ENTREVISTA // Maria Elisa Costa
Ricardo Miranda
Da equipe do Correio
Uma pessoa livre.
Uma pessoa discreta e apaixonada.
Uma pessoa que pensa.
Uma pessoa que tem talento.
Uma pessoa generosa.
Uma pessoa sensível, inteligente e atuante.
Uma pessoa que ouve o outro.
Uma pessoa curiosa e aberta ao imprevisto.
Uma pessoa capaz de achar graça nas coisas.
Uma pessoa capaz de amar.
Uma pessoa convicta e flexível, que se dá o direito de mudar de opinião.
Uma pessoa com ‘olho’ absoluto, assim como existem músicos com ouvido absoluto.
Uma pessoa culta sem ser acadêmica.
Uma pessoa sintonizada com a realidade.
Uma pessoa perfeitamente consciente do seu próprio valor.
Uma pessoa com visão histórica.
Uma pessoa que crê no ser humano.
Uma pessoa que quer transmitir o seu saber.
Uma pessoa que confia completamente no Brasil.
Ou, como ele próprio se definiu numa entrevista: ‘Um homem bom’.
O inédito "Lucio Costa, meu pai", escrito pela arquiteta Maria Elisa Costa em 2002, é uma
tentativa vã, mas sincera, de classificar o inclassificável. Por isso, diz, tudo o que a
aproxima do pai serve ao menos para matar a enorme saudade. Coordenadora da Casa de
Lucio Costa, onde, com ajuda da Petrobras, pretende reunir todo o acervo do genial
arquiteto, urbanista e pensador Lucio Costa, ela se surpreende todos os dias com
documentos, desenhos, cartas e bilhetes que acha espalhados por, literalmente, todos os
cantos do velho apartamento no Leblon, zona Sul do Rio. Dentro de um armário, encontrou
outro dia um bilhete onde o então presidente Juscelino Kubitschek, dirigindo-se a Rodrigo
Melo Franco de Andrade, do Patrimônio Histórico, perguntava se a nova capital, inaugurada
dois dias antes, não poderia ser tombada. Dez anos após a morte de Lucio, o vazio é
preenchido assim, com quilos e quilos de memória, sendo recuperados, organizados e
digitalizados. Incluindo a recuperação dos documentários realizados por José Reznik entre
1986 e 1992, com imagens e entrevista inéditas de Lucio Costa. Um livro também será
lançado reunindo tudo o que Lucio Costa escreveu ou desenhou sobre Brasília. Em meio a
tanta correria, Maria Elisa recebeu o Correio no Leblon para lembrar a vida e obra do pai
genial cujo único rótulo possível talvez seja ‘eterno’.
Qual a maior herança deixada pelo seu pai?
Seu amor ao Brasil e a total e irrestrita confiança no país. Sua frase síntese para mim é: “O
Brasil não será jamais um país medíocre”.
É difícil classificar Lucio Costa em uma área, tendo sido ele brilhante em várias.
Além da arquitetura, do urbanismo, era interessado em arte, filosofia, política...
Ele tinha uma paixão especial por alguma delas?
Paixão pelo ser humano em geral e pelas pessoas em particular – e sempre foi uma pessoa
receptiva e curiosa sobre as coisas do mundo, em todas as áreas.
Você acha que ele teve em vida o reconhecimento que merecia?
Acho que sim. Foi Doutor Honoris Causa em Arte pela Universidade de Harvard em 1960,
recebeu a Legião de Honra da França em 1970, no mais alto grau (“Commandeur”), e foi
seguramente a única pessoa no mundo que teve o privilégio de ter inventado a capital de
seu país e depois tomar um vinho num bar nesse seu ‘invento’ – o antigo Moinho, no fim da
Asa Sul, em 1985, onde foi aplaudido por todos, como também no Beirute no ano seguinte,
onde os moços e moças do ‘Invoquei o Vocal’ cantaram para ele uma canção sertaneja, sem
dizer palavra. Não pode haver para um criador reconhecimento mais precioso do que a
cumplicidade da sua criatura...
Lá se vão dez anos da sua morte...
Lucio não é ‘datado’. Com seu pensamento aberto, além de ter estado sempre presente em
momentos decisivos da cultura brasileira ao longo de toda a vida, seu tipo de sensibilidade e
inteligência, e mesmo seu próprio jeito de ser, seduzem quem se aproxima de seus escritos
e entrevistas, e conhece seu percurso. O interesse por Brasília e pelo próprio Lucio no
exterior tem sido crescente, como observamos pela procura à Casa de Lucio Costa
(www.casadeluciocosta.org). Brasília, e Lucio, continuam na moda.
Como sua obra influencia até hoje?
Digamos que Lucio foi quem deu início e estruturou a mudança da cara da arquitetura
brasileira ocorrida entre os anos 30 e 60. Acho que os arquitetos de hoje deviam prestar
mais atenção ao legado do Lucio Costa arquiteto – o Brasil só teria a ganhar...
Em 1930, Lucio foi incumbido pelo governo Vargas da reformulação do ensino na
Escola de Belas Artes. Foi a eclosão da arquitetura moderna brasileira. Como isso
marcou sua vida e obra?
Ele tinha apenas 28 anos, relutou em aceitar o convite, mas uma vez aceito, tentou fazer o
melhor – com sempre, aliás – e permanecendo apenas cerca de um ano, deixou um rastro
importante, inclusive fazendo o primeiro Salão de Belas Artes aberto aos modernos. Tanto
na organização do curso de arquitetura como no Salão, ele optou por não desmanchar o que
havia antes: no curso, manteve o tradicional e propôs uma alternativa nova – os alunos é
que escolhiam. E no Salão colocou o tradicional e o novo lado a lado. Lucio sempre foi
didático. Quando, por motivos burocráticos, ele deixou a direção da Escola, os alunos
fizeram um ano de greve.
A consolidação dessa arquitetura moderna também veio com uma obra de Lucio, a
construção do antigo Ministério da Educação e Saúde, hoje Palácio Capanema,
quando, em 1936, conseguiu trazer Le Corbusier ao Brasil. Como Le Corbusier o
influenciou e vice-versa?
Lucio só ‘descobriu’ Le Corbusier depois de deixar a direção da Escola, num período em que
estava com muito pouco trabalho, já que sua clientela dos primeiros anos queria casas de
estilo que ele já não conseguia mais fazer. Ele gosta de contar a reação de uma cliente nos
anos 30 para quem fez um projeto moderno: ‘Eu lhe encomendei uma carruagem e o sr.
quer me impingir um automóvel?!’. Nessa época, teve tempo de estudar a fundo a obra dos
criadores, Le Corbusier, Gropius, Mies van der Rohe, e foi a partir daí, da leitura dos livros –
como “Vers une Architecture”, “Précisions”, etc. - que ficou definitivamente seduzido pela
doutrina de Le Corbusier. Como costumava dizer, virou “cristão novo”, e a luta pela “causa”
da arquitetura moderna nesses primeiros tempos teve conotação de “guerra santa”. Ao
longo da vida, ficaram amigos e, em 1952, Lucio procurou o atelier de Le Corbusier em
Paris para que desenvolvesse seu anteprojeto para a Casa do Brasil na Cite Universitaire.
Passados alguns dias, Le Corbusier telefona: ‘Que história é essa de meu atelier? Meu
atelier sou eu!’ – e assumiu o projeto.
Como foi a parceria com Oscar Niemeyer? Eles se entendiam bem sempre ou havia
alguma discordância ou diferença?
Houve quatro interseções entre as trajetórias dos dois. Embora de temperamentos muito
diferentes, sempre se entenderam bem, e tiveram uma relação franca e aberta, como
parceiros que foram na defesa da arquitetura moderna brasileira.
Lucio foi responsável por várias intervenções no Rio de Janeiro. O que ele acharia
hoje da degradação das grandes cidades, da favelização, do trânsito caótico?
Acho que, apesar de tudo, continuaria a achar o Rio ‘uma beleza’, como escreveu –
apaixonado pela cidade, ele sempre foi uma pessoa realista, mas otimista como era,
descobriria alguma saída. Seguramente o que o irritaria profundamente seriam as pichações
e os grafites em todos os muros da cidade ...
Lucio venceu o concurso público para o Plano Piloto da Nova Capital, em 1957,
quando já dispunha de uma sólida bagagem. O que foi Brasília para Lúcio?
Ele sempre foi uma pessoa movida a realidade. Quando apareceu o concurso para o Plano
Piloto de Brasília, várias equipes o convidaram e ele não aceitou. Agora, a partir de um
determinado momento ele se deu conta de que o Juscelino ia fazer mesmo. Eu desconfio de
que foi quando começou a obra do Alvorada. Aí aquilo começou a fermentar dentro da
cabeça dele. E ele não usou a possibilidade de fazer a capital do Brasil para demonstrar tese
nenhuma. Ao contrário, quis usar a bagagem que ele tinha para ajudar a mudança a dar
certo. Ele tinha uma formação, uma bagagem, ele sabia que tinha que ter cara de capital,
que tinha que ser exequível em três anos e, importantíssimo, ele tinha que inventar um
novo modo de convívio urbano, que fosse novo, mas que não assustasse as pessoas. Cinco
anos antes, ele tinha defendido a unidade de habitação, aqueles prédios enormes, aquelas
coisas. Quando descobri (o projeto de Brasília), mexi com ele: 'Você, hem, por cinco anos
defendeu aquele negócio e quando tem a chance, fez o contrário'.
Por que ele fez isso?
Ele ancorou na tradição, entende? A quadra é uma coisa completamente inovadora, mas
tem seis andares, que você sobe a pé sem morrer de cansado, e tem o comércio na rua, a
quadra tem uma entrada só. Isso resgatou o convívio urbano de rua, de uma cidade menos
densa, que o Rio e a zona Sul já não tinham mais. Quando ele fez Brasília, a gente não
conhecia o vizinho do lado. Tenho uma cunhada que mora em Brasília desde '60 e, por isso,
vi a cidade crescer através do olhar de uma família que não tem nenhum arquiteto,
portanto sem preconceito. Ele fez de Brasília esse olhar, de tomada de posse, que ele
sintonizou com Juscelino de uma maneira incrível. Ele fez Brasília como uma roupa de
adulto com um bebê dentro, que foi crescendo...
Qual foi a importância de Juscelino nesse processo?
Ele sempre contava que ele propôs ao Juscelino não fazer tudo de uma vez, que era uma
loucura, (que poderiam) fazer só a Asa Sul, que não precisariam fazer a rodoviária logo... E
o Juscelino dizia, 'não senhor, imagina, o próximo (presidente) não faz e o projeto depende
disso'. Acho que foi um momento absolutamente excepcional de conjunção, de
convergência, de não competição, de soma, da vontade política, da competência, do
talento, da capacidade realizadora. O Darcy (Ribeiro) disse que 'Deus estava de bom humor
quando juntou no mesmo lugar, no mesmo momento, o Juscelino, 'doutor' Israel (Pinheiro),
Lucio e (Oscar) Niemeyer. Não é comum uma conjuntura dessas. E Brasília fica no mesmo
paralelo que Porto Seguro (BA), sabia? 500 anos antes, Portugal descobriu o Brasil para
fora. Aí vem o Juscelino e descobre o Brasil para dentro.
Brasília foi mesmo um marco?
Eu, na minha fantasia, sempre vejo Brasília como uma marca de gado no chão do cerrado,
uma coisa de 'cheguei, não vou embora, quero meu país grande, quero que meu país
cresça'.
Ele sofreu com as críticas posteriores?
Surgiu de repente, ao sul do Equador, no meio do nada, uma coisa linda. Então Brasília era
sedutora porque os desenvolvidos gostam muito de trópico enquanto exótico. Quando deixa
de ser exótico para dar certo de verdade, bom, aí começa a incomodar um bocadinho.
Houve um período em que Brasília era muito criticada, e juntou com a coisa pós-moderna.
Meu pai ficava com aquela preocupação de que Brasília era uma cidade sem vida. E eu disse
a ele: não sofre com a dor errada, que bobagem, vamos lá e você vê se tem vida ou não
tem, se as pessoas estão contentes ou não estão. Você vê. Não pela cabeça de alguém que
vem criticar de inveja. O Brasil ainda não aprendeu a dar valor aos seus valores, é uma
coisa inacreditável. E ele foi, naquela segunda ida a Brasília em 1985, e ficou absolutamente
apaixonado. Fomos então ao (bar e restaurante) Moinho (esquina da 114 Sul). Ele voltou no
ano seguinte, e aí me senti no dever cívico de levá-lo ao Beirute, que é matriz. Era 21 de
abril, estava meio vazio, aí veio um grupo de gente moça chegando, se ajoelharam em volta
e começaram a cantar, sem dizer nada. Uma coisa cúmplice, como se dissessem 'você deu
pra gente isso aqui, a gente tá te dando o fruto'. Uma coisa emocionante.
A superpopulação descaracterizou Brasília?
Brasília está no meio do caminho da migração Nordeste-Sudeste. E você tem um farol
chamado poder, que é uma sedução compreensível. Aí fica esse drama. Todo mundo fala,
ah, Brasília foi feita para 500 mil habitantes, e tem 2 milhões. Na verdade, o projeto de
Brasília foi feito para iniciar uma ocupação, que ninguém sabia o que ia ser. Era um lugar no
meio do nada, as pessoas esquecem esse pequeno detalhe. Era uma aventura doida mudar
pro nada, um cerradão sem nada. Aí aconteceu o inevitável. Agora, eu acho que tem que
ter uma consciência absolutamente assumida, como brasileiros, de preservar as
características fundamentais de Brasília. Não porque é obra do Lucio, mas pelo Brasil, pelos
nossos filhos e netos. Tem que ser assim: 'não pode'. E para isso existem instrumentos
legais.
O que mais a incomoda?
Não pode começar a brincar, como agora estão brincando de fazer o (setor) Noroeste
errado. O Lucio propôs o Noroeste para dar a possibilidade de ter mais quadras. Porque na
implantação de Brasília, as asas chegaram para mais perto do lago (Paranoá) e a Epia
(Estrada Parque Indústria e Abastecimento) se afastou no lado oeste. Então, sobrou uma
área muito grande. Quando ele esteve lá, a pedido do (ex-governador José) Aparecido, ele
ficou preocupado de fazerem besteira naquela área. Então propôs o Sudoeste e o Noroeste.
Veio o Sudoeste, embora há 20 anos eu cobre que se plante as árvores do bairro, a faixa
está lá, e não plantam. Mas o Noroeste não tinha saído ainda porque a intenção era
primeiro encher a Asa Norte. Agora fico sabendo que estão propondo quadra com duas
entradas. Que vergonha!
O que ele acharia de Brasília hoje?
Acho que repetiria o óbvio: ‘Brasília é capital do Brasil, não é capital da Suécia’... E o Plano
Piloto está resistindo, apesar dos pesares e da incompreensão de muita gente que adoraria
banalizar Brasília, subtrair do Plano Piloto a sua singularidade. Às vezes fico imaginando se
o ‘fato Brasília’ tivesse ocorrido, por exemplo, nos Estados Unidos, ou no Canadá,
exatamente como aconteceu aqui: mudar a capital, sem volta, em três anos, com a mesma
qualidade, a mesma competência – aposto que estariam cuidando da ‘Brasília’ de lá com o
maior carinho, capricho e respeito. E nós aqui estaríamos dizendo: ‘Só mesmo eles, os
louros desenvolvidos e ricos do Norte é que teriam a capacidade de fazer uma coisa tão
extraordinária. Quando, na verdade, só mesmo nós, os tropicais brasileiros ao Sul do
Equador é que tivemos, de fato, a competência. Por que será que temos tanta dificuldade
em dar valor a nós mesmos?
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ENTREVISTA // Maria Elisa Costa Ricardo Miranda Da equipe do