DIVERSIDADE CITOGENÉTICA EM POPULAÇÕES DE PEIXES DOS LAGOS
QUATERNÁRIOS DO MÉDIO RIO DOCE-MG.
INTRODUÇÃO
A bacia hidrográfica do rio Doce possui diversificada ictiofauna como resultado de isolamentos
determinados pelos processos de sua formação geomorfológica. Godinho & Vieira (1998) reconheceram
77 espécies de peixes na bacia, das quais 37 são consideradas endêmicas. Alterações antrópicas como
desmatamentos, mineração, descargas de esgoto, destruição de habitat, construção de barragens e a
introdução de espécies exóticas representam grande ameaça à biodiversidade da ictiofauna na bacia.
Semelhante às outras drenagens costeiras, a bacia do rio Doce possui história geomorfológica
relacionada às flutuações do nível do mar no quaternário. Essas flutuações determinaram alterações no
curso do rio até sua foz no oceano Atlântico. Nos períodos glaciais o rio Doce determinou intensa fase
erosiva ao longo de sua drenagem com sua foz localizando-se por volta de 10 quilômetros ao norte do
atual. Ao final dos períodos glaciais o aumento do nível do mar determinou modificações na dinâmica dos
tributários e do próprio rio Doce. As transgressões marinhas determinaram que o rio e afluentes ficassem
afogados e assoreados devido à intensa sedimentação. Os sedimentos aluviais e as enchentes saturadas de
sedimentos invadiram parcialmente áreas represadas, assoreando tributários e culminando no
represamento e na formação de verdadeiros diques paralelos ao curso principal (Bandeira Jr et al., 1975).
Além destes processos, as 160 lagoas do médio rio Doce também possuem processos de levantamentos de
falhas continentais envolvidas na sua formação (Pflug, 1969). Datações realizadas em depósitos aluviais
oriundos da acumulação de sedimentos nos vales dos antigos tributários do rio Doce indicam que os
últimos processos envolvidos na formação deste sistema lacustre ocorreram em dois períodos, o primeiro
por volta de 10.000 e 14.000 anos atrás (Meis & Monteiro, 1979) e o segundo entre 7.800 a 3.365 anos
(Tundisi & Meis, 1985).
Estudos envolvendo levantamento das espécies neste sistema lacustre apontam 23 espécies
distribuídas em 11 famílias (Sunaga & Verani, 1983 e 1989; Godinho & Godinho1995; Vono & Barbosa,
2001; Pompeu & Godinho, 2001; Dergam et al., 2002; Latini 2004 e 2005). Latini (2005), utilizando o
protocolo de avaliação rápida (RAP) demonstra a eminente ameaça de espécies exóticas nas lagoas. De
56 lagoas avaliadas 52 apresentam espécies invasoras.
No Brasil, pouco tem sido feito no sentido de melhor utilizar e obter dados sobre a variabilidade
genética em populações naturais de peixes, visando à conservação deste recurso natural (Dergam et al.,
2002; Hatanaka & Galetti, 2003).
Conhecimentos genéticos e citogenéticos nas diversas populações da ictiofauna do sistema
lacustre do médio rio Doce ainda são incipientes, considerando a diversidade de espécies, número de
lagoas e condições peculiares de cada lagoa. As espécies nativas por apresentarem isolamentos
populacionais relativamente recentes podem ser informativas dos padrões evolutivos e diversidade
genética existente.
Considerando a importância do conhecimento da diversidade genética nas populações naturais
como ferramenta para a conservação, o presente trabalho apresenta uma revisão sobre dados citogenéticos
em populações de Hoplias malabaricus, Oligosarcus solitarius, Astyanax sp. e Astyanax bimaculatus em
lagoas do sistema lacustre do médio rio Doce. Os dados apresentados são discutidos no contexto
biogeográfico, evolutivo e da conservação.
MATERIAIS E MÉTODOS:
Os resultados apresentados foram obtidos a partir de trabalhos realizados no Laboratório de
Sistemática Molecular Beagle, Universidade Federal de Viçosa por Jacobina (2008), Paiva (2008), Fava
(2008) e Barros et al. (2009). Os espécimes de Hoplias malabaricus trabalhados foram coletados em oito
lagoas do sistema lacustre do médio rio Doce: Marola, Linguiça, Cristal, Juiz de Fora, Hortência, Cure,
Tiririca e Carioca. Os espécimes de Oligosarcus solitarius foram coletados em quatro lagoas: Tiririca,
Cure, Hortência e Lingüiça. Os espécimes de Astyanax bimaculatus foram coletados nas lagoas Cure, Juiz
de Fora, Marola e Tiririca. Espécimes de Astyanax sp. foram coletados nas lagoas Hortência, Linguiça e
Cristal (Figura 1a). A metodologia utilizada para a obtenção de cromossomos metafásicos seguiu
protocolos de Bertollo et al. (1978). A localização das regiões de heterocromatina constitutiva foi
realizada segundo Sumner (1972) e a localização das regiões organizadoras do nucléolo (RONs) ativas na
ultima interfase celular conforme proposto por Howell e Black (1980). A captura das imagens foi
realizada em câmera OlympusTM D545 acoplada ao microscópio em aumento de 1000 X. Os cariótipos
foram montados utilizando software Adobe Photoshop 7.0 e Scion image® e os cromossomos
classificados em metacêntricos, submetacêntricos, subtelocêntricos e telocêntricos segundo metodologia
proposta por Levan et al. (1964). As regiões heterocromáticas nas populações de Hoplias malabaricus
foram utilizadas para construção de uma matriz de presença e ausência. Posteriormente foi obtido um
fenograma de similaridade utilizado o programa NTSYS (Rohlf, 1989). O programa GENES (Cruz, 2007)
foi utilizado para a realização do teste de Mantel para determinar o grau de correlação entre o índice de
similaridade e a distância geográfica entre as lagoas.
RESULTADOS:
Todas as populações de Hoplias malabaricus analisadas apresentaram 2n=42 com cromossomos
sexuais XX/XY exceto por um espécime 2n=42 sem diferenciação cromossômica, coletado na Lagoa
Marola. O cariótipo foi constituído por 12 pares de cromossomos metacêntricos, oito pares
submetacêntricos e um par subtelocêntrico em fêmeas. Os machos apresentam um cromossomo
subtelocêntrico e outro submetacêntrico de menor tamanho, com número fundamental igual a 84. Os
números de sítios de RONs ativas na ultima interfase celular mostraram-se com variações intraindividuais. O número de marcações variou de dois a sete marcações teloméricas e de um a dois pares
para as biteloméricas. As regiões de heterocromatina constitutivas encontradas tiveram um padrão de
variação entre as lagoas trabalhadas. Os blocos encontrados foram centroméricos e pericentroméricos
com poucos cromossomos apresentando marcações teloméricas.
a
b
Figura 1: (a) mapa parcial do sistema lacustre do médio rio Doce, (b) fenograma obtido por Jacobina (2008) a partir do padrão
de heterocromatina constitutiva em populações de Hoplias malabaricus com 2n=42 e sistema de cromossomos sexuais do tipo
XX/XY.
O fenograma gerado a partir da matriz de presença e ausência de heterocromatina constitutiva sugere uma
relação entre distância geográfica entre as lagoas e a similaridade de bandamento. A lagoa Marola foi a
mais divergente (Figura 1b). O teste de Mantel também indicou uma correlação entre o índice de
dissimilaridade e a distância geográfica (r= 0,6163; p < 0,05).
Os espécimes de Oligosarcus solitarius apresentaram número diplóide constante de 50 cromossomos,
porém com fórmulas cariotípicas e número de braços diferentes conforme a lagoa considerada (tabela 1).
No entanto, apesar da variação na macro-estrutura cromossômica as RONs apresentaram-se restritas a um
par de cromossomos subtelocêntricos.
Tabela 1. Dados cariotípicos de populações de Oligosarcus estudadas em três lagoas do médio
rio Doce por Paiva (2008)
Espécie
O. solitarius
O. solitarius
O. solitarius
O. solitarius
Localidade
Lagoa Tiririca
Lagoa Hortência
Lagoa Lingüiça
Lagoa Cure
Fórmula Cariotípica
4m + 16sm + 18st + 2t
4m + 16sm + 16st + 4t
4m + 14sm + 16st + 6t
4m + 14sm + 20st + 2t
2n
50
50
50
50
NF
88
86
84
88
Em Astyanax bimaculatus todas as populações apresentaram número diplóide igual a 50
cromossomos e A mesma estrutura cariotípica com seis metacêntricos, 20 submetacêntricos, 18
subtelocêntricos e seis telocêntricos. As RONs foram semelhantes entre nas quatro lagoas analisadas. As
RONs localizaram-se no par 18 ou 19 do cariótipo. Porém, o padrão de heterocromatina constitutiva
permitiu a caracterização da população de de cada lagoa. O agrupamento obtido no fenograma de
similaridade não correspondeu à distância geográfica das lagoas.
Para as populações de Astyanax sp. estudadas nas lagoas Linguiça e Cristal o número diplóide
encontrado foi de 48 cromossomos com fórmula cariotípica igual a 5m+7sm+10st+2t. Dos espécimes
coletados na lagoa Hortência o número diplóide encontrado foi de 50 cromossomos e fórmula cariotípica
igual 1m+ 2sm+17st+ 5t.
DISCUSSÃO:
As variações citogenéticas encontradas nas populações de Hoplias malabaricus, Oligosarcus
solitarius, Astyanax sp. e Astyanax bimaculatus demonstram alto grau de diversidade citogenética nas
lagoas quaternárias do sistema lacustre do médio rio Doce. Esta diversidade citogenética esta associada
aos processos de vicariância determinados pelas alterações ao longo do curso do rio Doce durante o
Pleistoceno-Holoceno. A correlação entre similaridade no padrão de heterocromatina constitutiva e
distância geográfica entre as lagoas encontrada em Hoplias malabaricus provavelmente é um reflexo do
menor tempo de isolamento das lagoas mais próximas quando comparado às lagoas mais distantes.
Em
Oligosarcus solitarius apesar da manutenção do número diplóide igual a 50 cromossomos e das regiões
organizadoras do nucléolo, os efeitos estocásticos após o isolamento das lagoas ou efeito gargalo
determinaram diferenças na estrutura cariótipica, as quais podem funcionar como isolamentos pré-zigótico
entre as populações. Souza (2007) realizando análises de RAPD (Random Amplification of Polymorphic
DNA) em Oligosarcus solitarius nas lagoas: Tiririca, Silvana, Ferrugem, Nova, Crentes e Capim encontrou
considerável heterozigosidade nessas populações.
Em Astyanax bimaculatus as variações registradas no padrão de heterocromatina constitutiva para
cada lagoa avaliada também reflete a condição genética diferenciada em cada lagoa. Já a condição de
ausência de correlação entre distância geográfica e a similaridade citogenética pode ser um reflexo do
acaso ou de forças seletivas diferentes entre as lagoas trabalhadas.
No caso de Astyanax sp. o número diplóide e a fórmula cariotípica diferenciada evidencia que a
população de Astyanax sp. da lagoa Hortência provavelmente seja uma espécie diferente das populações
encontradas nas lagoas Linguiça e Cristal.
Meffe & Carrol (1994) apontam a genética como uma das principais áreas da conservação
biológica, onde a taxa de mudanças evolutivas nas populações é proporcional à diversidade genética.
Assim sendo, a diversidade genética apresentada por diferentes espécies nas lagoas quaternárias do médio
rio Doce sugerem uma boa capacidade de diferenciação num curto período de tempo que não descarta
também a capacidade adaptativa. A perda desta biodiversidade por assoreamento, poluição e introdução de
espécies exóticas levará a considerável perda desta variabilidade genética diminuído a possibilidade de
futuras adaptações a modificações no ambiente.
AGRADECIMENTOS: Os autores destes trabalho agradecem a CENIBRA e ao CNPq pelo apoio
financeiro. Ao Edson Paiva pelo auxílio na coleta dos espécimes.
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