GESTÃO E PLANEJAMENTO URBANO EM CIDADES INTERMEDIÁRIAS: CONTRIBUIÇÕES AO DEBATE A PARTIR DO CASO DE CHAPECÓ/SC Camila Fujita Arquiteta e Urbanista pela UFPR, Especialista em Ecoturismo pelo IBPEx, Mestre em Tecnologia e Desenvolvimento pela UTFPR e Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP. Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e integrante da Rede de Pesquisadores sobre Cidades Médias – RECIME. Email: [email protected] ; [email protected] Palavras-chave: Cidade Intermediária; Planejamento Urbano; Gestão Urbana; Chapecó. 1. Introdução A política urbana recente no país tem se estruturado a partir da implementação dos planos diretores participativos, com base no Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001). Sob uma indicação puramente quantitativa, cidades que possuem população entre 20.000 e 500.000 habitantes, as quais poderiam ser consideradas de porte pequeno ou médio, perfazem 94% do total dos municípios com obrigatoriedade de possuir planos diretores (SANTOS JR; MONTANDON, 2011, pg 22). Entretanto, a maioria dos estudos e análises que servem de referência para esse tema tem como base a experiência de grandes cidades e metrópoles. Muitos planos diretores realizados para a realidade não metropolitana, desde a década de 1970 até o momento atual, acabam por evidenciar algum descolamento entre o plano e a realidade local, bem como desafios à implementação por diversos motivos, sejam eles técnicos, sociais, econômicos, além dos políticos. Desta forma, este trabalho busca reunir reflexões, com o objetivo de debater acerca da contribuição do estudo das cidades intermediárias, para a discussão dos processos de gestão, planejamento urbano e ordenamento territorial, não só para essas mesmas cidades, mas a um âmbito geral, referente à avaliação de planos diretores pós-Estatuto da Cidade. Para tanto, utiliza o município de Chapecó, no Oeste Catarinense, como estudo de caso. Parte-se da hipótese que, em meio às semelhanças e peculiaridades que marcam a gestão e o planejamento urbano das cidades brasileiras – tanto as de caráter metropolitano ou as intermediárias - a avaliação das formas de estruturação, dos processos e das funções de intermediação, que a cidade desempenha, constitui fator relevante para o direcionamento da política urbana e seu ordenamento territorial, na busca do cumprimento da função social da cidade e seu território. No tocante à metodologia e às informações levadas em conta na investigação, tomamos como base, além de análise documental e revisão bibliográfica, principalmente duas pesquisas realizadas em rede, a saber: a da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Cidades Médias (ReCiMe), cuja proposta metodológica encontra-se em Spósito et al (2007); e os resultados da pesquisa da Rede de Avaliação e Capacitação para a Implementação dos Planos Diretores Participativos (SANTOS JR; MONTANDON, 2011). Ambas pesquisas incluíram Chapecó-SC como objeto de estudo e produziram análises pertinentes aos objetivos de cada uma delas e segundo seus critérios metodológicos. A partir do intercruzamento das duas abordagens, acrescentado pelas pesquisas realizadas por essa autora em conjunto com outros pesquisadores sobre o planejamento urbano em Chapecó, é que se pretende realizar esta tarefa. Esta iniciativa também tem um caráter de estudo exploratório, com o intuito de abrir debate para um primeiro apanhado de questões que nos pareçam pertinentes à abordagem do planejamento urbano em cidades intermediárias, a fim de serem ampliadas para outras realidades já estudadas pela ReCiMe, e que vá além da simples análise descritiva dos planos diretores dessas cidades. Por outro lado, acredita-se que essa discussão também pode lançar luz às especificidades e ajustes que diversos instrumentos, programas, projetos e sua aplicação podem assumir na condução da política urbana em cidades médias, consubstanciada em seus planos diretores. O artigo estrutura-se em quatro partes além dessa introdução e as referências ao final, a saber: i) primeiramente, será pontuada uma rápida contextualização de Chapecó; ii) na segunda parte, os planos diretores da cidade serão avaliados tendo em vista os objetivos deste trabalho, com foco na análise dos ordenamentos territoriais propostos e sua efetividade quanto aos desafios existentes em cada época; iii) em seguida, os resultados da caracterização de Chapecó como cidade intermediária serão mencionados; iv) para que então, algumas reflexões acerca do planejamento e gestão urbana em cidades intermediárias possam ser tecidas; iv) as quais serão sintetizadas nas considerações finais. 2. Chapecó-SC: breve contextualização Chapecó é um município localizado no Oeste Catarinense, a aproximadamente 580 Km de distância em relação à capital do estado de Santa Catarina, Florianópolis. Para o IBGE (2010), a Mesorregião Oeste Catarinense representa 40 % dos municípios catarinenses, ocupando 26% da área total do estado, com uma população de 1,6 milhões de habitantes, sendo 37% da população residente no meio rural e 63% da população residente no meio urbano. Com população aproximada de 183.500 habitantes em 2010 (IBGE, 2010), Chapecó é a maior cidade dessa mesorregião e exerce influência regional, não só no oeste e meio oeste de Santa Catarina (SC), mas também ao norte do Rio Grande do Sul (RS), e no sudoeste do Paraná (PR), como mostra a figura 01. A abrangência dessa influência é expressa tanto pela dinâmica econômica quanto sob o aspecto da gestão territorial, de caráter público e empresarial (IBGE, 2014). Desde a sua criação em 1917, a população de Chapecó vem continuamente aumentando. Muito embora os índices de crescimento demográfico venham decrescendo nas últimas décadas, ainda assim permanecem acima da média estadual de 2% ao ano, com mais de 90% de sua população residindo na área urbana. A cidade é a sexta mais populosa no estado, depois de Joinville, Florianópolis, Blumenau, São José e Criciúma, nessa ordem. Sua importância para a rede urbana regional é caracterizada tanto pela persistência de seu papel como polo regional, assim como a progressiva estruturação como cidade média, que exerce funções de intermediação nas relações de caráter tanto horizontal como vertical e profundamente influenciada pela articulação entre o rural e o urbano (FUJITA, 2012). A agroindústria ainda perfaz a base da economia de Chapecó e região, de modo que essa atividade possui papel importante na estruturação da cidade, sobretudo por sua vinculação com o mercado nacional e internacional. Os avanços de novas atividades que houveram também são consequências disso. Dessas pode-se citar o setor terciário, que vai se consolidando e consequentemente mudando o cenário socioeconômico da cidade. FIGURA 1: Chapecó. Situação Geográfica 3. Planos Diretores e ordenamento territorial em Chapecó-SC Desde a constituição do município de Chapecó, em 1917, foram formulados três Planos Diretores (P.D.), a saber: i) o Plano de Desenvolvimento Urbano de Chapecó de 19741; ii) o P.D. de 19902 e ii) o Plano Diretor de Desenvolvimento Territorial de Chapecó de 2004 (P.D.D.T.C.)3 , o qual foi revisado ao longo dos anos de 2006 e 2007, e mais recentemente, passa por novo processo de revisão, que iniciou em 2013, porém até o presente momento não foi concluído e aprovado na Câmara dos Vereadores. A análise geral dos planos mostra que, como pontos em comum, pode-se afirmar que os mesmos refletiram o status vigente, no que diz respeito ao ideário e às normativas associadas ao planejamento urbano de sua época. 1 Lei nº 068 de 31 de dezembro de 1974. Lei Complementar no 04, de 31 de maio de 1990. 3 Lei Complementar nº202 de 06 de janeiro de 2004. 2 O plano da década de 1970 estruturou-se a partir do modelo modernista, mais especificamente dos termos de referência do SERFHAU (Serviço Federal de Habitação e Urbanismo)4, tendo sido elaborado por esse órgão. O plano foi orientado a partir do reconhecimento de Chapecó como polo da região Oeste Catarinense, em sua condição de centro comercial, político-administrativo e logístico e pela agroindústria em expansão na época, bem como pela avaliação do crescimento demográfico, que era o mais elevado do estado de Santa Catarina, com forte participação da população urbana, sendo então a mais alta do estado e superior à média regional, considerando-se o índice de participação relativa da população urbana. Fica evidente o viés socioeconômico da análise que embasou o planejamento à longo, médio e curto prazos, as projeções de obras de infraestrutura viárias futuras, como um anel rodoviário, além do zoneamento predominantemente monofuncional. À parte das já consolidadas críticas ao modelo de urbanismo modernista - de seu caráter segregador, autoritário e de ênfase infraestrutural - há que se notar a consideração e a explicitação do papel regional de Chapecó na época, o qual de fato foi sendo consolidado ao longo das décadas. O plano diretor de 1990 refletiu o discurso de planos diretores baseados no padrão da reforma urbana redistributiva (RIBEIRO; CARDOSO, 1996), fazendo alusão ao equilíbrio do território pela distribuição equitativa dos equipamentos sociais e a proteção ambiental para a qualidade de vida, incorporando em seu texto debates urbanos e ambientais em evidência na época. Porém, o ordenamento territorial e os parâmetros urbanísticos propostos então, não refletiam exatamente essa premissa, evidenciando contradições. No tocante ao enfrentamento das questões habitacionais, por exemplo, as normativas não oportunizavam o acesso de camadas populares aos locais urbanizados, exigindo lote mínimo superior ao da lei federal e, inclusive, excluindo a possibilidade de habitação de Interesse Social (H.I.S.) em certas zonas melhor estruturadas da cidade. Aliada ao grande crescimento populacional ocorrido então - ocasionado pelo esvaziamento da área rural e o crescimento da agroindústria, que se reestruturava em torno de um modelo empresarial - a omissão da política pública no enfrentamento do déficit habitacional promoveu a periferização e o adensamento dos assentamentos precários sobretudo nessa década (FUJITA, RIGON, MATIELLO, et all, 2011a, 2011b). Sob o aspecto ambiental, uma postura simplesmente regulatória e também pouco proativa não coibiu o avanço da degradação ambiental e da urbanização muitas vezes precária e conflituosa, especialmente na bacia de abastecimento de água do município (FACCO, 2011). O P.D.D.T.C. de 2004, por sua vez, aconteceu também em sintonia com os debates nacionais, em especial o Estatuto da Cidade, tendo sido um dos primeiros planos, no país, elaborados à luz do mesmo. Seu processo de formulação contou com boa participação de setores representativos da sociedade, com a estruturação de um sistema de informações para auxílio ao planejamento territorial e com assessoria de especialistas na temática. O ordenamento territorial proposto demonstrava maior coerência entre as diretrizes, os programas e os instrumentos propostos, refletindo ter havido uma leitura do território e suas especificidades, bem como a previsão de um desenvolvimento territorial mais equilibrado a partir de eixos funcionais de descentralização de desenvolvimento, predomínio de uso misto, 4 Órgão de planejamento federal integrado ao desenvolvimento municipal, que atuou entre de 1964 até 1974. reconhecimento de áreas de conflito urbano ambiental e vazios urbanos prioritários para urbanização. Este plano diretor incorporou as premissas quanto à função social da propriedade, e todos os instrumentos previstos pelo Estatuto da Cidade, dentre os de desenvolvimento e intervenção no solo urbano, os indutores do uso social da propriedade e de regularização fundiária, bem como da gestão democrática e do sistema de planejamento territorial. A proposta também extrapolou os limites do perímetro urbano, assumindo todo o território do município como objeto de planejamento, a partir da delimitação de macrozonas e diretrizes gerais de ocupação em vista de vocações existentes, abarcando possibilidades de desenvolvimento territorial mais amplo, inclusive reconhecendo a necessidade de formulação de um plano regional do qual a cidade fizesse parte. Há, portanto, que se notar algum avanço no sentido da ampliação e do aprofundamento do debate urbano na última década, ao: buscar envolver mais setores da sociedade; reconhecer a desigualdade socioespacial como fruto da lógica capitalista de produção do espaço urbano; abarcar a necessidade de interpretações do território mais abrangentes; e ao incorporar debates acerca da sustentabilidade urbana e dos conflitos urbano-ambientais. Todavia, o relatório municipal que avaliou o P.D.D.T.C. (MATIELLO, 2009), realizado no âmbito da já mencionada Rede de Avaliação e Capacitação para a Implementação dos Planos Diretores Participativos, apontou que muito embora tenha havido a elaboração de uma proposta de desenvolvimento para o município com base em estratégias econômicas, socioespaciais e de integração entre políticas de caráter territorial (habitação, mobilidade e transporte, saneamento e meio ambiente), com ênfase na função social da propriedade, a falta de uma maior definição referente à autoaplicabilidade dos e à interrelação entre os diversos instrumentos, bem como dos prazos a serem definidos, acabaram por impor limites à efetividade do plano. A revisão do plano diretor ao longo de 2006 e 2007 acabou por confirmar esse parecer, uma vez que mudanças político partidárias refletiram-se no quadro da gestão municipal e na composição e dinâmica do Conselho Municipal de Desenvolvimento Territorial (CMDT). Evidenciou-se a afinidade com as demandas do setor da construção civil, de modo que o conteúdo e a demarcação de diversos parâmetros urbanísticos e gravames foram modificados, privilegiando o aumento de índices construtivos. Salienta-se que boa parte dos instrumentos previstos no plano sequer havia sido aplicada, como o IPTU progressivo no tempo e o parcelamento, edificação e utilização compulsórios, por exemplo. Um relatório técnico, na época, afirmou que o estoque de imóveis subutilizados e vazios ainda daria conta de suprir a demanda por novas edificações por mais uma década. Porém, tais fatores não foram levados em consideração. Um dos fatos notáveis foi o aumento de índices construtivos em gravames destinados à proteção ambiental. Assim, o conteúdo dessas modificações contrariou os princípios, as diretrizes e os programas propostos no plano diretor original, gerando contraditoriedade entre as intenções e as aplicações do mesmo. Nestas situações, a interpretação teleológica, ou seja, dos objetivos primordiais que regem as ações propostas pelo plano, não deve ser perdida de vista, pois a aplicação fragmentada dos instrumentos pode facilmente privilegiar interesses dos setores privados na dinâmica da cidade, uma vez que os mesmos intencionam o estímulo da densificação urbana, desde que essa ocorra de modo a viabilizar uma cidade com maior qualidade para todos. Alguns exemplos acerca da aplicação fragmentada dos instrumentos, ocorrida após a revisão do plano, são as leis específicas que instituíram a outorga onerosa do direito de construir (solo criado), inicialmente em áreas non aedificandi para requalificação ambiental5 já ocupadas e depois para o restante das áreas na cidade6. Em ambos os casos, a lei não especifica o destino dos recursos obtidos com a contrapartida paga pelos investidores e também não vincula a articulação de qualquer programa ou outro instrumento. Ou seja, a regulamentação do instrumento se resumiu a ampliar a expansão das atividades do setor da construção civil, sem a devida transparência com relação ao retorno desse privilégio para a construção democrática da cidade. 3. Chapecó como cidade intermediária A análise de Chapecó como cidade média, que já foi objeto de discussão em Fujita (2012), orientou-se a partir da interpretação das transformações produtivas, impulsionadas por novos ou tradicionais agentes econômicos, e suas implicações sociais, bem como a contribuição para o acirramento de desigualdades socioespaciais e os processos de reestruturação urbana e regional decorrentes. Foram estabelecidas diversas variáveis de estudo segundo eixos representativos de atividades econômicas e o padrão de localização das mesmas, de modo a enfocar sua forma de estruturação e as dinâmicas e funções de intermediação que ela desempenha. As informações consideradas na investigação foram orientadas pela proposta metodológica presente em Spósito et al (2007), como já mencionado, e abrangeram quatro eixos para identificar os processos e fenômenos próprios das cidades médias, a saber: i) Ramos de atividades econômicas representativas da atuação dos novos agentes econômicos; ii) Dinâmica populacional e mercado de trabalho; iii) Equipamentos e infraestruturas e iv) Condições de moradia. Concluiu-se que o tradicional papel de Chapecó, associado às funções de intermediação das atividades agroindustriais, ainda se mantém. Chapecó enquanto cidade média, e ainda como polo, tem protagonizado dinâmicas importantes no contexto regional e nacional, atraindo atividades econômicas antes presentes apenas em grandes centros. A diversificação do terciário, a entrada recente de agentes econômicos externos e a chegada de uma instituição de ensino superior federal podem sugerir que novos papéis se descortinam, de modo a refuncionalizar em parte a cidade na rede urbana regional. Os papéis de intermediação que a cidade exerce na rede urbana estão intimamente atrelados à região, que remetem à relação dialética entre o urbano e o rural, entre verticalidades e horizontalidades. Na perspectiva das horizontalidades, configura-se como polo do setor terciário na região, tal qual salientado no primeiro plano diretor de 1970. Até pouco tempo atrás, esse setor era dominado por capitais locais, porém, muito recentemente tem havido a entrada de capitais nacionais e internacionais na rede de comércio e serviços, ligada às lojas e supermercados, com uma possível tendência no incremento dos serviços de saúde e de educação, que antes tinham menor expressividade quanto à influência regional da cidade. No caso das verticalidades, Chapecó insere-se na dinâmica do agronegócio, dando suporte à atividade agroindustrial voltada ao mercado internacional, a 5 Lei complementar nº 280, de 18 de dezembro de 2006. Institui as condições para a outorga onerosa de requalificação ambiental prevista nos artigos 302 a 304 da lei complementar nº 202 de 06 de janeiro de 2004 (PDDTC) e dá outras providências. 6 Lei nº 5679 de 24 de novembro de 2009. Dispõe sobre a outorga onerosa do direito de construir no município de Chapecó e dá outras providências. qual está calcada na produção de alimentos, mais especificamente na suinocultura, na avicultura e, mais recentemente, na bovinocultura de leite. Todavia, o desenvolvimento e a consolidação deste papel vêm acompanhados da incapacidade das políticas urbanas em atender as necessidades da população de baixa renda, muito embora existam investimentos públicos em obras urbanas que funcionam como chamarizes para novos capitais. O atendimento da demanda por habitação e da estrutura a ela relacionada tem ficado condicionado ao interesse privado, que sofre pouca regulação por parte das próprias instituições públicas que a fomentam. Persistem, assim, os desafios quanto ao enfrentamento das desigualdades sociais e regionais e dos impactos sociais e ambientais engendrados no processo de (re)estruturação urbana e regional. 4. Planejamento e Gestão Urbana em cidades intermediárias Como assinalou Leite (2006, pg 117-144), não há como reorganizar o território sem repensar o modelo econômico, a localização de atividades produtivas, o tipo de urbanização, a função dos espaços não urbanizados, as necessidades especificas de grupos sociais. A transformação do território, que favoreça e espelhe maior diversidade, deve enfrentar as contradições do capitalismo, entendendo o conflito entre as inovações e o estabelecido. Implica entender o modo como se materializam localmente as relações econômicas, políticas e culturais resultantes das condições de evolução da sociedade. Nesta perspectiva, acredita-se que a interpretação do território através do papel de intermediação das cidades, inseridas nas redes urbanas, de fato, auxilie em uma percepção mais aguçada das necessidades sociais tanto em uma escala regional, ou seja, da função social da cidade no território, quanto da função social da propriedade, a qual estaria mais vinculada a uma escala intraurbana, associada ao padrão de localização socioespacial das diversas atividades e funções exercidas na cidade, assim como de seus espaços excluídos também. À exemplo da pesquisa realizada pela metodologia da ReCiMe, no caso de Chapecó, foi possível reconhecer esse papel, bem como as diversas funções desempenhadas pela cidade, sejam elas estabelecidas ou novas, e tão importante quanto, foi possível reconhecer qual o padrão de localização e os agentes associados à elas. Ao refletirmos sobre os resultados desta pesquisa face à avaliação dos planos diretores, percebe-se que houve no plano diretor de 2004, ênfase na afirmação da função social da propriedade e no mapeamento das unidades territoriais de planejamento, ou seja, a delimitação dos gravames do ordenamento territorial e seus parâmetros de uso. O mapeamento das atividades, segundo a metodologia da ReCiMe, no geral, demonstrou boa coerência na aplicação dos gravames do plano diretor original (antes das revisões), de modo a induzir ou inibir o uso do solo com vistas a um desenvolvimento mais equilibrado do território, sobretudo no caso dos eixos de descentralização de desenvolvimento, ou seja, áreas vinculadas ao sistema de mobilidade que preveem maior verticalização e indução de uso diversificado, bem com nas áreas de proteção ou recuperação ambiental com uso restritivo. No caso das áreas especiais de interesse social (AEIS) observou-se que a localização das mesmas coincidiu com algumas das principais áreas de moradia precária, porém houve predomínio de AEIS em áreas já consolidadas e praticamente nenhuma zona em vazio urbano, de modo a possibilitar reservas de terra para fins de habitação de interesse social futura. A consecução da política habitacional do município na última década ficou mais centrada nos esforços de regularização fundiária, alcançando algum êxito em termos quantitativos, o que não significou necessariamente na qualificação da habitação e sua inclusão no acesso aos benefícios do desenvolvimento urbano (FUJITA, RIGON, MATIELLO, et al, 2011b). Por outro lado, o suprimento da demanda por novas edificações de interesse social tem sido delegado à iniciativa privada, através do Programa Minha Casa Minha Vida, porém, com a pouca regulação por parte do poder público, o que têm se observado é a geração de conjuntos habitacionais de grande porte, em termos de construção de unidades habitacionais, em áreas desprovidas de infraestrutura e integração aos equipamentos e serviços urbanos. Sob o ponto de vista do papel de Chapecó na região, apesar de mencionar a importância da integração regional, o P.D.D.T.C parece não reconhecer de modo evidente a função de intermediação da cidade na escala regional, diferentemente do plano diretor de 1974. Muito embora se reconheça que o plano diretor tem seus limites quanto a definir o futuro e que a qualidade do processo de gestão é que determina a efetividade do plano, fica a impressão que o não reconhecimento do papel regional da cidade se refletiu no enfraquecimento das possibilidades de interferência que o plano diretor poderia ter tido numa melhor condução de intervenções urbanas importantes, ocorridas na última década. Obras viárias de importância logística, como o anel viário e a ampliação da rodovia de acesso à cidade com previsão de consideráveis obras de engenharia e ampliação da ocupação sobre a área do manancial de captação de água potável, a ampliação do aeroporto municipal, a estruturação da área de orla do rio Uruguai e do acesso à cidade pelo Rio Grande do Sul, a implantação de grandes equipamentos regionais como uma universidade federal e um shopping center, além de grandes conjuntos habitacionais em áreas periféricas, ou loteamentos de alto padrão, são alguns desses exemplos ocorridos recentemente. Porém, no caso da implantação dos equipamentos supracitados, a escolha locacional ocorreu pela prevalência de interesses particulares, ainda dominados por agentes vinculados ao capital de origem local e regional, novamente contrariando os princípios fundamentais da cidade democrática, o que ocasionará certamente inúmeras implicações negativas, tanto sob o aspecto socioeconômico, quanto urbanístico e ambiental. No caso de uma cidade média como Chapecó, são precisamente esses projetos urbanos que impactam sobremaneira a formação da cidade, de modo que o plano diretor e o poder público deveriam atuar de modo proativo e fortemente como coordenadores desses processos, utilizando instrumentos como, por exemplo, da operação urbana consorciada de modo transparente, articulando diversos agentes (público, privado e o terceiro setor) e em benefício de toda a coletividade. Faz se necessário reconhecer que entre as definições dos parâmetros urbanísticos, que são extremamente genéricos, e a atuação privada na construção da cidade, há um vácuo que diz respeito a essa categoria de projeto urbano de impacto, cuja tomada de decisão não pode ser relegada à iniciativa privada tão somente. Os meios para a prática desse tipo de operação urbana em realidades não metropolitanas ainda carecem de maior investigação e exemplos concretos, mas certamente constituem uma janela de oportunidade interessante a fim de se pensar como esses podem ser vetores de transformação e qualificação urbana e não somente intervenções gentrificadoras e promotoras da desigualdade socioespacial. Como já dito anteriormente, muitos dos instrumentos do P.D.D.T.C. voltados ao desenvolvimento territorial eram pouco autoaplicáveis, sem prazo ou pouco articulados entre si ou ao ordenamento territorial, assim, o desinteresse das administrações seguintes facilmente tornaram os princípios e programas inoperantes. Mesmo que o ocorrido não seja exclusividade de Chapecó, mas situação recorrente na maior parte dos planos diretores avaliados pela pesquisa nacional dos planos pós-Estatuto (SANTOS JR; MONTANDON, 2011), acredita-se que a avaliação em retrospecto possa auxiliar na forma como os planos diretores são concebidos e operacionalizados no processo de gestão. Parece ainda ser necessária uma maior apropriação do plano pelo conjunto da sociedade e maior familiaridade na forma como as fontes de recurso podem ser captadas e utilizadas pelo poder público na coordenação adequada e transparente de projetos urbanos que auxiliem na formação da cidade. Tal perspectiva de avaliação, então, torna-se essencial para o processo de planejamento e gestão urbanas, para que possa haver uma visão mais clara de convergências entre os princípios do plano, seu ordenamento territorial e a aplicação integrada e coerente de instrumentos de desenvolvimento territorial, bem como a condução das políticas sociais. Também constitui um olhar importante para alimentar o contínuo debate sobre os rumos coletivos da cidade, tomado por seus próprios cidadãos. 5. Considerações finais Oportunizado pelo viés analítico dos papéis de intermediação das cidades, o debate acerca da função social da cidade e da propriedade - seja ela de caráter urbano ou rural, pública ou privada, voltada à produção, ao consumo, à moradia, à cidadania e à responsabilidade social, à sustentabilidade urbano ambiental, dentre outras - a nosso ver, pode tornar a interpretação e a contínua (re)construção dos planos diretores mais transparente, no sentido de evidenciar qual a cidade se quer, para quem, aonde e quando. Pode desdobrar-se de modo a qualificar princípios, objetivos, programas e o ordenamento territorial dos mesmos, articulando e direcionando instrumentos, projetos urbanos de impacto e parâmetros urbanísticos adequados à realidade local, sem perder de vista a relação da cidade no contexto intraurbano, de sua inserção na rede urbana e/ou em articulações transescalares. Esta compreensão pode, então, auxiliar na preparação do território para as demandas sociais, direcionando a localização e os projetos de equipamentos sociais, espaços públicos, investimentos em infraestrutura, o caráter de programas regionais, oportunizando a articulação de diversos agentes no processo de gestão e governança participativa. De modo inverso, este conjunto de considerações analíticas pode auxiliar na avaliação acerca da pertinência dos planos diretores em cidade intermediárias, como no caso das realidades já estudas pela ReCiMe, por exemplo. Sob outro ponto de vista, os entraves à formação de arranjos técnicos, administrativos, econômicos e políticos em cidades médias que viabilizem a efetivação dos planos diretores, como referências fidedignas à construção coletiva da cidade, podem fornecer alguma contribuição ao debate dos planos no contexto nacional e a necessidade de adaptação às especificidades locais. A questão metropolitana, pertinente a seus contextos, apesar de não se aplicar para as cidades intermediárias tal e qual, não pode ofuscar o reconhecimento da importância que algumas cidades intermediárias possuem na rede urbana, a partir de uma leitura horizontal. O exemplo de Chapecó reforça a sua importância, na medida que exerce papel de influência perante as cidades em todo o Oeste Catarinense, as quais são desprovidas de condições de planejamento e também das oportunidades de consumo de bens e serviços, sejam eles serviços públicos de saúde, de educação ou mesmo privados, dentre outros. Nesses casos, há uma maior necessidade de articulação com os demais municípios para busca de investimentos, o que reforça a ideia de um olhar atento a essas redes e aos planos desses municípios. As cidades intermediárias apresentam também polaridades, multipolaridades e especializações funcionais, porém em diferentes escalas e com peculiaridades que apontam para a necessidade de articulação com sua região, bem como o urbano e o rural. Acredita-se, então, que essas podem ser questões iniciais para se refletir acerca do planejamento urbano nas cidades intermediárias. A partir do conhecimento do papel que essas cidades desempenham, pode se compreender então a função que esses planos podem ter para o fortalecimento da gestão urbana e regional e o cumprimento da função social, ciente de seu significado e como se materializa localmente. 6. Referências BRASIL (2001); Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências, Diário Oficial, Brasília. CHAPECÓ (2009); Lei nº 5679 de 24 de novembro de 2009. 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