Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e
X Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental
Título da mesa-redonda
DISCURSOS E FORMATAÇÕES DO AFETO: CUIDADO E INTERVENÇÃO
PROFISSIONAL DIANTE DA FRAGILIDADE E DO SOFRIMENTO
Coordenador-propositor
Natália Alves Barbieri
Psicanalista, mestre e doutoranda em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de
São Paulo com bolsa da CAPES. Membro da Ger-Ações - centro de ações e pesquisas
de gerontologia.
[email protected]
Av. Ipiranga, 200, apto C271 Consolação
01046-010 São Paulo- SP – Brasil
Resumo da proposta
Infância, velhice, delinqüência e loucura têm em comum a consideração de uma
autonomia limitada no sentido de expressão de desejos e influência nos rumos das
intervenções de que são alvo principal em instituições voltadas ao atendimento de suas
patologias e/ou fragilidades. Até que ponto o “amor” permeia as relações de
profissionais, atendidos e familiares e qual a “qualidade” e “utilidade” desse “amor”?
***
Amor demais: o idoso assujeitado pelo cuidado
Primeiro autor
Natália Alves Barbieri
Psicanalista, mestre e doutoranda em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de
São Paulo com bolsa da CAPES. Membro da Ger-Ações – centro de ações e pesquisas
de gerontologia.
[email protected]
Av. Ipiranga, 200, apto C271 Consolação
01046-010 São Paulo- SP – Brasil
Segundo autor
Cynthia Sarti
Antropóloga, Professora Titular na Universidade Federal de São Paulo.
[email protected]
Rua Alagoas, 162 apto 71 Higienópolis
01242-000 São Paulo- SP – Brasil
Sumário
O termo furor curandis, modo como Freud denominou o desejo do analista em curar,
interfere e impossibilita a cura. Mais do que um aspecto da técnica psicanalítica, Freud
apontava para uma dificuldade humana em lidar com as questões despertadas pela
presença do outro. Este aspecto se encontra exacerbado no trabalho com idosos. Em
pesquisa junto a profissionais de uma instituição asilar, foi observado uma tendência
dos mesmos assumirem a responsabilidade por todas as ações que digam respeito ao
idoso, sem que este participe das decisões sobre o seu cotidiano. Prevalece a
representação de cuidado como um sentimento de doação, sendo este entendido como
um ato de amor, carinho e atenção, algo apartado do saber técnico. A partir desta
experiência, pretende-se apontar como os modelos de gestão baseadas na caridade e na
biomedicina, que informam o trabalho com a velhice, trazem implicações para o
cuidado, já que, por motivos diferentes, ambos convergem para uma de prática que
aliena o sujeito velho.
Amor demais: o idoso assujeitado pelo cuidado
Furor curandis foi o nome dado por Freud (1915, 1937) ao desejo do analista
em curar. Este excesso de cuidado – bem intencionado – pode se tornar abusivo
interferindo e impossibilitando o trabalho analítico, por pressupor uma valorização no
narcisismo daquele que oferece ajuda. Mais do que um aspecto da técnica psicanalítica,
Freud apontava para uma dificuldade humana em lidar com as questões despertadas pela
presença do outro, que podiam se manifestar no analista sob esta forma de resistência.
Este aspecto se encontra exacerbado no trabalho com idosos, sem que, no entanto, isto
seja entendido como prejudicial.
Esta apresentação trata deste aspecto abordado anteriormente numa pesquisa
sobre como os significados de velhice, envelhecimento e cuidado estão imbricados na
prática de cuidado ao idoso asilados1. O cuidado é entendido como um fenômeno
humano relacional e assim como na transferência, também se supõe uma assimetria dos
lugares entre quem cuida e quem é cuidado. A assimetria não equivale a uma relação de
desigualdade, como a própria palavra diz, mas se refere a um encontro em que um
demanda ajuda enquanto um outro se coloca disponível para ajudar. Pressupõe, pelo
menos em teoria, uma relação na qual cada protagonista ocupa um lugar distinto sem o
estabelecimento de uma hierarquia de poderes. Ao contrário desta perspectiva, a atenção
à velhice é informada, na sua maioria, pelos discursos da caridade e da biomedicina,
onde o saber se encontra apenas em um dos lados da relação: naquele que cuida.
Este panorama tornou-se evidente na análise de um estudo de caso realizado
numa instituição asilar considerada referência na cidade de São Paulo. Gerada como
uma obra de caridade no início do século XX, passou na década de 1990 a contratar
profissionais técnicos da área da saúde para que implementassem procedimentos de
cuidado autenticados pelo saber da medicina: o médico passou a conduzir as ações
clínicas e os antigos funcionários sem qualificação foram substituídos por auxiliares de
enfermagem que traziam consigo a insígnia do saber técnico biomédico; a enfermagem,
neste contexto, passa a centralizar a maior parte do cuidado com a criação de
regimentos internos. A instituição passou a divulgar a oferta do serviço de internação
1
O dom e a técnica: o cuidado a velhos asilados. Dissertação de Mestrado. UNIFESP, 2008.
hospitalar e a chamar seus moradores de pacientes. Estas mudanças são defendidas
como garantia de qualidade no atendimento ao idoso asilado.
O modo de funcionamento hospitalar, no entanto, manteve as mesmas relações
previstas pela caridade. Semelhante ao que acontece num hospital, onde é impossível a
participação do paciente na terapia prescrita pelo médico (profissional que detém a
prerrogativa sobre a conduta do tratamento), o idoso asilado deve se adequar ao
cotidiano regido pelos procedimentos da enfermagem independente de estar ou não
doente. Neste sentido, a pesquisa evidenciou que não houve uma substituição completa
entre as referências da biomedicina e da caridade cristã, mas sim uma convivência, às
vezes pacífica outras vezes dissonante, entre elas. A coexistência e o impasse entre estes
dois modelos se revelaram no trabalho de campo uma questão central, já que, apesar de
partirem de fundamentações diferentes, a razão utilitarista (que fundamenta a medicina)
partilha da mesma origem do sentimento de compaixão que move a assistência caridosa:
os dois modos se encontram ao estabelecer para aquele que cuida o saber e o poder
sobre aquele que é cuidado, por este ser entendido como alguém que não sabe ou não
tem condições de decidir o que é melhor para si (Caponi, 2004).
O cuidado como amor, referido pelos profissionais e funcionários como parte
fundamental do trabalho, mesmo em excesso, é considerado uma dádiva do trabalhador
para o idoso: cuidar bem é dar amor, dar atenção, dar carinho. O cuidar também estava
atrelado à pessoalidade do trabalhador e não a uma condição profissional, como pode
ser observada na fala de um funcionário: Cuidar é amar, é respeitar. Não só colocar o
meu profissional, mas colocar a minha pessoa.
Nas observações do cuidado institucional, este discurso sobre o cuidado como
uma prática de amor muitas vezes se apresentava sob a forma do fazer pelo outro, ainda
que de forma gentil. Sabe-se que uma das avaliações da saúde na velhice diz respeito à
capacidade funcional em realizar tarefas cotidianas como tomar banho, escolher e trocar
de roupa ou se alimentar sozinho, mas ali estas eram feitas por outros que não os
próprios idosos. Ao invés de acompanhar ou observar o idoso no banho (exigência
institucional para evitar possíveis quedas), um funcionário dá o banho. Ao invés de
perguntar que roupa o idoso quer usar, um funcionário escolhe e lhe veste a roupa. Esta
prática corrobora para o estabelecimento do controle social ao estabelecer dois
personagens numa relação desigual: o necessitado (idoso) e o piedoso (trabalhador). A
atitude piedosa movida pela força da compaixão, nestes casos, está a serviço não da
solidariedade – que implica a existência do outro como um sujeito capaz de pedir ou
negar ajuda – mas sim da coerção do poder de um sobre outro que hipoteticamente não
teria nada. O piedoso não mede se o seu socorro é desejado ou não, mas a partir do
momento em que se configura a benesse feita, o ente carente passa a contrair uma dívida
eterna a ser paga com gratidão e humildade. O sentimento de piedade traz em si um
componente de crueldade ao legitimar a violência e a exclusão por um suposto
sentimento de humanismo: nestas ações, para que um se engrandeça o outro precisa ser
diminuído (Caponi, 2004).
A concepção do cuidado como dádiva diz respeito a um aspecto presente nas
relações humanas que nem sempre são esclarecidas em função de uma valorização
social da pessoa que faz a doação. Quando se considera apenas o dom realizado pelo
profissional, se exclui a possibilidade de enxergar no idoso alguém que pode estabelecer
trocas e participar da decisão sobre sua própria situação: ele se encontra na instituição
como um pretexto para o exercício da boa ação alheia. Nestas condições qualquer coisa
que é oferecida ao idoso é valorizada pelo profissional ou funcionário, que muitas vezes
têm dificuldades de identificar o porquê de algumas reclamações de moradores, como se
estes devessem apenas agradecer o cuidado que recebem. Mauss (2003) desmistifica a
caridade como um ato desinteressado, caracterizado por um despojamento e
voluntariedade. Para o autor não existe o dom gratuito, a prática da dádiva faz parte de
um ciclo de trocas sociais que fundamenta as relações humanas, no qual está previsto
uma obrigatoriedade em retribuir aquilo que é recebido.
Cabe ressaltar que a valorização do dom, principalmente como doação pessoal,
na prática de cuidado, não vem acompanhada de uma intenção maquiavélica pelo
funcionário que a realiza. Ao contrário, este aspecto do cuidado é entendido como um
bem que está sendo realizado ao outro, sendo o cuidar com amor uma prática
reconhecidamente estimada na sociedade. A crítica que se faz neste trabalho não se
refere à presença do amor, mas como, sob sua justificativa, são estabelecidas relações
nas quais aquele que é cuidado acaba se estabelecendo num lugar de sujeição
justamente para ser (ou se manter) cuidado. A concepção do idoso asilado como aquele
que foi abandonado por sua família, independente do que aconteceu na sua história
pregressa ou de sua condição de saúde, intensifica esta noção da doação incondicional
dos funcionários na realização de seu trabalho.
Neste sentido, os dois modelos de gestão, o caridoso e o biomédico permeando
as representações dos profissionais e funcionários, trazem implicações importantes para
a prática de cuidado ao impedir que o idoso se manifeste como sujeito participante
(desejante) das decisões sobre o seu cotidiano, mesmo que de forma limitada. O
cuidado, ao se apresentar como uma relação de poder pode, nas circunstâncias
apresentadas neste trabalho, se distanciar da idéia de solidariedade, já que esta
pressupõe a existência da reciprocidade entre os pares mediada pela palavra (Caponi,
2004).
Bibliografia
Barbieri NA. O dom e a técnica: o cuidado a velhos asilados. [dissertação}. São Paulo:
Universidade Federal de São Paulo, 2008.
Caponi S. da compaixão à solidariedade: uma genealogia da assistência médica. Rio de
Janeiro: Fiocruz; 2004.
Freud S. Observações sobre o amor transferencial (novas recomendações sobre a técnica
da psicanálise III). Traduzido por Abreu JOA. Rio de Janeiro: Imago; 1915c. Vol. XII,
p.207-21.
_____ S. Análise terminável e interminável. Traduzido por Abreu JOA Rio de Janeiro:
Imago; 1937. Vol. XXIII, p.239-87.
Mauss M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In:
Sociologia e antropologia. Traduzido por Neves P. São Paulo: Cosac Naify; 2003.
p.185-314.
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