRA, 2004, p. 99). Kunz e Souza (2003, p. 22), numa perspectiva crítico- emancipatória, afirmam que “nem a escola e muito menos a Educação Física tem o poder de mudar radicalmente a trajetória de desenvolvimento de um sistema social”. Outro aspecto destacado nas DCE, e que merece reflexão, é a relação entre esporte, técnica e criatividade. Aqui o esporte seria também responsável pela redução da criatividade em virtude da perseguição ao objetivo de máximo rendimento. A técnica é entendida como uma padronização de gestos com o objetivo de uma ação eficiente. Entretanto, não seria o pleno domínio do gesto, assumidos e representados no esporte, o responsável pela criação de movimentos, belos, que caracterizam o próprio movimento humano? E a isto não poderíamos associar o conceito de criatividade? Um drible de Pelé, na copa de 70 ou uma cesta de Michael Jordan, não seriam exemplos de criatividade no esporte? Além de uma aparente redução e contradição conceitual o esporte tratado pelas DCE corre o risco de ser transformado em algo que não poderia ser mais denominado de esporte. 3. O esporte na escola: a práxis lúdico-agonistica De acordo com Greco e Benda (1998) a educação física no Brasil se prende à duas concepções: de um lado o tecnicismo e de outro a linha humanista, representada pela abordagem crítico-social. Na concepção tecnicista o aluno é visto como atleta e, ano após ano, os conteúdos dos esportes na escola são modificados quanto à sua intensidade e volume. O jogo nesta concepção é o prêmio pela realização dos exercícios analíticos. Há uma perfeita e quase inquestionável ordem na apresentação dos conteúdos: nos anos iniciais do ensino fundamental a ênfase está nos jogos, ginástica, dança e luta, esta resumindo-se praticamente à capoeira. Nos anos finais do ensino fundamental encontramos os jogos prédesportivos, a iniciação ao desporto e, nas escolas do Paraná uma tentativa de implementar outras práticas da cultura corporal, já expressa nos conteúdos estruturantes e básicos. Em outro extremo encontramos os professores que integram a linha crítico-social. Segundo Greco e Benda (1998) nesta concepção “o esporte não é oferecido como conteúdo pedagógico, não é trabalhado, pois o esporte (de competição) reproduz o modelo capitalista em que o individual supera o coletivo” (p. 14). Os autores enfatizam que, nesta visão, o esporte representaria “modelos alheios ao interesse da criança” (p.15). Segundo Marchi Junior (1994, p. 26), parafraseando Freire (1989) o jogo ou o esporte representam, num contexto lúdico, as ações individuais e coletivas das pessoas e da sociedade, portanto, a competição não nasce no jogo, mas é nele representada. Se a competição assume, na sociedade, o caráter predatório que observamos atualmente, não é por culpa do jogo e nem será suprimido deste o aspecto competitivo que o problema desaparecerá. A prática do esporte na escola encontra-se nestes extremos. Ou é trabalhado de maneira unicamente técnica, e aqui questionamos a realização de alguns exercícios de fundamentação desvinculados de uma concepção tática, ou é vivenciado como jogo, com regras modificadas sem embasamento científico e sem uma sequência pedagógica. O esporte assume uma característica de autonomia e, ao mesmo tempo, ligada à educação física (LEMOS e RAVANELLO, 1993). Se na extensão deste texto estamos nos referindo ao desporto escolar, amparado pela legislação, cremos que a escola é também espaço para a iniciação desportiva. Neste aspecto Vidal, Souza Neto e Hunger (2004), citando Paes (2002), dizem que a escola é espaço privilegiado para a prática do esporte pela difusão da cultura e justiça social, no tocante à oportunização de sua prática. Segundo Hildebrandt-Stramann (2003, p. 135/7) o esporte na escola pode asumir diferentes significados e diferentes perspectivas. O autor apresenta algumas perspectivas, como:”o esporte como algo socialmente regulamentado, o esporte como algo a ser aprendido, o esporte como algo a que se assiste, o esporte como algo a ser refletido e o esporte como algo a ser modificado”. De acordo com Galvão, Rodrigues e Mota e Silva (2005) a aprendizagem esportiva é importante pois somente através do conhecimento de formas institucionalizadas é que o aluno poderá vivenciar e questionar valores, ações e atitudes proporcionados pelo esporte propriamente dito. Na dimensão “o esporte como algo a que se assiste” os autores colocam que o encaminhamento da criança ao esporte, enquanto manifestação da cultura corporal, deve colaborar para que esta tenha a competência em interagir, selecionar e interpretar o esporte veinculado pela mídia, através do debate e discussões na escola. Além dos aspectos citados sobre a importância do esporte, e outros que não abordaremos neste espaço como os aspectos fisiológicos, a legislação educacional brasileira prevê, no Art. 26, § 3º , da Lei 9394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL c), a obrigatoriedade da educação física na escolas sendo facultativa ao aluno em algumas situações. Especificamente a prática do esporte é previsto em Leis que o orientam no ambiente formal e não-formal. A Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, em seu Art. 15 (BRASIL e), inciso IV, coloca como direito à liberdade a prática do desporto, o brincar e divertir-se. O Art. 4º desta Lei diz que é dever da família, sociedade e poder público a responsabilidade pelo direito da criança e adolescente à prática do esporte e lazer. A Lei 9.615, de 24 de março de 1998 (BRASIL d), alterada pelas Leis 9.981 de 14 de julho de 2000 (BRASIL g) e Lei 10.672, de 15 de maio de 2003 (BRASIL f), institui normas gerais sobre o desporto no país. Esta Lei distingue entre o esporte formal, aquele regido pelas regras formais dos desportos e aceitas pelas entidades representativas nacionais e internacionais, e o desporto não-formal, caracterizado pela liberdade lúdica dos praticantes. O Art. 30 desta Lei, em seus incisos I, II, e III diferencia a natureza e finalidade do desporto distinguindo o desporto educacional do desporto de rendimento e o desporto de participação. O desporto educacional tem como característica a sua prática nos sistemas educacionais e em outras formas de educação não sistemáticas. Enfatiza, a Lei, que o desporto educacional não deve primar pela seletividade e hipercompetitividade tendo como fim a formação de pessoas para o exercício da cidadania e prática do lazer, alcançando o desenvolvimento integral do indivíduo. Alguns autores discutem as características que diferenciam o esporte e o jogo. Entre elas encontra-se a liberdade, a motivação lúdica na participação e a flexibilidade nas regras. Entretanto, não podemos tomar esta afirmativa como uma verdade absoluta pois mesmo o esporte profissional apresenta o fator lúdico (GALVÃO, RODRIGUES E MOTA E SILVA, 2005). Apesar do lúdico estar presente no esporte profissional a atividade agonística é quem caracteriza o esporte (LEMOS e RAVANELLO, 1993). Seu sentido agonístico reduz a participação dos educandos, o que no desporto educacional não é desejável uma vez que à escola cabe a função de universalizar as diferentes manifestações do movimento. O desporto na escola deve se caracterizar como lúdico-agonístico. Canfield (1985) apud Lemos e Ravanello (1993, p. 27) diz que “do lúdico para o agonístico ocorrerá uma transição do divertimento para competição organizada”. Nesta ótica o esporte escolar deve ter regras adequadas à população que se destina garantindo a participação de um maior número de alunos em condições aproximadas de igualdade, que canalize “o espírito competitivo para uma atividade de formação humana” (LEMOS e RAVANELLO, 1993, p. 28). “Os alunos aprendem a praticar esportes para que tenham subsídios que possibilitem atividades motoras durante o resto da sua existência” (p. 28). Busca-se também, através de ações pedagógicas reflexivas (o esporte como algo a ser refletido) a “possibilidade de uma formação que leve em consideração a capacidade do indivíduo tornar-se autônomo – intelectual e moralmente – isto é, que seja capaz de interpretar as condições histórico-culturais da sociedade em que vive de forma crítica e reflexiva, impondo autonomia às suas próprias ações e pensamentos” (SILVA e COSTA, 2008, s.p). Não queremos concluir, apenas traçar uma consideração final ao concordarmos com Caparroz (2001, p. 44), citando Assis de Oliveira (2001), no sentido da mudança possível do esporte como conteúdo na educação física: Mudanças que venham a alterar a atual dinâmica do esporte, essencialmente competitiva e aparentemente lúdica, para uma outra, qualitativamente distinta, essencialmente lúdica e aparentemente competitiva. Para que mais à frente, não seja consagrado um completo embrutecimento humano e não precisemos ouvir de nós mesmos as sábias e dolorosas palavras do replicante de Blade Runner [...]: “eu vi coisas nas quais vocês humanos não acreditariam”. REFERÊNCIAS BRASIL. Senado Federal. Lei 10.672 de 15 de maio de 2003. Disponível em <www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action? id=236589>. Acesso em 25 dez. 2008 f. BRASIL. Senado Federal. Lei 5.692 de 11 de agosto de 1971. Disponível em <www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action? id=102368>. Acesso em 20 dez. 2008 a. BRASIL. Senado Federal. Lei 69.450 de 1 de novembro de 1971. Disponível em <www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action? id=120835>. Acesso em 20 dez. 2008 b. BRASIL. Senado Federal. Lei 8.069 de 13 de julho de 1990. Disponível em <www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=102414>. Acesso em 24 dez. 2008 e. BRASIL. Senado Federal. Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996. 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